Estudo do Evangelho de Mateus





O Evangelho segundo Mateus sempre ocupou uma posição de elevada estima na fé e na vida da Igreja cristã. Isso, em parte, pode ser devido ao fato de que ele lidera os Evangelhos e é o primeiro livro do Novo Testamento, formando uma ponte entre a Antiga e a Nova Aliança; ao contrário, porém, parece que a Igreja Primitiva o colocou na primeira posição, no cânon do NT, exatamente por causa da profunda influência do seu conteúdo sobre a Igreja e sobre o mundo; por isso, muitas pessoas o consideram como o maior livro que já foi escrito. William Barclay escreveu: “Quando nos voltamos para Mateus, vemos o livro que pode bem ser considerado como o mais importante documento isolado da fé cristã, pois temos o relato mais completo e mais sistemático da vida e dos ensinos de Jesus” (The First Three Gospels, pág. 197). Os escritos dos Pais da Igreja Primitiva revelam que Mateus era o livro citado com maior freqüência e talvez o mais lido durante os dois primeiros séculos da história eclesiástica. Em particular, trata-se do mais completo registro d i vida, obras e palavras de Jesus Cristo existente. Depois da morte e ressurreição do Senhor, 1 ouve um aumento no interesse de saber quem ;le realmente era e o que tinha dito e feito. De fato, muitos acreditam que o Evangelho foi escrito para suprir essa necessidade. Por esta razão, as lições ou perícopes de Mateus recebem preferência nas liturgias das igrejas. A maioria das lições é escolhida do Evangelho de Mateus, comparativamente a qualquer outro livro.

Este Evangelho também tem grande influência sobre a literatura, música e outras artes, dentro e fora da Igreja. As exposições de Mateus, em textos favoritos, tais como as Bem-aventuranças, a oração do Pai Nosso e a narrativa da Paixão, são amplamente usadas na literatura cristã e na pregação e ensino eclesiástico. J. S. Bach usou a versão de Mateus, da Paixão do Senhor, para o seu grande oratório conhecido em todo mundo como a Paixão de São Mateus. A teologia de Mateus, particularmente o conteúdo ético, dominou o ensino da Igreja, talvez até mais do que a teologia do Evangelho de João. Outra razão para sua ampla aceitação é a autoridade apostólica associada ao nome de Mateus, testemunha ocular e apóstolo do Senhor. Nos anos anteriores e posteriores à redação do Evangelho, a Igreja tinha grande necessidade da Palavra, do Senhor, investida de autoridade para instruir os fiéis e refutar aqueles que queriam causar divisões. O Evangelho de Mateus também se tomou popular devido à forma plena e ordenada com que descreve os eventos e registros dos pronunciamentos e ensinamentos do Senhor. A combinação singular da vida e ensino do Senhor, e o tema teológico de Jesus como Messias, tomou-se a base fundamental para seu uso e autoridade na Igreja. O primeiro Evangelho tomou-se o favorito da Igreja devido ao seu íntimo relacionamento com o AT. Os convertidos facilmente viam que ele interpreta o AT como uni livro cristão. Quer Mateus tenha ou não tenha sido o primeiro Evangelho a ser escrito, sua posição no NT testifica sobre sua importância e influência aos olhos dos cristãos através dos anos, principalmente durante os dois primeiros séculos. Além disso, era um evangelho ecumênico, sustentando o cristianismo judaico e gentio. Considerando tudo isso, o primeiro Evangelho talvez seja o mais poderoso documento já escrito.

O Evangelho de Mateus continua fazendo pela Igreja o que sempre fez. Devido ao fato de estabelecer uma ponte entre o Antigo e o Novo Testamento, continua sendo básico para a Igreja e para o mundo, para o entendimento dos ensinos de Jesus Cristo e do cristianismo histórico. A quantidade de literatura produzida com base no Evangelho de Mateus, durante as últimas décadas, indica que este Evangelho ainda comanda a atenção da Igreja e dos estudiosos da Bíblia. Todos aceitam bem as novas revelações sobre sua preciosa mensagem. O Evangelho contido em Mateus certamente era proclamado em grandes detalhes pelos profetas e apóstolos do NT (Ef 2.20; 3.5), muito tempo antes de ele ser escrito e, aqueles que aprendiam o que era pregado e ensinado durante a era apostólica, em geral se voltavam para o primeiro Evangelho. Por estar por trás de todas as formulações e sistemas posteriores do Cristianismo, o Evangelho de Mateus merece a atenção dos cristãos de toda parte. Em nossa época, com sua turbulência social similar à experimentada pela Igreja Primitiva, o primeiro Evangelho poderia restaurar corpos e espíritos quebrantados, como nos dias de Jesus e dos apóstolos. Ao ser questionado, por um membro de uma classe de estudo bíblico, qual dos quatro Evangelhos devia ser lido primeiro, para um melhor entendimento da fé cristã, um bem conhecido pregador e estudioso da Bíblia respondeu: “Naturalmente, devemos ler os quatro Evangelhos. Qual deles primeiro? Durante muitos anos eu indiquei Lucas, mas na nossa época creio que devo sugerir que Mateus seja lido em primeiro lugar e depois o restante dos Evangelhos, na ordem em que aparecem no cânon do NT”. Veja evangelhos .


§ 2. Título.

O título desse Evangelho, na maioria das Bíblia modernas, é: “O Evangelho segundo Mateus” . Trata-se de uma tradução exata do título em muitos manuscritos em grego, que dizem κατὰ Ματθαῖον εὐαγγέλιον, “O Evangelho segundo Mateus”. No entanto, as mais antigas cópias do Evangelho apresentam uma forma reduzida, κατὰ Ματθαῖον, “Segundo Mateus”. Muitos estudiosos acreditam que o texto original não tinha nenhum título. Quando os primeiros cristãos quiseram fazer distinção entre os Evangelhos, chamaram o primeiro, não de “Evangelho de Mateus”, como muitas vezes nós dizemos, mas de “O evangelho segundo Mateus”, para distingui-lo das outras versões de Marcos, Lucas e João. Há somente um Evangelho, mas quatro versões ou relatos. O termo “Evangelho de acordo com Mateus”, portanto, não é “As Boas Novas de Mateus”, a versão de Mateus das “Boas Novas de Deus”. O Evangelho é a “história de Deus”, de salvação e vida, a melhor história que o mundo já ouviu. Os mais antigos Pais da Igreja (como Irineu) mencionavam assim o cânon quádruplo do Evangelho; quer dizer, que há somente um Evangelho, explicado de acordo com quatro autores diferentes (Against the Heresies III, 11,8). Os Pais da Igreja identificavam os quatro escritores dos Evangelhos com os quatro seres vivos ou animais citados em Apocalipse 4.6,7; cp. Ezequiel 1.10 — o leão era Marcos, o boi era Lucas, a águia era João e a criatura com o rosto de homem era Mateus. Esta identificação simbólica é feita também na arte e na literatura cristã.


§3. Autor

Todos os quatro Evangelhos canônicos são anônimos. Nenhum deles começa com palavras como essas: “Mateus, o apóstolo, para os judeus cristãos da Palestina...”, como Paulo introduz suas cartas apostólicas (cp. Rm 1.1-4). Assim, paradoxalmente, o título “Segundo Mateus” não significa que Mateus pessoalmente tenha escrito o tradicional primeiro Evangelho. A passagem dos anos não deixou claro que ele escreveu. Há uma grande discussão e muito material literário sobre este assunto. A questão, porém, não perturba demais os cristãos, porque sabem que possuem um Evangelho inspirado e investido de autoridade. E claro que o fato de que alguns questionam a autoria de Mateus não significa, por outro lado, que ele não escreveu. Desde os primórdios, a Igreja tem sido clara, unânime e consistente em atribuir o primeiro Evangelho ao Apóstolo Mateus. Naquela época não havia evidência de que algum outro autor tivesse reivindicado a autoria do livro, e ele jamais foi atribuído a outrem, além de Mateus. Sem dúvida, a antiga visão de Mateus como autor cresceu a partir da afirmação: “Partindo Jesus dali, viu um homem, chamado Mateus, sentado na coletoria e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu” (Mt 9.9). O registro do chamado de Mateus em todos os três sinópticos reforçou esse conceito. Os eruditos acreditam que a identificação tomouse mais positiva a partir do fato de que Marcos e Lucas o chamam pelo nome de Levi, filho de Alfeu, o publicano e coletor de impostos. A identificação foi facilitada pelo fato de que Jesus participou de um jantar na casa de Levi e explicou o Evangelho aos fariseus com as palavras: “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar justos, e sim pecadores” (Mc 2.14-17; Lc 5.27-32). O argumento decisivo encontra-se em Mateus 10.3, onde “Mateus, o cobrador de impostos (o publicano)r’ é citado entre os doze apóstolos (cp. Mc 3.18; At 1.13).

E interessante que depois de seu nome aparecer nas listas dos apóstolos, Mateus desaparece da história da Igreja conforme registrada no NT. Provavelmente os incidentes posteriores atribuídos a ele são lendas. Ele é conhecido principalmente por ter escrito o primeiro Evangelho — de outra forma seria quase desconhecido. Os dois nomes de Mateus são hebraicos. Ele poderia ser filho de um homem chamado Levi, sendo “Mateus ben Levi”, sendo levita? Talvez, como no caso de Pedro, Jesus lhe deu o nome de Mateus como um nome judaico cristão, porque significa “presente de Yahweh". Certamente ele era judeu porque, o Evangelho que tem o seu nome tem característica judaica e foi escrito principalmente para cristãos judeus. Se assim for, ele foi um vaso escolhido, “feito sob medida” para sua audiência. Lucas o chama de Levi (Lc 5.27) e Marcos acrescenta “o filho de Alfeu” (Mc 2.14). Já foi destacado que o chamado de Mateus-Levi não foi somente ousado da parte de Jesus, pois havia um ódio inerente entre os judeus contra os cobradores de impostos, mas também porque foi um evento na vida do novo Reino, visto que foi um símbolo do poder da graça de Deus e do amor de Jesus pelos pecadores. Somente Deus podia transformar um cobrador de impostos chamado Levi, num apóstolo cristão chamado Mateus. Cobradores de impostos, ou publicano, eram numerosos e desonestos. Além disso, estavam a serviço do governo estrangeiro que dominava a terra e enviavam os impostos tirados dos ricos e dos pobres para a distante Roma. Os cobradores de impostos colaboravam com o inimigo; de fato, tomaram-se o inimigo real, porque as pessoas de fato não viam o governo de Herodes e de Roma. Viam, com mais freqüência, os cobradores de impostos. Roma não cobrava suas próprias taxas. O sistema era “terceirizar” a captação de impostos e permitir que os publicanos cobrassem o máximo que conseguissem.

Roma se satisfazia com sua cota — o cobrador podia guardar o que cobrava a mais, como uma espécie de comissão. Sob tal sistema, um homem sem consciência podia enriquecer facilmente, explorando as pessoas além da medida. Além disso, havia vários tipos de taxas e as cobradas nas alfândegas, sobre produtos estrangeiros que entravam no país, ou que eram transportados através dele, eram as mais lucrativas. As pessoas não tinham informação sobre os valores alfandegários e o cobrador podia cobrar o máximo que pudesse de cada caravana ou indivíduo. Sem dúvida esse é o tipo de cobrança de imposto no qual Mateus-Levi estava envolvido em Cafamaum, na Galileia. Portanto, não é de surpreender que os cobradores de impostos entre os judeus — principalmente os judeus que cobravam dos seus próprios conterrâneos — eram contados com as prostitutas, ladrões e assassinos, não somente pelos escritores bíblicos, mas também pelos escritores seculares (Mt 21.31,32; Mc 2.15,16; Lc 5.30; Cícero, De Officiis, I. 42). O fato de tais pessoas entrarem no Reino demonstrava bem o poder do Evangelho, de reconciliar os homens com Deus e uns com os outros. O fato de um judeu, cobrador de impostos convertido, escrever um Evangelho para judeus e gentios, como o Evangelho demonstra, daria ao Evangelho um apelo especial e aceitação dentre os “pecadores”. De fato, é mais verdadeiro afirmar que somente uma pessoa assim poderia escrever um Evangelho como o de Mateas-Levi. E por ele ser também um apóstolo do Senhor, era natural que a Igreja Primitiva atribuísse este Evangelho a Mateus, o publicano; a Igreja poderia simplesmente “saber” que ele o escreveu.

Esta é a explicação mais plausível quanto à autoria do primeiro Evangelho, uma vez que as evidências do próprio NT para a autoria de Mateus são um pouco indiretas. Sem dúvida, é por esta t a p e i a qual a evidência patrística, em especial depois dos primeiros dois séculos da Era Cristã, ainda persiste. Orígenes afirma que “o primeiro Evangelho foi escrito por Mateus, que antes era cobrador de impostos, mas depois tomou-se apóstolo de Jesus Cristo, e que foi elaborado para os convertidos do Judaísmo e publicado em língua hebraica” (Eccl. Hist., VI. 14.5). Irineu escreveu: “Mateus também publicou um livro do Evangelho entre os hebreus, no dialeto deles, enquanto Pedro e Paulo estavam pregando o Evangelho em Roma e fundando a Igreja” (Against Heresies, III, 1.1). Eusébio registra um conceito similar: “Mateus, que pregou primeiro aos hebreus, dedicou seu Evangelho à escrita em sua língua nativa, e assim compensou por meio do seu escrito a perda de sua presença” (Eccl. Hist., III, 24.5). Mais tarde, Jerônimo falou da mesma maneira em seu Prologue to the Gospels: “Mateus, o cobrador de impostos cognominado Levi, é o primeiro de todos que publicaram um Evangelho, na Judeia, em língua hebraica. Ele foi elaborado em favor daqueles judeus que tinham crido em Jesus e que estavam servindo o verdadeiro evangelho numa época em que a sombra da Lei não tinha desaparecido”.

Jerônimo também escreveu: “Mateus, também chamado Levi, e que foi transformado de cobrador de impostos em apóstolo, foi o primeiro na Judeia a compor um Evangelho de Cristo em hebraico, para os circuncisos que creram. Mas não se sabe quem mais tarde traduziu esta obra para o grego” (Illus. Men., 36). No entanto, muitos estudiosos acreditam que a visão tradicional da autoria de Mateus baseia-se totalmente numa dupla citação de Eusébio, em seu famoso Church History (III, 39.16), que cita outro Pai da Igreja, chamado Papias, o qual diz: “Mateus compilou (ou organizou) a logia (oráculos) na linguagem hebraica, e os interpretou (ou traduziu) o melhor que pode. Dizem que o Evangelho foi intitulado “Segundo Mateus”, porque contém a tradução de sua coleção das palavras de Jesus, a Logia. Acredita-se que, ao usar o termo logia, Papias não se referia à vida de Cristo ou a um Evangelho, mas a um registro completo das palavras de Jesus. Os estudiosos deram a este documento desconhecido o nome de “Q” ou “Fonte”. Atualmente, porém, muitos acreditam que tal conceito é altamente improvável, desde que o termo logion durante muitos anos foi um termo técnico grego usado para designar um oráculo divino, ou um pronunciamento inspirado (como os oráculos de Delfos) e que há uma diferença entre logia e logoi (palavras). Outros eruditos, como E. J. Goodspeed, acreditam que o termo “oráculos”, como usado em Romanos 3.2; Hebreus 5.12 e 1 Pedro 4.11, refere-se não a um conjunto de passagens do AT, citações sobre o Messias compiladas por Mateus, ou profecias cumpridas por Cristo, mas a um evangelho hebraico anterior, contendo as palavras e obras de Jesus, que Mateus tinha escrito com base numa tradição oral fixa, em Jerusalém ou Antioquia. Supõe-se que Mateus, sendo apóstolo e tendo interesse nas palavras e obras de Jesus, deve ter sido o primeiro evangelista a escrever. Muitas vezes os homens não levam em conta que, na passagem citada, o próprio Papias argumenta que Marcos vem antes de Mateus. Essas afirmações foram ampliadas numa teoria de que Mateus escreveu o primeiro Evangelho, mas que o escreveu numa forma mais curta, em hebraico ou aramaico, a qual então foi utilizada quando o Evangelho canônico de Mateus foi composto. Por essas razões os eruditos modernos em sua maior parte abandonaram a autoria tradicional de Mateus e passaram a crer que o primeiro Evangelho foi atribuído a Mateus somente porque ele foi o autor de uma de suas fontes, e não o autor do Evangelho em si. Esses eruditos, porém, acreditam que esta situação explica por que o primeiro Evangelho passou a ter o nome de Mateus.

Embora o conceito de que Mateus originalmente tenha escrito um evangelho aos judeus, em língua hebraica, como os estudiosos deduzem a partir das afirmações dos Pais da Igreja como Papias e Eusébio, pode ser aceitável para alguns, este conceito também tem sido repudiada por muitos eruditos modernos. Mesmo estudiosos antigos, mais conservadores, tinham dúvidas quanto a esta teoria. Diziam que era melhor acreditar que Mateus escreveu um evangelho em hebraico e outro em grego. A teoria da “tradução por inspiração’ também tem pouca aceitação hoje em dia. A tradição do evangelho deve ter circulado na Igreja Primitiva em aramaico, mas os Evangelhos escritos, que conhecemos, são livros gregos. Os defensores da teoria do evangelho aramaico foram compelidos a desenvolver uma complicada hipótese, para a qual não há evidência real, dentro ou fora dos próprios Evangelhos. Se evangelhos em hebraico, ou informações escritas sobre a vida e as palavras de Jesus, existissem nos primeiros dias da Igreja, e se as igrejas missionárias de Paulo cresceram mais rapidamente do que as igrejas aramaicas, qualquer original hebraico pode ter desaparecido cedo. Uma autoridade recente escreveu: “a tese, que tem sido defendida repetidamente, de que Mateus era o autor de uma fonte principal do Evangelho de Mateus (a Fonte-Logia, ou um Mateus em aramaico) e que a partir daí todo o Evangelho recebeu o nome de Mateus é, portanto, uma hipótese totalmente sem fundamento. Temos de admitir que o relato sobre Mateus, composto por Mateus na língua hebraica, é falso, qualquer que tenha sido sua origem” (Feine — Behm — Kuemmel, pág. 85). Muitos eruditos do NT hoje acreditam que a evidência interna de todos os quatro Evangelhos indica que foram elaborados em grego, mas contêm material em aramaico, alguns extraídos de fontes orais e outros, de fontes escritas.

O método de interpretação conhecido como “crítica da forma” também foi empregado para estabelecer a autoria e explicar a natureza do primeiro Evangelho. Seguindo o conceito de G. A. Kilpatrick (1946), de que o primeiro Evangelho é um produto da comunidade cristã e que o autor na verdade é um editor, o Dr. Rrister Stendahl (The School of St. Matthew, 1954), proeminente erudito do NT e teólogo, recentemente desenvolveu uma teoria que diz que o autor ou editor do primeiro Evangelho era um rabino cristão interessado em criar um material para o ensino na Igreja. Este rabino não trabalhou sozinho; toda uma escola de escribas e mestres trabalhava na igreja de Mateus, uma escola que era a contrapartida dos anciãos do Judaísmo. O autor não é um indivíduo, nem uma comunidade, mas um grupo. O Evangelho não é caracterizado por um mestre chamado de “Rabi” pelos discípulos ao seu redor? O propósito da escola de Mateus era escrever uma polêmica para convencer os incrédulos da validade de Jesus como o Messias. A estrutura do Evangelho, em seções organizadas de discursos e narrativas, indica que a escola tentava criar um manual ou livro texto para o ensino e administração na Igreja. Dizem que a escola influenciou não somente a forma, mas também o próprio conteúdo do Evangelho.

Embora esta teoria lance muita luz interessante sobre o primeiro Evangelho, ainda resulta num autor desconhecido, e não oferece uma explicação válida sobre o caráter e propósito do Evangelho, mais do que as outras teorias. Os estudos e críticas do Novo Testamento durante os últimos 150 anos, principalmente no estudo dos sinópticos, deveriam ser mais apreciados e não denegridos, pois muita luz tem sido lançada sobre o NT; mas, uma avaliação penetrante de todas as teorias, hipóteses e conclusões, às vezes oferecidas sem evidências sólidas, dão origem ao pensamento de que o conceito tradicional da autoria de Mateus, do primeiro Evangelho, não deve ser totalmente descartada. As seguintes considerações devem ser levadas em conta:

(a) As citações dos Pais da Igreja, concernentes à autoria de Mateus, podem ser usadas em ambos os lados da questão. E possível que Mateus tenha escrito um Evangelho em algum tipo de hebraico para cristãos e convertidos judeus, e depois tenha escrito o mesmo material em grego — o Evangelho que leva seu nome no cânon. Pelo menos ele pode ter compilado um grupo de ditos em aramaico, ou profecias do AT que se aplicavam ao nosso Senhor, para a instrução de cristãos judeus. Os estudiosos acreditam que se ele escreveu um evangelho em grego (aqueles que nós temos); então, ele pode ter usado Marcos e por meio desse material ter incluído elementos do evangelho de Pedro, principalmente os eventos da região de Antioquia, que teriam reunido os elementos hebraicos e gregos da Igreja. Este aspecto coincidiria com um dos propósitos do Evangelho de Mateus.

(b) Deve-se admitir, porém, que jamais foi encontrado nenhum fragmento de um Evangelho de Mateus em aramaico e uma edição grega é mais plausível do que uma tradução. O Evangelho de Mateus não apresenta nenhuma evidência de ser tradução, o que é uma dos indícios mais frágeis da teoria aramaica. A discussão de “Papias por meio de Eusébio” não deve ofuscar a declaração de Irineu, que foi escrita antes da afirmação de Eusébio: “Mateus também publicou um livro do Evangelho entre os hebreus, no dialeto deles, enquanto Pedro e Paulo estavam pregando o Evangelho em Roma e fundando a Igreja” (Against Heresies, III, 1.1). A partir dessa afirmação, parece que Mateus era considerado o autor, pelo menos de um evangelho para os cristãos que falavam hebraico, e que o surgimento de um Mateus em grego seria rapidamente aceito, embora deva-se admitir isso como conjectura. Pelo menos há alguma tradição histórica que diz que Mateus de fato escreveu o material do Evangelho.

(c) Não é difícil crer que Mateus, ao escrever um evangelho em grego, tenha usado um evangelho como o de Marcos, o qual, caso desejasse incorporar o material petrino de Roma, harmonizar- se-ia bem com um dos seus propósitos, o de reunir as igrejas hebraicas e gregas. Deve-se, porém, encarar abertamente as profundas dúvidas de alguns estudiosos modernos (as quais os levam a abandonar a autoria de Mateus) de que uma testemunha ocular das palavras e vida do Senhor apoiar-se-ia numa pessoa não apostólica como Marcos para escrever seu Evangelho. (d) Deve-se considerar a tradição antiga e unânime, que afirma a autoria de Mateus do primeiro Evangelho. Certamente Mateus tinha algo a ver diretamente com o Evangelho que leva o seu nome. Embora possa ser verdade que, nos tempos antigos, livros e documentos estavam relacionados a nomes famosos para alcançar reconhecimento e autoridade, permanece o fato de que Mateus não era uma das grandes figuras da Igreja Primitiva — não se sabe quase nada sobre ele e ele ocupa pouquíssimo espaço na história do NT. Se ele não escreveu o primeiro Evangelho, é muito difícil explicar a ligação e por que tem o seu nome. Podemos perguntar por que Mateus é o único sinóptico cuja autoria é questionada. O título é muito antigo, talvez anterior a 125 d.C. e deve implicar uma autoria e não o contrário. Os eruditos podem chegar à conclusão geral de que a Igreja Primitiva atribuiu o primeiro Evangelho a Mateus, não porque ele foi o autor de uma de suas fontes, mas porque de fato o escreveu. Devemos lembrar que muitas teorias que explicam a origem dos Evangelhos foram elaboradas, não para estabelecer a autoria, mas para explicar suas similaridades e diferenças.

(e) Embora possa não ser considerado o argumento mais forte para a autoria, vale a pena notar a sugestão do Dr. E. J. Goodspeed, conhecido erudito do NT. Ele acreditava que a ocupação de Mateus, como cobrador de impostos, o qualificava para ser o redator oficial das obras e palavras de Jesus, sendo esta a razão prática para o seu chamado para ser discípulo. Era um homem acostumado a manter livros de registro no dia a dia. Todo o conteúdo do Evangelho tem a marca de um cobrador de impostos, os quais tinham fama de anotar tudo. “Sem dúvida havia algo especiai que Mateus levava consigo. Os outros discípulos, homens acostumados a trabalhar nos barcos de pesca, não estavam familiarizados com pena e livros; mas o trabalho de Mateus tomava-o uma pessoa acostumada a escrever e a registrar. Ele deixou tudo, mas levou consigo um talento que um dia, de alguma forma, usaria para o seu novo Mestre” (Barclay, pág. 208). O caráter do Evangelho revela o pano de fundo e o pensamento de um cobrador de impostos. A história do credor incompassível lida com grandes somas de dinheiro. Lançar um homem na prisão por causa de uma pequena dívida, era parte do vocabulário de um publicano. Além disso, este arranjo harmonizar-se-ia com a prática dos antigos profetas, como Isaías e Jeremias, que tinham tais escritos e registros (Is 8.16,17). Um homem como Mateus dificilmente deixaria de anotar tudo, de forma completa e precisa.

(f) Se o apóstolo Mateus, um dos Doze, não é o autor de nosso Mateus canônico, então o autor é desconhecido. Neste aspecto, temos de encarar duas questões. Como o verdadeiro autor pôde ser esquecido tão rapidamente? A outra questão é: Como Mateus passou a ser visto como o autor? Se a tradição que atribui o Evangelho a Mateus não pode ser totalmente explicada ou aceita, o autor (ou autores) alternativo teria a mesma dificuldade para ser determinado. Embora Mateus 13.52 possa ser uma pista de um autor isolado, que era um rabino ou escriba com boa formação, “todo escriba versado no reino dos céus é semelhante a um pai de família que tira do seu depósito coisas novas e coisas velhas”, sua identidade continua desconhecida. Embora, um autor desconhecido do primeiro Evangelho não possa perturbar um cristão fiel, visto que isso não afeta sua inspiração e autoridade, não há razão para duvidar que uma testemunha ocular e um apóstolo possa ter escrito. Outra conclusão, ao que parece, formaria o paradoxo de que o primeiro Evangelho é um dos maiores tratados cristãos do mundo, o qual não foi escrito por ninguém. Veja Mateus.


§4. Estrutura e Esboço 

Um exame do esboço e da estrutura do Evangelho de Mateus revela que foi organizado de forma ordenada e artística. Embora tenha certos propósitos teológicos e didáticos, Mateus emprega o mesmo esquema geral, histórico e cronológico, de Marcos e Lucas (especialmente Marcos). Mesmo assim, ele organiza seu material em forma de tópicos e não em um registro diário exato. No primeiro Evangelho, não vemos uma cronologia exata dos eventos, mas os acontecimentos na vida do Senhor escritos de forma a ensinar certas lições. Mateus era um evangelista e não um historiador. Ele sempre teve a Igreja em mente. No entanto, pode-se discernir um arranjo artístico deliberado do material, em grupos ou unidades de três, cinco e sete. Alguns eruditos, como o Dr. Goodspeed, acreditam que o Evangelho é organizado de acordo com o padrão de muitas obras judaicas antigas, como os cinco “livros” ou principais divisões do Pentateuco, os Salmos e o Magilloth. Em Mateus, cada um dos cinco “livros” contém uma seção narrativa (Jesus ministrando), seguida por uma “seção didática” (Jesus ensinando). Alguns já observaram que, por meio de seu arranjo sistemático, Mateus estava tentando criar um “Pentateuco do Novo Testamento”.

A ideia é a de que, assim como os cinco livros do Pentateuco contêm a Lei para o povo do AT, os cinco discursos estabelecem a ética que deve guiar a vida do cristão. Cada uma das divisões é concluída fórmula repetida: “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras...” (7.28; 11.1; 13.53; 19.1; 26.1). Alguns acreditam que o objetivo era que essas seções fossem lidas nas reuniões cristãs. A fórmula deve ser interpretada assim: “Aqui termina o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto e o quinto livro dos ensinos de Jesus, o Messias”. No entanto, ao tentarmos esta divisão simplificada do primeiro Evangelho, devemos lembrar que, em certas situações, o material é dividido desse modo apenas em termos gerais, e não se pode esperar encontrar seções rígidas e claras. O arranjo não é superficial e nem forçado, mas permanece mais ou menos em forma de tópico. Por exemplo, alguns discursos mais curtos de Jesus são anexados em seções narrativas. Também parece estranho designar a narrativa da infância como mero prólogo e a importante seção da paixão, morte e Ressurreição como conclusão ou epílogo. É preciso destacar que o primeiro Evangelho, em si, não diz nada sobre tal arranjo. A seqüência inspirada em Marcos e o esquema geográfico, parecem ser a base do Evangelho. Nenhuma divergência pode ser encontrada em relação a Mateus 13.35. Não há nenhuma evidência de que Mateus desejava ser um “novo Moisés”.

Para facilitar o estudo e até a memorização, como um manual eclesiástico de discipulado, Mateus parece ter tendência de agrupar seu material também em grupos de três e sete. Os milagres dos capítulos 8 e 9 são divididos em grupos de três. O capítulo 13 tem sete parábolas. A genealogia que inicia o Evangelho tem uma divisão dupla de três grupos de catorze. Visto que os primeiros cristãos não possuíam livros como nós os conhecemos, se alguém desejava uma “cópia”, tinha de memorizar (sem dúvida tais divisões serviam para facilitar a memorização). Outros exemplos são encontrados facilmente: há três eventos principais na infância de Jesus (cap. 2); três tentações (4.1-11); sete estrofes na Oração do Pai Nosso (duas a mais do que Lucas, 6.9-15); três proibições (6.19—7.6); três mandamentos (7.7-20); três milagres de cura (8.1-15); três orações no Getsêmani (26.39-44); três negações de Pedro (26.69-75); sete “ais” (23); três perguntas feitas por Pilatos (27.11-17); sete demônios (12.45); sete pães e cestos (15.34,37); perdoar sete vezes e setenta vezes sete (18.22); sete irmãos (22.25). Já foi aito que o apelo do Evangelho baseia-se, não no seu poder literário ou na narrativa, mas em sua habilidade prática de moldar a vida da Igreja. Trata-se de um Evangelho fácil de ser lembrado e usado como referência. O arranjo aritmético parece proeminente demais para ser ignorado. Este Evangelho também já foi dividido em três partes principais, em tomo das quais o material tópico pode ser organizado. Neste esboço, como já foi destacado acima, as narrativas da infância, e a morte e Ressurreição, formam o prólogo e o epílogo:


TRIPLA DIVISÃO DO EVANGELHO DE MATEUS

Prólogo: Narrativas da infância (caps. 1,2)

Primeira parte principal: Jesus na Galileia (4.12—13.58)

Segunda parte principal: Jesus, o Messias (caps. 14—20)

Terceira parte principal: Jesus em Jerusalém (caps. 21—25)

Epílogo: Morte e ressurreição (caps. 26—28).

Outros vêem, no esquema de Mateus, um esboço duplo, ou linha de pensamento que pode ser detectado pela fórmula: “Daí em diante Jesus começou...”. A primeira parte do esboço duplo é primariamente biográfico, similar àquele encontrado em Marcos e Lucas, com dois pontos principais de divergência. Ponto um: Mateus 4.17, “Daí por diante passou Jesus a pregar...”, atividade que levou ao seu grande ministério de pregação e o colocou em evidência. Ponto dois: Mateus 16.21: “Desde esse tempo, começou Jesus Cristo a mostrar a seus discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém...”, seção que mostra o declínio de sua popularidade e sua morte na cmz. Parece que, com esses dois pólos, o autor desejava enfatizar que toda a vida de Jesus, bem como suas obras, devem ser vistas como tendo um propósito divino.

Dentro dessa primeira estrutura, a segunda parte do esboço duplo deve ser encontrado nas representações tópicas das palavras e atividades de Jesus, divididas em vários blocos de material, em grupos de cinco, três ou sete, como já vimos. Cada uma dessas seções conclui com a frase: “Tendo acabado Jesus...” (11.1), e se incluirmos a narrativa introdutória e a história da paixão, há sete divisões ao todo. Um esboço aceitável e útil do conteúdo do Evangelho de Mateus, que leva em consideração um tema dominante — o cumprimento messiânico (veja a seção sobre Propósito teológico) é apresentado abaixo:


Jesus Cumpridor Messiânico


I. Introdução (1.1—4.16). Genealogia. Sete cumprimentos de profecias.


§5. Tema e Propósito Teológico

O tema do primeiro Evangelho é declarado na sentença inicial do livro: “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (1.1). Leva-nos a lembrar do livro de Gênesis, que é dividido em seções pelo uso de uma frase similar, “as gerações de” ou “livro das gerações de” (Gn 2.4; 5.1; 6.9; etc.) No AT, a frase marca um novo estágio no desenvolvimento das promessas do Messias, cumpridas até Davi, onde a linha termina. Mateus começa sua genealogia neste ponto e mostra em detalhes como Jesus de Nazaré cumpre as profecias do AT. Desta maneira, ele imita a estrutura do AT e, talvez de mais de uma maneira, proporciona uma ponte definida entre os profetas e o cumprimento no NT. Considerando-se tudo isso, este é o tema dominante do Evangelho: o cumprimento das profecias do Antigo Testamento. Ao mesmo tempo, isso forma o principal propósito teológico de Mateus. Este propósito é indicado pela própria genealogia; Mateus começa a linhagem com Abraão para mostrar que Jesus era um verdadeiro judeu, enquanto Lucas o conecta com Adão, como o verdadeiro Filho do homem (Lc 3.38). Se a linhagem de Jesus pode ser traçada até Abraão, passando por Davi, então ele é o Messias, o divino filho de Deus (Mt 22.42). Se não, teologicamente falando ele não podia ser Aquele que morreu e ressuscitou, sendo assim o “Enviado”. O primeiro Evangelho testifica que Deus é o Senhor de toda a história e de toda salvação, e que Jesus Cristo é o seu Filho. A obra e a Palavra de Yahweh estão tão intimamente relacionadas, tanto no Antigo como no Novo Testamento, que as maiores obras dele são descritas simplesmente como a ação de sua Palavra (o Logos), seu único Filho. Em nenhum outro lugar este tema é tão claramente ilustrado como no Evangelho segundo Mateus, o Evangelho do cumprimento. A promessa de Deus, na Aliança do Messias e Salvador, no AT, cumpre-se nas palavras e obras de Jesus Cristo no NT. Um exemplo excelente é Jesus diante do sumo sacerdote: “Jesus, porém, guardou silêncio. E o sumo sacerdote lhe disse: Eu te conjuro pelo Deus vivo que nos digas se tu es o Cristo, o Filho de Deus. Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste; entretanto, eu vos declaro que desde agora vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (Mt 26.63,64).

Para ilustrar seu tema, Mateus literalmente lota seu Evangelho com todos os aspectos cristológicos e messiânicos do AT, até ter citado praticamente todos os livra do AT, mais de cinqüenta citações ao todo, sem contar os muitos ecos e alusões. Sua polêmica sobre o AT não se limita a algumas referências esparsas, mas é de longe a mais completa coletânea de passagens relacionadas ao tema “Cristo no Antigo Testamento” dentre todos os escritores, inclusive Paulo, no NT. Ele cita principalmente Isaías, o profeta messiânico e evangélico, e os Salmos. Um quinto de suas citações são de Isaías. Talvez nenhum outro livro do AT tenha influenciado tanto Mateus como Isaías. Um estudo do uso do AT, em Mateus, dá alguma base para a crença daqueles que acham que a afirmação de Papias, sobre a Logia de Mateus, refere-se a uma coleção de citações do AT sobre Cristo, o Messias. Depois de sua famosa genealogia, ele se volta para o nascimento humilde do Servo Sofredor, citando o cumprimento de Isaías: “Ora, tudo isto aconteceu, para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco)” (Mt 1.22,23). Depois disso, um profeta após o outro, e um livro após o outro, são citados por Mateus, para ilustrar que Jesus é o Messias predito pela Palavra do AT. A glória do Messias, o ministério do Messias, a crucificação do Messias, a ressurreição do Messias e a exaltação do Messias recebem a devida atenção em Mateus, de modo que seu propósito é inegável. O Filho do homem veio para salvação e juízo e, nele, o presente é a substância do passado e do futuro. Nenhum livro do NT apresenta a pessoa de Jesus, sua vida e seus ensinamentos tão claramente como cumprimento da lei e dos profetas, como Mateus. Cerca de onze vezes, em seu Evangelho, ele introduz a profecia com uma fórmula impressionante: “Para que se cumprisse o que foi dito por intermédio do profeta...”; o efeito cumulativo disso é notável. Em todo esse processo de profecia e cumprimento, a Palavra nenhuma vez perde seu caráter de história. O cristianismo é retratado como uma religião histórica. Os eventos são registrados como ocorrendo da maneira que Deus desejou que fosse. Mesmo eventos isolados, aquilo que parecia inexplicável, aconteceu “segundo as Escrituras”.

Assim, a Palavra tem uma história, sendo a culminação das promessas e atos poderosos anteriores de Deus. É história, porque o Homem real entrou na história, para tratar com homens reais, no tempo e tratar da condenação deles, por causa do pecado; cria história no fato de que a Palavra é forte e poderosa, ainda cumprindo a vontade divina na Terra. O Evangelho de Mateus também representa uma completa expansão do kerygina apostólico. De acordo com o conceito de que Mateus utilizou, como fonte, material da tradição oral aramaica, seu Evangelho indica que ele seguiu o esboço dessa pregação oral Kerygma). A primeira geração de cristãos, entre a Ressurreição e a redação dos Evangelhos, não tinham um material escrito completo; a única Escritura que tinham era o AT. A mensagem indicada nos discursos de Pedro em Atos (3.11-26; 10.36-43) e em certas seções das epístolas de Paulo (ICo 15.3s.), seguia um esboço como este:


Kerigma Apostólico

1. As promessas de Deus no AT se cumpriram.

2. O Messias há muito esperado, nascido da linhagem de Davi, está aqui com o Reino.

3. Ele é Jesus de Nazaré.

4. Em seu ministério na Terra, ele saiu pregando e fazendo o bem por meio de poderosos atos de cura e de poder.

5. Ele foi crucificado de acordo com a promessa e vontade de Deus o Pai.

6. Ele ressuscitou dentre os mortos e foi exaltado à direita de Deus.

7. Ele voltará em glória para julgar os vivos e os mortos.

8. Portanto, todos devem ouvir sua mensagem, se arrepender e ser batizados para o perdão dos pecados. Este kerigma ou “mensagem” foi o primeiro Evangelho. O Evangelho de Mateus apresenta uma versão ampliada dele, com grandes detalhes. Nota-se quanto espaço ele dedica à narrativa da paixão. Por isso o Evangelho era tão popular na Igreja Primitiva. O mais antigo evangelho, portanto, não foi o Sermão da Montanha. Esta foi uma das contribuições especiais de Mateus para o ensino e a vida da Igreja— o ensino ético de Jesus. Devemos lembrar que isso, ou o cumprimento do interesse histórico, não era o objetivo primário de Mateus, mas um meio para alcançar um fim. O Evangelho não é uma biografia. E impossível escrever a história da vida de Cristo. Pouquíssimos eventos sobrevivem e somente dois ou três anos de sua vida, no máximo, são retratados pelos quatro Evangelhos. O interesse primário não era totalidade histórica, mas revelação e teologia.

Neste aspecto, Mateus parece excluir quase todo o material que não fosse teologicamente essencial para a apresentação de Jesus como o Messias. O propósito era a totalidade da revelação divina e a culminação de todos os escritos anteriores do AT. Portanto, não é de surpreender que os primeiros cristãos consideravam o AT como uma verdadeira fonte da vida e obras de Jesus e, assim, colocaram o cânon do AT antes das Escrituras gregas. O NT tem uma continuidade definida por meio de Jesus Cristo com o Messias e o Israel do AT. A fórmula de cumprimento de Mateus segue dois princípios:

(1) todo evento registrado, de Jesus, foi predito no AT; (2) todas as profecias do Messias devem encontrar um evento correspondente na vida de Jesus. Mateus aplica esses princípios muitas vezes em seu Evangelho. Ele demonstra que o Messias era descendente de Abraão, nasceu como rei dos judeus (2.2), entrou na Cidade Santa em triunfo como Rei (21.4), nasceu de uma virgem conforme predito pelo profeta Isaías (1.22), foi concebido pelo Espírito Santo (1.20), foi chamado Filho de Deus (14.33). Como o Messias na Terra, ele cumpriu todas as profecias da Antiga Aliança; seu ministério, o uso de parábolas, a traição, os milagres, a cura, sofrimentos, morte, vinda em glória com os anjos (24.30), e o assentar em seu trono em glória (25.31), tudo foi predito no AT. Mateus cobre todas as escalas do Messias no AT, como se o NT fosse (como realmente é) uma reapresentação do AT. Talvez o ponto central dessa tese seja a confissão, de Pedro, de Jesus como Messias em Cesareia de Filipe (Mt 16.13-20). Tudo era parte do plano messiânico divino e, talvez por isso, o Evangelho de Mateus tenha sido mais usado e lido pelos primeiros cristãos do que os outros Evangelhos. No final do seu Evangelho, Mateus olha, tanto para o passado como para o futuro quando cita estas palavras do Senhor: “ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt 28.20).

Um propósito secundário do Evangelho de Mateus, como já foi mencionado na seção sobre Estrutura e Esboço, foi prover a jovem Igreja com uma manual de instruções sobre doutrina e prática eclesiástica. Muitos acreditam que ele não foi escrito para leitura e estudo individual, mas sim para orientar os professores, no ensino dos novos convertidos. E um Evangelho didático, fácil de lembrar e de memorizar. Talvez tenha sido o primeiro livro texto de educação cristã a ser usado na Igreja. Também foi designado para ser lido em voz alta nos cultos. Além da ênfase no cumprimento messiânico, a instrução contida nele apresentaria os ensinos éticos de Jesus e o ensino do amor e do perdão, os quais estavam incluídos nas obras e ensinamentos de Jesus, o Messias.


§6. Características e Aspectos Especiais.

O Evangelho de Mateus é, em primeiro lugar, um Evangelho tipo missão, ou Evangelho pregação. O propósito geral é informar, convencer e evangelizar os leitores, judeus e gentios, concernente ao Messias. O tema messiânico é responsável pela sua unidade. Alguns já disseram que este Evangelho é uma defesa contra toda a incredulidade judaica. Ele apela para as crenças messiânicas judaicas profundamente arraigadas, a fim de convencer todos de que Jesus de Nazaré é o Messias prometido. Mateus argumenta com base no AT, como muitos pregadores da Igreja Primitiva faziam.

O tema messiânico de Mateus pode ser esboçado da seguinte forma:

1. As profecias do Messias, cumpridas — o Advento (1.1—4.11).

2. Os ensinos do Messias — grandes discursos (4.12—7.29).

3. A Divindade do Messias revelada — os milagres (8.1—11.1).

4. O Reino do Messias revelado — as parábolas (11.2-13.53).

5. A redenção do Messias proclamada — a cruz (13.54—19.2).

6. A oposição dos inimigos — debates com os oponentes (19.3—26.2).

7. A paixão do Messias — sofrimento, morte e ressurreição (26.3—28.10).

8. Conclusão: A Grande Comissão (28.11-20).

Se Mateus escreveu numa época em que cristãos judeus e gentios estavam separados e em oposição, seu Evangelho mostra que há unidade e ecumenismo no Senhor Jesus Cristo. Para Mateus, o cristianismo não era uma seita que estava inventando um cristo ou interpretando errado o AT; pelo contrário, ele mostra que o propósito divino de salvação para todos os homens foi cumprido em Jesus Cristo, o Messias. Mateus é universal e particular. Portanto, é um Evangelho que ensina a graça universal. Trata-se de um Evangelho ecumênico (Mt 9.12,13). O primeiro Evangelho também ensina muito sobre o poder do Evangelho. O chamado do Messias é intenso, drástico e movido pela graça. Toda a teologia básica ensinada nele, certamente tinha sua referência pessoal no próprio Mateus. A forma como ele registra seu próprio chamado (Mt 9.9-13) mostra o apreço que tinha pelo amor do Salvador por todos os homens. Certamente pensou em si próprio quando escreveu a parábola dos trabalhadores na vinha (Mt 20.1-16). Seus concidadãos o consideravam um judeu renegado que virara as costas para Israel, para tirar proveito de um sistema sombrio de cobrança de impostos dos romanos e do governo provinciano. Sem dúvida era materialista e egoísta. Para ele, o chamado do Senhor significava uma quebra aguda com o passado. A experiência de ser totalmente odiado por seu povo e, depois, ser completamente aceito pela graça, deixou marca indelével em Mateus, o publicano. Por um lado, ele sabia como o pecado podia separar um homem de Deus e de seus semelhantes e, por outro lado, reconhecia como era gracioso o chamado para o arrependimento e serviço. Embora fosse um candidato extremamente improvável a autor de um Evangelho, tinha um preparo único para exortar judeus e gentios a terem fé e compromisso com o Messias do Antigo Testamento.

O Evangelho de Mateus enfatiza o chamado ao arrependimento e ministério. E sempre um chamado absoluto e exigente. Envolve o homem totalmente com seu Deus. O Evangelho de Mateus é uma oposição inabalável a qualquer acomodação ao mal que apareça no caminho de volta para Deus. Sem dúvida, é por isso que a disciplina de ganhar o irmão pecador, uma tarefa evangélica que a Igreja tem seguido através dos séculos, é encontrada somente no poderoso Evangelho de Mateus (Mt 18.15-35).

Outro aspecto proeminente do Evangelho de Mateus é a ênfase na obediência da fé. Deus inicia todo o trato com seu povo com base na graça de Cristo. Somente Deus é bom. O cristão se entrega totalmente ao seu Salvador, em fé e serviço. O pecado dos fariseus era a justiça própria e a tibieza. Mateus, que do ponto de vista humano deveria ser o último a condenar pessoas justas aos olhos dos homens, dirige a mais severa das repreensões contra os escribas e fariseus no NT, por causa da hipocrisia. Aquele que uma vez abandonou o AT e seus ensinamentos, agora se toma seu mais ardente apoiador e intérprete. Os homens que receberam a graça de Deus e entraram no discipulado, aprenderam com Mateus o verdadeiro significado do Evangelho e do Reino. Tal discipulado é ensinado na parábola do servo impiedoso (Mt 18). Um homem é libertado para perdoar e libertar outros. Mateus ensina que, não somente o Senhor chama o pecador ao arrependimento, mas também os que se tomaram seus discípulos devem se arrepender na vida cotidiana (18.1-4). Todas as limitações do amor são deixadas de lado quando o Senhor pede aos discípulos que amem seus inimigos (5.44). O impetuoso e teimoso Pedro, o impaciente homem da Galiléia, é solicitado a perdoar seu irmão não somente sete vezes, mas setenta vezes sete (18.21,22). Finalmente, nosso Senhor pede aos discípulos para fazerem de sua cruz a maneira de vida deles no ministério e no sacrifício (10.38).

O Messias traz à existência uma nova Igreja universal, o novo Israel. Judeus e gentios encontram refúgio nela. Mateus é o único evangelista que usa a palavra (16.18; 18.17). Ele fala  da permanência da Igreja, da disciplina e do perdão dentro dela. O Evangelho inicia com a promessa de que o Messias é o Emanuel que estará com seu povo e termina com a promessa de que o mesmo Jesus, agora o Cristo ressuscitado, estará com seus discípulos de todas as nações “até à consumação do século”. A visita dos magos ao menino Jesus, no início do Evangelho, e o longo ministério de Jesus na “Galileia dos gentios” (4.15) falam de uma Igreja universal. Mesmo assim, esta Igreja cristã, universal, com seus membros — é o antigo Israel transformado e expandido (10.5).

O primeiro Evangelho é conhecido também pela forma extensa e detalhada que apresenta os ensinamentos éticos de Jesus. Para o evangelista Mateus, bem como para Paulo, há uma “lei de Cristo”, um princípio de amor cristão que se torna imperativo para a vida ética. Jesus é o grande mestre que proclama uma lei revisada para o novo Israel do alto da montanha (no Sermão da Montanha), assim como Moisés proclamou a lei divina no Monte Sinai. O Messias chama sua Igreja não somente ao arrependimento, mas também para as boas obras. A justiça dos discípulos deve exceder a dos fariseus. A vida cristã é livre, mas é também moral e responsável, motivada pelo amor. Mesmo que a instituição existente tenha corrompido e pervertido a lei, mesmo assim era revelação divina. O Messias veio, não para destruir, mas para cumprir a lei e suprir suas carências. Assim, uma grande parte do Sermão da Montanha é repleta de explicações da lei, na qual Jesus estabelece os padrões morais de amor pelos quais a conduta dos cristãos será julgada.

Do ponto de vista prático ou metodológico, o Evangelho segundo Mateus é Evangelho do ensino. Ele é caracterizado pelos extensos discursos. Ele expande o evangelho da ação de Marcos, o qual tinha maior interesse no que a fez, do que no aquilo que disse. A relação abaixo é uma lista dos discursos mais extensos de Mateus:

3.1-12 — A pregação de João

5.1-7.29 — O Sermão da Montanha

10.1 -42 — A comissão apostólica

13.1-52 — As parábolas

18.1-35 — O significado do perdão

23.1-25.46 — Denúncia e profecia

28.18-20 — A Grande Comissão

O Evangelho de Mateus apresenta um grande número de parábolas. O maior grupo isolado de parábolas está no capítulo 13. As ilustrações são extraídas da vida cotidiana e retratam a natureza e demandas do Reino. Muitas delas são proféticas. Mateus diz que as parábolas tinham como objetivo revelar e esconder a verdade (13.10-13). Dez parábolas em Mateus não são encontradas nos outros Evangelhos: o joio, o tesouro escondido, a rede, a pérola de grande valor, o servo impiedoso, os trabalhadores na vinha, os dois filhos, o casamento do filho do rei, as dez virgens, e a parábola dos talentos (há dois milagres que só são encontrados em Mateus: os dois cegos e a moeda na boca do peixe).

Somente Mateus emprega a frase “o Reino dos céus” (31 vezes ARA). Quatro vezes ele fala no “Reino de Deus”. Mateus também é um Evangelho real. O Messias é retratado repetidamente como o grande Rei. Sua linhagem é traçada até o Rei Davi; os Magos perguntaram pelo Rei dos judeus; ele foi chamado de “Filho de Davi”; entrou triunfalmente em Jerusalém; Pilatos lhe perguntou se ele era o Rei dos judeus; sobre sua cruz foram pregadas as palavras: “Este é Jesus, o Rei dos judeus”; no clímax do Evangelho ele afirma possuir todo o poder no céu e na Terra. Devemos concluir que o autor do Evangelho deliberadamente apresenta Jesus como o Rei.

O retrato de Mateus, de Jesus Cristo como o Messias, pode seguir o padrão das experiências do povo de Israel. O relacionamento do Senhor com o Egito é particularmente significativo. Assim como os filhos de Israel desceram ao Egito na infância e saíram de lá no Êxodo, Mateus retrata Jesus indo para o Egito na infância e voltando de lá em cumprimento à profecia de Oseias 11.1: “Do Egito chamei o meu Filho” (Mt 2.15). Outro paralelo é a tentação e o jejum de Jesus no deserto, quarenta dias e quarenta noites, e a peregrinação de Israel no deserto, durante quarenta anos (4.1,2). O Evangelho de Mateus pode ser caracterizado como um Evangelho eclesiástico. Seu interesse centraliza-se na Igreja mais do que os outros Evangelhos. A Igreja é retratada como um corpo vivo e verdadeiro de adoradores e servos de Cristo. O Sermão da Montanha e as parábolas retratam os ideais e a vida da congregação cristã. Esta Igreja se interessa em ganhar todos os membros desgarrados (Mt 18) e nosso Senhor disse que as portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16). O Evangelho fala de oração, doação, regras cristãs para o casamento e divórcio, os sacramentos, o ministério de ensino e pregação. De fato, Mateus tem muito a dizer sobre toda a vida e práticas da Igreja cristã.

Embora o Evangelho de Mateus seja conhecido por seus extensos discursos ou episódios de ensino, um aspecto principal, pelo qual também é conhecido, é sua versão completa do Sermão da Montanha. Ele contém os princípios espirituais e morais do novo Israel. A ética exposta por Jesus baseava-se no espírito interior, no amor abnegado e na vida evangélica responsável. Também é uma interpretação da antiga Lei mosaica, mas não uma ab-rogação dela (5.17). Todos os cristãos conhecem a fórmula e autoridade do ensino ético do Senhor: “Ouvistes que foi dito aos antigos... Eu, porém, vos digo...” (5.21,22). O Evangelho de Mateus definitivamente também é um evangelho judaico. A aparência e o sabor são judaicos, escritos por um judeu cristão para guiar o pensamento e a adoração dos judeus cristãos na Palestina e Síria. Os outros evangelistas tendem a explicar as palavras e frases judaicas (Mc 7.1-13), mas Mateus supõe que seus leitores entendem os termos e costumes judaicos. Outro aspecto específico e único de Mateus, é a maneira de ensinar o Evangelho por meio do que tem sido chamado de método caso crítico ou extremo. Por exemplo, ele ilustra o Evangelho selecionando aquelas situações nas quais Jesus foi ao limite extremo, para ilustrar, por meio de palavras e ações, a graça de Deus. No Sermão da Montanha, o pobre herdará a Terra e as bênçãos do Reino são prometidas aos pobres de espírito (Mt 5.3).

Que ensino sublime para destacar que a graça infinita de Deus é tão ampla e profunda quanto a necessidade humana! Os milagres são selecionados da mesma maneira. Três deles ilustram a compaixão ilimitada de Jesus. Ele cura o leproso que ninguém mais podia ajudar (8.1-4); ele auxilia o gentio que não faz parte da comunidade judaica (Mt 8.5-13); restaura a saúde da mulher, que a cultura da época havia colocado em segunda categoria como criatura de Deus (9.18-22). Através dos séculos, cristãos preocupados acreditam na mensagem do Evangelho porque Jesus chamou um odioso cobrador de impostos, um homem que as autoridades judaicas sempre consideraram como pecador e excluíam da graça de Yahweh, para ser seu discípulo e apóstolo (9.9-13). Mateus mostra que nosso Senhor ensinou por meio de métodos extremos na área da ética. Não há limites para o amor, porque Jesus exorta seus discípulos a amarem seus inimigos, o que implica que nenhum homem pode considerar outro homem como seu inimigo (5.44). Um exemplo clássico é a instrução de Jesus para Pedro, a qual foi muito além da ideia do próprio apóstolo sobre o amor, quando disse que devia perdoar seu irmão setenta vezes sete (18.21,22).

Outra faceta interessante do Evangelho de Mateus é o uso dos opostos extremos no ensino. Por um lado, Jesus, o Messias, é filho de Abraão e filho de Davi, figuras culminantes na história de Israel (1.1 -17); no entanto, imediatamente Mateus registra que o Messias não é produto da história de Israel em si, mas foi concebido pelo próprio Deus, fora da história (1.18). Novamente, o Messias é o Senhor dos céus e da terra (28.18) e mesmo assim fica angustiado até a morte em seu sofrimento e morre de forma vergonhosa, como criminoso, na cruz (27.32-54). Ele se senta no trono de Deus e volta para julgar todo o mundo (25.31-33), mas na cruz ele é abandonado por seu Pai (27.46). E claro que a declaração mais extrema de opostos, no Evangelho de Mateus, é a de que o Messias é Jesus de Nazaré, nascido de uma donzela amável, filho de um carpinteiro, que se reduz à forma de servo, sofre e morre por todos os homens; mesmo assim ele é o Cristo, o Filho de Deus, que reinará sobre todas as coisas, de todas as formas (28.18). Este contraste é o âmago do Evangelho. O Messias é divino e ao mesmo tempo humano. Ele é um homem inserido na história e ao mesmo tempo é o Filho de Deus por toda a eternidade. Ele procede de uma nação da Terra, mas mesmo assim morreu por todas as pessoas e deve ser pregado em todas as nações para que todos sejam salvos (28.19,20). Somente Mateus registra certos eventos na vida de Jesus: a visão de José (1.20-24), a visita dos Magos (2.1-12), a fuga para o Egito (2.1315); a morte dos bebês em Belém (2.16), o sonho da esposa de Pilatos (27.19), o suicídio de Judas (27.3-10); a ressurreição dos mortos na hora da crucificação (27.52), a história do suborno dos guardas (28.12-15) e a Grande Comissão (28.19,20). Esses elementos não são encontrados nos outros Evangelhos. O mesmo ocorre com algumas parábolas. Mateus usa os milagres de Jesus, mais para provar seu poder messiânico, do que como parte da narrativa de sua vida, ilustrando mais uma vez seu interesse teológico. Um aspecto único do Evangelho de Mateus, que em geral não é mencionado, é o texto eclesiástico: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja...” (16.18). A passagem tem influenciado a história da Igreja na Terra mais do que qualquer outra. No domo de São Pedro, em Roma, há a seguinte inscrição: “Tif es petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam”.

Nenhum outro Evangelho apresenta essas palavras, nem mesmo em formato diferente. Uma leitura atenta do primeiro Evangelho revela uma grande ênfase nos discípulos de Jesus e no discipulado. Mateus dedica mais espaço ao ensino do Senhor aos discípulos e apóstolos. LJb dos seus primeiros atos, depois do batismo e da tentação, foi o chamado dos discípulos para o ministério. Imediatamente o ensino deixa claro que a salvação não procede da estrutura institucional do Judaísmo, mas da profunda comunhão e fé entre o Senhor e seus discípulos, a Igreja. Muitos dos discursos do Senhor, que formam a espinha dorsal do Evangelho, são dirigidos aos discípulos. E interessante notar que Mateus registra muito do chamado deles, o treinamento, as falhas e o perdão e reconciliação. 

As revelações mais notáveis do Messias — a Transfiguração, os milagres, a ressurreição, a paixão — são mostradas somente aos discípulos. Até mesmo as últimas palavras do Messias, no registro de Mateus, exortam os discípulos a fazerem discípulos de todas as nações (28.19). O Evangelho de Mateus também tem um forte conteúdo escatológico. Mateus tem interesse pela Segunda Vinda de Jesus. Em geral, ele expande as palavras de Marcos ou Lucas sobre o assunto (16.28; 24.30,32; 26.64). Ele até emprega linguagem apocalíptica da época, como parousia (Mt 24.3). Mateus inclui um grupo de parábolas que ensina e interpreta a Segunda Vinda de Jesus.


§7. Relação com Marcos e Lucas

Em vista da natureza dos estudos do NT durante os últimos 150 anos, qualquer discussão sobre um dos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), rapidamente envolve os outros dois. Estudiosos modernos têm tanta certeza que Marcos escreveu seu Evangelho primeiro, que o assunto nem é mais questionado. Eles têm certeza de que o escritor de Mateus (e também Lucas) usou o Evangelho de Marcos como forma básica e fonte. Como já vimos (veja 3. O Autor) , os estudiosos também concluíram que o apóstolo Mateus poderia não ter escrito o primeiro Evangelho, porque é altamente improvável que um apóstolo fosse se basear nos escritos de alguém que não fez parte do grupo dos Doze. Por que Mateus tomaria emprestado de Marcos aquilo que ele próprio testemunhou? No entanto, se Mateus não usou Marcos, por que os dois Evangelhos são tão similares? Todos os estudantes sérios da Bíblia sabem que 606 dos 661 versículos de Marcos são encontrados em Mateus. De fato, praticamente todo o Evangelho de Marcos, com exceção de cerca de 50 versículos, é encontrado em Mateus e Lucas.

A relação de Mateus e Marcos (e também Lucas) nos coloca imediatamente diante da célebre questão do estudo moderno do NT, o problema sinóptico — um problema com o qual os eruditos devem conviver, porque ninguém conseguiu apresentar uma resposta definitiva. Como se pode explicar as similaridades e as diferenças entre os três Evangelhos? Se finalmente alguém acha que tem a resposta

para as similaridades, tropeça nas diferenças e vice-versa. Mateus e Lucas concordam com Marcos nas passagens paralelas. Há também muitas passagens comuns em Mateus e Lucas, as quais Marcos não tem — geralmente ditos ou parábolas de Jesus. Qual foi a fonte desse material? Supondo, por um momento, que todos os sinópticos foram escritos de forma independente, como podemos explicar, por exemplo, as semelhanças verbais entre Mateus e Marcos? E possível que um Evangelho como o de Mateus tenha surgido e circulado independente, livre de outras fontes, e que Marcos tenha copiado grande parte do seu material, de Mateus? Qual teoria isolada explicaria todas as relações entre os três primeiros Evangelhos?

Neste ponto, os estudiosos dos Evangelhos começaram a desenvolver teorias para explicar o problema sinóptico. Os três Evangelhos dão um esboço comum da história de Jesus. Há um notável paralelismo entre eles; os mesmos incidentes sobre Jesus são contados praticamente na mesma linguagem. Deve-se inferir que os três Evangelhos devem ter extraído material de uma fonte (ou fontes) comum. A tarefa apresentada pelo problema sinóptico é descobrir essa fonte. Uma velha solução (que não deve ser descartada, visto que todas as teorias se apoiam nela, de uma forma ou de outra) é a teoria do evangelho oral. Por causa da concordância entre os três Evangelhos, dizem que deve haver uma fonte comum, de tradição oral a respeito de Jesus, entre eles. Todos eles parecem ter sido cortados da mesma peça de tecido.

A tradição oral, incorporando a antiga pregação e o ensino da nova Igreja, estava à disposição de todos os evangelistas. Por outro lado, cada um dos escritores usou a fonte oral à sua própria maneira e segundo seu propósito pessoal; isso explicaria as diferenças. De acordo com esta teoria da origem dos Evangelhos, deve-se estudar Mateus como Mateus, sem se preocupar com os outros Evangelhos. Cada um deles deve ser estudado à sua própria luz. Esta visão parece bem aceitável, mas na verdade a Igreja, em toda a sua história, jamais deixou de harmonizar os Evangelhos e de estudá-los juntos, porque são muito parecidos e também porque eles são diferentes, porque os três sinópticos tratam do mesmo Senhor e todo o seu povo deseja conhecer toda a história. Além disso, os estudantes dos Evangelhos logo descobriram que a visão da tradição oral não poderia explicar os paralelos da linguagem dos sinópticos. A relação de Mateus com Marcos e Lucas (ou qualquer combinação entre os três) é melhor explicada se atribuirmos as similaridades e diferenças ao uso comum de uma (ou mais) fonte escrita. Quando os cristãos judeus começaram a se espalhar a partir de Jerusalém e os cristãos gentios foram aderindo à Igreja mediante o trabalho missionário dos apostolos e começaram a surgir muitas perguntas sobre Jesus, naturalmente haveria uma demanda por um evangelho em forma escrita.

Talvez o próprio Mateus, como aprendemos com Papias, tenha publicado esse primeiro Evangelho ou Logia de Jesus. Os estudiosos então começaram a investigar as possíveis fontes escritas por detrás dos Evangelhos. O padrão de pensamento geralmente se desenvolve como segue: a velha visão de que Mateus era o mais antigo Evangelho e Marcos simplesmente fez um resumo dele é bem improvável, ou o conceito mais recente, do “evangelho aramaico”, pelo qual Mateus foi escrito primeiro em hebraico e depois traduzido para o grego (pelo próprio Mateus ou algum outro autor judeu), depois que Marcos foi escrito. Se Marcos fosse um resumo de Mateus, deveria ser também um resumo de Lucas, visto que os dois estão intimamente ligados. O conceito mais simples e mais natural do problema é a que vê Mateus e Lucas como obras independentes, mas ambos baseados em Marcos, o qual escreveu primeiro (visto que é o mais curto e básico), como uma dentre duas fontes.

Uma vez que Mateus e Lucas contêm material que Marcos não possui, então os dois devem ter usado uma outra fonte para o material comum a ambos. Pelo fato de o material comum a Mateus e Lucas se centralizar em grande parte nos discursos e pregações de Jesus, os estudiosos chamam esta fonte comum de “Q”, a partir do termo alemão “Quellé", que significa fonte. Dessa forma, surgiu a assim chamada hipótese “Dois documentos” ou “Duas fontes”. Os eruditos afirmam que isso explica o fato de que o conteúdo de Marcos está totalmente dentro dos outros dois sinópticos, que ele foi escrito primeiro e os outros são expansões dele. A teoria explica o material comum — Mateus usou praticamente todo o material de Marcos e Lucas usou metade dele; os paralelos linguísticos (dizem que Mateus repete cerca de 50% e Lucas 55% da fraseologia de Marcos) e a ordem comum dos eventos. A segunda fonte, conhecida como “Q”, explica o material que Mateus e Lucas possuem e que não se encontra em Marcos. Mateus e Lucas têm em comum cerca de 200 versículos, muitas vezes quase que na mesma linguagem, que Marcos não possui. Por este material comum ser, na maioria, palavras de Jesus, poderia ter sido (e provavelmente foi) algo como a Logia atribuída a Mateus. Embora a teoria das duas fontes seja aceitável e muitos estudiosos conservadores a tenham adotado, deve-se admitir que se trata de uma teoria e não um fato, desde que nenhum documento intitulado “Q” jamais foi encontrado. Ele tem de ser “construído” a partir do material comum de Mateus e Lucas. Mateus também inseriu algum material não encontrado em nenhuma das fontes mencionadas. O mesmo é verdade em relação a Lucas. Quando os materiais que Mateus e Lucas usam extraídos de Marcos e de “O” são isolados, cada um deles ainda contém muitos assuntos exclusivos. Mateus tem mais de 300 versículos que ninguém mais tem. Além disso, o documento “Q” (se for identificado com a Logia de Mateus) pode significar coisas diferentes. Trata-se de um evangelho hebraico? Um catálogo de testemunhos do AT, ou provas textuais de que Jesus é o Messias? Uma coletânea de “profecias e oráculos”? Discursos de Jesus? As debilidades da teoria dos dois documentos sempre foram não somente o documento “Q”, mas também o fato de que não responde a pergunta que se propõe a responder; pelo contrário, suscita outras.

Por causa dessas dificuldades, os eruditos, principalmente Burnett Streeter, expandiram a teoria da fonte escrita numa hipótese de “quatro documentos”, incluindo a fonte separada “L”, que somente Lucas usou, e uma fonte especial conhecida como “M”, usada por Mateus. Esta teoria expandida também afirma que as quatro fontes vieram de diferentes centros da Igreja Primitiva: Marcos de Roma, “M” de Jerusalém, “L” de Cesareia e “Q” de Antioquia. Fica bem evidente que a teoria de quatro fontes, sendo que três delas jamais foram encontradas, é mais especulativa do que a teoria de duas fontes. Há também a questão se o relacionamento entre os sinópticos é ou não apegas documentário. Também é possível que Mateus não conhecesse Marcos como um documento completo, mas tenha se apoiado na tradição oral da Igreja Primitiva tais como aquelas encontradas na pregação apostólica, como o discurso de Pedro no Dia de Pentecostes (At 2.22-36) e o discurso de Paulo em Antioquia (13.23-41).

A insatisfação com as teorias das fontes, nos anos recentes, levou ao desenvolvimento da critica de forma. Trata-se de uma tentativa de colocar por trás de todas as fontes escritas a pregação oral e o ensino da Igreja, os quais, dizem, se desenvolveu de acordo com certos padrões ou formas, que podem ser determinados, aplicando-se ao texto dos quatro evangelhos certos critérios pré-determinados de crítica literária. Um segundo propósito da abordagem da “forma”ç descobrir o formato do texto na tradição oral, antes de ter se tomado “evangelho”. A partir da tradição oral, foi preciso apenas um curto passo para a crítica da forma chegar a uma análise do contexto cultural ou histórico no qual as formas se desenvolveram. Esta abordagem em geral é chamada de Sitz im Leben (“situação na vida”) e a partir dela pode-se entender a mentalidade da comunidade que produziu a forma. A partir desse processo complexo e bem subjetivo, chegou-se à conclusão de que os Evangelhos, e as fontes escritas usadas neles, na verdade eram uma coleção de peças isoladas (parábolas, milagres, discursos, etc.), que circulavam nas primeiras comunidades cristãs, antes de serem compiladas. Uma característica especial da crítica da forma é a crença de que essas peças, ou formas literárias, foram criadas para a adoração e ensino na Igreja e foram “reunidas” por editores ou redatores, e não pelos autores que escreveram sob a influência do Espírito Santo. Outros eruditos, como Kilpatrick e Stendahl, chegaram à conclusão de que os responsáveis pela criação e pelo formato das obras não foram as comunidades cristãs, mas sim, certos grupos de mestres e eruditos.

O método também suscitou profundas dúvidas quanto à historicidade de algumas das formas e histórias que formam os Evangelhos. Os redatores estavam mais interessados em certos aspectos teológicos do que no contexto histórico da forma. Nas mãos de eruditos radicais, o método da crítica da forma muitas vezes assumiu elementos tão negativos e destrutivos, que caiu em desuso em alguns grupos nos últimos anos, afetando mais seus amigos do que seus inimigos. Trata-se de um terreno escorregadio, como método aceitável de explicar a origem de Mateus e dos outros Evangelhos. Deixa para trás certas respostas para a conhecida questão do problema sinóptico (as similaridades e diferenças entre os Evangelhos se devem ao uso das formas, de acordo com o interesse teológico), mas suscita outros problemas de igual significado, ex., que papel as testemunhas oculares apostólicas, como Mateus, ou o próprio Jesus, desempenharam na criação das formas? Se a resposta for “nenhum”, ou “muito pouco”, então a questão inevitável é: “Por que o material dos Evangelhos foi criado em primeiro lugar?” e voltamos ao ponto de partida. Alguns estudiosos acreditam que a questão da relação de Mateus com Marcos e Lucas é um problema de autoria e não de documentos. Se pudéssemos descobrir, de alguma forma, o contato e interação entre os escritores dos três primeiros Evangelhos, talvez a resposta correta pudesse ser encontrada. Que alterações eles fizeram nas fontes escritas, reescrevendo e reorganizando? E possível, de qualquer modo, que os três autores tenham tido contato entre si e organizaram suas anotações para incluir o novo material que ouviram uns dos outros? Temos de admitir que nenhuma das teorias realmente explica todo o problema sinóptico. No entanto, o propósito teológico dos dois Evangelistas é útil para explicar o relacionamento entre Mateus e Marcos. Embora tenham usado o mesmo material, empregaram-no de formas diferentes, organizando-o de modo diferente e, sob a direção do Espírito Santo, escreveram um Evangelho para um propósito teológico e histórico específico. O Evangelho de Marcos, de ação e movimento, certamente tinha um objetivo diferente do Evangelho didático, de cumprimento, de Mateus. Os leitores, ou a audiência de cada Evangelho, também determinaram a natureza deles. Por isso quatro versões de um Evangelho são um presente de Deus para um povo diversificado hoje, como na antiguidade. Cada Evangelho deve ser aceito como é e estudado como a Palavra de Deus à sua própria maneira, relevante “agora” como era “então”.


§8. Época e Lugar onde foi Escrito

A data da composição do Evangelho de Mateus é desconhecida, e os eruditos determinaram uma época entre 50 e 115 d.C. Alguns estudiosos acreditam que qualquer data antes de 70 d.C. é inaceitável, porque a afirmação, na parábola da festa de casamento (22.7), sobre um rei irado destruindo uma cidade, refere-se à queda de Jerusalém: “O rei ficou irado e, enviando as suas tropas, exterminou aqueles assassinos e lhes incendiou a cidade”. Tal conclusão parece taxativa demais, para uma evidência tão frágil quanto uma afirmação incidental numa parábola. Visto que o Evangelho de maneira nenhuma indica a queda de Jerusalém, e o fato de que sua destruição é predita em Mateus 24, uma data anterior a 70 d.C. é mais provável. Devemos acreditar que a profecia em Mateus 24.1-28 é história escrita de antemão para selecionar uma data posterior.

Por outro lado, Feine acredita que o oposto é verdade: qualquer data antes de 70 d.C. é excluída por causa da dependência de Mateus em relação a Marcos, o qual, segundo ele, foi escrito depois do que geralmente se supõe; se Mateus usou e reeditou Marcos na elaboração do seu Evangelho, isso colocaria a data bem depois de 70 d.C. Além disso, Mateus, revela em sua reedição de Marcos, que a situação eclesiástica estava mais plenamente desenvolvida quando ele escreveu (cp. Mt 18.1520; 28.19s.) tomando uma data entre 80 e 100 d.C. muito mais provável. Estudiosos modernos acrescentam, a esta linha de evidências, a crença de que Mateus escreveu para cristãos que falavam grego fora da Palestina (embora a maioria dos leitores fosse de origem judaica) e isso também favorece uma data posterior. Eles também acreditam que o Judaísmo explícito no primeiro Evangelho é característico do período posterior à destruição do Templo. Alguns eruditos estabeleceram data próxima a 115 d.C., período em que se acredita que Inácio de Antioquia cita o Evangelho, ou pelo menos demonstra familiaridade com as tradições de Mateus. No entanto, tais argumentos favorecem uma data pelo menos anterior a 96 d.C., visto que aparentemente Clemente de Roma conhecia o primeiro Evangelho. O emprego desse Evangelho por Clemente e Inácio não significa que ele tenha sido escrito naquela época; Mateus poderia ter escrito muito antes de eles o terem citado muito tempo depois.

Uma data mais confiável da composição do Evangelho de Mateus, deveria ser procurada em conexão com o local da redação. Não é provável que tenha sido escrito antes da primeira dispersão dos cristãos de Jerusalém (At 8.4), pois então a Igreja de Jerusalém não teria necessidade de um evangelho escrito. Os apóstolos estavam presentes para responder qualquer pergunta e para compartilhar os ensinamentos do Senhor com autoridade. Se o testemunho de Irineu, que coloca a redação de Mateus na época de Nero, enquanto Paulo e Pedro estavam em Roma, tiver qualquer validade, é possível que Mateus possa ter elaborado um evangelho originalmente para convertidos não palestinos, que não tinham acesso aos apóstolos e cujo conhecimento dependia das palavras e obras de Jesus registradas num documento escrito. Embora o testemunho de Papias possa ser questionado, visto que não há evidência de um original aramaico, ainda é possível que tais peças do evangelho sobrevivessem e que o escritor tenha feito uma tradução ou escrito uma edição grega para as igrejas gentias. Qualquer original hebraico teria desaparecido muito cedo e o evangelho grego teria se tomado o evangelho tradicional do povo.

Eruditos esclarecidos acreditam que o local de composição de Mateus deve ser encontrado em alguma área do Oriente Próximo, onde Judaísmo e o cristianismo inicial coexistiam e estavam em íntimo contato, possivelmente nos estágios iniciais de união. Eles acreditam que a área que melhor preenche os requisitos é o território norte da Palestina, entre os judeus da Diáspora e os convertidos gentios das primeiras igrejas missionárias. Visto que Antioquia da Síria era um centro do antigo cristianismo judaico-gentio, esta área é a escolha lógica para o local de redação do primeiro Evangelho. Inácio estava em Antioquia e seus escritos revelam que era afeiçoado ao Evangelho. Em Antioquia, judeus e gentios falariam grego e entenderiam o AT. Eles usavam a versão LXX do AT e Mateus cita o AT grandemente por meio da LXX.

O antigo conceito tradicional de época e local de redação, é que Mateus foi o primeiro evangelista a escrever um Evangelho e que escreveu na Palestina, possivelmente em Jerusalém, pouco depois dos eventos de 27.8 e 28.15, por volta de 60 d.C. Atualmente parece mais plausível estabelecer a data na mesma época, mas num local diferente. Antioquia da Síria, onde a Igreja judaica-gentia floresceu por volta de 60 d.C., não somente responde à preocupação concernente á profecia da destruição de Jerusalém, como também leva em consideração o particularismo judaico e o universalismo gentio do primeiro Evangelho. Temos de lembrar que o Evangelho de Mateus foi escrito em grego, para judeus de fala grega, por um judeu de fala grega, mas também tem um forte apelo para os cristãos gentios, assim como o Evangelho de Lucas. Portanto, o Evangelho de Mateus deve ter sido escrito para um grupo misto de cristãos fora da Palestina. A Igreja à qual foi dirigido é descrita por Lucas em Atos 11.19-26. Embora falte uma evidência absoluta, Antioquia da Síria, por volta de 60 d.C., são local e data plausíveis e prováveis.


§9. Leitores e Destinatários

É quase certo que Mateus escreveu para cristãos judeus, a fim de estabelecê-los na fé em Jesus de Nazaré, como o Cristo prometido no AT. Onde esses cristãos viviam? As citações do primeiro Evangelho, em escritos patrísticos, indicam que sem dúvida ele era o favorito na Igreja judaica síria. Se Mateus foi escrito em Antioquia, como muitos acreditam, confirmaria este testemunho. Seria um erro, porém, pensar que este segundo propósito excluía os gentios. Sem dúvida Mateus tinha em mente judeus convertidos, mas gentios convertidos e não convertidos seriam igualmente beneficiados e fortalecidos na fé. Nomes e conceitos judaicos não são explicados em Mateus, visto que seriam facilmente compreendidos. Por um lado, isso reflete a incredulidade de Israel na época de Jesus, e por outro lado, enfatiza os gentios sobrepondo-se aos judeus, porque estes tinham rejeitado o Messias.

Os judeus nacionais precisavam de arrependimento e do testemunho do Messias, mas a posição de Mateus não é de um nacionalismo estreito. Jesus, o Messias, é Salvador dos judeus, mas é também Salvador de todo o mundo. Para ilustrar que seu Evangelho de forma algum é particularista, Mateus encerra sua mensagem com a ordem de que os apóstolos deviam fazer discípulos de todas as nações (28.19). O evangelho não é anti-semita e nem antigentio. No passado, homens dos dois grupos creram.

O conteúdo de Mateus indica que, embora sua mensagem seja dirigida a judeus de fala grega, que tinham se convertido ao cristianismo, também tinha uma mensagem para os gentios. Embora a missão do Messias enfatizasse a primazia do povo judeu (“Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” [15.24]; “de preferência, procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel” [10.6]) e indicasse o sabor do judaico do Evangelho, é claro que o Reino também é destinado aos gentios, porque algumas parábolas condenavam os fariseus e abriam a porta para os gentios pobres e oprimidos. Tudo isso indica a situação histórica, do primeiro Evangelho, como a época de transição e amalgamação dos elementos judaicos e gentios na Igreja Primitiva. Talvez se possa dizer que a Igreja judaico-cristã estava sendo absorvida pela Igreja gentia. O principal tema de Mateus, “Jesus é o Messias”, é seguido de perto por uma segunda ênfase, “o Reino Messiânico para o mundo”.

O Evangelho de Mateus é admiravelmente adequado para uma igreja que ainda era hebraica, mas que ao mesmo tempo se alinhava cada vez mais com o mundo gentio. Mateus exala uma atmosfera de messianismo, mas mesmo assim tem uma mensagem para o mundo todo. A aliança é cumprida em Abraão e sua descendência, mas nele todas as famílias da Terra serão abençoadas (Gn 12.3). De acordo com esta linha, os primeiros leitores de Mateus eram um amálgama da Igreja judaico-gentia do norte da Palestina, Antioquia da Síria e circunvizinhanças. Embora seja possível que muitos leitores fossem de origem judaica, familiarizados com o AT e com a ênfase judaica, os gentios também receberiam bem tal Evangelho, porque também aceitavam o AT. Pode-se imaginar que, entre judeus e gentios, a vívida proclamação do Evangelho não iria muito longe sem algum tipo de prova escrita de que Jesus era o Messias, prova extraída das Escrituras do AT. Se Jesus era o Messias, seria predito no Antigo Testamento. A pregação cederia lugar à prova do Evangelho escrito (At 9.22).

O conceito de que os leitores de Mateus viviam na Palestina e que ele escreveu de Jerusalém, baseava-se na premissa de que ele escrevera em hebraico; atualmente, porém, os estudiosos estão certos de que ele escreveu em grego e que seus leitores não estavam limitados à Palestina. Levando-se tudo em conta, Antioquia da Síria é o local mais plausível de redação (veja acima) e a audiência a igreja síria, composta de judeus e gentios. Não era uma doutrina básica, de Jesus e dos apóstolos, que todos os homens são salvos pela graça? Que Deus não faz acepção de pessoas? Por esta razão, os leitores de Mateus eram a Igreja descrita em Atos: “Os que foram dispersos, por causa da tribulação que sobreveio a Estêvão, se espalharam até à Fenícia, Chipre e Antioquia, não anunciando a ninguém a palavra) somente aos judeus. Alguns deles, porém, que eram de Chipre e de Cirene, e que foram até Antioquia, falavam também aos gregos, anunciando-lhes o evangelho do Senhor Jesus. A mão do Senhor estava com eles, e muitos, crendo, se converteram ao Senhor” (At 11.19-21). A Igreja Primitiva judaico-gentia é claramente definida também pelo apóstolo Paulo. Sua declaração aos Gálatas indica que o Reino chama todos os homens e que é uma continuação e culminação do Reino de Deus no AT (todos os cristãos são descendentes de Abraão): “todos quantos fostes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes. Dessarte não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. E, se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão, e herdeiros segundo a promessa” (G1 3.27-29; cp. Ef 2.11-22).


§10. O Texto de Mateus

Mateus escreveu em grego Koiné ou comum, que era falado no mundo Mediterrâneo durante o l séc. Este grego ático koiné não era literário, mas uma linguagem falada pelas pessoas comuns. O Evangelho de Mateus deve ter sido facilmente compreendido pelos primeiros cristãos, muitos dos quais eram pessoas comuns. O evangelista transformou o koiné num veículo literário, quando decidiram colocar o Evangelho oral em forma escrita. O estilo de Mateus é bem elegante, claro e fluído. Seu grego não é nem o koiné pobre e nem o grego altamente polido. Se ele usou Marcos, parece que com freqüência melhorou o estilo e a linguagem. A linguagem de Mateus não tem traços distintivos. É mais plana do que a linguagem de Marcos, mas menos variada do que o estilo de Lucas. Por “texto” nos referimos aos antigos manuscritos escritos em grego, os quais são cópias do autógrafo original do Evangelho. Não se sabe da existência de nem um único autógrafo (texto escrito originalmente pelo autor) de qualquer um dos Evangelhos, somente cópias de cópias. Desde que já foram encontrados milhares de manuscritos gregos do NT, com datas a partir do 3e séc., além de lecionários, citações dos Pais da Igreja e muitas traduções ou versões diferentes — o texto do NT pode ser estabelecido de forma confiável. Existem, é claro, muitas traduções variantes (diferenças nas traduções, de vários tipos de versões ou famílias de manuscritos), surgidas através dos séculos na cópia dos textos, mas o Evangelho de Mateus foi pouco afetado. Quase sem exceção, seu texto exato pode ser determinado sem grandes dificuldades. Seu texto está em excelentes condições. Embora possa haver diferenças na tradução de certas passagens (simplesmente porque as traduções foram feitas a partir de manuscritos diferentes, mais antigos ou mais novos), as versões mais recentes são uniformes e representam com bastante exatidão o texto original. Isso se deve aos resultados fundamentalmente aceitáveis da moderna crítica textual (julgamento ou avaliação das melhores traduções).  Descobertas surpreendentes de textos gregos ainda mais antigos (mais próximo do original), durante os últimos cem anos, ajudaram a estabelecer o texto dos Evangelhos.

Nem mesmo as variações do texto de Mateus são extensas, como uma olhada no bem conhecido Texto Nestle-Aland do NT grego (onde todas as diferenças de tradução nos manuscritos são relacionadas no rodapé de cada página) revela. As versões modernas utilizam os mais antigos manuscritos e as traduções mais corretas, sendo que suas traduções são consideradas mais exatas do que as traduções mais antigas, desde que o texto seja traduzido sem preconceitos.

Um exemplo disso é o final da Oração do Pai Nosso (Mt 6.13); os textos gregos mais antigos terminam com o pedido “livra-nos do mal”; a ARA, porém, acrescenta as palavras da conhecida doxologia: “Pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém!”. A razão para isso é que a ARA foi traduzida de cópias gregas mais recentes dos originais, conhecidas como koiné (comum) ou Texto Bizantino, procedentes do 4“ séc. O texto koiné é conhecido como um texto combinado, quer dizer, ele acrescenta as variantes em vez de escolher uma delas, de modo que nada se perde do texto sagrado. Críticos textuais acreditam que a doxologia da Oração do Pai Nosso foi acrescentada por causa das considerações litúrgicas de 1 Crônicas 29.11-13. Esta é outra indicação de que o primeiro Evangelho era usado nos cultos da Igreja Primitiva.

Outro exemplo é a tradução de Mateus 5.44: “Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem...” (ARC). Os melhores textos antigos dizem: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem...”, omitindo a frase “bendizei os que vos maldizem...” (adicionada a partir de Lc 6.28) e “fazei bem aos que vos odeiam” (de Lc 6.27). Pode-se ver facilmente, a partir de tal comparação, que, embora todas as palavras da ARC, em Mateus 5.44, sejam Escritura, nem todas foram escritas por Mateus. Há muitos exemplos de tais combinações nos Evangelhos, resultado das tentativas de harmonizá-los em passagens paralelas, deixando-as mais uniformes (mesmo nas palavras exatas). Tal preocupação é fonte de muitas variantes inofensivas nos textos. A descoberta de um antigo manuscrito, tal como o Códice Vaticanus (B), Códice Sinaíticus (Aleph) e Códico Bezae (D) e Papiro 46 (Beatty Papyri), tem trazido luz sobre tais combinações. O texto é tão bem atestado pelos manuscritos antigos que estão por trás das variantes, que nenhum ensino fundamental da fé e da moral cristã depende de textos controvertidos. Embora a Igreja possa debater questões na teologia bíblica, é raro que alguém possa afirmar que a tradução de um texto obscurece a questão.

Todo estudante interessado do NT achará muito estimulante e compensador fazer um estudo da história do texto e dos métodos de crítica textual, principalmente para descobrir as razões das variações (não erros). É evidente que algumas variações são resultado de se copiar ou repetir de memória, e do acréscimo de frases de outros Evangelhos, de mudanças deliberadas para clarificar o texto para os leitores, de mudanças intencionais para satisfazer interesses doutrinários e, como já mencionamos acima, harmonizar os Evangelhos. Além dos exemplos citados, variações importantes no texto de Mateus são 1.16, que trata do nascimento virginal de Jesus (que sem dúvida foi causado por interesses doutrinários); 5.32 e 19.9, que tratam do ensino do Senhor sobre divórcio; 5.22, onde a

frase “sem causa” é omitida nos textos mais antigos; e vários outros textos que tratam de assuntos menos disputados. O assunto fascinante do estudo textual resolveu essas e muitas outras variações no NT, para a satisfação dos cristãos interessados. O resultado dos estudos textuais tem levantado mais evidências de que a ‘"palavra do Senhor permanece para sempre” (IPe 1.25).

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