Daniel 1:1-7 — Estudo Teológico


Daniel 1:1-7 — Estudo Teológico

Daniel 1:1-7 — Estudo Teológico

1. O contexto (1.1-7)

1:1-2 Os versículos 1-7 estabelecem o contexto de todo o livro, assim como da primeira história. Esses versículos enfatizam três características importantes da situação: o povo de Deus é (1) dominado por poderes estrangeiros; (2) forçado a viver em uma terra estrangeira; e (3) tentado a assimilar a cultura estrangeira. Esses três elementos criam um pano de fundo para a mensagem do livro e para cada história ou visão contida nele. O enfoque desses versículos é a tensão causada pela colisão de culturas, e eles levantam a questão central do livro: “Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?” (SI 137.4). No contexto do Salmo 137, essa pergunta retórica expressa a impossibilidade frustrante de se viver de maneira próspera no exílio. A resposta à pergunta é “Nós não podemos cantar”. No livro de Daniel, contudo, a pergunta é direta, e as respostas são positivas. As “canções do Senhor” podem ser cantadas em uma terra estrangeira de maneira apaixonada.


Essa história data especificamente do “terceiro ano do reinado de Jeoaquim”, o que se refere ao crítico ano de 605 a.C. (Dn 1.1). Outra história e cada uma das visões são introduzidas em referência a um ano particular no reinado de um rei (veja 2.1; 7.1; 8.1; 9.1; 10.1). Isso mostra uma preocupação marcante ao longo do livro com que se leia o material dentro de um contexto histórico particular.

Nabucodonosor, rei da Babilônia, é o sujeito de quatro verbos de agressão nesses versículos. Ele veio (ibo), sitiou (sür), levou (causativo de bo) e colocou (causativo de bô’) (v. 1,2). Aparentemente, seria ele quem estava no controle. Sem dúvida, um exército poderoso fora enviado para sujeitar Jerusalém. O autor de Daniel, contudo, não menciona o poder dos exércitos babilônicos como o fator principal. Essas ações ocorreram pela vontade do Deus de Judá. O Senhor [os] entregou (nãtan também significa “deu”) nas suas mãos (v. 2). A mesma linguagem foi usada por Jeremias quando este previu a queda de Jerusalém (Jr 12.7; 21.10 etc.). Daniel concorda com Jeremias. As circunstâncias por trás da história em Daniel 1 não ocorreram por acidente. Elas foram um cumprimento profético. Deus havia orquestrado esses eventos. Jerusalém foi dada nas mãos de Nabucodonosor como um ato de juízo divino.

Em Daniel, Deus é designado por diversos nomes. O termo usado em Daniel 1.2, o Senhor ( ãdõnãy), é empregado com frequência ao longo do AT para enfatizar o governo soberano de Deus. Ele ocorre mais oito vezes no livro. Essas ocorrências encontram-se na oração do capítulo 9 como o modo favorito pelo qual Daniel se dirigia a Deus (9.4,7,15,16,17,19 [3 vezes]). Seu aparecimento a essa altura introduz sutilmente um tema importante: o controle soberano de Deus sobre o Seu povo e as suas circunstâncias. Essa ideia será enfatizada de forma mais dramática em passagens subsequentes. De acordo com o livro de Reis, Jeoaquim representa o grupo de governantes de Judá que fizeram “o que o Senhor reprova” (2 Rs 23.37). Sua incompetência política e espiritual parece ter apressado o fim de Judá. Em Daniel, seu papel é limitado ao de um rei que foi subjugado por Nabucodonosor. A menção a Jeoaquim nos versículos iniciais é a única referência a um rei judeu no livro (Dn 1.1,2). Reis babilônicos e persas são o alvo das atenções daí por diante.

Isso contrasta com os livros mais proféticos, onde as atividades dos reis de Israel e de Judá são proeminentes. O alcance de Daniel é mais internacional. A política babilônica incluía a completa humilhação dos seus inimigos. Para reduzir as possibilidades de rebelião, Nabucodonosor enfraquecia aqueles que ele conquistava minando os seus recursos. Ele conseguiu fazer isso com Judá: (1) levando os utensílios do templo de Deus (...) para o templo do seu deus (v. 2); e (2) trazendo alguns dos israelitas (...) para ensinar-lhes a língua e a literatura dos babilônios (v. 3,4). Essas duas ações garantiram o controle babilônico sobre Judá.

Com base em 2 Crônicas 4, os utensílios do templo talvez tenham inclu­ído uma variedade de itens usados em suas operações diárias. Esses podem ter sido: vasilhas, panelas, pás, garfos, tenazes, espevitadores, pratos e incensários. De acordo com Daniel 5.2, taças poderiam ser acrescentadas à lista, embora estas talvez tenham sido levadas mais tarde. Esses utensílios eram todos feitos de metais preciosos como o ouro e a prata e tinham um valor considerável.

Eles serviram como um pagamento parcial feito ao senhor da Babilônia pelo vassalo subjugado, Judá. Os utensílios do templo eram tesouros nacionais e religiosos. Eles eram símbolos da força de Judá e do prestígio do seu Deus. Segundo a ótica babilónica, esses utensílios funcionavam como ídolos representando a divindade de Judá. Ao levá-los para o templo do seu deus, Nabucodonosor estava fazendo uma declaração de supremacia (v. 2). Esse templo, provavelmente, fora dedicado a Marduque, o deus padroeiro da Babilônia. Foi esse deus quem capacitou Nabucodonosor a prosperar, e era por ele que o monarca travava suas batalhas.

O autor de Daniel não deixou esse ponto passar despercebido. O alinhamento de frases e a escolha elaborada de palavras no versículo 2 enfatizam a dura realidade do povo de Deus. A base do poder havia sido transferida do templo de Deus (...) para o templo do seu deus na terra de Sinear [Babilônia] (v. 2).

A tensão inicial da história é mais do que política ou cultural. Ela é religiosa. O deus da Babilônia aparentemente havia subjugado o Deus de Judá. Marduque havia dominado Yahweh (YHWH).

1:13 O segundo elemento da humilhação de Judá pela Babilônia envolvia a captura de jovens da família real e da nobreza (v. 3). Isso também fazia parte dos espólios de guerra. Esses jovens garantiriam a segurança de uma aliança contínua com a Babilônia e podiam ser treinados para ajudar a administrar o império em franca expansão. Em um certo sentido, eles eram reféns. Removê--los da sua terra natal reduzia quaisquer planos que eles pudessem ter de restaurar a liberdade de Judá do domínio babilônico. Eles seriam treinados e cortejados para tornarem-se amigos do estado.

Os jovens foram identificados como israelitas, literalmente “filhos de Israel” (v. 3). Talvez, o autor pudesse ter sido mais exato chamando-os de “filhos de Judá”, já que o reino do norte já não existia. Ao chamá-los de filhos de Israel, o autor liga essa narrativa à história maior dos descendentes de Abraão, aumentando a tensão entre as heranças culturais de Israel e da Babilônia. Essa é a tensão que está por trás do drama sendo contextualizado nesses versículos iniciais.

O rei ordenou que o chefe dos oficiais da sua corte supervisionasse o treinamento (v. 3). Seu nome é dado como Aspenaz, um nome de origem persa. Sua posição exata na hierarquia dos oficiais do palácio é difícil de determinar. Alguns sugerem que Aspenaz talvez seja um título, e não um nome pessoal. Nesse caso, ele poderia significar “estalajadeiro”. Isso se encaixaria ao contexto, já que ele parece ter sido encarregado da acomodação dos residentes do palá­cio. O termo hebraico para oficiais da (...) corte cobre um amplo espectro de papéis no palácio. Mais tarde, o termo passou a designar os eunucos. Contudo, a essa altura da história, não temos razão alguma para presumir que ele fosse um eunuco ou que aqueles que ficavam sob os seus cuidados tornavam-se como tal. Qualquer que tivesse sido sua posição precisa, a referência ao seu título como chefe indica o alto nível do treinamento envolvido e serve para aumentar os interesses que estavam em jogo nas experiências relatadas nesse capítulo.

1:4-5 Os jovens selecionados para o treinamento eram excepcionais em todas as áreas. Eles possuíam qualidades físicas e intelectuais acima da média, o que os tornava capacitados para servir no palácio do rei (v. 4). A descrição sem defeito físico é reminiscente dos atributos dos sacerdotes e sacrifícios que os tornavam aceitáveis ao Deus de Israel (Lv 21.16-23; 22.19-23). De modo sutil, isso enfatiza ainda mais a ideia foi expressa anteriormente com os utensílios do templo. Aquilo que deveria ter sido dedicado a Yahweh agora estava sendo dedicado a Marduque.

A aptidão desses jovens para os vários campos do conhecimento lembra as qualidades dos sábios mencionados na literatura de sabedoria de Israel (v. 4). Em Provérbios, indivíduos que dominassem (“prudência”, sãkat) os vários campos de conhecimento (“sabedoria”, hokma), cultos (“conhecimento”, daat), inteligentes (“discernimento”, bin). Essas qualidades lembram a descrição do caráter de José em Gênesis 41.33 e 39. Elas conectam Daniel e os seus amigos à tradição da sabedoria bíblica. Daniel, em particular, demonstrará habilidades extraordinárias dentro da tradição da sabedoria israelita, muito além daquelas encontradas na Babilônia. Daniel será treinado nos costumes babilônicos.  

Entretanto, o texto sugere claramente que sua principal preparação deriva da sua conexão com Israel e com o seu Deus. O currículo para o treinamento desses jovens extraordinários era a língua e a literatura dos babilônios (v. 4). As versões inglesas mais antigas designam os babilônios (kasdím) como “caldeus”. Os caldeus eram uma tribo do sul da Mesopotâmia que ganhou controle sobre a Babilônia sob a liderança de Nabopolasar em 626 a.C.. Entretanto, o AT refere-se a todos os povos circunvizinhos da Babilônia como kasdím. Isso também costumava ser feito em documentos assírios. Portanto, a tradução babilônios é apropriada.

No livro de Daniel, a palavra kasdím é usada três vezes para referir-se aos babilônios (1.4; 5.30; 9.1). Contudo, o termo era mais usado para identificar uma classe de homens cultos e sábios ou sacerdotes (2.2,4,5,10; 3.8; 4.7; 5.7,11). Esse último uso também foi feito pelo historiador Heródoto no quinto século a.C. (Herodotus 1:181-183).

A língua nativa dos caldeus era o aramaico, a língua internacional do Oriente Médio na época. Ela á um cognato próximo do hebraico, escrita com um alfabeto similar. A língua oficial e literária do povo babilônico, contudo, era o acadiano. Isso requeria o domínio de um complicado e antigo sistema de escrita conhecido como cuneiforme. A literatura dos babilônios também incluía antigos textos sumérios copiados dos séculos anteriores e escritos com os mesmos caracteres do acadiano. Os arqueólogos desenterraram um rico estoque de textos históricos, econômicos e religiosos nessas línguas. Entre os textos religiosos, há aqueles que lidam com a arte da adivinhação, uma profissão altamente sofisticada na Babilônia. Indivíduos eram especialmente treinados para decodificar o significado de augúrios, os quais eles acreditavam ser mensagens dos deuses. Fenômenos naturais incomuns, o movimento das estrelas e até o fígado das ovelhas forneciam insight quanto às mensagens divinas. A extensão dessa literatura e a intensidade da instrução necessária para dominá-la é sugerida pelo fato de que foram necessários três anos para que [os jovens] fossem adequadamente treinados (v. 5).

Aqueles que eram selecionados para esse treinamento especializado recebiam o benefício de desfrutar da comida e do vinho da própria mesa do rei (v. 5). Isso não significa, necessariamente, que eles, literalmente, comiam à mesma mesa que o rei. Apenas um grupo seleto e reduzido desfrutava desse privilégio. A frase simplesmente indica que os israelitas recebiam o mesmo tipo de comida de alta qualidade que o rei. Diversas pessoas em um grande complexo palaciano recebiam uma porção diária de comida à custa do estado.

O resultado almejado pela intensiva educação babilônica era preparar esses jovens inteligentes para passarem a servir o rei (v. 5). Isso podia significar diversas coisas. Com base no papel representado por Daniel nos capítulos posteriores, parece que esse treinamento preparava-os para funcionar como sábios da corte, dos quais havia diversas categorias (veja comentário em 2.2). O papel desses indivíduos era agir como conselheiros do rei. Sua preparação capacitava-os a acessar o conhecimento passado para melhor interpretar e aconselhar quanto à vida presente.

1:6-7 No versículo 6, o herói do livro é finalmente introduzido pelo nome, junto a três outros que protagonizam a história no capítulo 3. A técnica da introdução adiada do personagem principal cria um suspense inicial para o leitor. Um contexto de culturas conflitantes já foi dramaticamente esboçado. Em uma terra estrangeira, os israelitas são instruídos em todos os costumes da cultura dominante, tendo acesso às mesmas comidas e bebidas. A ameaça da total assimilação é real. O cenário é criado para que um herói se destaque entre os membros da comunidade oprimida e defenda os valores do grupo. Quatro jovens de Judá aceitam o desafio (v. 6). Eles estavam entre os cativos que eram aculturados à sociedade babilônica. A atenção do público original seria atraída para os quatro, já que eles também estavam entre os que vieram de Judá viviam sob o domínio estrangeiro. Será que eles conseguiriam defender as crenças sagradas do povo judeu? Como eles encarariam a vida nesse ambiente hostil?

Uma descrição final do processo de comprometimento cultural é dada no versículo 7, aumentando, consideravelmente, o drama. Os quatro israelitas recebem novos nomes. O nome de uma pessoa era extremamente relevante nas culturas antigas do Oriente Médio. Ele refletia o caráter, os relacionamentos familiares e até mesmo a religião. Uma mudança de nome significava uma considerável reorientação na vida. Abraão e Jacó no AT e Pedro e Paulo no NT, talvez, sejam os melhores exemplos disso na Bíblia.

Os quatro israelitas tinham nomes hebraicos extremamente significativos. Daniel significa “o meu juiz é Deus”, Hananias, “Yahweh mostrou graça”, Misael, “quem é como Deus?”, e Azarias, “Yahweh ajudou”. Tais nomes simbolizam uma ligação profunda com a comunidade judaica e com o seu Deus.

Presume-se que o chefe dos oficiais encarregado do treinamento deles seja o mesmo Aspenaz do versículo 3. Ele deu-lhes novos nomes que refletem associações babilônicas (v. 7). Beltessazar significa “protege a sua vida” e parece ser uma forma encurtada de Bel-beltessazar ou Nebo-beltessazar. Tanto Bei como Nebo são nomes de deuses. Bei é outro nome para Marduque, e Nebo (também Nabu) era o seu filho. Sadraque, provavelmente, significa “comando de Aku”. Aku era o deus da lua. Mesaque parece ser o equivalente babilônico de Misael. Ele também pode ser traduzido como “quem é como Aku?” AbedeNego talvez seja uma corruptela de Abede-Nego, que significa “servo de Nebo”. Embora o conhecimento moderno do significado exato de cada nome seja um tanto incerto, o que se sabe é suficiente para revelar um padrão. Os israelitas receberam nomes que procuravam identificá-los com o mundo dos babilônios.

Esses nomes babilônios eram calculados para indicar uma mudança significativa de lealdade e direção de vida. A importância disso não passaria despercebida ao público original. Uma perda total da identidade cultural, e portanto das convicções religiosas, estava em jogo. Tanto os nomes hebraicos como os nomes babilônicos dos personagens principais desse livro são apropriados. Daniel demonstra ser um homem que vive como se ele verdadeiramente acreditasse que Deus é o seu juiz (Daniel)Embora ele se mostrasse submisso ao rei e ao estado, ele deixava claro que Deus era aquele a quem ele verdadeiramente prestava contas. Como resultado desse compromisso, ele se torna alguém cuja vida é divinamente protegida (Beltessazar). Seu Deus, contudo, e não Bei, é quem o livra repetidas vezes.

Ao longo dessa seção, os babilônios eram os principais sujeitos dos verbos. Nabucodonosor e o chefe dos oficiais estão no comando. Nabucodonosor veio (v. 1), sitiou (v. 1), levou (v. 2), colocou (v. 2), ordenou (v. 3), designou (v. 5), e o chefe dos oficiais deu (...) nomes (v. 7). Por outro lado, os israelitas estão passivos. A ação está acontecendo a eles. O efeito disso na narrativa é realçar a sujeição de Israel. Essa era a atmosfera do exílio. Na superfície, a Babilônia, aparentemente, controlava o mundo dos eventos humanos.