Estudo sobre Lucas 22:14-18
Estudo sobre Lucas 22:14-18
Uma comparação do relato de Lucas sobre a Páscoa e a celebração da santa ceia com os relatos dos demais evangelistas confirma que todos comunicam a mesma ceia solene e a mesma revelação do traidor. Contudo é igualmente flagrante que Lucas não mantém a sequência cronológica. Para obter uma visão completa, precisamos preencher seu relato a partir dos outros evangelhos. Aqui não se impõe a ordem dos diversos momentos durante a ceia festiva. Na descrição de Lucas, pelo contrário, está em primeiro plano o forte contraste entre o ânimo dos discípulos e as palavras do Senhor.
A hora em que Jesus se deitou à mesa com os apóstolos era o momento prescrito pela lei para a celebração da Páscoa. Mateus e Marcos mencionam que foi à noite. De acordo com a lei a prescrição original era celebrar a Páscoa em pé, com o cajado na mão (cf. Êx 12.11). Mais tarde tornou-se costume deitar-se à mesa, apoiado com o braço esquerdo sobre o divã. Um dito rabínico explica: “É costume dos escravos comer em pé, agora porém eles comem reclinados, para que se reconheça que foram conduzidos da escravidão para a liberdade.” Acerca da ordem na comunhão de mesa, só poucas coisas podem ser determinadas com exatidão. De acordo com Jo 13.23 João recebeu o primeiro lugar ao lado do Senhor. Pedro deve ter ficado próximo dele, porque não falou com João, limitando-se a acenar para ele (Jo 13.24). O lugar do dono da casa, que preside a celebração da Páscoa, foi ocupado pelo próprio Senhor. Lucas apresenta o momento em que Jesus deu início à celebração (Lc 22.15s).
A comunhão de mesa de uma ceia de Páscoa não podia ser constituída por menos de dez pessoas (Josefo, Guerra VI, 9.3). Precisava ser uma família completa. A ordem da festa era determinada pela sequência dos cálices, cheios de vinho tinto. O dono da casa proferia as ações de graças ou a bênção sobre o vinho e a festa, tomando o primeiro cálice. Depois eram consumidas ervas amargas, molhadas com vinagre ou salmoura, como recordação das amarguras que os antepassados suportaram no Egito. Traziam-se os pratos da Páscoa, a sopa temperada, os pães asmos, as oferendas da festa e o cordeiro. Todas as partes da festa eram explicadas. Cantava-se a primeira parte do grande Aleluia (Sl 113-114) e bebia-se do segundo cálice. Agora começava a ceia propriamente dita, para a qual as pessoas se recostavam. O dono da casa tomava dois pães, partia um deles, colocando-o sobre o inteiro, abençoava o pão, enrolava-o com ervas amargas, mergulhava-o e realizava a distribuição com as palavras: “Esse é o pão da penúria, comido por nossos pais no Egito.” Na sequência abençoava-se o cordeiro da Páscoa, comia-se dele, e as oferendas da festa eram consumidas com o pão, mergulhado em pasta, e por fim consumia-se o cordeiro da Páscoa. Em seguida eram proferidos louvor e agradecimento pela refeição, bem como se abençoava e bebia o terceiro cálice. Depois se cantava a segunda parte do grande Aleluia (Sl 115-118) e se bebia o quarto cálice. Eventualmente se acrescentava um quinto cálice mediante a recitação dos Salmos 120 a 137.
O primeiro cálice era dedicado ao anúncio da festa. De acordo com o relato de Lucas foi no momento de beber este cálice que Jesus declarou que ele esperara ansiosamente por comer esse cordeiro da Páscoa com os discípulos, antes que tivesse de padecer. O Senhor lhes anunciou que seria a última celebração que ele realizava na vida terrena, mas que celebraria uma nova festa no reino de Deus. O cordeiro da Páscoa atingirá sua plena concretização na consumação do reino de Deus. Assim como a Páscoa era uma celebração alegre da grata recordação da redenção do Egito (Êx 12.14,24-27), assim ela também será celebrada na consumação do reino de Deus, como grata recordação, na conclusão da redenção da igreja de Cristo.
Ao consumir o cordeiro assado da Páscoa bebia-se vinho, distribuído pelo dono da casa. Vários copos, cheios de vinho, eram oferecidos aos participantes da festa. De acordo com esse costume festivo Jesus recebeu um cálice e, após uma oração de graças, pasou-o aos discípulos, dizendo: “Tomem-no e o distribuam entre vocês mesmos!” Ele afirma que de agora em diante não mais beberá do fruto da videira até que o reino de Deus tenha chegado. Alguns comentaristas concluem dessas palavras que o próprio Jesus não teria bebido desse vinho. Essa afirmação carece de qualquer comprovação. Beber o vinho fazia parte do costume da ceia da Páscoa. Não há necessidade de mencionar especialmente que Jesus, o dono da casa, bebera desse cálice. A circunstância de que o vinho é símbolo da alegria não depõe absolutamente contra o fato de que Jesus estava tomado de pesar naquela hora e que não obstante foi o primeiro a beber. Ao lado de seus sentimentos de dor, também a alegria tinha espaço em seu coração, porque afinal vislumbrava o cumprimento de seu mais ardente desejo.
A perspectiva de sua paixão, por meio da qual sua obra redentora chegava à consumação, era capaz de deixar seu coração alegre, ainda que sentisse a mais profunda dor. Nessa condição de espírito ele era capaz de usufruir a bebida.
Jesus tornou o consumo do vinho um componente essencial da ceia da Páscoa, que ele pretendia celebrar com os discípulos ainda antes de padecer. Isso não ocorreu primordialmente para preparar a si e aos discípulos para o sofrimento iminente, mas para transformar a ceia de Páscoa, celebração da memória da antiga aliança, em festa memorial da nova aliança, fundada por ele através de sua morte. Vinho e pão asmo constituem os símbolos da santa ceia.