Palavra “VIDA” nos Evangelhos

Três palavras gregas diferentes são usadas nos Evangelhos para transmitir diferentes aspectos do conceito de vida. Bios refere-se à vida diária e aos recursos para viver. Psique significa o eu individual autoconsciente e muitas vezes pode ser traduzido por um pronome pessoal. Zoe geralmente denota a vida como uma dádiva de Deus e é muitas vezes modificada pelo adjetivo “eterna” (aiōnios). Este artigo tratará da terceira dessas três palavras.
  1. Os Evangelhos Sinópticos
  2. O Quarto Evangelho
  3. Teológico Problemas
1. Os Evangelhos Sinópticos.
Zōē ocorre dezesseis vezes nos Evangelhos Sinópticos. Exceto Lucas 12:15 e 16:25 (onde se refere à vida em geral), sempre significa a vida futura que será dada por Deus. É uma vida que será iniciada ou herdada no final da era atual (Mt 19:16-17, 29 par.). Assim, está em contraste cronológico com a vida atual. Por exemplo, aquele que deixa tudo para seguir Jesus não “deixará de receber cem vezes mais nesta era atual.. e na era vindoura a vida eterna”, Mc 10:30 NVI). É uma vida na qual se entra pela porta estreita (Mt 7:14). Na verdade, esta vida é tão importante que os discípulos de Jesus devem lidar radicalmente com o pecado em seus corações, a fim de evitar perdê-lo e serem lançados no inferno de fogo (Mt 18,8-9; ver Céu e Inferno).

2. O Quarto Evangelho.
Zōē ocorre trinta e seis vezes no Evangelho de João. Em onze dessas ocorrências é objeto do verbo “ter” (echō) e é usado no contexto de uma promessa, convite ou declaração sobre aqueles que acreditam em Jesus (Jo 3:15, 16, 36; 5: 24, 40; 6:40, 47, 53, 54; Ao lermos essas onze passagens juntas, percebemos que no Quarto Evangelho a vida ou a vida eterna não se limita a uma era futura, mas pode ser realizada no presente por aquele que acredita (ver Fé) em Jesus. João ainda pode falar da vida como futura (Jo 5,28-29; 6,27; 12,25), mas também é algo que se pode possuir no presente (Jo 5,24).

João também faz questão de ressaltar a ideia da vida como um dom de Deus. O Pai tem vida em si mesmo e deu ao Filho (ver Filho de Deus) vida para ter em si mesmo (Jo 5:26; cf. 1:4). O Filho é o pão da vida (Jo 6:35, 48) que dá vida ao mundo pela sua morte (Jo 6:51) e através do seu Espírito (ver Espírito Santo) e palavras (Jo 6: 63,68).

A definição de vida no Quarto Evangelho tem vários traços. Primeiro, a vida era a luz da humanidade (Jo 1:4). Retirada do seu contexto joanino, esta afirmação pode implicar que a vida criada pela Palavra de Deus é a vida humana natural e que esta vida consiste em luz, isto é, a consciência humana e a consciência que separa a humanidade do resto da criação. Mas como João prossegue descrevendo a vida e a luz no seu Evangelho, a vida em João 1:4 provavelmente se refere à vida diante de Deus ou à vida eterna (observe o artigo grego que aqui significa um tipo particular de vida). Esta vida estava na Palavra (cf. Dt 30,14-15). E foi através desta palavra de vida (cf. 1 Jo 1, 1) que a luz (revelação) chegou à humanidade. A revelação (luz) trazida através da comunicação desta palavra de vida traz salvação e julgamento (Jo 3,19-21).

Em segundo lugar, as palavras que Jesus pronunciou são vida (Jo 6,63). Pedro, falando pelos Doze, diz a Jesus “Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68). E no seu pronunciamento final à nação, Jesus afirma que o mandamento de Deus é a vida eterna (Jo 12,50). Da mesma forma, no final da Torá e em referência a ela, Moisés diz: “Esta não é uma palavra vã para você; é a sua vida” (Dt 32:47). Assim, a vida e a Palavra de Deus estão intimamente ligadas. Mas a Palavra não é apenas a fonte da vida; é a própria vida no sentido de que o alimento se torna parte do corpo (assim Jesus é o pão da vida, Jo 6,35.48).

Terceiro, o próprio Jesus afirma ser a vida (Jo 11.25; 14.6). A verdadeira vida tem a sua origem nele (Jo 10,10). Mas ele é mais do que a sua fonte, é a sua força sustentadora, sem a qual nada se pode realizar (Jo 15,5). Ele é a própria vida.

A definição de vida eterna em João é resumida na oração final de Jesus: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro e Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17,3). Aqui a vida está relacionada ao conhecimento. Este conhecimento foi revelado àqueles que o Pai deu ao Filho (Jo 17,2). Nesse sentido, é conhecimento cognitivo objetivo. Mas o conhecimento revelado é também um conhecimento de pessoas – Deus Pai e Deus Filho. Nesse sentido, é um conhecimento relacional subjetivo. Portanto, a verdadeira vida consiste em conhecer a Palavra de Deus. Assim, as palavras de Cristo são vida e ele mesmo é vida. E a razão pela qual a vida está ligada a Cristo e às suas palavras é que ele explica (exegeomai) o Pai (Jo 1,18).

3. Questões Teológicas.
3.1. A vida no Quarto Evangelho vis à vis os Sinópticos. Muito tem sido dito sobre a diferença entre a escatologia dos Evangelhos Sinópticos e do Quarto Evangelho (ver Sinópticos e João). Afirma -se que os Evangelhos Sinópticos contêm uma escatologia estritamente futurista. A vida de que se fala é algo concedido no final da idade pela atividade presente. Por outro lado, o Quarto Evangelho contém a noção de uma vida eterna que é uma realidade presente para quem crê em Jesus. Portanto, Jesus no Quarto Evangelho diz: “Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem (tempo presente) a vida eterna e não entra em julgamento, mas já passou (tempo perfeito) da morte para a vida eterna” (Jo 5,24). A escatologia sinóptica está de acordo com as crenças judaicas correntes no judaísmo primitivo (por exemplo, T. Levi 17-18; 1 Enoque 91:12-17; Sl. Sol. 17:21-46). A escatologia joanina baseia-se na encontrada nos Sinópticos, afirmando que a esperança futura está agora presente. Um estudo do uso da palavra vida é usado para ilustrar esta visão (cf. Bultmann).

Negar as diferenças entre o uso da vida (eterna) nos Sinópticos e em João é impossível. No entanto, afirmar que a escatologia de João é mais avançada e exclusiva da escatologia sinótica não é uma conclusão necessária baseada nas evidências.

Primeiro, é claro que João tem um ponto de vista escatológico futurista. Em João 5:28 e 6:54 a ressurreição é futura. Bultmann reconheceu a dificuldade destes versículos em João e atribuiu-os a uma redação do Quarto Evangelho que tentou alinhá-lo com a escatologia mais tradicional encontrada nos Sinópticos. Mas se João 5:28 e 6:54 são atribuídos ao Quarto Evangelista, deve-se afirmar que ele foi capaz de conceber uma escatologia futurística e uma escatologia realizada como não mutuamente exclusivas.

Em segundo lugar, C. H. Dodd (embora o seu ponto de vista possa ter sido exagerado) mostrou que, de facto, os Evangelhos Sinópticos contêm uma escatologia realizada. Dodd afirma que Jesus “usou parábolas (que são encontradas nos Evangelhos Sinópticos) para reforçar e ilustrar a ideia de que o reino de Deus havia chegado às pessoas naquele momento. O inconcebível aconteceu: a história tornou-se o veículo do eterno; o absoluto estava revestido de carne e sangue” (Dodd, 197).

Terceiro, afirmar que a visão judaica da “vida” era futura é uma conclusão demasiado ampla para ser tirada do grande banco de dados disponível nos escritos existentes do judaísmo primitivo. O Judaísmo do primeiro século não tinha uma escatologia única, um fato agora amplamente reconhecido entre os estudiosos do Judaísmo primitivo e das origens cristãs.

3.2. A Natureza da Vida Eterna. Pareceria então que a vida eterna mencionada nos Sinópticos vis à vis João é uma entidade única com mais de uma faceta, em vez de um par de conceitos mutuamente exclusivos. Sua natureza pode ser descrita em quatro pontos. Primeiro, a vida eterna envolve um relacionamento pessoal com Deus e todas as bênçãos que o acompanham. Em Gênesis 2-3 a árvore da vida estava no meio do jardim que estava no Éden (gr. paraddeisos). Foi no jardim que Deus teve comunhão com o homem e a mulher (Gn 3:8). E se o homem tivesse comido da árvore da vida, viveria para sempre (Gn 3:22). Mas por causa do pecado deles, Deus os baniu do jardim e tornou impossível que voltassem para a árvore da vida (Gn 3:24). A vida que Deus planejou para a humanidade foi de serviço ideal em um local ideal (Gn 2:15). Foi uma vida de conhecimento e caminhada com Deus. Era um sábado eterno (observe como o sétimo dia da criação não tem fim determinado, Gn 2:1-3). Esta noção de vida como um relacionamento com Deus foi transportada para os ensinamentos de Jesus e para os Evangelhos.

Em segundo lugar, nos Evangelhos a vida eterna está intimamente ligada à vinda de Jesus Cristo (Jo 10,10). A vida eterna é a vida da futura era messiânica (Mt 7:14; 18:8-9), e Jesus é o Messias (ver Cristo). Assim, a atitude de uma pessoa para com Jesus determina a sua entrada na vida (Mt 25,45-46). “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Somente aqueles que comem a carne e bebem o sangue de Cristo têm vida eterna. Somente eles ressuscitarão no último dia (Jo 6,54).

Terceiro, esta vida que é um relacionamento com Deus e vem através de Jesus Cristo começa na era atual. Em Jesus Cristo começa- se a conhecer a Deus, pois Ele revela o seu Pai (Jo 1,18). Ao crer em Jesus a pessoa entra ou tem a vida eterna. A vida é dada como um dom aos crentes porque pertencem ao seu rebanho (Jo 10,27-28). Porque nenhum ladrão é capaz de arrebatar um crente das mãos de Deus, nenhum crente é capaz de perder o dom da vida (Jo 10,29). Visto que a vida eterna é uma experiência presente, pode-se dizer que a eternidade se dividiu no tempo. Não é preciso esperar pela morte. Pode-se experimentar a eternidade agora.

Finalmente, a vida eterna, que se inaugura no presente, só se realiza plenamente no futuro. A plena realização da vida eterna é como receber uma herança (Mt 19:29). É o oposto do castigo (Mt 25:46). Entre as suas muitas bênçãos estão a ressurreição do corpo e a promessa de vida abundante que nunca perecerá (Jo 3:16; 10:10).

Devido à natureza dual da vida eterna, por um lado uma vida futura, mas por outro lado (no Quarto Evangelho) uma experiência presente, surgiu a questão do desenvolvimento teológico. João é um avanço em relação à escatologia sinótica? Será a compreensão de João da vida eterna uma forma de platonismo onde a vida não é medida no tempo, mas é antes um reino ideal de existência paralela à vida terrena? Ler o Quarto Evangelho platonicamente parece ser um mal-entendido sobre João. A vida eterna pode ser experimentada no presente, mas também tem uma dimensão futura, conforme descrito acima. Parece melhor descrever a vida eterna como um relacionamento com Deus. Desta forma, não há contradição necessária entre os Sinópticos e o Evangelho de João. Pode-se começar a conhecer Deus agora, mas só o conhecerá plenamente no escaton.

3.3. Como se entra na vida eterna. Como se inicia esse relacionamento com Deus chamado vida eterna? Também neste ponto parece haver uma contradição entre os Sinópticos e o Quarto Evangelho. Em Mateus 7:14 afirma-se que o caminho para a vida eterna é estreito e poucos o encontram. Os discípulos devem tomar medidas radicais para se purificarem ou poderão perder a vida e ser lançados no fogo eterno do inferno (Mt 18,8-9). Para um candidato a discípulo que procurava alguma garantia de vida eterna, Jesus disse: “Se você deseja entrar na vida, guarde os mandamentos”. Esses mandamentos aos quais ele se referiu vieram do Decálogo (Mt 19,16-19). No mesmo capítulo, Jesus disse aos seus discípulos que todo aquele que deixar para trás seus pertences terrenos e sua família herdará a vida eterna (Mt 19:29). Em Mateus 25:46 Jesus diz que os justos (aqueles que cuidam dos pobres e oprimidos; Justiça, Retidão) irão embora para a vida eterna.

No Evangelho de João a vida eterna é obtida através da crença ou fé (Jo 3:16; 5:24; 20:31). A vida é um dom do Pai que vem através do Filho (Jo 5:26, 40; 6:33; 10:10, 28; 17:2). João parece estar mais próximo do que alguns consideram ser a doutrina paulina da justificação somente pela fé, enquanto as referências sinóticas parecem ensinar que a vida eterna é obtida pelas obras. Mas esta conclusão surge de uma leitura errada dos quatro Evangelhos.

Primeiro, os Evangelhos Sinópticos não dizem que a vida é conquistada pelas obras. Mateus 7:14 coloca a porta estreita antes do caminho difícil. A porta estreita pode muito bem ser uma referência à fé no sentido de que o caminho para a salvação não é múltiplo, mas singular. Mateus 18:8-9 parece falar principalmente do pecado do orgulho com o qual a fé é incompatível. Em Mateus 19:16-21 o comando essencial é “segue-me”, o que pode ser equiparado à fé (ver Discipulado). O mesmo pode ser dito a respeito de Mateus 19:29. E em Mateus 25:4-6 a vida não é uma recompensa pelas boas obras (observe como os justos ficam surpresos com a resposta do Senhor em Ml 25:37-39), mas as boas obras podem ser consideradas uma consequência de ser justo (ver Carson).

Segundo, João não dissocia a fé das obras resultantes. Em João 5:29, os bons e os ímpios são ressuscitados - os bons para receber a vida eterna e os ímpios para o julgamento. Em João 12:25 lemos: “Aquele que ama a sua vida perdê-la-á e aquele que neste mundo odeia a sua vida o guardará para a vida eterna.” E só quem come a carne e bebe o sangue de Cristo tem a vida eterna e ressuscitará no último dia (Jo 6:54).

Assim, uma leitura cuidadosa tanto dos Evangelhos Sinópticos como do Evangelho de João não leva à disparidade soteriológica. Pelo contrário, todos os quatro Evangelhos estão em harmonia com o resto do NT quando se trata da responsabilidade humana pela salvação. As pessoas não podem salvar-se nem pelas suas próprias boas obras (Jo 5:39-40). Eles devem humilhar-se e confiar em Deus, o único que fornece vida. Mas esta confiança é como entrar por uma porta que dá acesso a uma rua de obediência e de dificuldades (Mt 7,14). A verdadeira fé produz inevitavelmente uma vida transformada de discipulado fiel e boas obras. Esta vida transformada começa no presente e continua até ser consumada na Segunda Vinda de Cristo.

BIBLIOGRAFIA. R. Bultmann et al., “ζάω κτλ,” TDNT II.832-75; J. C. Coetzee, “Life in John’s Writings and the Qumran Scrolls,” Neot 6 (1972) 48-66; C. H. Dodd, The Parables of the Kingdom (New York: Scribners, 1936); D. Hill, “The Background and Biblical Usage of zōē and zōē aiōnios, “ in D. Hill, Greek Words and Hebrew Meanings (Cambridge: University Press, 1967) 82-201; G. E. Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1974) 254-69; D. A. Carson, “Matthew,” in The Expositor’s Bible Commentary, ed. F. Gaebelein (12 vols.; Grand Rapids: Zondervan, 1979) 8.1-599.

D. H. Johnson