O que significa “estribar-se” em Provérbios 3:5?

Na Bíblia, “estribar-se” é uma palavra bem física antes de virar ideia. Ela descreve o gesto de encostar o peso do corpo em alguma coisa para não cair: apoiar-se numa coluna, numa lança, na mão ou no braço de alguém, num cajado. É o corpo dizendo: “isto aqui vai me sustentar”. Mais abaixo iremos analisar todos os versículos que usam o verbo hebraico para iluminar seu significado, mas para aqueles que não tem tanto tempo ou paciência para um estudo mais longo, basta pensar no verbo estribar-se Provérbios 3:5 com a mesma linguagem que usamos para montaria.

Pensa no estribo da sela para montar cavalo como uma pequena plataforma de confiança. Ele é discreto, quase humilde, mas sem ele o cavaleiro fica “solto”: a perna balança, o corpo perde centro, a montaria vira um risco. O estribo não é o cavalo, não é a sela, não é a rédea, mas é o ponto onde o peso do corpo encontra um lugar para pousar e, ao pousar, transforma instabilidade em domínio.

Quando você coloca o pé no estribo, você faz duas coisas ao mesmo tempo: transfere parte do seu peso para fora de você e cria um eixo de força para agir. O pé que apoia dá ao corpo uma coluna invisível. É como se o estribo dissesse: “pode descarregar aqui; agora você tem base”. Desse apoio nasce a firmeza para montar, levantar-se no galope, amortecer o impacto, mudar de direção sem ser lançado.

O que significa “estribar-se” em Provérbios 3:5?

Agora encosta isso na imagem bíblica de “estribar-se” usada em Provérbios 3:5. A palavra fala desse mesmo gesto de deposição: você escolhe um “ponto de apoio” e entrega a ele o seu peso — físico ou interior. Quem “se estriba” num pilar, numa lança ou na mão de alguém está dizendo com o corpo: “isto sustenta meu equilíbrio”. No plano da vida, “estribar-se” vira: “isto sustenta minhas decisões, minha coragem, meu rumo”. A pergunta bíblica é: qual é o estribo do teu coração?

Provérbios 3:5 é como um mestre de equitação espiritual. Ele não manda jogar o cavalo fora nem proíbe usar a cabeça; ele apenas corrige onde o pé vai buscar firmeza. “Não te estribes no teu próprio entendimento” é como dizer: não ponha todo o peso num estribo de madeira podre. A mente é útil como rédea e como olho — ajuda a orientar —, mas, se você fizer dela o apoio absoluto, é como subir no cavalo com um estribo que racha: na primeira arrancada, você perde o centro, o corpo inclina, e o tombo não vem por falta de cavalo, mas por falta de base.

“Confia no SENHOR de todo o teu coração” é o convite a escolher um estribo que não cede. É apoiar o pé da confiança num suporte firme, para que o resto — entendimento, planejamento, prudência — funcione como instrumentos de direção, não como chão. A mente, então, deixa de ser “cetro de força” autônomo e vira ferramenta; o “cetro” real, o apoio que sustenta o peso, é Deus. E quando o apoio é firme, você não vira passivo: você monta melhor. Porque o estribo não substitui o cavaleiro; ele dá a base para o cavaleiro agir sem cair. Por isso, quando o texto usa esse verbo em sentido figurado, a imagem continua a mesma: “estribar-se” passa a significar colocar o peso da vida — decisões, segurança, esperança — sobre um “apoio”. E aí vem a pergunta que a Bíblia repete de vários jeitos: em que apoio você está jogando seu peso?

Entretando, nesse uso figurado, “estribar-se” pode ser bom ou ruim. É bom quando o “apoio” é Deus: a confiança vira um descanso do coração, como quem se firma numa rocha. É ruim quando o apoio é frágil ou torto: poder humano, alianças políticas, violência, mentira, dinheiro, ego, o “Egito” de cada época. A imagem é simples: se você apoia o corpo num bordão podre, ele quebra, e a queda machuca. A Bíblia usa essa cena para falar de confiança mal colocada.

Em Provérbios 3:5, a frase usa exatamente esse choque de imagens: confiar no SENHOR “com todo o coração” e não se estribar no próprio entendimento. “Coração”, no modo bíblico de falar, não é só emoção; é o centro da pessoa — mente, vontade, afetos, direção interior. Então “confiar com todo o coração” é entregar o peso inteiro, não um pedaço. E “não te estribes no teu próprio entendimento” não é um mandamento contra pensar, estudar ou raciocinar; é um alerta contra fazer da própria cabeça o pilar final, como se a mente humana fosse infalível, autossuficiente, incapaz de se enganar. O provérbio não está expulsando a razão; está tirando a razão do trono.

O sentido do versículo como um todo é este: a vida sempre precisa de um ponto de apoio, e o texto chama a escolher conscientemente esse ponto. Use entendimento, sim — mas não como “bengala última”. Pense, planeje, examine, aprenda; mas, na hora decisiva, não trate sua visão limitada como se fosse fundamento absoluto. A sabedoria bíblica começa quando o peso da confiança desce do “eu” e repousa em Deus. É como atravessar um caminho escuro: a mente é uma lanterna útil, mas Deus é o chão firme; lanterna ajuda a enxergar, chão é o que sustenta.

I. Definição do objeto

Antes de qualquer associação imagética ou aplicação teológica, o texto de Provérbios 3:5 exige um passo prévio e incontornável: determinar com exatidão o que o verbo traduzido por “estribar-se” realmente expressa no hebraico. Sem essa fixação inicial, toda leitura corre o risco de oscilar entre abstrações vagas ou metáforas mal calibradas. É somente quando a forma verbal é examinada em sua construção, voz e valor semântico que a imagem subjacente ao provérbio deixa de ser intuitiva e passa a ser controlada pelo próprio texto.

Provérbios 3:5 “Confia no SENHOR de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento.”

בְּטַ֣ח אֶל־יְהוָה בְּכׇל־לִבֶּךָ
וְאֶל־בִּֽינָתְךָ֗ אַל־תִּשָּׁעֵן׃
“Confia no SENHOR de todo o teu coração
e não te estribes no teu próprio entendimento.”
(Chave de busca: “אַל־תִּשָּׁעֵן” / “não te estribes no teu próprio entendimento”.)

O ponto de partida, aqui, é fixar com precisão cirúrgica qual forma verbal está por trás de “estribar-se”, porque a imagem que você quer estudar só fica nítida quando o verbo hebraico é cravado na madeira do texto: “וְאֶל־בִּֽינָתְךָ֗ אַל־תִּשָּׁעֵן” corresponde a wĕʾel-bînaṯeḵā (“e para o teu entendimento”) + ʾal (“não”) + tiššaʿēn (“apoies-te / recostes-te / dependas”), e esse tiššaʿēn (“apoies-te”) é forma verbal do nifal, imperfeito, segunda pessoa masculina singular, usada em construção proibitiva com ʾal (“não”), isto é, não descreve um fato, mas barra um gesto: “não te ponhas em posição de apoio” sobre aquilo que é teu. O nifal é decisivo porque desloca o verbo para o campo do “ser apoiado/estar apoiado” ou “apoiar-se” (voz média/reflexiva), e Klein registra exatamente essa bifurcação: qal šāʿan (“apoiar, sustentar”) e nifal nišʿan (“apoiar-se, reclinar-se; confiar, depender”), o que sustenta que Provérbios 3:5 não está falando de “sustentar outro”, mas de “tomar apoio para si”, como quem transfere o peso do corpo para uma muleta. (HARRIS, R. Laird; ARCHER JR., Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Theological Wordbook of the Old Testament. Chicago: Moody Press, 1999. p. 945.).

Só depois dessa fixação morfológica é que “estribar-se” pode ser julgado, não por gosto, mas por adequação de imagem: a raiz שען (šāʿan — “apoiar-se”) em léxicos de uso comum é apresentada como “to support one’s self”, com a constelação semântica “lean / rely / rest (on)” (H8172). O alvo do apoio proibido não é o coração, mas bînâ (“entendimento”), substantivo feminino cujo campo inclui “entendimento, discernimento, sabedoria”, de modo que a frase não condena pensar, mas denuncia o gesto interior de autonomia como bastão último: quando o entendimento vira “coluna” e não “lâmpada”, ele passa a carregar o que não foi feito para carregar. (H998). E é precisamente aqui que a comparação de versões começa a iluminar o problema que você quer resolver: onde ARA/ARC/ACF retêm “não te estribes”, a NAA troca para “não se apoie”, explicitando a metáfora corporal do apoio e confirmando que o debate não é só lexical, mas imagético — se o verbo deve soar como “inclinar o peso” ou como “depositar confiança” já cristalizada.

II. Etimologia em camadas — שׁען (šāʿan “apoiar-se, inclinar-se”) em Provérbios 3:5

Provérbios 3:5, no português que verte “não te estribes”, faz da imagem do corpo uma parábola da mente: “Confia no Senhor de todo o teu coração, e não te estribes no teu próprio entendimento.” O hebraico massorético explicita esse gesto com o verbo na forma negativa: בְּטַח אֶל־יְהוָה בְּכָל־לִבֶּךָ וְאֶל־בִּינָתְךָ אַל־תִּשָּׁעֵן (bəṭaḥ “confia” + ʾel-yhwh “no Senhor” + bəkāl-libbeḵā “com todo o teu coração” + wĕʾel-bînaṯeḵā “e para o teu entendimento” + ʾal-tiššaʿēn “não te apoies”). Aqui, “estribar-se” toca a ideia concreta de apoiar peso, como quem encosta o corpo numa coluna; e, por isso mesmo, o provérbio não censura o ato de pensar, mas o ato de transferir o próprio “peso existencial” para aquilo que é frágil como osso fino, isto é, para a própria bînâ (“entendimento”).

A camada mais “visível” do sentido nasce do próprio verbo שׁען: em Klein, o lema é direto — “to lean, support” — e o mesmo verbete registra que, no padrão simples, שָׁעַן (šāʿan “apoiou, sustentou”) aparece com marcações de uso em “PBH” e “MH”, enquanto no padrão reflexivo-passivo, נִשְׁעַן (nišʿan “apoiou-se; confiou, dependeu”) inclui explicitamente o deslizamento semântico para “trusted, depended upon”. Essa passagem do corpo para a confiança não é um salto imaginário: é como se o hebraico dissesse que “depender” é, primeiro, “encostar-se”; a fé aparece, então, como a transferência de apoio, e o provérbio ordena que o ponto de apoio não seja “o próprio entendimento”, mas o Senhor. A mesma família semântica se deixa ver quando o léxico deriva nomes de “apoio/esteio” (o objeto que sustenta), o que torna ainda mais viva a metáfora: o coração humano, peregrino, sempre buscará um bastão; a questão do texto é se esse bastão é o “eu” ou o Deus em quem se confia.

II. Campo imagético de שׁען (šāʿan / “apoiar-se”)

O verbo de nossa consideração — šāʿan (“apoiar-se”, “estribar-se”) — não discute ideias no ar; ele descreve um corpo que transfere o próprio peso para um ponto de sustentação, e, ao fazer isso, transforma “entendimento” em chão, em bengala, em pilar. A imagem é concreta: o coração inteiro (não um pedaço) pousa a carga em YHWH (“SENHOR”), e recusa transformar a própria bînâ (“compreensão”, “entendimento”) em muleta absoluta.

É por isso que, antes de entrar nos demais textos, a metáfora-mãe precisa ficar fixa como um quadro na parede: apoiar-se é confiar com o corpo inteiro, é escolher onde o peso repousa. A tradição lexical que você já reuniu descreve justamente essa passagem do gesto físico para o valor figurado de confiança, sem separar os dois como se fossem mundos diferentes: o mesmo verbo que pode encostar um homem a um suporte também pode encostar uma vida a um fundamento; e é nesse eixo que Provérbios 3:5 se torna um princípio de discernimento, não um desprezo da razão, mas um limite para o “eu como fundamento” (HARRIS; ARCHER; WALTKE, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, 1998, p. 1598; VanGemeren, Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, 2011, v. 4, p. 202).

A metáfora-filha mais dramática — o “apoio enganoso” — aparece com carne e sangue em Ezequiel 29:7, onde a cena não é de consolo, mas de estilhaço: וּבְהִשָּׁעֲנָם עָלֶיךָ תִּשָּׁבֵר (ûḇəhiššaʿănām ʿālêḵā tiššāḇēr — “e, ao se apoiarem sobre ti, tu te quebraste”). O verbo šāʿan (“apoiar-se”) entra aqui como o instante em que a confiança se testa no peso real: não é teoria, é mão que agarra, é corpo que se inclina, e, quando o “apoio” é caniço, ele fere justamente porque prometeu firmeza. A sua fonte clássica usa este quadro como exemplo vívido do literal e do figurado juntos — apoio físico e confiança política/moral no mesmo golpe de imagem (HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 1598). 

Esse mesmo nervo imagético volta na expressão do “bordão de cana quebrada” em 2 Reis 18:21, que faz do Egito uma falsa muleta: מִשְׁעֶנֶת הַקָּנֶה הָרָצוּץ (mišʿenet haqqāneh hārāṣûṣ — “o bordão da cana quebrada”), isto é, um apoio que não apenas falha, mas perfura a mão de quem insiste em se sustentar nele; e, para que a metáfora não fique só no negativo, o outro lado do espelho aparece em Salmos 23:4, onde o cuidado divino é descrito como vara e apoio que consolam: שִׁבְטְךָ וּמִשְׁעַנְתֶּךָ הֵמָּה יְנַחֲמֻנִי (šiḇṭəḵā ûmišʿantəḵā hēmā yənaḥămûnî — “o teu cajado e o teu bordão, eles me consolam”). Assim, o mapa desta primeira parte fica amarrado: a confiança legítima é o peso bem depositado; a confiança ilusória é o peso entregue a um suporte que quebra — e é sob essa luz que “não te estribes” em Provérbios 3:5 começa a soar como uma pedagogia do fundamento.

VI. Outros usos além de Provérbios

Este primeiro bloco preserva o verbo שׁען como gesto de corpo e de relevo: apoiar o peso, inclinar-se, recostar-se, sem ainda carregar a tensão moral do “confiar”. No texto massorético de Gênesis 18:4, a forma aparece em “...וְהִשָּׁעֲנוּ תַּחַת הָעֵץ...” (wəhiššaʿănû taḥat hāʿēṣ — “...e recostai-vos debaixo da árvore ...”), como convite para que os visitantes deixem o peso cair na sombra, depois de lavar os pés, em plena etiqueta de hospitalidade do antigo Oriente.

Em Gênesis 18:4, o eixo semântico nasce do contraste entre movimento e repouso: a água vem, os pés se lavam, e o corpo “se apoia” sob a árvore, com a preposição espacial “debaixo” fazendo do tronco e da sombra um abrigo físico. As traduções modernas exibem, com nitidez, como esse apoio pode ser lido: na ARC, o verbo surge como “recostai-vos debaixo desta árvore”, escolhendo um vocábulo que mantém a imagem do corpo que se reclina; na NVI, “descansem debaixo desta árvore”, privilegiando o efeito; na NVT, “Descanse à sombra desta árvore”, pintando a cena com a cor da sombra; já a ACF conserva o gesto com “recostai-vos”. Em inglês, a família de escolhas repete o mesmo mapa: KJV/ASV preferem “rest yourselves under the tree”, enquanto a YLT explicita a postura com “recline under the tree”, sinal de que o tradutor percebeu em שׁען algo mais corporal que apenas “parar”. A leitura antiga reforça essa direção: a Septuaginta verte com “...καὶ καταψύξατε ὑπὸ τὸ δένδρον” (...kai katapsyxate hypo to dendron — “... e refrigerei-vos sob a árvore ...”), deslocando o foco para o alívio e o frescor; a Vulgata, com “requiescite sub arbore”, sela a mesma ideia de descanso.

Esse uso “sem tensão moral” é reconhecido e catalogado pela tradição lexicográfica: o verbo é descrito, no seu núcleo, como “apoiar-se/encostar-se” antes de se tornar metáfora de confiança, e Gênesis 18:4 costuma ser listado como ocorrência literal de repouso corporal em contexto de hospitalidade (HARRIS; ARCHER; WALTKE, ibid., 1998, p. 1598). Do mesmo modo, o verbete de VanGemeren registra esse campo literal e o distingue das passagens em que שׁען já se transforma em linguagem de confiança (VANGEMERAN, ibid., 2011, p. 202).

Em Números 21:15, o verbo sai do corpo e entra na geografia: “... וְנִשְׁעַן לִגְבוּל מוֹאָב” (wənišʿan ligvûl môʾāb — “... e se encosta ao limite de Moabe ...”), onde o sujeito não é uma pessoa, mas a “descida/declive” dos vales e ribeiros; é o relevo que “se apoia” como quem se debruça numa fronteira. Aqui, a comparação de versões mostra como a imagem pode ser preservada ou dissolvida: a ARA mantém o desenho com “o declive dos vales que se inclina para a sede de Ar e se encosta aos limites de Moabe”; a ARC e a ACF igualmente guardam “se encosta aos termos de Moabe”; já a NVI e a NVT preferem “se estendem ... na fronteira”, trocando o gesto de “encostar-se” pela ideia de “alcançar/alongar-se”, o que reduz o caráter imagético do verbo. Em inglês, a variação é paralela: ESV/NASB conservam “leans to the border of Moab”, KJV oferece “lieth upon the border of Moab”, e a YLT retém a noção com “hath leaned to the border of Moab”. A recepção antiga confirma que a metáfora aqui é espacial, não ética: a Septuaginta traz “... καὶ κλίνεται πρὸς τὰ ὅρια Μωάβ” (... kai klinetai pros ta horia Mōab — “... e se inclina para os limites de Moabe ...”), e a Vulgata acompanha com “... inclinatur usque ad fines Moab”.

A. Apoio físico para sustento do corpo (colunas e arma): Juízes 16:26; 2 Samuel 1:6

Juízes 16:26 fixa o verbo no gesto corporal mais literal, com o peso do corpo procurando um ponto de apoio: “disse Sansão ao moço que o tinha pela mão: Deixa-me, para que apalpe as colunas em que se sustém a casa, para que me encoste a elas.” O núcleo hebraico do valor semântico está na cláusula “וְאֶשָּׁעֵן עֲלֵיהֶם”, cuja forma verbal “וְאֶשָּׁעֵן” aparece como verbo, nifal, imperfeito com conjunção, primeira pessoa comum singular, e governa a preposição “עֲלֵיהֶם” (wəʾeššaʿēn ʿălêhem — “e eu me apoiarei neles”), de modo que a ideia não é “tocar”, mas “pousar-se/firmar-se” sobre algo que sustenta. Sintaticamente, o verbo funciona como finalidade do pedido de Sansão (“deixa-me… para que…”), amarrando tato e sustentação: primeiro localizar as colunas (“apalpe”), depois transferir para elas o equilíbrio do corpo (“apoie-se”), preparando a cena imediata do colapso do templo.

As versões modernas, quando rotuladas e postas lado a lado, deixam o valor semântico mais nítido justamente na oscilação entre “encostar” e “apoiar”: a ARA preserva “para que me encoste a elas”, a ARC repete “para que me encoste a elas”, enquanto a NVI explicita o componente de sustentação com “para que eu me apoie nelas” e a NVT também torna explícito o apoio como finalidade corporal, com “Quero me apoiar nelas”. Em inglês, a NIV e a ESV preferem “lean against”, salientando o contato com transferência de peso (NIV: “that I may lean against them”; ESV: “that I may lean against them”), ao passo que a KJV e a ASV retêm “lean upon”, que soa mais diretamente como repouso do peso “sobre” (KJV: “that I may lean upon them”; ASV: “that I may lean upon them”), e a YLT mantém o literal “lean on them”. A LXX é justificável aqui porque confirma, sem teologia importada, o mesmo campo físico por meio de “ἐπιστηρίσομαι ἐπ’ αὐτοὺς” (epistērisomai ep’ autous — “eu me apoiarei sobre eles”), isto é, linguagem de escora/sustentação; e a Vulgata, com “recliner super eas” (“eu me reclinarei sobre elas”), também conserva o peso do corpo pousado num suporte.

2 Samuel 1:6 apresenta o mesmo verbo já não como propósito (“para que eu…”) mas como retrato de estado: “Cheguei, por acaso, à montanha de Gilboa, e eis que Saul estava apoiado sobre a sua lança” (ARA). O hebraico traz a cena em fórmula de demonstração (“וְהִנֵּה”), com o predicado verbal em particípio nifal masculino singular: “נִשְׁעָן עַל־חֲנִיתוֹ” (nišʿān ʿal-ḥănîtô — “apoiado sobre sua lança”), onde ʿal (“sobre”) governa ḥănîtô (“sua lança”) e descreve alguém sustentando-se num objeto vertical como quem “se segura” para não cair. A função sintática do particípio, sob “eis que”, é pictórica: não relata apenas um ato pontual, mas fixa um quadro (o rei como figura que se mantém de pé “por apoio”), o que explica por que muitas versões preferem perífrases progressivas (“was leaning”) em vez de um passado simples.

Nas versões em português, a distribuição lexical torna visível o mesmo núcleo semântico com nuances de registro: a NVI usa “apoiado na sua lança”, a ARA usa “apoiado sobre a sua lança”, enquanto a ARC e a ACF preferem “encostado sobre a sua lança”, deslocando levemente o foco para a proximidade corporal sem eliminar a ideia de sustentação (ARC: “Saul estava encostado sobre a sua lança”; ACF: “Saul estava encostado sobre a sua lança”). Em inglês, a NIV e a ESV estabilizam o valor com “leaning on his spear”, descrevendo apoio real (NIV: “Saul was leaning on his spear”; ESV: “Saul was leaning on his spear”), a KJV escolhe “leaned upon his spear”, e a YLT mantém um literalismo temporal (“hath leaned on his spear”), todos convergindo no mesmo gesto: peso confiado a um suporte. A LXX é justificável porque confirma o mesmo desenho semântico por “ἐπεστήρικτο ἐπὶ τὸ δόρυ αὐτοῦ” (epestēriktō epi to dory autou — “estava apoiado sobre a sua lança”), e a Vulgata, com “Saul incumbebat super hastam suam” (“Saul se apoiava sobre a sua lança”), reforça que não se trata de mero contato, mas de dependência corporal de um apoio.

B. Bloco “apoio social” (apoio na mão/braço como marcador cortesão): 2 Reis 5:18; 2 Reis 7:2; 2 Reis 7:17

2 Reis 5:18 “e ele se encosta na minha mão” (Hb.: וְהוּא נִשְׁעָן עַל־יָדִי; wĕhûʾ nišʿān ʿal-yādî (“e ele se apoia sobre a minha mão”). A forma nišʿān (“apoiado”, “encostado”), particípio no nifal do radical šāʿan (“apoiar-se”), descreve um apoio físico real, mas, no cenário narrativo, ele funciona como etiqueta de proximidade e serviço de alto escalão: o superior “entra” e o subordinado é o “braço” social que o acompanha, de modo que o gesto de culto do rei arrasta o corpo do assistente para a mesma reverência. Essa espessura pragmática do “apoiar-se” em textos régios é registrada na descrição lexicográfica do radical, justamente porque não pressupõe enfermidade do rei, mas relação institucional de confiança. No contraste entre versões, a ARC preserva a literalidade corporal de yād (“mão”) ao verter “ele se encosta na minha mão”, enquanto a NVT e várias versões inglesas preferem “braço/arm” (“se apoiar em meu braço”; “leaning on my arm”), deslocando “mão” → “braço” para produzir um português/inglês mais natural ao ouvido moderno, mas mantendo a mesma imagem de dependência física controlada. A Vulgata, por sua vez, é útil aqui porque conserva o eixo “mão” (manus) com o mesmo valor imagético (“super manum… innititur”), reforçando que a tradição antiga leu o gesto como “apoio” literal, sem explicar por si só se é fraqueza física ou protocolo cortesão.

Outro uso do verbo é em 2 Reis 7:2, onde lemos sobre “o capitão em cuja mão/braço o rei se encostava” (Hb.: הַשָּׁלִישׁ אֲשֶׁר נִשְׁעָן עַל־יָדוֹ; haššālîš ʾăšer nišʿān ʿal-yādô (“o oficial sobre cuja mão ele se apoia”). A sintaxe organiza o apoio como oração relativa (ʾăšer…), qualificando o “oficial” por um traço relacional: não é “um oficial qualquer”, mas aquele definido por ser o ponto de apoio do rei, um “lado direito” institucional. A oscilação tradutória torna isso visível: a NVI-PT prefere “braço” (“em cujo braço o rei estava se apoiando”), enquanto a ARC mantém “mão” (“em cuja mão o rei se encostava”); em inglês, a KJV fixa “hand” (“on whose hand the king leaned” / “em cuja mão o rei se apoiou”), ao passo que versões modernas frequentemente preferem “braço” ou explicitam “apoio” para clarificar a função (“the king leaned for support” / “o rei se inclinou em busca de apoio.”). O resultado semântico é o mesmo: “apoio” não é mero contato, mas um marcador de hierarquia e confiança, que prepara o relevo irônico do episódio (o homem que “sustenta” o rei com sua proximidade é o que desacredita a palavra profética). A Vulgata vale apenas como testemunha de continuidade imagética, porque também mantém “mão” (manus) e o verbo de apoio, ecoando de perto a moldura hebraica do gesto.

No v. 17 do mesmo capítulo diz: “o capitão em cuja mão/braço o rei se encostava” (Hb.: הַשָּׁלִישׁ אֲשֶׁר נִשְׁעָן עַל־יָדוֹ; haššālîš ʾăšer nišʿān ʿal-yādô (“o oficial sobre cuja mão ele se apoia”). A repetição quase formular do mesmo segmento (“o oficial... sobre cuja mão”) transforma o apoio em etiqueta narrativa: o texto “marca” o personagem pelo tipo de acesso que ele tem ao rei e, por isso, a morte dele na porta ganha peso simbólico — a mão/braço em que o rei “se apoia” não sustenta ninguém quando o povo irrompe. Aqui, as versões expõem com nitidez a escolha interpretativa: a ARC mantém “mão” (“o capitão em cuja mão se encostava”), enquanto a NIV prefere “arm” (“on whose arm he leaned” / “em cujo braço ele se apoiava”) e a ESV retorna a “hand” (“on whose hand he leaned”); além disso, algumas versões já “explicam” o idiomatismo e vertem como “right-hand man”, tornando explícito o que o hebraico sugere por protocolo cortesão. A Vulgata, novamente, entra apenas para confirmar a leitura antiga do gesto como “apoio sobre a mão” (super cuius manum...), preservando o mesmo contorno corporal que permite ao leitor perceber o contraste entre “apoio” institucional e colapso histórico no portão.

C. O apoio justo: שׁען como confiança legítima no SENHOR

Quando chegamos em 2 Crônicas 13:18, obtemos o sentido que se encaixa no sentido de Provérbios 3:5, pois nele nós lemos: “pois confiaram no Senhor, o Deus dos seus antepassados.” (Hb.: נִשְׁעֲנוּ nišʿannû (“nos apoiamos”) → verbo, nifal, perfeito, primeira pessoa comum plural; com עַל ʿal (“sobre”), a preposição que fixa direção e objeto do “apoio”, deslocando o gesto do corpo para a fé: não é um amparo abstrato, é um peso colocado “sobre” o Nome. A tradução portuguesa torna explícito o valor figurado com “confiaram” , enquanto várias inglesas preservam a imagem do corpo que se entrega a um suporte, oscilando entre “relied upon” e “leaned on”, com uma tradição antiga que chega a “stayed upon” ; o campo semântico, portanto, permanece o mesmo: confiança como transferência de sustentação, exatamente como descrevem os léxicos quando o verbo deixa de ser literal e passa a nomear uma atitude interior (HARRIS; ARCHER; WALTKE, 1998, p. 1598).

A força do verbo se encontra em 2 Crônicas 14:11, onde o verbo reaparece como forma nifal de שׁען šāʿan (“apoiar-se”), agora dentro de uma oração, onde a semântica do radical é intensificada pelo contexto: a dependência não é adorno retórico, mas estratégia de sobrevivência; o “apoiar-se” funciona como confissão de assimetria — o fraco só permanece de pé porque encontra fora de si o seu ponto de apoio — e a sintaxe faz do complemento preposicionado o lugar onde o peso do pedido repousa, evitando que o ato de pedir se confunda com autossuficiência.

Já em Isaías 10:20, nós lemos: “Acontecerá, naquele dia, que os restantes de Israel e os da casa de Jacó que se tiverem salvado nunca mais se estribarão naquele que os feriu, mas, com efeito, se estribarão no SENHOR, o Santo de Israel, em verdade.” (A cadeia de versões em português explicita a polaridade do verbo: algumas generalizam a metáfora para “confiarão verdadeiramente” e “pôr toda a sua confiança”, enquanto outras a mantêm em linguagem de apoio físico — “nunca mais se estribarão… se estribarão”, ou “não se apoiarão… se apoiarão” — e outras a reinterpretam como dependência política — “não dependerão mais de aliados” . A Vulgata fixa com precisão quase geométrica a antítese do texto: primeiro “inniti super” (apoiar-se sobre) o agressor; depois “innitetur super Dominum” (apoiar-se-á sobre o Senhor), fazendo do mesmo verbo latino o espelho do mesmo movimento do coração . Essa estabilidade do padrão confirma a observação lexical de que, quando o radical entra no domínio da confiança, ele continua pedindo uma direção (“sobre/contra/em”) e, assim, continua descrevendo a fé como lugar onde o peso se deposita (VAN GEMEREN, 2011, p. 202).

Mais para frente, em Isaías 50:10, lemos “Que aquele que anda no escuro, que não tem luz alguma, confie no nome do SENHOR e se apoie no seu Deus.” (Hb.: וְיִשָּׁעֵן wəyissāʿēn (“e que se apoie”) → verbo, nifal, imperfeito, terceira pessoa masculina singular, com valor injuntivo/jussivo; a frase costura dois verbos semânticos contíguos: “confiar no nome” e “apoiar-se” em Deus, como se a confiança verbal precisasse de um segundo gesto, o da entrega do peso . As versões portuguesas variam entre manter a imagem (“se apoie”, “apoiem-se”) e paráfrase de estabilidade (“se firme sobre”), mas conservam a mesma ideia de sustentação em meio à ausência de luz ; em inglês, o contraste clássico permanece visível entre “stay upon”, “lean on”, “rely on” e “depend upon”, cada qual iluminando o mesmo núcleo: suporte recebido, não fabricado . A Vulgata sela essa leitura com “innitatur super Deum suum” (apoie-se sobre o seu Deus), preservando o eixo vertical do verbo .

D. O “peso” colocado no lugar errado: 2 Crônicas 16:7–8; Isaías 30:12; Isaías 31:1

2 Crônicas 16:7–8 coloca o verbo na boca do vidente como diagnóstico de lealdade deslocada: “בְּהִשָּׁ֨עֶנְךָ֜ עַל־מֶ֤לֶךְ אֲרָם֙ וְלֹ֤א נִשְׁעַ֙נְתָּ֙ עַל־יְהוָ֣ה אֱלֹהֶ֔יךָ” ( bəhiššaʿenḵā ʿal-meleḵ ʾărām wəlōʾ nišʿanta ʿal-YHWH ʾĕlōheykā — Tradução literal: “por te apoiares no rei de Arã e não te apoiares em YHWH, teu Deus”). O núcleo semântico nasce do corpo: o apoio não é apenas “crer”, mas “encostar o peso”, converter a decisão em gesto de escora; por isso a sintaxe dá relevo ao motivo: a forma “בְּהִשָּׁ֨עֶנְךָ” ( bəhiššaʿenḵā — “por te apoiares”) funciona como moldura causal antes do juízo, e o paralelismo antitético (“sobre o rei” / “sobre YHWH”) transforma a política em teologia concreta: o reino que se “sustenta” noutro braço perde o que julgava segurar. O versículo seguinte fecha o arco com memória pedagógica: “וּבְהִשָּֽׁעֶנְךָ֥ עַל־יְהוָ֖ה נְתָנָ֥ם בְּיָדֶֽךָ” ( ûḇəhiššaʿenḵā ʿal-YHWH nətānām bə-yādeḵā — Tradução literal: “e, por te apoiares em YHWH, ele os entregou na tua mão”). A comparação de versões mostra como algumas preservam a metáfora do “apoio” e outras a interpretam: em inglês, NASB e NIV mantêm “relied” (“Because you have relied… have not relied…”), enquanto há traduções que preferem “depended”, explicitando a ideia de dependência (sem a imagem do corpo encostado). Em português, o campo clássico de “estribar-se” aparece como escolha deliberada de imagem (por exemplo, “te estribaste… e não te estribaste…”), enquanto traduções mais recentes tendem a “apoiar-se/depender”, trocando a figura pelo conceito e, com isso, mudando o “sabor” do verbo.

Isaías 30:12 e Isaías 31:1 ampliam o mesmo gesto de “escora” para denunciar confiança em estruturas de injustiça e em segurança militar. Em Isaías 30:12, a frase já nasce com dois verbos lado a lado, para que a confiança seja vista em profundidade: “וַתִּבְטְחוּ בְּעֹ֣שֶׁק … וַתִּֽשָּׁעֲנ֖וּ עָלָֽיו” ( wattiḇṭəḥû bə-ʿōšeq … wattisšaʿănû ʿālâw — Tradução literal: “e confiais na opressão… e vos apoiais nela”). A sintaxe diferencia os movimentos: “בְּ” introduz o objeto da confiança como esfera (“confiar em”), enquanto “עַל” marca o ponto de apoio como superfície (“apoiar-se sobre”); o texto faz a alma agir como corpo que procura uma parede — e a parede é “opressão/perversidade”, isto é, um amparo moralmente podre. Daí a utilidade comparativa das versões: em inglês, a YLT explicita “trust… and rely on it”, preservando o desdobramento (“confiar” / “apoiar-se”); outras versões também distribuem por dois verbos (“trust… rely/depend”), o que ajuda a não achatar o paralelismo. Em português, ACF e ARC mantêm com nitidez o termo imagético (“confiais… vos estribais”), enquanto NVI e NVT preferem “confiam… dependem”, interpretando “estribar-se” como dependência e tornando a metáfora mais abstrata. 

Em Isaías 31:1, o paralelismo volta ainda mais nítido: “עַל־סוּסִ֖ים יִשָּׁעֵ֑נוּ וַיִּבְטְח֨וּ עַל־רֶ֜כֶב” (ʿal-sûsîm yiššaʿēnû wayyiḇṭəḥû ʿal-reḵeḇ — Tradução literal: “em cavalos se apoiam, e confiam em carros”). Aqui, ESV e NASB preservam o par “rely… trust”, deixando o leitor sentir a diferença entre encostar-se e depositar confiança; KJV, ao dizer “stay on horses… trust in chariots”, mantém uma nuance corporal (“permanecer/firmar-se”) antes de “trust”, o que se aproxima do relevo imagético de šāʿan (“apoiar-se”). Em português, ARC e ACF retêm a palavra-muleta (“se estribam”), o que conserva o aspecto pictórico e faz o texto “ver” o pecado como postura: apoiar-se em potência estrangeira e, por isso mesmo, não olhar nem buscar o Santo de Israel. Só então a LXX e a Vulgata valem como lente histórica (porque mostram como tradições antigas tendem a ler o apoio como “confiança/esperança”): na Vulgata de Isaías 31:1 aparece “sperantes super equis… habentes fiduciam…”, convertendo a imagem de escora em vocabulário de esperança/confiança, e a LXX (via Brenton) igualmente verte em termos de “trust”, preservando o alvo (Egito/cavalos) e interpretando o gesto como confiança política. Em Isaías 30:12, a LXX (Brenton) também evidencia uma tendência interpretativa ao traduzir os termos do apoio com linguagem de “trust”, o que ajuda a perceber como o par “confiar/apoiar-se” pode ser facilmente nivelado se a metáfora não for mantida na superfície do texto.

Conclusão

À luz do percurso exegético desenvolvido ao longo deste estudo, o verbo traduzido por “estribar-se” em Provérbios 3:5 revela-se como uma escolha lexical de notável densidade imagética e teológica. A raiz hebraica שׁען (šāʿan) não nasce no campo abstrato da confiança, mas no mundo concreto do corpo que busca apoio: encostar-se numa coluna, firmar-se numa arma, sustentar o peso na mão ou no braço de outro. Esse gesto físico, repetidamente atestado no Antigo Testamento, constitui o núcleo semântico a partir do qual o verbo é progressivamente transposto para o domínio da vida interior e da decisão moral.

A análise morfológica de Provérbios 3:5 mostrou que o texto não descreve um estado, mas proíbe um gesto: “não te ponhas em posição de apoio” sobre o próprio entendimento. O uso do nifal em construção proibitiva com ʾal indica uma ação reflexiva e deliberada, pela qual o sujeito escolhe onde depositar o seu peso. Assim, o provérbio não condena o entendimento enquanto faculdade — nem o exercício da razão, da prudência ou do discernimento —, mas denuncia a transformação do entendimento em suporte último, em coluna mestra da existência. O problema não é pensar, mas estribar-se no pensar.

A comparação sistemática das versões bíblicas confirmou esse dado. Traduções que preservam a metáfora (“estribar-se”, “apoiar-se”, em inglês “lean on”, “rely on”) mantêm viva a imagem corporal do apoio e permitem perceber que a oposição do versículo não é entre fé e razão, mas entre dois pontos de sustentação concorrentes. Já versões que optam por termos mais abstratos (“depender”, “confiar”) captam corretamente o sentido teológico, mas tendem a atenuar a força imagética do verbo hebraico. A tradição antiga, tanto na Septuaginta quanto na Vulgata, mostra como essa imagem foi cedo interpretada, ora preservando o eixo do apoio, ora traduzindo-o em linguagem de confiança ou exaltação, o que confirma a plasticidade semântica do verbo, mas também o risco de seu achatamento conceitual.

Dentro desse quadro, Provérbios 3:5 emerge como um enunciado sapiencial de grande precisão antropológica. O texto parte de um dado elementar da experiência humana: toda vida precisa de um ponto de apoio. O coração, entendido biblicamente como o centro integrador da pessoa, não pode permanecer sem escora; ele sempre se inclina para algo. O provérbio, então, não pergunta se haverá apoio, mas onde ele será colocado. Confiar no SENHOR “de todo o coração” significa transferir o peso inteiro da existência para um fundamento que não é fabricado pelo próprio sujeito. Não se estribar no próprio entendimento significa recusar fazer da autonomia intelectual a base última da vida.

Conclui-se, portanto, que “estribar-se”, em Provérbios 3:5, não é mero sinônimo de “confiar”, mas uma metáfora deliberadamente escolhida para expressar a dinâmica da dependência humana. O verbo conserva, mesmo em seu uso figurado, a memória do corpo que se inclina, do peso que se deposita, da estrutura que sustenta ou falha. O ensino do provérbio não é anti-intelectual, mas anti-autossuficiente: ele ordena o entendimento ao seu lugar próprio — instrumento de orientação, não pilar de sustentação. Assim, a sabedoria bíblica se define menos pelo acúmulo de lucidez e mais pela escolha correta do apoio sobre o qual a vida inteira se firma.

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GALVÃO, Eduardo. O que significa “estribar-se” em Provérbios 3:5?. In: Biblioteca Bíblica. [S. l.], 22 nov. 2017. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano].

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