A Literatura Não-Canônica

LIVROS APÓCRIFOS, NÃO-CANÔNICO, JUDAÍSMO, ESTUDO BIBLICOS, TEOLOGICOS
Já se mencionou o fato de que durante o período interbíblico surgiram, principalmente na Palestina, mas também na Dispersão, uma literatura judaica bem extensa que é significativa não apenas para o judaísmo, porém muito mais para o cristianismo. Por um lado, esses escritos oferecem uma interessante visão da história dos judeus e da religião do judaísmo formada nas escolas rabínicas, e por outro lado lança luz sobre as origens da fé cristã. E difícil dizer o quanto esses livros se difundiram, mas aparentemente havia uma quantidade considerável deles em circulação.

O nome dado a esses livros na literatura rabínica é hisonim que significa “externo” ou “fora” e quer dizer que esses livros não pertenciam ao Cânon das Escrituras reconhecidas. Um indício de sua identidade é fornecido no tratado de Tosefta, Yadaim ii, 13, que diz: “Os livros [sic] de Ben Sira e todos os livros que foram escritos desde então não mancham as mãos”, isto é, não são canônicos. A literatura aqui referida é presumivelmente aquela de todo o grupo ao qual o próprio Ben Sira pertencia, ou seja, a literatura apócrifa e cognata (inclusive muitos escritos do tipo apocalíptico). No tratado de Mishnah, Sinédrio x, 1, é registrado pelo influente Rabino Akiba (cerca de 132 d.C.) que entre aqueles que não tinham “parte no mundo por vir” está “aquele que lê os livros excluídos”. A primeira vista, isso pode ter passado a significar que a leitura de todos os livros nào-canônicos era proibida, mas na realidade a referência é presumivelmente à reátação pública deles tanto na liturgia dos cultos como na disciplina do estudo.

Baseado em quais fundamentos essa literatura era considerada não-canônica? W. D. Davies sugeriu quatro critérios para determinar a aceitação ou a rejeição de qualquer livro:

1. A visão de que as profecias cessaram em Israel após Daniel no período persa e que, portanto, todos os livros escritos após esse tempo não devem ser considerados.

2. A congruência do conteúdo de qualquer livro com a Torah (cf. discussões sobre canonicidade de Ezequiel).

3. Uma certa auto-consistência entre os livros referidos.

4. O caráter hebraico original de qualquer livro.

Esses fatores explicam a inclusão de Daniel no Cânon e a exclusão de livros tais como o Eclesiástico (ou Ben Sira), Judite, Salmos de Salomão e I e II Macabeus. Eles explicam também a exclusão dos escritos apocalípticos judaicos que durante algum tempo desfrutavam de uma medida de popularidade entre os judeus da Palestina. Mas provavelmente há razões adicionais por que os escritos apocalípticos, em particular, não fossem aceitos no Cânon das Escrituras. Uma razão era a antipatia dos rabinos que relembravam o papel desempenhado por tais livros em inflamar as chamas da revolta que levaram à queda de Jerusalém em 70 d.C. Essa catástrofe e a subsequente reorganização do Judaísmo, conduziria a uma concentração na Torah e em sua correspondente tradição oral. Juntamente com isso, havia o uso que os cristãos estavam começando a fazer desse tipo de literatura. Eles achavam o ensino desses livros, particularmente com respeito ao Messias, mais condizente com seus próprios interesses; os cristãos começaram a fazer interpolações cristãs em obras apocalípticas judaicas, e então começaram a surgir escritos apocalípticos cristãos independentes. Todos esses fatores reunidos militaram contra o estudo e a publicação contínua de tais livros por parte dos judeus. Entre os últimos dos “livros excluídos” de caráter apocalíptico a serem escritos, estava II Esdras (i.e. 4 Esdras) 3-14 e o Apocalipse de Baruque em 90 d.C.

A maioria desses livros foi escrita ou em hebraico (a língua dos instruídos daqueles dias) ou em aramaico (o vernáculo e a língua da literatura judaica em geral), mas, com exceção de Eclesiástico (ou Ben Sira), eles somente sobreviveram em traduções, primeiro em grego e posteriormente em outras línguas. Alguns estudiosos, como C. C. Torrey, têm argumentado que depois de 70 d.C, tomou-se a decisão de “destruir, sistemática e completamente, os originais semíticos de toda literatura extra-canônica... A literatura popular, que tinha tido uma existência tão próspera, era agora interrompida, pelo menos no que diz respeito aos judeus da Palestina”. E muito duvidoso, entretanto, se a evidência pode prestar-se a tal declaração absoluta, porque o divórcio entre o farisaísmo e as idéias veneradas nos apocalípticos não era assim tão completo como tal afirmação poderia nos fazer crer. Mas a antipatia em relação aos apocalípticos que, pelo menos muitos dos rabinos não podiam negar e, sob a influência deles, esses “livros excluídos” caíram em descrédito na Palestina.

Antes disso, contudo, eles haviam sido traduzidos para o grego pelos judeus da Dispersão e haviam-se tornado bem populares entre as pessoas dessas regiões. De fato, quando esses livros chegaram em Alexandria, eles realmente conquistaram popularidade e passaram a ter circulação muito mais ampla do que tinham na Palestina. Quando, decorrido algum tempo, os judeus da Dispersão começaram a renunciar a seu controle sobre esses escritos, eles já tinham-se tornado possessão da Igreja Cristã através de sua adoção da Septuaginta, na qual certos “livros excluídos” haviam sido incorporados. E, embora em primeira instância eles fossem preservados pelos judeus de fala grega no Egito, a Igreja Cristã, finalmente, foi a responsável pela sobrevivência deles.

Não é surpreendente que os “livros excluídos”, e em particular os escritos apocalípticos, fossem, desde o princípio, populares entre os cristãos primitivos que haviam, por sua vez, sido instruídos na fé judaica; a relevância que esses livros davam ao ensino concernente à iminente volta de Cristo era óbvia. Como cada vez mais os gentios juntavam-se à Igreja, e como o aramaico dava lugar ao grego como língua da comunidade cristã, seu uso se tornaria ainda mais difundido. Com exceção do livro canônico de Daniel, a tradição do apocalíptico é cristã e não judaica. As numerosas versões de II (4) Esdras indicam que esse conjunto de ensino continuou a ter influência profunda e ampla sobre o pensamento do povo cristão. Dentro do judaísmo a tradição apocalíptica, que havia influenciado profundamente pelo menos uma parte do povo, desde o tempo de Antíoco IV, em cada período de crise que ocorria, no devido tempo deixou de existir.

Fonte: Between the Testaments: From Malachi to Matthew, de Richard Neitzel Holzapfel.

Veja outros estudos bíblicos relacionados:

Cf. As Escrituras na Dispersão
Cf. O Cânon do Velho Testamento
Cf. Estudo Bíblico: Saduceus