Gênese Material da Vida Civilizada — História da Civilização
Este artigo a seguir é a sequência do artigo O que Sustenta uma Civilização.
Não se incorreria em erro, antes se faria justiça a uma verdade profunda, se se afirmasse que o “selvagem”, a despeito do epíteto que lhe lançamos, carrega em si a semente e a substância da própria civilização. Pois, o que faz ele, com um esmero que desafia nosso desdém, senão entregar a seus filhos o patrimônio imemorial da tribo? E que patrimônio é esse, senão o vasto e intrincado tecido de práticas econômicas, de arranjos políticos, de inclinações mentais e de imperativos morais; em suma, todo o aparato que a comunidade erigiu, ao longo de eras, em sua tenaz batalha pela sobrevivência e pela fruição dos dias sobre a face da Terra. Neste ponto, a ciência, com sua pretensão de objetividade, forçosamente se cala e recua. Ao brandirmos os termos “selvagem” ou “bárbaro”, o que de fato expressamos? Será um veredito isento, fruto da observação desapaixonada? Ou será, como é mais provável, apenas o eco de nosso desmedido amor-próprio, um espelho de nossa feroz e intransigente predileção por nós mesmos, conjugada a uma acanhada e trêmula reserva diante de tudo que nos soa estranho e alienígena? É quase certo que depositamos sobre esses povos simples, de quem tanto poderíamos aprender sobre a hospitalidade e a retidão, um juízo turvado pela nossa própria imagem. Se nos déssemos ao trabalho de dissecar os componentes basilares da civilização, a surpresa seria imensa ao constatar que essas nações despidas de artifícios já haviam concebido ou descoberto a totalidade deles, à exceção de um único. Deixaram-nos, a nós, seus herdeiros vaidosos, pouco mais que a tarefa de ornamentar o edifício e de inventar a escrita. E quem nos garante que eles mesmos, em algum ciclo esquecido do tempo, não foram também civilizados e, por fim, deliberadamente abdicaram de tal condição, por a julgarem um fardo, um incômodo supérfluo? Impõe-se, portanto, uma cautela extrema no emprego de vocábulos como “selvagem” e “bárbaro” quando o nosso olhar se volta para essa nossa “ancestralidade contemporânea”. Será mais prudente e rigoroso designar como “primitivas” as tribos que, por escolha ou necessidade, abstêm-se de acumular provisões para os dias de inércia e que desconhecem ou desdenham o uso da escrita. Por oposição, a nós, os civilizados, caber-nos-ia a definição de provedores letrados.
I. Do Rastro da Fera ao Sulco na Terra
A instituição de três refeições diárias, com sua cadência regular e sua promessa de saciedade, representa um pináculo de avanço social. A realidade do homem primevo é outra, um pêndulo violento entre dois extremos: “Os selvagens ou se empanturram ou jejuam.” (Hayes, p. 494.) Entre as tribos mais indômitas da América, acumular víveres para a jornada seguinte do sol era visto não como prudência, mas como uma flagrante e vergonhosa demonstração de fraqueza de espírito. (Lippert, J., p. 38.) Os aborígenes da vasta Austrália revelam-se inteiramente avessos a qualquer esforço cujo fruto não possam colher de imediato; cada hotentote é, por natureza e filosofia, um aristocrata do ócio; e, para os bosquímanos da África, a existência se resume a uma alternância brutal e perpétua: “ou é um banquete ou é a fome.” (Spencer, H., 1, p. 60.) Contudo, seria um erro enxergar apenas leviandade nessa imprevidência; nela reside uma sabedoria silenciosa, uma lógica profunda, como em tantos costumes que apressadamente rotulamos de “selvagens”. A partir do exato instante em que a criatura humana começa a nutrir pensamentos sobre o amanhã, ela é expulsa do idílico Jardim do Éden e lançada sem cerimônia no vale da ansiedade. Uma pálida névoa de preocupação assenta-se sobre sua alma, a ganância afia suas garras, o conceito de propriedade finca suas primeiras e nefastas raízes, e a alegria despreocupada do nativo “irrefletido” se esvai como fumaça ao vento. O negro americano de hoje atravessa, aos nossos olhos, precisamente este doloroso limiar. “Em que pensas?”, indagou Peary a um dos seus guias esquimós. A resposta, de uma simplicidade demolidora, foi: “Não tenho de pensar; tenho carne em abundância.” Eis talvez a suma da sabedoria: a recusa de pôr em marcha o pensamento, a menos que a necessidade o convoque.
Apesar da sua filosofia intrínseca, tal descuido com o futuro não era isento de dificuldades, e os organismos que, por instinto ou acaso, dele se afastaram, adquiriram uma vantagem competitiva de peso na incessante luta pela sobrevivência. O cão que, satisfeito, ainda assim enterrava o osso que seu apetite já não comportava; o esquilo que, previdente, amontoava nozes para um banquete vindouro; as abelhas que, laboriosas, preenchiam o favo com a doçura do mel; as formigas que, metódicas, organizavam seus estoques para os dias de chuva — eis aí, nessas criaturas, os verdadeiros e primeiros arquitetos da civilização. Foram elas, ou outros seres de sutileza semelhante, que instruíram nossos ancestrais na arte de reservar para o amanhã uma parte do excedente de hoje, ou de se preparar, na abundância do estio, para a escassez do inverno.
E com que assombrosa perícia esses nossos antepassados extraíam, da terra e das águas, o sustento que servia de argamassa para suas sociedades rudimentares! Com as mãos nuas, eles desenterravam do solo o que era comestível; engenhosos, imitavam ou empregavam as garras e as presas de outros animais, moldando ferramentas a partir do marfim, do osso ou da pedra; com juncos e fibras, teciam redes, armadilhas e laços, e concebiam uma infinidade de estratagemas para a pesca e a caça. Os polinésios, por exemplo, dispunham de redes com a extensão de mil elmos, cuja operação demandava a força conjunta de uma centena de homens, num claro testemunho de como a provisão econômica e a organização política nasceram e cresceram entrelaçadas, e de como a busca coletiva pelo alimento ajudou a forjar o próprio Estado. O pescador da tribo Tlingit, numa demonstração de astúcia, cobria a cabeça com um gorro que emulava a de uma foca e, ocultando o corpo entre as rochas, imitava o som do animal; as focas, enganadas, aproximavam-se, e ele as arpoava, movido pela consciência límpida e serena da guerra primitiva. Diversas tribos desenvolveram a técnica de lançar narcóticos nos rios, a fim de entorpecer os peixes e torná-los presas fáceis; os taitianos, por exemplo, usavam uma mistura inebriante feita da noz de huteo ou da planta hora, que deixava os peixes a flutuar, letárgicos, na superfície, à inteira disposição da vontade do pescador. Os nativos australianos, por sua vez, nadavam submersos, respirando através de um caniço, e puxavam os patos para o fundo pelas patas, segurando-os ali com uma suavidade fatal, até que a luta cessasse. Já os Tarahumaras capturavam pássaros com um método engenhoso: atavam grãos a fibras resistentes, que enterravam parcialmente; as aves, ao comerem os grãos, engoliam o fio e ficavam presas, para depois serem elas mesmas comidas. (Sumner e Keller, i, p. 51; Sumner, W. G., pp.119-22; Renard, G., p. 36; Mason, O. T., p. 298.)
Para nós, homens modernos, a caça transmudou-se em desporto, um passatempo cujo sabor parece evocar uma remota e mística memória, gravada no sangue, de tempos ancestrais em que, para o caçador e a caça, a perseguição era, sem metáforas, uma questão de vida ou morte. Porque a caçada primeva não se resumia a uma simples expedição em busca de alimento; era uma guerra declarada pela segurança e pelo domínio, um conflito de tal magnitude que, comparadas a ele, todas as guerras da história registrada se assemelham a um mero e passageiro estrondo. Na selva, a luta do homem pela vida ainda persiste, pois, embora seja raro que um animal o ataque sem que esteja impelido pelo desespero da fome ou encurralado sem saída, a verdade é que o alimento nem sempre abunda para todos, e a permissão para comer é, por vezes, um privilégio exclusivo do combatente, ou daquele que gera combatentes. Os nossos museus exibem as relíquias dessa imemorial guerra entre as espécies: as facas, os tacapes, as lanças, as flechas, os laços, as boleadeiras, as iscas, as armadilhas, os bumerangues e as fundas. Com esse arsenal, o homem primitivo tomou posse da terra e preparou-se para legar a uma posteridade ingrata o dom da segurança contra toda e qualquer besta — com a única e notória exceção do próprio homem. E mesmo hoje, após tantas e tão vastas guerras de extermínio, que multidão de populações distintas ainda percorre a Terra! Por vezes, ao caminharmos por um bosque, sentimo-nos esmagados pela pluralidade de linguajares que ali se cruzam, pela miríade de espécies de insetos, répteis, carnívoros e aves; e invade-nos a sensação de que o homem não passa de um intruso nesse cenário fervilhante, um objeto de pavor universal e de perpétua hostilidade. Quem sabe um dia estes quadrúpedes tagarelas, estes centípedes obsequiosos, estes bacilos insidiosos, não irão finalmente devorar o homem e todas as suas obras, libertando o planeta deste bípede predador, de suas armas misteriosas e antinaturais, de seus pés descuidados!
A caça e a pesca nunca foram meros estágios a serem superados no desenvolvimento econômico; revelaram-se, isso sim, como modos de atividade destinados a perdurar, infiltrando-se até nas mais sofisticadas formas da sociedade civilizada. Elas, que outrora foram o eixo da vida, permanecem como seus fundamentos ocultos; por trás da nossa literatura e da nossa filosofia, dos nossos rituais e da nossa arte, perfilam-se, sólidos e incontornáveis, os destemidos assassinos de Packingtown. Hoje, exercemos a nossa caça por procuração, pois já não possuímos estômago para a honesta carnificina dos campos; contudo, as memórias da perseguição ancestral sobrevivem em nosso prazeroso encalço de tudo o que é fraco e fugidio, nos jogos de nossas crianças — e até na etimologia da palavra jogo. Em última análise, toda a civilização repousa sobre a provisão de alimentos. A catedral e o capitólio, o museu e a sala de concertos, a biblioteca e a universidade — tudo isso não passa da fachada; nos bastidores, invariavelmente, encontram-se os matadouros.
Contentar-se em viver da caça não teria sido um feito original; se o homem a isso se tivesse limitado, seria apenas mais um carnívoro na longa cadeia da natureza. O ponto de inflexão, o momento em que ele começa a se tornar verdadeiramente humano, ocorre quando, a partir da aleatoriedade da caça, ele consegue destilar a segurança e a continuidade superiores da vida pastoril. Esta transição trouxe consigo vantagens de importância capital: a domesticação dos animais, a criação sistemática do gado e a utilização do leite. Ignoramos como e quando teve início a domesticação — talvez tenha sido num momento em que os filhotes indefesos de uma fera abatida foram poupados e levados ao acampamento, para servirem de divertimento às crianças. (Ibid., 316.) O animal não deixou de ser comido, mas o momento do abate foi adiado; passou a servir como besta de carga, sendo acolhido na sociedade humana de uma forma quase democrática; tornou-se um camarada, formando com o homem uma comunidade de trabalho e coabitação. O milagre da reprodução foi submetido a controle, e um par de cativos pôde ser multiplicado até se transformar num rebanho. O leite animal, por sua vez, libertou as mulheres do fardo da amamentação prolongada, contribuiu para a diminuição da mortalidade infantil e ofereceu uma fonte de alimento nova e de grande fiabilidade. Como resultado, a população cresceu, a vida adquiriu maior estabilidade e ordem, e o domínio desse tímido parvenu sobre a Terra, o homem, tornou-se mais seguro.
Enquanto isso, era a mulher quem realizava a maior de todas as descobertas econômicas: a prodigalidade do solo. Na ausência do homem, absorto na caçada, ela perscrutava os arredores da tenda ou da choupana, em busca de tudo o que, sendo comestível, a terra lhe oferecesse. Na Austrália, era um acordo tácito que, enquanto o seu parceiro estivesse fora, a esposa se dedicasse a cavar raízes, a colher frutas e nozes das árvores e a recolher mel, cogumelos, sementes e grãos silvestres. (Sumner e Keller, i, p. 132.) Ainda em nossos dias, em certas tribos australianas, os grãos que brotam espontaneamente são colhidos sem que haja qualquer esforço para separar e semear as sementes; os índios do Vale do Rio Sacramento, na América, jamais ultrapassaram esse estágio. (Roth, H. L., in Thomas, W. I., p. 111.) Jamais saberemos em que momento a mente humana percebeu pela primeira vez a função da semente, transformando a simples coleta no ato revolucionário da semeadura; tais começos são os mistérios indecifráveis da história, sobre os quais nos é permitido crer e especular, mas nunca saber com certeza. É plausível que, ao coletarem os grãos silvestres, sementes tenham se derramado pelo caminho entre o campo e o acampamento, sugerindo, afinal, o grande segredo da germinação. Os Juangs simplesmente atiravam as sementes em conjunto sobre a terra, deixando-as encontrar por si o caminho da luz. Os nativos de Bornéu depositavam as sementes em buracos que abriam com uma vara pontiaguda, enquanto percorriam os campos. (Ibid.; Mason, O. T., p. 190; Lippert, p. 165.) A forma mais elementar de agricultura que se conhece é precisamente esta, feita com o “cavador”. Em Madagascar, há apenas cinquenta anos, um viajante ainda poderia testemunhar a cena de mulheres, munidas de varas pontiagudas, alinhadas como um pelotão de soldados, que, a um sinal, cravavam seus instrumentos no solo, revolviam a terra, lançavam as sementes, compactavam o chão com os pés e avançavam para o sulco seguinte. (Renard, p. 123.) O segundo degrau na escada da complexidade foi a cultura com a enxada: a vara de cavar foi aprimorada com uma ponta de osso e uma travessa para que se pudesse aplicar a força do pé. Quando os Conquistadores espanhóis desembarcaram no México, encontraram um Império Asteca cujo único instrumento de lavoura era a enxada. Foi somente com a domesticação dos grandes animais e com a forja dos metais que se tornou possível o uso de um implemento mais pesado; a enxada foi então ampliada, dando origem ao arado, e o revolvimento mais profundo do solo revelou uma fertilidade até então insuspeita, que alterou para sempre a trajetória do homem. As plantas selvagens foram domesticadas, novas variedades foram criadas e as antigas foram melhoradas.
Por fim, foi a própria natureza que ensinou ao homem a arte de provisionar, a virtude da prudência e o conceito abstrato de tempo. Ao observar os pica-paus a estocar bolotas nos troncos das árvores e as abelhas a armazenar mel em suas colmeias, o homem concebeu — talvez após incontáveis milênios de uma selvageria imprevidente — a ideia de guardar alimento para o futuro. Descobriu métodos para conservar a carne, seja defumando-a, salgando-a ou congelando-a. Mais importante ainda, ergueu celeiros, protegidos da chuva e da umidade, imunes a vermes e a ladrões, e neles acumulou o sustento para os meses de escassez. Pouco a pouco, tornou-se irrefutável que a agricultura oferecia uma fonte de alimento mais estável e abundante que a caça. Com a consolidação dessa consciência, o homem deu um dos três passos monumentais que o conduziram da condição de besta à de ser civilizado: a fala, a agricultura e a escrita.
Seria ingênuo supor que a transição da caça para a lavoura se deu de forma abrupta. Inúmeras tribos, como é o caso dos índios americanos, permaneceram por tempo indefinido numa espécie de limbo, numa estagnação entre os dois modos de vida: os homens, fiéis à tradição, dedicavam-se à caça, enquanto as mulheres, pragmáticas, cuidavam do cultivo da terra. A mudança não apenas foi, presumivelmente, um processo lento e gradual, como também jamais chegou a ser completa. O homem, em verdade, apenas acrescentou um novo método de obter comida ao seu repertório antigo; e, ao longo da maior parte da sua história, demonstrou uma clara preferência pelo alimento ancestral em detrimento do novo. Tendemos a imaginar o homem primitivo a experimentar com mil produtos da terra, descobrindo, com grande sacrifício para o seu bem-estar gástrico, quais deles podiam ser consumidos em segurança; e a misturá-los, de forma crescente, com as frutas, as nozes, a carne e o peixe aos quais estava habituado, mas sempre, no fundo de sua alma, ansiando pela presa da caçada. Os povos primitivos nutrem uma paixão voraz pela carne, mesmo quando sua dieta principal se compõe de cereais, vegetais e leite. (Briffault, ii, p. 460.) O encontro com a carcaça de um animal recém-morto é o prelúdio quase certo para uma orgia desenfreada. Com frequência, não se perde tempo com o ritual do cozimento; a presa é devorada crua, com a rapidez que dentes sadios permitem rasgar e triturar; em pouco tempo, nada resta além dos ossos. Há relatos de tribos inteiras que se banquetearam durante uma semana com o corpo de uma baleia que o mar depositara na praia. (Renard, 35.) Os fueguinos, embora conheçam as artes culinárias, dão preferência à carne crua; quando capturam um peixe, matam-no com uma mordida atrás das guelras, e consomem-no da cabeça à cauda, sem qualquer outra cerimônia. (Sutherland, G. A., ed., p. 45.) A instabilidade do fornecimento de alimentos fez com que esses povos da natureza se tornassem, de forma quase literal, onívoros: mariscos, ouriços-do-mar, rãs, sapos, caracóis, camundongos, ratos, aranhas, minhocas, escorpiões, mariposas, centopeias, gafanhotos, lagartas, lagartos, cobras, jiboias, cães, cavalos, raízes, piolhos, insetos, larvas, ovos de répteis e de aves — não existe um único item nesta lista que não tenha sido, em algum lugar e em algum tempo, considerado uma iguaria, ou mesmo a peça central de um banquete, para o homem primitivo. (Ibid., 33-4; Ratzel, F., i, p. 90.) Algumas tribos são exímias caçadoras de formigas; outras secam insetos ao sol para depois os armazenar para um festim; há ainda as que catam os piolhos dos cabelos umas das outras e os comem com evidente prazer; se um número considerável de piolhos é reunido, o suficiente para uma petite marmite, eles são devorados entre gritos de júbilo, como se fossem inimigos da raça humana. (Sutherland, G. A., pp. 43, 45; Müller-Lyer, F., p. 70.) O cardápio das tribos caçadoras mais rudimentares quase não se distingue do dos grandes primatas. (Ibid., 86.)
A descoberta do fogo veio a pôr limites a essa voracidade indiscriminada, e, em aliança com a agricultura, ajudou a emancipar o homem da tirania da caça. O cozimento descompunha a celulose e o amido de mil plantas que, em estado cru, eram indigestas, levando o homem a confiar cada vez mais nos cereais e vegetais para o seu sustento. Ao mesmo tempo, o ato de cozinhar, ao amaciar os alimentos mais duros, reduziu a necessidade da mastigação vigorosa, dando início àquele processo de decadência dentária que se tornaria uma das marcas distintivas da civilização.
E a essa imensa e variada lista de comestíveis, o homem acrescentou a mais controversa de todas as iguarias: o seu próprio semelhante. Houve um tempo em que o canibalismo foi uma prática praticamente universal; seus vestígios foram encontrados em quase todas as tribos primitivas, e mesmo entre povos de épocas posteriores, como os irlandeses, os iberos, os pictos e os dinamarqueses do século XI. (Sumner, p. 329; Ratzel, 129; Renard, 40-2; Westermarck, E., i, pp. 553-62.) Para muitas tribos, a carne humana era um artigo corriqueiro de comércio, e o conceito de funeral era simplesmente desconhecido. No Alto Congo, era comum que homens, mulheres e crianças vivos fossem comprados e vendidos, sem rodeios, como mercadoria alimentar; (Sumner e Keller, ii, p. 1234.) na ilha da Nova Bretanha, a carne humana era exposta e vendida em lojas, tal como a carne de vaca ou de porco é vendida entre nós; e em certas ilhas Salomão, as vítimas humanas, com preferência por mulheres, eram cevadas para o abate como se fossem suínos. (Sumner, p. 329.) Os fueguinos valorizavam mais as mulheres do que os cães, justificando com uma lógica aterradora: “os cães”, diziam, “têm gosto de lontra”. No Taiti, um velho chefe polinésio, em conversa com Pierre Loti, descreveu assim as suas preferências gastronômicas: “O homem branco, quando bem assado, tem o sabor de uma banana madura.” Os fijianos, contudo, eram de opinião diferente, queixando-se de que a carne dos brancos era excessivamente salgada e rija, e que um marinheiro europeu dificilmente servia para uma refeição decente; um polinésio, segundo eles, era muito mais saboroso. (Renard, p. 40-2.)
Qual a origem de um costume tão funesto? Não há qualquer certeza de que a prática tenha nascido, como se pensava antigamente, de uma pura e simples carência de outros alimentos; se assim foi, o gosto, uma vez adquirido, sobreviveu à necessidade, transformando-se numa predileção veemente. (Sumner e Keller, ii, p. 1230.) Entre os povos da natureza, o sangue é universalmente visto como uma iguaria, jamais com horror; até mesmo vegetarianos primitivos o consomem com entusiasmo. O sangue humano é bebido com regularidade por tribos que, em outros aspectos, são amáveis e generosas; por vezes, é ingerido como remédio, outras como parte de um rito ou pacto, e frequentemente com a convicção de que o bebedor absorverá a força vital da vítima. (Briffault, ii, p. 399.) Não havia qualquer sentimento de vergonha associado à preferência pela carne humana; o homem primitivo parece não ter feito qualquer distinção moral entre devorar um homem e devorar qualquer outro animal. Na Melanésia, o chefe que oferecia aos seus convidados um prato de carne humana assada via a sua estima social ascender às alturas. “Quando eu mato um inimigo”, argumentou um chefe-filósofo do Brasil, “é certamente melhor comê-lo do que deixá-lo apodrecer... O pior não é ser comido, mas sim morrer; se me matarem, tanto faz que o meu inimigo tribal me coma ou não. Mas não consigo imaginar caça alguma que seja mais saborosa do que ele... Vós, os brancos, sois realmente demasiado delicados.” (Sumner e Keller, ii, p. 1234.)
É inegável que o costume possuía certas vantagens sociais. Antecipava, de certa forma, o plano do Deão Swift para o aproveitamento de crianças excedentes, e concedia aos idosos a oportunidade de uma morte útil. Existe uma perspectiva a partir da qual os funerais se afiguram como uma extravagância perfeitamente dispensável. A Montaigne, por exemplo, parecia infinitamente mais bárbaro torturar um homem até à morte sob o manto da piedade, como era moda em seu tempo, do que assá-lo e comê-lo depois de morto. É nosso dever respeitar as ilusões uns dos outros.
II. A Centelha Prometeica e a Mão que Talha o Mundo
Se a jornada do homem se iniciou com o verbo e a da civilização com o grão, a da indústria teve sua aurora na chama. O fogo não foi uma invenção sua; mais provavelmente, foi a própria natureza que lhe apresentou o prodígio, seja pela fricção de folhas e galhos ressequidos, pelo golpe de um relâmpago ou por uma combinação fortuita de elementos químicos. Ao homem coube apenas a sagacidade salvadora de imitar o que via e, depois, de aprimorá-lo. E a essa maravilha ele deu mil e uma aplicações. A primeira, talvez, tenha sido a de uma tocha, com a qual ele enfim pôde vencer o seu mais antigo e temível inimigo: a escuridão. Em seguida, usou-a para gerar calor, o que lhe permitiu abandonar o berço dos trópicos e aventurar-se por zonas menos amenas, tornando, passo a passo, todo o planeta um lugar habitável para a sua espécie. Depois, aplicou a chama aos metais, amolecendo-os, temperando-os, fundindo-os em ligas e moldando-os em formas mais resistentes e flexíveis do que aquelas que a natureza lhe oferecia. Tão benéfico e, ao mesmo tempo, tão estranho era o fogo, que ele jamais deixou de ser um milagre aos olhos do homem primitivo, um ente digno de adoração, um deus. Em sua honra, celebraram-se incontáveis cerimônias de devoção, e a chama tornou-se o centro, o focus (palavra latina para lareira), da vida e do lar. O homem transportava-a consigo com o máximo cuidado em suas deambulações, e jamais permitiria de bom grado que ela se extinguisse. Mesmo entre os civilizados romanos, a virgem vestal que, por descuido, deixasse o fogo sagrado apagar-se, era punida com a morte.
Entrementes, no seio das atividades da caça, do pastoreio e da agricultura, a inventividade não repousava. O cérebro primitivo se punha a laborar incessantemente, buscando soluções mecânicas para os enigmas econômicos da existência. Num primeiro momento, o homem parece ter-se contentado em aceitar passivamente as dádivas da natureza: os frutos da terra como alimento, as peles e os couros dos animais como vestimenta, as grutas nas encostas como abrigo. Depois, talvez — pois a história é, em grande parte, um exercício de adivinhação, sendo o resto mero preconceito —, ele passou a imitar as ferramentas e a indústria do mundo animal. Observou o macaco a arremessar pedras e frutos contra os seus inimigos, ou a quebrar nozes e ostras com uma pedra; viu o castor a erguer uma represa, os pássaros a construir ninhos e caramanchões, os chimpanzés a levantar algo que muito se assemelhava a uma cabana. Cobiçou a potência de suas garras, dentes, presas e chifres, e a robustez de seus couros. E, com essa inveja como motor, pôs-se a fabricar ferramentas e armas que pudessem igualar e até superar as da natureza. O homem, nas palavras de Franklin, é um animal que utiliza ferramentas (Cowan, A. R., p. 10.); mas esta distinção, como todas as outras das quais tanto nos orgulhamos, não passa de uma diferença de grau.
O mundo vegetal que o rodeava oferecia ao homem primitivo um arsenal de ferramentas em estado potencial. Do bambu, ele extraiu hastes, facas, agulhas e recipientes; com os galhos das árvores, fabricou tenazes, pinças e tornos; da casca e das fibras, teceu cordas e vestes de mil variedades. E, acima de tudo, fez para si uma vara. Que invenção modesta, à primeira vista! E, no entanto, os seus usos revelaram-se tão múltiplos que a vara se tornou, para sempre, um símbolo de poder e autoridade, numa linhagem que vai da varinha de condão das fadas e do cajado do pastor ao bastão de Moisés ou de Aarão, ao bastão de marfim do cônsul romano, ao lituus dos áugures e ao cetro do magistrado ou do rei. Na agricultura, a vara transformou-se em enxada; na guerra, em lança, dardo, arpão, espada ou baioneta. (Renard, p. 39.) O homem recorreu também ao reino mineral, e das pedras fez surgir um verdadeiro museu de armas e utensílios: martelos, bigornas, caldeirões, raspadores, pontas de flecha, serras, plainas, cunhas, alavancas, machados e brocas. Do reino animal, por sua vez, aproveitou tudo: das conchas do litoral, fez conchas, colheres, vasos, cabaças, pratos, copos, navalhas e anzóis; e do chifre, do marfim, dos dentes, dos ossos, dos pelos e do couro das feras, criou ferramentas ora robustas, ora delicadas. A maioria desses artefactos possuía cabos de madeira, engenhosamente afixados com tranças de fibra ou cordões de tendão animal, e, por vezes, colados com estranhas misturas à base de sangue. A engenhosidade do homem primitivo provavelmente igualava, se não excedia, a do homem moderno médio; o que nos distingue deles não é uma superioridade cerebral inata, mas sim o vasto acervo social de conhecimentos, materiais e ferramentas que herdamos. De fato, os povos da natureza encontram grande prazer em dominar as adversidades de uma situação com argúcia inventiva. Entre os esquimós, era um jogo popular aventurarem-se por lugares ermos e difíceis, competindo entre si na criação de meios para suprir as necessidades de uma vida desprovida de equipamento e de ornamentos. (Mason, O. T., p. 23.)
Essa habilidade primeva manifestava-se com particular orgulho na arte da tecelagem. E aqui, uma vez mais, foi o animal quem indicou o caminho. A teia da aranha, o ninho do pássaro, o entrelaçamento e a textura das fibras e folhas no bordado natural das florestas — tudo isso constituía um exemplo tão evidente que é quase certo que a tecelagem foi uma das artes mais antigas da raça humana. Cascas, folhas e fibras vegetais eram tecidas para criar roupas, tapetes e tapeçarias, alcançando por vezes um grau de excelência que seria impossível de igualar hoje, mesmo com todos os recursos da maquinaria contemporânea. As mulheres das Ilhas Aleutas podiam dedicar um ano inteiro à confecção de um único manto. Os cobertores e as vestes dos índios norte-americanos eram ricamente adornados com franjas e bordados feitos de pelos e fios de tendão, tingidos com suco de bagas em cores vibrantes; cores “tão vivas”, segundo o Padre Théodut, “que as nossas nem de longe se lhes parecem.” (Briffault, i, pp. 461-5.) A arte, novamente, começava onde a natureza terminava: ossos de aves e espinhas de peixe, bem como os delgados rebentos do bambu, eram polidos até se transformarem em agulhas, e os tendões dos animais eram desfiados em fios tão finos que poderiam passar hoje pelo fundo da mais fina das agulhas. A casca das árvores era batida até se tornar esteiras e tecidos, as peles eram secas para servirem de roupa e calçado, as fibras eram torcidas nos fios mais resistentes, e ramos flexíveis e filamentos coloridos eram entrelaçados em cestos de uma beleza superior a qualquer forma moderna. (Mason, O. T., p. 224L)
Irmã da cestaria, e talvez dela nascida, era a arte da cerâmica. É possível que a argila, ao ser aplicada sobre um cesto de vime para protegê-lo do fogo, tenha endurecido e formado uma casca refratária que manteve a sua forma mesmo após a remoção do vime; (Müller-Lyer, p. 102.) este pode ter sido o primeiro passo de um longo desenvolvimento que atingiria o seu apogeu nas porcelanas perfeitas da China. Ou talvez tenham sido alguns torrões de barro, cozidos e endurecidos pelo sol, a sugerir a arte cerâmica. A partir daí, foi um pequeno passo substituir o sol pelo fogo e começar a moldar com a terra uma miríade de recipientes para os mais diversos fins: para cozinhar, para armazenar, para transportar e, finalmente, para o luxo e a ornamentação. Os desenhos impressos na argila húmida com a unha ou com uma ferramenta representam uma das primeiras manifestações artísticas e, quiçá, uma das origens da escrita.
Com argila seca ao sol, as tribos primitivas fabricaram tijolos e adobe, passando a habitar, por assim dizer, dentro de potes de cerâmica. Mas esta já era uma fase tardia da arte da construção, que liga a choupana de barro do “selvagem” numa cadeia de desenvolvimento ininterrupto aos azulejos cintilantes de Nínive e Babilônia. Alguns povos primitivos, como os Veddas do Ceilão, não possuíam qualquer tipo de morada, contentando-se com a terra e o céu; outros, como os tasmanianos, dormiam em árvores ocas; outros ainda, como os nativos de Nova Gales do Sul, viviam em cavernas. Havia também os que, como os bosquímanos, construíam abrigos esparsos contra o vento, feitos de galhos, ou, mais raramente, cravavam estacas no solo e cobriam-nas com musgo e gravetos. Desses abrigos, uma vez que se lhes acrescentaram paredes, evoluiu a cabana, que podemos encontrar entre os nativos da Austrália em todas as suas fases de desenvolvimento, desde uma minúscula choupana de galhos, erva e terra, suficiente para abrigar duas ou três pessoas, até grandes cabanas que alojam trinta ou mais indivíduos. O caçador ou pastor nómada preferia a tenda, que podia ser transportada para onde quer que a caça o levasse. Os povos da natureza de tipo mais avançado, como os índios americanos, construíam com madeira; os Iroqueses, por exemplo, erguiam com troncos ainda com casca enormes edifícios de quinhentos pés de comprimento, que abrigavam numerosas famílias. Por fim, os nativos da Oceânia já construíam verdadeiras casas com tábuas cuidadosamente cortadas, completando assim a evolução da habitação de madeira. (Ibid., pp. 144-6.)
Para que o homem primitivo criasse todos os elementos essenciais da civilização econômica, faltavam apenas três desenvolvimentos: os mecanismos de transporte, os processos de comércio e o meio de troca. A figura de um carregador a transportar uma mala de um avião moderno condensa, numa só imagem, o primeiro e o último estágios da história dos transportes. No princípio, não há dúvida, o homem era a sua própria besta de carga — a menos que fosse casado; ainda hoje, em grande parte do sul e leste da Ásia, o homem acumula as funções de carroça e de burro. Depois, inventou as cordas, as alavancas e as roldanas; domesticou e subjugou o animal, colocando sobre o seu dorso as suas cargas; construiu o primeiro trenó, fazendo o seu gado arrastar pelo chão longos ramos onde dispunha os seus bens; colocou toras sob o trenó para que rolassem; cortou secções transversais dessas toras e realizou a maior de todas as invenções mecânicas: a roda; e, ao colocar rodas sob o trenó, criou a carroça. Outras toras, atou-as umas às outras para formar jangadas, ou escavou-as para fazer canoas, e os rios tornaram-se as suas mais cómodas vias de comunicação. Por terra, começou por se deslocar através de campos e colinas sem caminho, depois por trilhos e, finalmente, por estradas. Estudou as estrelas e, com elas, guiou as suas caravanas através de montanhas e desertos, traçando a sua rota no firmamento. Remou, vogou e velejou, avançando corajosamente de ilha em ilha, até que, por fim, transpôs oceanos para disseminar a sua modesta cultura de continente em continente. Também neste domínio, os problemas fundamentais foram resolvidos muito antes do início da história escrita.
Visto que as habilidades humanas e os recursos da natureza se encontram distribuídos de forma diversa e desigual, pode acontecer que um povo, pelo desenvolvimento de talentos específicos ou pela sua proximidade a certas matérias-primas, consiga produzir determinados artigos a um custo inferior ao dos seus vizinhos. Desses artigos, ele produz mais do que necessita para o seu consumo e oferece o excedente a outros povos em troca dos produtos excedentários deles; eis a origem do comércio. Os índios Chibcha da Colômbia exportavam o sal-gema que abundava no seu território e recebiam, em troca, os cereais que não conseguiam cultivar no seu solo árido. Havia aldeias de índios americanos quase inteiramente dedicadas ao fabrico de pontas de flecha; outras, na Nova Guiné, à produção de cerâmica; outras, em África, à ferraria ou ao fabrico de barcos ou de lanças. Tais tribos ou aldeias especializadas acabaram, por vezes, por adquirir o nome da sua indústria (Ferreiro, Pescador, Oleiro...), e esses nomes, com o tempo, foram-se fixando em famílias que perpetuavam o ofício. (Ibid., p. 167; Ratzel, p. 87.) A troca de excedentes começou por ser um intercâmbio de dádivas; mesmo nos nossos dias, tão dados ao cálculo, um presente (nem que seja apenas uma refeição) precede ou sela, por vezes, uma transação. A circulação de bens era também facilitada pela guerra, pela pilhagem, pelo tributo, por multas e por compensações; era imperativo que as mercadorias se mantivessem em movimento! Gradualmente, foi-se estabelecendo um sistema ordenado de escambo, e surgiram postos de troca, mercados e bazares — primeiro esporádicos, depois periódicos e, finalmente, permanentes — onde quem possuía um artigo em excesso o podia oferecer em troca de um artigo de que necessitasse. (Thomas, W. I., pp. 113-7; Renard, pp. 154-5; Müller-Lyer, 306; Sumner e Keller, i, pp. 150-3.)
Durante um longo período, o comércio resumiu-se a essa troca direta, e séculos decorreram até que se inventasse um meio circulante de valor para o dinamizar. Podia-se ver um Dyak a vaguear dias a fio por um bazar, com uma bola de cera de abelha na mão, em busca de um comprador que lhe pudesse oferecer em troca algo que lhe fosse mais útil. (Sumner, p. 142.) Os primeiros meios de troca foram artigos de procura universal, que qualquer pessoa aceitaria como pagamento: tâmaras, sal, peles, couros, ornamentos, utensílios, armas. Neste tipo de negócio, duas facas valiam um par de meias, os três artigos juntos valiam um cobertor, os quatro valiam uma arma, e os cinco um cavalo; dois dentes de alce equivaliam a um pónei, e oito póneis a uma esposa. (Mason, O. T., p. 71.) Quase não há objeto que não tenha sido, em algum momento e por algum povo, utilizado como dinheiro: feijões, anzóis, conchas, pérolas, contas, sementes de cacau, chá, pimenta e, por fim, ovelhas, porcos, vacas e escravos. O gado revelou-se um padrão de valor e um meio de troca particularmente conveniente entre caçadores e pastores: rendia juros através da procriação e era fácil de transportar, uma vez que se transportava a si mesmo. Mesmo na época de Homero, homens e objetos eram avaliados em termos de gado: a armadura de Diomedes valia nove cabeças de gado, um escravo hábil valia quatro. Os romanos usavam palavras da mesma raiz — pecus e pecunia — para gado e para dinheiro, e estamparam a imagem de um boi nas suas primeiras moedas. As nossas próprias palavras capital, chatel e cattle (gado) remontam, através do francês, ao latim capitale, que significa propriedade, e que por sua vez deriva de caput, que significa cabeça — isto é, de gado. Com o início da extração de metais, estes foram lentamente substituindo os outros artigos como padrões de valor; o cobre, o bronze, o ferro e, finalmente — devido à sua capacidade de representar grande valor em pouco espaço e peso —, a prata e o ouro tornaram-se o dinheiro da humanidade. O salto de bens simbólicos para uma moeda metálica não parece ter sido dado pelo homem primitivo; coube às civilizações históricas a invenção da cunhagem e do crédito, que, ao facilitarem ainda mais a troca de excedentes, vieram a aumentar, uma vez mais, a riqueza e o conforto do homem. (Müller-Lyer, pp. 238-9; Renard, 158.)
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Frente e verso de um quadrans de cobre do imperador Augusto, cunhada por volta de 15-10 a.C. em uma casa da moeda imperial (Lugdunum, atual Lyon). |
III. O Contrato da Tribo: Da Partilha Comum à Cerca Individual
O comércio foi o grande elemento perturbador do mundo primitivo. Antes da sua chegada, trazendo consigo o dinheiro e a miragem do lucro, a propriedade era um conceito vago e, consequentemente, o governo, uma necessidade menor. Nos albores do desenvolvimento econômico, a noção de propriedade restringia-se, na sua maior parte, aos objetos de uso estritamente pessoal. O sentimento de posse era tão intenso em relação a esses artigos que eles (e entre eles se incluía a esposa) eram frequentemente enterrados com o seu dono. Em contrapartida, era tão fraco no que diz respeito às coisas não utilizadas pessoalmente que, nesses casos, o sentido de propriedade, longe de ser uma característica inata do ser humano, exigia um esforço constante de reforço e inculcação.
Em quase toda a parte, entre os povos primitivos, a terra era um bem comunitário. Os índios da América do Norte, os nativos do Peru, as tribos das colinas de Chittagong na Índia, os habitantes de Bornéu e das ilhas do Pacífico Sul parecem ter possuído e lavrado o solo em comum, partilhando fraternalmente os seus frutos. “A terra”, afirmavam os índios Omaha, “é como a água e o vento — não pode ser vendida.” Em Samoa, antes da chegada do homem branco, a ideia de vender terras era simplesmente inconcebível. O Professor Rivers encontrou formas de comunismo agrário ainda em vigor na Melanésia e na Polinésia; e, no interior da Libéria, é um sistema que se pode observar ainda hoje. (Sumner e Keller, i, pp. 268-72, 300, 320; Lubbock, Sir J., pp. 373-5; Campbell, Bishop R., in New York Times, 1-11-33.)
Quase tão generalizado era o comunismo alimentar. Entre os “selvagens”, era prática corrente que o homem que tinha comida a partilhasse com o que não a tinha; que os viajantes fossem alimentados em qualquer casa onde decidissem pernoitar; e que as comunidades flageladas pela seca fossem socorridas pelas suas vizinhas. (Bücher, K., p. 57.) Se um homem se sentava para comer na floresta, era esperado que ele chamasse em voz alta, convidando quem estivesse por perto a partilhar da sua refeição, antes de poder, em sã consciência, comer sozinho. (Kropotkin, Prince P., p. 90.) Quando o missionário Turner descreveu a um samoano a existência de pobres em Londres, o “selvagem” reagiu com uma estupefação genuína: “Como é possível? Não têm comida? Não têm amigos? Não têm uma casa para viver? Onde é que essa pessoa cresceu? Será que não há casas que pertençam aos seus amigos?”. (Mason, O. T., 27.) Ao índio faminto, bastava pedir para receber; por mais escassas que fossem as provisões, a comida era-lhe dada se dela necessitasse; “ninguém pode passar fome enquanto houver milho na aldeia”. (Sumner e Keller, i, 270-2.) Entre os hotentotes, era costume que quem possuísse mais do que os outros distribuísse o seu excedente até que todos estivessem em pé de igualdade. Os viajantes brancos que percorreram a África antes da chegada da civilização notaram que qualquer presente de comida ou de outros bens valiosos oferecido a um “homem negro” era imediatamente partilhado; assim, se se oferecesse um fato completo a um nativo, o doador não tardaria a encontrar o presenteado a usar o chapéu, um amigo a usar as calças e um outro o casaco. O caçador esquimó não tinha direito pessoal sobre a sua presa; esta tinha de ser dividida entre todos os habitantes da aldeia, e as ferramentas e as provisões eram propriedade comum de todos. O Capitão Carver descreveu os índios norte-americanos como sendo “alheios a toda e qualquer distinção de propriedade, exceto no que toca aos artigos de uso doméstico... São extremamente generosos uns com os outros e suprem as carências dos seus amigos com o que quer que tenham em excesso.” “O que é deveras surpreendente”, relata outro missionário, “é vê-los tratarem-se uns aos outros com uma gentileza e uma consideração que não se encontram entre as pessoas comuns das nações mais civilizadas. Isto resulta, sem dúvida, do facto de as palavras ‘meu’ e ‘teu’, que, segundo São Crisóstomo, extinguem nos nossos corações o fogo da caridade e acendem o da cobiça, serem desconhecidas para estes selvagens.” “Eu vi-os”, testemunha outro observador, “a dividir a caça entre si, mesmo quando tinham muitas partes a distribuir; e não me recordo de um único caso em que tenham discutido ou se queixado da partilha, por a considerarem desigual ou de alguma forma insatisfatória. Preferem deitar-se de estômago vazio a serem acusados de negligenciar os necessitados... Consideram-se a si mesmos como uma única e grande família.” (Briffault, ii, pp. 494-7.)
Por que razão, então, desapareceu este comunismo primitivo à medida que a humanidade ascendia àquilo que nós, com evidente parcialidade, designamos por civilização? Sumner defendia a tese de que o comunismo se revelou antibiológico, um entrave na luta pela existência; que oferecia um estímulo insuficiente à inventividade, à diligência e à poupança; e que a incapacidade de recompensar os mais aptos e de punir os menos aptos resultava num nivelamento por baixo das capacidades, o que era hostil ao progresso e a uma competição bem-sucedida com outros grupos. (Sumner and Keller, i, p. 328f.) Loskiel relatou que certas tribos indígenas do nordeste eram “tão preguiçosas que nada plantavam por si, confiando inteiramente na expectativa de que os outros não se recusariam a partilhar com elas os seus produtos. E como os que trabalham não desfrutam mais dos frutos do seu labor do que os ociosos, a cada ano que passa plantam menos.” (In Lippert, p. 39.) Darwin era de opinião que a perfeita igualdade que reinava entre os fueguinos era fatal para qualquer esperança de que eles alguma vez se civilizassem (A Naturalist’s Voyage Around the World, 242, in Briffault, ii, p. 494.); ou, na perspetiva dos próprios fueguinos, a civilização é que teria sido fatal para a sua igualdade. O comunismo oferecia uma certa segurança a todos os que sobreviviam às doenças e aos acidentes resultantes da pobreza e da ignorância da sociedade primitiva, mas não os resgatava dessa mesma pobreza. O individualismo, por outro lado, trouxe a riqueza, mas trouxe consigo a insegurança e a escravidão; estimulou as potencialidades latentes dos homens superiores, mas intensificou a competição pela vida e fez com que os homens sentissem com amargura uma pobreza que, quando partilhada por todos, parecia não oprimir ninguém.
O comunismo pôde subsistir com maior facilidade em sociedades nómadas, onde o perigo e a carência eram uma presença constante. Os caçadores e os pastores não sentiam necessidade da propriedade privada da terra. Foi quando a agricultura se tornou a forma de vida sedentária dos homens que se tornou evidente que a terra era mais produtiva quando as recompensas de um cultivo esmerado revertiam para a família que o tinha levado a cabo. Por conseguinte — e porque existe uma seleção natural tanto de instituições e ideias como de organismos e grupos —, a passagem da caça para a agricultura implicou uma transição da propriedade tribal para a propriedade familiar; a unidade de produção mais económica tornou-se a unidade de posse. À medida que a família foi assumindo uma forma cada vez mais patriarcal, com a autoridade centralizada na figura do homem mais velho, a propriedade tornou-se progressivamente individualizada, e surgiu a herança pessoal. Com frequência, um indivíduo mais empreendedor abandonava o porto seguro da família, aventurava-se para além das fronteiras tradicionais e, à custa de um trabalho árduo, reclamava para si terras da floresta, da selva ou do pântano; essas terras, ele guardava-as ciosamente como suas, e a sociedade, por fim, acabou por reconhecer o seu direito, dando assim origem a mais uma forma de propriedade individual. (Westermarck, i, pp. 35-42.) Com o aumento da pressão demográfica e o esgotamento das terras mais antigas, este processo de apropriação foi-se alargando num círculo cada vez maior, até que, nas sociedades mais complexas, a propriedade individual se impôs como a ordem do dia. A invenção do dinheiro colaborou com estes fatores, ao facilitar a acumulação, o transporte e a transmissão de bens. Os antigos direitos e tradições tribais ainda se manifestaram na posse técnica da terra pela comunidade da aldeia ou pelo rei, e em redistribuições periódicas do solo; mas, após uma época de oscilação natural entre o velho e o novo, a propriedade privada estabeleceu-se de forma definitiva como a instituição económica basilar da sociedade histórica.
A agricultura, ao mesmo tempo que gerava a civilização, conduziu não só à propriedade privada, mas também à escravidão. Nas comunidades de caçadores puros, a escravidão era desconhecida; as esposas e os filhos do caçador eram suficientes para realizar as tarefas servis. Os homens viviam numa alternância entre a atividade febril da caça ou da guerra e a lassidão exausta da saciedade ou da paz. A preguiça característica dos povos primitivos teve a sua origem, presumivelmente, neste hábito de recuperação lenta da fadiga da batalha ou da perseguição; não era tanto preguiça, mas sim repouso. Para transformar esta atividade espasmódica em trabalho regular, foram necessários dois elementos: a rotina do cultivo e a organização do trabalho.
Essa organização permanece flexível e espontânea quando os homens trabalham para si próprios; mas quando trabalham para outros, a organização do trabalho depende, em última análise, do uso da força. O advento da agricultura e a desigualdade natural entre os homens levaram ao emprego dos socialmente fracos pelos socialmente fortes; só então ocorreu ao vencedor de uma guerra que o único prisioneiro bom é um prisioneiro vivo. A chacina e o canibalismo diminuíram na mesma proporção em que a escravidão cresceu. (Hobhouse, L. T., pp. 244-5; Cowan, A. R., p. 22; Sumner and Keller, i, p. 58.) Foi um avanço moral tremendo quando os homens deixaram de matar ou de comer os seus semelhantes e passaram a, meramente, escravizá-los. Um desenvolvimento semelhante, em maior escala, pode ser observado nos dias de hoje, quando uma nação vitoriosa numa guerra já não extermina o inimigo, mas escraviza-o através de indemnizações. Uma vez instituída e comprovada a sua rentabilidade, a escravidão foi alargada, condenando a ela os devedores insolventes e os criminosos reincidentes, e através de incursões militares realizadas com o propósito específico de capturar escravos. A guerra ajudou a criar a escravidão, e a escravidão ajudou a criar a guerra.
Foi provavelmente ao longo de séculos de cativeiro que a nossa raça adquiriu as suas tradições e os seus hábitos de trabalho árduo. Ninguém se dedicaria a uma tarefa dura e persistente se a pudesse evitar sem sofrer uma penalização física, económica ou social. A escravidão tornou-se parte da disciplina através da qual o homem foi preparado para a indústria. Indiretamente, promoveu a civilização, na medida em que aumentou a riqueza e — para uma minoria — criou o tempo de lazer. Após alguns séculos, os homens passaram a encará-la como um dado adquirido; Aristóteles defendeu a escravidão como sendo natural e inevitável, e São Paulo deu a sua bênção àquela que, na sua época, devia parecer uma instituição divinamente ordenada.
Gradualmente, através da agricultura e da escravidão, da divisão do trabalho e da diversidade inerente aos homens, a relativa igualdade da sociedade natural foi substituída pela desigualdade e pelas divisões de classe. “No grupo primitivo, não encontramos, por norma, qualquer distinção entre escravo e livre, nem servidão, nem castas, e pouca ou nenhuma distinção entre o chefe e os seus seguidores.” (Hobhouse, p. 272.) Lentamente, a crescente complexidade das ferramentas e dos ofícios submeteu os menos hábeis ou mais fracos aos mais hábeis ou mais fortes; cada nova invenção era uma nova arma nas mãos dos fortes, que os fortalecia ainda mais no seu domínio e utilização dos fracos. A herança acrescentou uma oportunidade superior a posses já superiores, e estratificou sociedades outrora homogéneas num labirinto de classes e castas. Ricos e pobres tomaram uma consciência disruptiva da riqueza e da pobreza; a luta de classes começou a percorrer, como um fio vermelho, toda a história; e o Estado emergiu como um instrumento indispensável para a regulação das classes, a proteção da propriedade, a condução da guerra e a organização da paz.
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Sugestões de Leitura
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FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global Editora, 2006.
GRAEBER, David; WENGROW, David. O Despertar de Tudo: Uma nova história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Tradução de Janaína Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2015.
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POLANYI, Karl. A Grande Transformação: As origens de nossa época. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
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SCOTT, James C. Against the Grain: A Deep History of the Earliest States. New Haven: Yale University Press, 2017
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GALVÃO, Eduardo. Gênese Material da Vida Civilizada. In: História da Civilização. (S. l.), ago 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].