Os Puritanos e o Puritanismo

Os Puritanos e o Puritanismo



Os Puritanos e o Puritanismo

por J. R. Beek e M. Jones


Uma das tarefas mais difíceis para o historiador da igreja é definir puritanismo.3 Não é exagero afirmar que uma definição exaustiva dobraria o tamanho desta introdução. Assim mesmo, cabem algumas observações.

De acordo com John Coffey e Paul C. H. Lim, “O puritanismo foi um tipo de protestantismo reformado alinhado com as igrejas calvinistas da Europa continental e não com as luteranas”.4 Afirmam que o puritanismo foi uma “forma especial e bastante vigorosa do início do protestantismo reformado moderno, tendo se originado na Igreja da Inglaterra, como produto daquele ambiente peculiar e suas tensões. No reinado de Elizabeth I, a Igreja da Inglaterra era amplamente considerada uma Igreja Reformada.5 Sem dúvida, teólogos puritanos eram em sua maioria reformados ou calvinistas. Assim mesmo, não insistimos que os puritanos eram exclusivamente reformados.

Definir ortodoxia reformada é algo complexo, mas documentos confessionais — tais como As Três Formas de Unidade6 e as Normas de Westminster7, estas últimas sendo mais relevantes para este livro — nos fornecem um resumo preciso da teologia reformada.

Richard Baxter (1615-1691) era, com certeza, puritano, mas não reformado à maneira de William Perkins (1558-1602), Thomas Goodwin (1600-1680) e John Owen (1616-1683). Debates teológicos vigorosos entre Baxter e Owen revelam que suas diferenças iam bem além de questões semânticas. Baxter achava que podia aceitar os Cânones de Dort, mas não nutria semelhante simpatia pelos documentos de Westminster, que excluíam várias de suas ideias, em especial aquelas sobre a expiação e a justificação. E, conquanto tenha contribuído com outros pastores na redação de A new confession o f faith, or the first principles of the Christian religion necessary to be laid as a foundation by all such as desire to build on unto perfection (1654) [Uma nova confissão de fé, ou os primeiros princípios da religião cristã que devem ser lançados como alicerce por todos aqueles que desejam neles edificar rumo à perfeição], Baxter não aprovou sua forma final. E mais, acusou Owen, Goodwin e Thomas Manton (1620-1677) de não possuírem o discernimento exigido para tal empreitada.

Considerado em retrospectiva, o puritanismo era mais diversificado do que podia parecer. É preciso entender com cuidado o emprego do vocábulo como termo teológico neste livro. Não é apenas Baxter que desafia uma classificação; isso também ocorre com John Goodwin (1594-1665), arminiano; John Milton (1608-1674), possivelmente ariano; John Bunyan (1628-1688), batista; e John Eaton (c. 1575-c. 1631), antinomiano — todos com frequência considerados puritanos. Coffey e Lim propõem que “batistas calvinistas eram, por exemplo, amplamente reconhecidos como ortodoxos e piedosos, e a igreja nacional puritana do período de Cromwell incorporou alguns batistas lado a lado com presbiterianos e congregacionais”.8

Entretanto, a imensa maioria dos puritanos fazia parte do movimento teológico mais amplo denominado ortodoxia reformada.9 É certo que o Parlamento inglês desejava que a fé da nação fosse entendida como reformada e protestante. O propósito maior da convocação da Assembleia de Westminster foi assegurar “uniformidade de religião” nos três reinos da Inglaterra, Escócia e Irlanda. Mas isso não significou que os puritanos sempre concordaram em questões de teologia. Mantiveram debates acalorados sobre várias doutrinas (para não mencionar questões de liturgia e governo eclesiástico), conforme se verá nos capítulos seguintes.10 Mas estavam unidos no esforço de derrotar os erros do semipelagianismo católico-romano, do antitrinitarismo sociniano e do livre-arbítrio arminiano. Opuseram-se a católicos romanos tais como o pregador jesuíta Roberto Bellarmino (1542-1621). Rejeitaram o socinianismo, em particular as ideias de Lélio (1525-1562) e Fausto (1539-1604), e o Catecismo Polonês Racoviano (1605). E combateram os arminianos, em especial suas idéias errôneas sobre as doutrinas da predestinação, de Deus, da expiação, da Trindade e da justificação.”11

Além da acirrada polêmica com os grupos mencionados anteriormente (e também outros), os puritanos revelam indícios de um distanciamento cada vez maior entre teólogos reformados e luteranos. O luteranismo havia sido muito influente nos primórdios da Reforma inglesa, mas, conforme assinalado por Coffey e Lim, os luteranos não faziam parte do movimento puritano. Em escritos puritanos existem algumas referências a Martinho Lutero (1483-1546) e a Filipe Melâncton (1497-1560), mas em geral as referências à teologia luterana são negativas, em especial nas áreas da cristologia e da ceia do Senhor.

No enorme corpus literário de autoria de John Owen é notável a ausência de citações de autores luteranos, embora pareça fazer citações de quase qualquer outro!12 O s puritanos acreditavam que o culto luterano mantivera um número demasiado de práticas pré-reformadas não bíblicas.13 Essa é talvez a principal razão de os luteranos serem considerados teologicamente suspeitos, apesar de terem contribuído para a compreensão da justificação pela fé somente e estarem em geral de acordo com ela. É preciso entender o puritanismo como um movimento que procurou reformar de modo mais amplo e profundo a Igreja da Inglaterra em conformidade com a Palavra de Deus. Por algum tempo, os puritanos tiveram êxito em atingir esse objetivo, como fica evidente no trabalho feito pela Assembleia de Westminster, na introdução da ordenação e do governo eclesiástico presbiterianos em vários lugares e na ascensão de puritanos a posições de influência na igreja e no Estado e nas antigas universidades de Oxford e Cambridge.

Mas, conforme assinalado por Carl Trueman, o puritanismo sofreu um duro golpe como movimento de reforma dentro da Igreja da Inglaterra: “Em 1662, com a aprovação do Estatuto da Uniformidade, aqueles que faziam parte da Igreja da Inglaterra e desejavam uma reforma mais ampla de suas práticas e que achavam impossível aceitar aquilo que consideravam aspectos papistas do Livro de Oração Comum, foram forçados a fazer uma escolha difícil: ou se conformavam e abandonavam suas profundas crenças sobre a igreja ou a deixavam em protesto. Quase dois mil escolheram a segunda opção, e assim o puritanismo fez a transição para o não conformismo”.14

O que ocorreu com o puritanismo? Em certa ocasião, Norman Sykes apresentou este conciso resumo:

Em comparação com o século anterior, o século 18 testemunhou em todas as igrejas um acentuado declínio do fervor religioso. Com a acessão da dinastia de Hanôver,15 teve início uma era de moderação, sobriedade e acordos. A igreja estabelecida tinha as salvaguardas da Lei do Teste16 e da Lei das Associações;17 e os dissidentes protestantes,18 com a garantia da tolerância19 e muito divididos por controvérsias teológicas, conformaram-se, adotando uma posição de aquiescência passiva. Em termos políticos, o fato de terem criado a comissão dos delegados dissidentes20 lhes permitiu preservar o status quo no que diz respeito à tolerância garantida pela lei, mas não conseguiram ampliá-la; e o fato de aceitarem doações reais, o regirun donum,21 como contribuição anual para suas entidades filantrópicas, significou que se acomodaram e assim viveram “sossegados em Sião”.22

Alguns, como é o caso de Trueman, propõem que 1662 foi o final da era puritana, visto que as tentativas de reformar a Igreja da Inglaterra terminaram com a tríplice restauração da monarquia, do episcopado histórico e do Livro de Oração Comum. Outros, como Sykes, sustentam que a transição do puritanismo para a dissidência protestante ocorreu depois de 1689 com a Lei da Tolerância. E alguns preferem dizer que o puritanisme terminou com a morte de John Howe (1630-1705), pastor da igreja Silver Street Presbyterian Church, em Londres. Qualquer que tenha sido o ano, o puritanisme diz respeito especialmente a questões de igreja e Estado, de teologia e culto nos séculos 16 e 17. Depois de 1689, todas as partes envolvidas nos grandes conflitos de décadas anteriores depuseram armas e começaram a coexistir mais ou menos pacificamente.

Isso é importante porque, embora Jonathan Edwards (1703-1758) fosse puritano em sua teologia e piedade e às vezes seja considerado o último dos puritanos, não era puritano no sentido histórico estrito. Por isso, este livro não inclui capítulos sobre a teologia de Edwards, por mais fascinantes que sejam. Os homens de Marrow e os separatistas da Escócia, os ilustres teólogos da “Antiga Escola de Princeton”, Thomas Chalmers (1780-1847), Charles Haddon Spurgeon (1834-1892), John Charles Ryle (1816-1900), Martyn Lloyd-Jones (1899-1981), James I. Packer (1926-) e outros eruditos, embora com uma mente profundamente aberta aos puritanos, não podem ser considerados puritanos no sentido dos teólogos de Westminster. Caso fossem, o puritanismo perderia qualquer sentido histórico específico. 

Para entendermos os puritanos, devemos reparar naquilo que Tom Webster afirma sobre os três aspectos distintivos de um puritano. Em primeiro lugar, os puritanos tinham uma comunhão dinâmica com Deus que moldava sua mente, afetava suas emoções e penetrava sua alma. Estavam fundamentados em algo e em alguém fora de si próprios: o Deus triúno das Escrituras. Em segundo, os puritanos adotavam e partilhavam um sistema de crenças fundamentadas nas Escrituras. Hoje nos referimos a esse sistema como ortodoxia reformada. Em terceiro, com base em sua experiência espiritual comum e sua unidade na fé, os puritanos estabeleceram uma rede de relacionamentos entre crentes e ministros.23 Essa comunhão de irmandade cooperativa nasceu na Inglaterra elizabetana do século 16 e se desenvolveu na Inglaterra e na Nova Inglaterra do século 17. A característica distintiva do puritanismo foi sua busca de uma vida reformada pela Palavra de Deus. Os puritanos estavam comprometidos a examinar as Escrituras, organizar e analisar suas descobertas e então aplicá­-las a todas as áreas da vida. Tinham uma abordagem confessional, teológica e trinitária que instava à conversão e à comunhão com Deus na vida pessoal, familiar, eclesiástica e nacional.

Assim, quando, por exemplo, chamamos Thomas Goodwin de puritano, queremos dizer que fez parte de uma rede espiritual de líderes alicerçados em crenças reformadas e na comunhão vivencial com Deus. Puritanos como Goodwin trabalharam pela reforma baseada na Bíblia e pelo avivamento no poder do Espírito nas esferas pessoal, familiar, eclesiástica e nacional na Inglaterra a partir da década de 1560 até a de 1660 e mesmo depois. Seus escritos e os de seus contemporâneos tratavam de “doutrina para a vida”, sustentando a crença, mais tarde ratificada por presbiterianos norte-americanos, “de que a verdade era o meio para se chegar à bondade, e o grande meio de avaliar a verdade é sua tendência em promover a santidade”.24 

Em resumo, o movimento do puritanismo, ocorrido no final do século 16 e no 17, foi uma espécie de um vigoroso calvinismo. No aspecto experiencial, era caloroso e contagiante; no aspecto evangelístico, era agressivo e ao mesmo tempo terno; no aspecto eclesiástico, buscava praticar a autoridade de Cristo sobre a fé, o culto e o governo de seu corpo, a igreja; no aspecto político, era ativo, equilibrado e guiado pela consciência perante Deus no relacionamento com o rei, o Parlamento e os cidadãos.25 Packer o expressa bem: “O puritanismo foi um movimento evangélico de santidade que procurou implantar sua visão de renovação espiritual — nacional e pessoal — na igreja, no Estado e no lar; na educação, na evangelização e na economia; no discipulado pessoal e na devoção, e no cuidado e competência pastorais”.



Notas
3Sobre essa questão, veja Joel R. Beeke, The quest for full assurance: the legacy of Calvin and his successors (Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1999), p. 82, n. 1; Joel R. Beeke; Randall J. Pederson, Meet the Puritans: with a guide to modern reprints (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 2006), p. xiii-xtx [edição em português: Paixão pela pureza: conheça os puritanos, tradução de Odayr Olivetti (São Paulo: PES,2010)]; Ralph Bronkema, The essence of Puritanism (Goes: Oosterbaanand LeCointre, 1929); Jerald C. Brauer, “Reflections on the nature of English Puritanism”. Church History 23 (1954): 98-109; A. G. Dickens, The English Reformation (University Park: Penn State Press, 1991), p. 313-21; Basil Hall, “Puritanism: the problem of definition”, in: G. J. Gumming, org.. Studies in church history (London: Nelson, 1965), 2:283-96; Charles H. George, “Puritanism as history and historiography”. Past and Present 41 (1968): 77-104; Richard Mitchell Hawkes, “The logic of assurance in English Puritan theology”, Westminster Theological Journal 52 (1990): 247; William Lamonl, “Puritanism as history and historiography: some further thoughts”. Past and present 42 (1969): 133-46; Richard Greaves, “The nature of the Puritan tradition”, in: R. Buick Knox, org.. Reformation, conformity and dissent: essays in honour of Geoffrey Nuttall (London: Epworth, 1977), p. 255-73; John Morgan, Godly learning: Puritan attitudes towards reason, learning, and education, 1560-1640 (Cambridge; Cambridge University Press, 1986), p. 9-22; D. M. Lloyd-Jones, “Puritanism and its origins”, in: The Puritans: their origins and successors (Edinburgh: Banner of Truth, 1987), p. 237-59 [edição em português: Os puritanos: suas origens e seus sucessores (São Paulo: PES, 1993)]; J. I. Packer, A quest for godliness: the Puritan vision of the godly life (Wheaton: Crossway, 1990), p. 21-36; Tae-Hyeun Park, The sacred rhetoric of the Holy Spirit: a study of Puritan preaching in pneumatological perspective (Apeldoorn: Theologische Universiteit Apeldoorn, 2005), p. 73-5; Leonard J. Trinterud, “The origins of Puritanism”, Church History 20 (1951): 37-57.
4John Coffey; Paul C. H. Lim, “Introduction”, The Cambridge companion to Puritanism (Cambridge: Cambridge University Press, 2008), p. 2.
5Coffey; Lim, “Introduction”, The Cambridge companion, p. 3.
6Normas doutrinárias das igrejas reformadas holandesas e as denominações-irmãs fora dos Países Baixos: a Confissão Belga, o Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort.
7Normas principais (Confissão de Fé, Catecismos Maior e Menor) e secundárias (Normas para o Culto Público a Deus, Forma de Governo Eclesiástico Presbiterial e The sum of saving knowledge [A essência do conhecimento salvífico]). 
8Coffey; Lim, “Introduction”, Cambridge companion, p. 5.
Falando acerca do Estatuto da Uniformidade de 1662, pelo qual os puritanos foram expulsos da Igreja da Inglaterra, Carl Trueman observa que isso “assegurou que a teologia reformada defendida pela maioria deles deixaria de ser uma força importante nessas três esferas [política, educacional e eclesiástica] “Puritan theology as historical event: a linguistic approach to the ecumenical context”, in: Willem J. van Asselt e Eef Dekker, orgs.. Reformation and scholasticism: an ecumenical enterprise (Grand Rapids: Baker, 2001), p, 253. Para uma breve análise da ortodoxia reformada, veja Richard A. Muller, After Calvin: studies in the development of a theological tradition (New York: Oxford University Press, 2003), p. 33ss.
10Sobre esse assunto, veja tb. Michael A. G. Haykin; Mark Jones, orgs.. Drawn into controversie: Reformed theological diversity and debates within seventeenth-century British Puritanism (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2011). 
11Veja Aza Goudriaan, “Justification by faith and the early Arminian controversy”, in: Maarten Wisse; Marcel Sarot; Willemien Otten, orgs.. Scholasticism reformed: essays in honour of Willem J. van A sset (Leiden: Brill, 2010), p. 155-78.
12Por acaso, ele adota, porém, um ponto de vista “luterano” sobre a relação entre a antiga e a nova aliança.
13Acompanhando os reformados, os puritanos acreditavam que a igreja luterana permanecia demasiadamente ‘papista’ em sua liturgia, em sua teologia sacramental e em seu governo eclesiástico.” Coffey; Lim, “Introduction”, Cambridge companion, p. 2. 
14Trueman, “Puritan theology as historical event”, p. 253.
15Em 1714, George Louis, príncipe-eleitor de Hanover, assumiu o trono britânico com o tí­tulo de rei George 1.
16Série de leis inglesas do século 17, também chamada Ato de Prova, que revogavam diversos direitos cívicos, civis ou de família para os católicos e outros dissidentes religiosos não anglicanos. (N. do E.)
17Aid 1828, a Lei do Teste e a Lei das Associações estabeleciam um teste religioso como condição para as pessoas ocuparem cargos públicos, exigindo, entre outras coisas, que anualmente autoridades e funcionários públicos recebessem a Santa Comunhão na Igreja da Inglaterra. 
18Em pouco tempo o movimento e seus membros seriam conhecidos apenas como “não conformismo” e “não conformistas”.
19Em 1689, o Estatuto da Tolerância concedeu liberdade de culto a dissidentes protestantes trinitários, desde que se reunissem em casas de culto registradas junto às autoridades.
20Iniciando por volta de 1732, cada igreja batista, congregacional e presbiteriana existente num raio de dezesseis quilômetros de Londres nomeava delegados para agirem de comum acordo como um comitê de ação política ou lobby para proteger os direitos e interesses do não conformismo. A derrubada dos Estatutos da Conformidade e das Corporações foi em grande parte fruto do esforço desses delegados.
21A partir de 1721, passou a haver uma “doação régia” de fundos públicos para ajudar ministros não conformistas pobres e suas viúvas, distribuída por representantes das igrejas batista, congregacional e presbiteriana. Essa doação cessou em 1857.
22Norman Sykes, The English religious tradition: sketches of its influence on church, State, and society (London: SCM, 1953), p, 66,