Estudo sobre Apocalipse 1:17-18

Estudo sobre Apocalipse 1:17-18



Não é para adorar que João cai ao chão: quando o vi, caí a seus pés como morto. Foi assim que também se precipitaram ao chão Moisés, Isaías, Ezequiel, Daniel, Pedro e Paulo. Em todos os caso trata-se da incompatibilidade entre Deus e ser humano, entre céu e terra. Os da terra ricocheteiam de volta e cambaleiam ao chão. Deus “habita em luz inacessível” (1Tm 6.16).

Contudo, não é obrigatória a suposição de que João teria caído por terra porque já tivesse reconhecido a Cristo. Pelo contrário, ela é antes inverossímil.

O que ele viu foi para ele uma aparição ainda anônima, celestial-judicial. P. ex., a espada que sai da boca, a voz nada humana ou os pés em brasa não o lembram em absoluto da figura familiar de Jesus, assim como o conheceu na Palestina. Em decorrência, a palavra de interpretação aconteceu porque era realmente necessária. Porém, quando o Senhor se deu a conhecer, João se ergueu novamente. Agora ele podia suportar o aspecto judicial: afinal, é Jesus de Nazaré, que morreu por nós, que vive por nós e ora em favor de nós junto do Pai. A exclamação: “É o Senhor!” (Jo 21.7) o torna de novo capaz de viver e servir.

Antes da auto-apresentação propriamente dita sucede um gesto eloquente: Porém ele pôs sobre mim a mão direita. Isso significa vivificar (Dn 10.10; 8.18; Mt 17.7), clemência e aceitação (Mc 1.44; Mt 14.31), mas também bênção para o serviço.165 Dizendo: Não temas! Era o que ecoava em muitas revelações de Deus (p. ex., Is 7.4). E também os discípulos haviam ouvido este som muitas vezes da boca do Senhor (Jo 6.20; Mt 14.27; Mc 6.50; Lc 24.39). Este é o jeito de falar com pessoas atemorizadas, não com atrevidos. Existe um temor que Deus demanda, mas também outro medo que ele não quer. Ele não quer o temor de que ele não seria outra coisa senão alguém que esmaga tudo. Ou seja, deseja um temor que provém de um coração que é pequeno demais para o bem que Deus pode e quer realizar. Contudo, ele tem à disposição somente pessoas com corações muito pequenos, pois o coração de ninguém seria capaz de apreender a bondade dele! Por isso, a palavra repercute através da história da salvação: não temas!

Muitas vezes “não temas!” é a palavra introdutória de consolo para uma subsequente autoproclamação de Deus com declaração de redenção (Gn 26.24; 46.3; Is 41.10,13,14; 43.1,5; 44.2; 54.4; Jr 30.10; 46.27). Em consonância, segue-se também aqui uma palavra do “Eu sou”, desenvolvida por duas linhas de três elementos. A primeira linha: eu (o) sou o primeiro e o último e aquele que vive. Conforme Ap 1.8; 21.6 e de acordo com Is 44.6; 48.12, o Primeiro e o Último é o próprio Deus. O mesmo vale para a designação “o que vive” (Ap 4.9,10; 10.6; 15.7; Js 3.10; Dt 32.40; Sl 42.2; 84.3; Dn 4.31; 12.7; Os 1.10; 1Ts 1.9; etc.). Nestas designações Deus é enaltecido como vitorioso sobre o último e maior inimigo, a morte (cf. também o comentário a Ap 4.9,10). Tanto mais ele é superior a seus inimigos penúltimos.166 Este desdobramento do “Eu sou” exclui expressamente que João pudesse ter visto, p. ex., conforme Dn 10.5, um anjo. Trata-se, portanto, de uma aparição de Deus? Este mal-entendido é o que a segunda série de três elementos visa excluir:

Estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e do inferno (“Hades” [bj, teb]). Essa segunda linha não retira nada da primeira. Preserva-se a plena divindade que João viu na visão. Contudo, de certo modo acrescenta-se mais alguma coisa: a humanidade de Jesus. Esta segunda série espelha nitidamente sua trajetória terrena.

Evoca-se o processo histórico de sua morte e proclama-se sua condição de vivo como sendo um milagre: eis o milagre da Páscoa!167 Em decorrência, João não viu a divindade do Pai. Não se dissipam as diferenças entre o Pai e o Filho exaltado. Jamais o Filho desloca o Pai, pois neste caso ele não seria mais o Filho verdadeiro, obediente. O estado de Filho sempre inclui a obediência de Filho. Portanto, está claro que João teve uma visão de Cristo.


Da morte e ressurreição de Jesus Cristo vem a consequência: e tenho as chaves da morte e do inferno (“Hades”).168 O Pai lhe conferiu o poder das chaves para todos os recintos (cf. Mt 28.18). Por conseguinte, o Filho possui uma soberania ilimitada, que em ponto algum se transforma em impotência. Em contraposição, como se tornavam impotentes e nulos o poder do imperador e o culto ao imperador em vista da morte! E como também todo o fascínio cultural fracassa diante da questão da morte! A morte é vitoriosa sobre todo o progresso. Contudo, vitorioso sobre a morte e, assim, verdadeiro Senhor é e permanece sendo Jesus Cristo.

De acordo com Ap 3.7 o Senhor Jesus Cristo possui as chaves da casa de Davi, i. é, da cidade espiritual de Davi, a nova Jerusalém, o mundo da salvação de Deus. Agora, porém, João está estendido diante dele como um morto, sendo por isso uma figura da igreja que ainda progride pelas profundezas da grande tribulação até a morte martirial (Ap 2.10). Com vistas a essa situação ela recebe o consolo de que mesmo em escuridão extrema (Ap 6.9,10) ela está na esfera do poder do amor. Seu Senhor não somente possui a chave do céu, mas também do Hades.

Esse é, pois, o Senhor que declara João livre do medo. Ele realmente liberta de qualquer temor.

Índice:
Apocalipse 1:17-18 




Notas:
165. De acordo com o v. 16, a mão direita segurava as sete estrelas. Acaso não tinham de cair da sua mão agora? Com essa indagação, porém, nos equivocaremos fundamentalmente no entendimento das visões. Elas trazem consigo muitas coisas que não cabem na nossa experiência e, não obstante, têm seu sentido, cf. também a nota 153.

166. Cf. ademais, sobre essa questão, Ap 1.4.

167. Sobre a ressurreição e a locução “séculos dos séculos”, cf. o comentário a Ap 1.5,6.

168. Conforme o presente texto, portanto, Cristo não recebe as chaves no tempo entre a morte e ressurreição numa viagem ao Hades e numa luta no Hades, durante a qual teria arrancado a chave da mão da morte. Tais ideias são afastadas nesta passagem. Deus é o proprietário das chaves e aquele que as concede. No presente trecho, a morte não deve ser entendida em categorias pessoais, mas espaciais. Portanto, em “chaves da morte” trata-se de um genitivus objectivus: chave para a morte.