Estudo sobre Mateus 10

Mateus 10

Mateus desenvolve sua história de Jesus com certo método, que não exclui o dramático. Na história do batismo vemos como Jesus aceita sua tarefa. Na história das tentações Mateus mostra a Jesus decidindo qual será o método que utilizará para cumprir sua tarefa. No Sermão da Montanha ouvimos as sábias palavras de Jesus. Em Mateus 8 somos espectadores dos fatos poderosos de Jesus. Em Mateus 9 vemos como se arma ao seu redor a ameaça de uma crescente oposição. E agora vemos Jesus escolhendo a seus seguidores. Se um líder estiver a ponto de embarcar numa empresa de grandes dimensões, a primeira coisa que deve fazer é escolher seus colaboradores. Deles depende o efeito presente e o êxito futuro da obra que se propôs realizar. Aqui temos a Jesus escolhendo seus colaboradores, os homens que serão sua mão direita, os que O ajudarão enquanto estiver na Terra e continuarão sua obra depois que Ele houver retornado a sua glória.

Há duas circunstâncias, com relação a estes homens, que nos surpreenderão imediatamente:

(1) Eram homens comuns. Não possuíam riquezas, nem formação acadêmica, nem posição social. Escolheu-os dentre o povo comum. Eram homens cujas atividades se desenvolviam no mundo cotidiano, homens sem uma educação especial, homens sem vantagem social alguma. Tem-se dito que Jesus não procura tanto homens extraordinários que sejam capazes de fazer coisas extraordinárias, como homens comuns que possam fazer as coisas comuns extraordinariamente bem. Jesus vê em cada homem não somente o que esse homem é, mas também o que Ele pode fazer dele. Jesus escolheu a estes homens não a partir do que eram mas sim pelo que chegariam a ser ao colocar-se debaixo de sua influência e seu poder. Ninguém deve pensar jamais que não tem nada a oferecer a Jesus Cristo. Jesus pode tomar em suas mãos até o que o mais comum dos homens pode lhe oferecer e usá-lo com grandeza.

(2) Constituíam a mais extraordinária mixórdia. Havia, por exemplo, Mateus, o coletor de impostos. Todos veriam em Mateus o traidor, que se tinha vendido aos senhores de sua pátria, justamente o contrário do que faria um bom patriota que amasse a sua terra natal. E junto com Mateus estava Simão, a quem se designa como o cananita (AV; NKJV; Reina-Valera; na RA está Simão Zelote). Em Lucas 6:15 está “Simão, chamado Zelote”.

O historiador Josefo fala destes zelotes (Antiguidades, 8.1.6.), denominando-os “o quarto partido político entre os judeus palestinenses”. Os outros três partidos eram os fariseus, os saduceus e os essênios. Diz que “experimentavam uma paixão inviolável pela liberdade” e que para eles “Deus era seu único soberano e rei”. Estavam preparados para confrontar qualquer classe de sofrimento na luta pela liberação de sua pátria, e não vacilavam ante a morte até de seus seres mais queridos se se tratava de uma morte necessária pela liberdade de sua nação. Recusavam-se a conceder o título de rei a nenhum homem sobre a Terra. Sua decisão era tão firme que nenhuma dor podia fazê-los apartar-se de seus objetivos. Estavam dispostos ao assassinato e a guerra de guerrilhas para liberar Israel do domínio estrangeiro. Eram os patriotas por excelência entre os judeus, os mais radicais de todos os nacionalistas.

A realidade terminante é que se Simão o Zelote se encontrasse com Mateus em qualquer outro lugar que não fosse o grupo dos que seguiam a Jesus, provavelmente lhe teria cravado uma adaga. Aqui temos a tremenda verdade de que até homens que se odeiam podem aprender a amar-se, quando ambos amam a Jesus Cristo. Com muita frequência a religião tem sido um elemento de divisão entre os homens. Mas seu propósito é – e o era na presença de Jesus – um meio de reunir entre si a quem sem Ele teriam permanecido separados.

Podemos nos perguntar por que Jesus escolheu doze “apóstolos” especiais. É bem possível que tenha sido porque em Israel havia doze tribos; da mesma maneira que na antiga dispensação as tribos de Israel eram doze, na nova dispensação são doze os apóstolos do Novo Israel. A informação que o Novo Testamento nos oferece sobre estes homens é muito escassa. Tal como Plummer sugere: “No Novo Testamento não são os obreiros, e sim a obra o que se exalta.”

Mas mesmo que o Novo Testamento não nos diga muito sobre estes homens, é evidente que os concebe como figuras principais da igreja. No Apocalipse lemos que nas doze pedras fundamentais da Santa Cidade estavam inscritos os nomes de cada um dos doze apóstolos Apocalipse 21:14). Estes homens, simples, sem um pano de fundo ou origem social destacada, provenientes de distintas esferas da fé, eram as pedras fundamentais sobre as quais se construiria a Igreja. Homens e mulheres comuns constituem o material sobre o qual está fundada a Igreja de Cristo.

Estudo sobre Mateus 10:1-4

Quando colocamos lado a lado os três relatos da chamada dos doze (Mateus 10:1-4; Marcos 3:13-19; Lucas 6:13-16) surgem certos fatos ilustrativos.

(1) Jesus os escolheu. Lucas 6:13 diz que Jesus mandou chamar a seus discípulos, e que dentre eles escolheu a doze. É como se o olhar de Jesus tivesse estado percorrendo as multidões que o seguiam, e no pequeno grupo que sempre ficava com Ele depois que a multidão se dispersava, procurasse todo o tempo aqueles a quem pudesse confiar sua tarefa. Como se tem dito: “Deus sempre está procurando mãos para utilizar.” Deus sempre se pergunta: “A quem enviarei, e quem há de ir por nós?” (Isaías 6:8).

No Reino há muitas tarefas. Há a do que deve abandonar sua pátria e lar e a do que deve ficar onde está; a tarefa que requer o uso das mãos e a que requer o uso da mente; a tarefa que concentrará os olhares dos homens sobre o obreiro, e a tarefa que passará totalmente inadvertida. Mas Jesus está procurando todo o tempo, entre os homens, aqueles que devem realizar sua missão.

(2) Jesus os chamou. Jesus não obriga a ninguém a cumprir uma responsabilidade no Reino, limita-se a oferecer as responsabilidades, para que quem esteja dispostos a aceitá-las as tornem suas. Jesus não obriga, convida. Não quer “recrutas”, mas voluntários. Tem-se dito que todo ser humano é livre para crer ou não crer. Mas todo ser humano recebe o chamado, que pode aceitar ou rechaçar.

(3) Jesus lhes atribuiu uma tarefa. Em Marcos 3:14 diz que Jesus estabeleceu os doze. No original grego a palavra é poiáin, que significa literalmente fazer ou fabricar. Freqüentemente era usada com o significado de atribuir uma tarefa ou designar para uma função pública. Jesus age aqui como um rei que designa a seus ministros; ou como um general que atribui as ordens a cada um de seus comandantes de tropa. Não se tratava de entrar ao serviço de Jesus por uma derivação inconsciente; tratava-se de uma designação definida para Ele. Qualquer um se orgulharia de ser nomeado por um rei para desempenhar algum cargo público, quanto mais deverá orgulhar-se se quem o designa é o Rei de reis?

(4) Estes homens foram designados dentre os discípulos. Um discípulo é alguém que aprende. Os homens que Jesus deseja e precisa devem estar dispostos a aprender. A mente fechada não pode servir a Jesus Cristo. O servo de Cristo deve estar disposto a aprender algo novo cada dia de sua vida. Cada dia deve estar um passo mais perto de seu Mestre e mais perto de Deus.

(5) Igualmente significativas foram as razões pelas quais Jesus escolheu estes homens. Escolheu-os para que estivessem com Ele (Marcos 3:14). Se tiverem que ser os encarregados de seu trabalho no mundo, devem viver em sua presença antes de sair ao mundo; devem passar da presença de Jesus Cristo à presença dos homens.

Alexander Whyte pregou, em certa oportunidade, um sermão notavelmente poderoso e comovedor. Depois do culto um amigo seu lhe disse: “Hoje pregou como se viesse diretamente da presença de Jesus Cristo.” Whyte lhe respondeu: “Possivelmente tenha sido assim.”

Nenhuma obra no nome de Cristo pode ser efetuada por quem não provenha diretamente da presença de Cristo. Hoje, na complexidade da vida e organização da Igreja contemporânea, muitas vezes, em tantas comissões e comitês, juntas e grupos de trabalho, estamos tão ocupados em fazer funcionar a maquinaria eclesiástica, que corremos o perigo de esquecer que nada de tudo isto tem importância alguma se os atores Mateus forem homens que não estiveram com Cristo antes de estar com os homens.

(6) São chamados para ser apóstolos (Marcos 3:14; Lucas 6:13). A palavra “apóstolo” significa literalmente o que é enviado; é a palavra que se utilizaria para designar um enviado especial ou um embaixador. O cristão é um embaixador de Jesus Cristo diante dos homens. Chega perante a presença de Cristo para poder ir, desde essa presença, a representar a Cristo entre os homens, levando consigo a palavra e a beleza de Jesus Cristo.

(7) Foram chamados para ser arautos de Cristo. No Mateus 10:7 lhes encarrega de pregar. A palavra é kerússain, que provém de kérux, cujo significado em português é arauto.

O cristão é um arauto de Jesus Cristo. Traz para os homens o anúncio de Jesus Cristo. É por isso que deve começar estando na presença de Jesus Cristo. O cristão não foi chamado para levar aos homens seus próprios pontos de vista ou opiniões. Traz de parte de Jesus Cristo uma mensagem de certezas divinas e não pode levar essa mensagem a menos que primeiro a tenha recebido na presença divina.

Estudo sobre Mateus 10:5-8a

Encontramos aqui o começo da comissão que recebem os mensageiros do Rei. A palavra que o texto original usa para descrever a ação de Jesus ao ordenar a seus apóstolos o que devem fazer é extremamente interessante e ilustrativa. Trata-se de parangélain, vocábulo que em grego possui pelo menos quatro usos diferentes.

(1) É o termo que designa uma ordem militar: Jesus age como o general de um exército quando reparte as ordens a seus oficiais ao começar uma campanha.

(2) É a palavra que se usa quando se chama a seus amigos para que o ajudem. Jesus age como alguém animado por um grande ideal que chama a seus amigos para que o ajudem a fazer com que esse ideal se converta em realidade.

(3) É a palavra que se usa quando um filósofo ou mestre dá normas e preceitos a seus discípulos. Jesus age como o Mestre que envia os Seus discípulos ao mundo, equipados com Seu ensino e mensagem.

(4) É a palavra empregada normalmente para uma ordem imperial. Jesus age como um rei que envia seus embaixadores ao mundo inteiro, para executar suas ordens e falar em seu nome.

Esta passagem começa com uma recomendação que para todos deve parecer muito difícil. Começa proibindo os doze de ir aos gentios ou aos samaritanos. Muitos duvidam de que Jesus tenha dito isto; este aparente exclusivismo está totalmente em desacordo com seu caráter, e se sugeriu, que este dito deve atribuir-se à intromissão de quem posteriormente quis limitar o evangelho aos judeus, os mesmos que foram os acérrimos adversários de Paulo quando este quis levar a mensagem aos gentios. Mas é preciso lembrar certas coisas. Em primeiro lugar, era tão pouco provável que Jesus tivesse dito estas palavras que ninguém as teria inventado; Ele deve tê-las dito, e deve haver alguma explicação de seu significado. Podemos estar seguros de que não se tratava de uma ordem permanente. No mesmo evangelho vemos Jesus conversando íntima e meigamente com a mulher samaritana, a quem revela sua autêntica natureza (João 4:4-42); uma de suas imortais parábolas tem como protagonista precisamente a um samaritano (Lucas 10:30); cura a filha de uma mulher cananéia (Mateus 15:28); e o mesmo Mateus nos fala da ordem final do Mestre, quando manda os seus discípulos irem a todas as nações e trazê-las para o evangelho (Mat. 28:19, 20). Qual será, então, a explicação destas palavras?

Proíbe-se aos doze de irem para os gentios. Isto significa concretamente que não podiam ir para Síria, ao norte, nem para Decápolis, que ficava ao leste, nem para Samaria, ao sul. A consequência prática concreta desta ordem é limitar as primeiras viagens dos doze à região da Galiléia.

Há três boas razões para esta limitação inicial.

(1) Os judeus ocupavam um lugar muito especial nos planos de Deus. Com toda justiça, mereciam ser os primeiros em receber o oferecimento do Evangelho. É certo que o rechaçaram, mas toda a história obrigava a dar-lhes a primeira oportunidade.

(2) Os doze não estavam capacitados a pregar aos gentios. Não possuíam nem o pano de fundo, nem os conhecimentos, nem a técnica necessários para isso. Antes que o Evangelho pudesse chegar de maneira efetiva aos gentios, devia surgir entre os discípulos alguém com a formação e a vida de um Paulo. A mensagem tem poucas possibilidades de êxito se o mensageiro estiver mal equipado para transmiti-la. Se um pregador ou mestre é sábio, terá consciência de suas próprias limitações e saberá que coisas estão dentro e quais fora de sua possibilidade.

(3) Mas a mais importante das razões desta restrição é simplesmente esta – qualquer comandante sábio sabe que deve limitar seus objetivos. Deve escolher um ponto e direcionar a ele o ataque. Se diluir suas forças aqui e ali e mais à frente, dissipa sua potência de ataque e se arrisca ao fracasso. Quanto menores sejam suas forças, maior deverá ser a limitação de seus objetivos imediatos. Tentar o ataque sobre uma frente muito ampla seria, simplesmente, convidar ao fracasso. Jesus sabia disto, e seu objetivo era concentrar o primeiro movimento de sua campanha expansiva na região da Galileia, porque esta, tal como o vimos, era a região da Palestina que mais aberta estava à recepção de um novo evangelho, uma nova mensagem (cf. comentário de Mat. 4:12-17).

Mas esta ordem de Jesus era transitiva. Atuou como o general sábio, que se nega a dissipar e dispersar suas forças. Com toda habilidade, concentrou o ataque em um objetivo limitado, a fim de obter, ao final da campanha, uma vitória total e universal.

Os mensageiros do rei tinham coisas a dizer e coisas a fazer.

(1) Tinham que anunciar a iminência do Reino. Como vimos (comp. Mateus 6:10, 11) o Reino de Deus é uma sociedade terrena na qual se executa a vontade de Deus de maneira tão perfeita como no céu. Entre todas as pessoas que viveram no mundo, Jesus é o único que sempre obedeceu, fez e cumpriu perfeitamente a vontade de Deus. Portanto nEle tinha vindo o Reino. É como se os mensageiros do Reino devessem dizer: “Olhem! Vocês sonhastes com o Reino e o desejaram. Aqui, na vida de Jesus está o Reino. Olhem para Ele, e vejam o que significa estar no Reino.” Em Jesus veio aos homens o Reino de Deus.

(2) Mas a tarefa dos doze não se reduzia a dizer certas coisas. Tinham que curar doentes, ressuscitar mortos, purificar leprosos, expulsar demônios. Todas estas ordens devem interpretar-se em um duplo sentido. Devem interpretar-se fisicamente, porque Jesus devia trazer saúde e cura para os corpos dos homens. Mas também devem interpretar-se espiritualmente. Descrevem a mudança operada por Jesus Cristo nas almas dos homens.

(a) Devem curar enfermos. A palavra que se usa com o significado de enfermos é extremamente sugestiva. É parte do verbo grego aszenain, cujo significado primário é ser fraco. Quando Jesus Cristo entra na vida de um homem robustece sua vontade fraca, fortalece a resistência fraca frente às tentações, dá força ao braço debilitado, para que prossiga a luta, confirma ao de resolução fraca. Jesus Cristo enche nossa fraqueza humana com seu poder divino.

(b) Devem ressuscitar mortos. A pessoa pode estar morta em seus pecados; quebrada sua vontade de resistir; sua visão do bem pode estar tão obscurecida que deixou que existir; pode estar desesperadamente nas garras de pecados que dominam sua vida; pode estar cega e surda à bondade e à voz de Deus. Quando Jesus Cristo entra na vida de um homem, ressuscita-o para a virtude. Jesus Cristo revitaliza em nós a bondade e a virtude que o pecado matou.

(c) Devem purificar leprosos. Como vimos anteriormente, o leproso era considerado uma pessoa imunda. Levítico 13:46 diz: “Será imundo durante os dias em que a praga estiver nele; é imundo, habitará só; a sua habitação será fora do arraial.”

O texto de 2 Reis 7:3, 4 mostra uns leprosos que somente durante uma fome ousaram entrar na cidade. Em 2 Reis 15:5 nos conta a história de Azarias, o rei atacado pela lepra, e até o dia de sua morte estava obrigado a habitar em um lazareto, separado do resto dos homens.

É interessante recordar que até na Pérsia se acreditava na impureza dos leprosos. Heródoto (1:138, 1), diz que “quando alguém na Pérsia tem lepra, não lhe é permitido entrar em cidade alguma, nem ter relação alguma com outros persas; segundo eles dizem, deve ter pecado contra o sol”. Os doze, pois, devem levar purificação aos impuros. Todo ser humano pode manchar sua vida com o pecado. Pode sujar sua mente, seu coração, seu corpo com as conseqüências de seu pecado. Suas palavras, suas ações, sua influência podem até tal ponto estar corrompidas por seu pecado, que sejam uma influência impura sobre todos os que entrem em contato com ele. Jesus Cristo pode limpar a alma que se manchou com o pecado. Pode oferecer aos homens o anti-séptico divino contra o pecado. Jesus Cristo limpa o pecado humano com a pureza divina.

(d) Deviam expulsar demônios. O possesso pelo demônio era o homem que estava nas garras de um poder maligno; tinha deixado de ser dono de si e de seus atos; o poder maligno que o habitava tinha feito dele seu escravo. Todo ser humano pode ser dominado pelo mal, escravo de hábitos malignos; o mal pode nos atrair de maneira hipnótica e nos fascinar. Jesus vem não somente para eliminar e cancelar o pecado, mas também para quebrantar o poder do mesmo. Jesus Cristo traz aos homens escravizados pelo pecado o poder libertador de Deus. Emancipa os escravos do pecado.

Estudo sobre Mateus 10:8b-10

Cada uma das frases e palavras desta passagem, sem lugar a dúvidas, era familiar ao ouvido dos contemporâneos de Jesus. Nela Jesus dá a seus discípulos as instruções e ordens que davam a seus discípulos os melhores rabinos e no mais elevado dos espíritos do judaísmo daquela época.

“Vocês receberam gratuitamente”, diz Jesus, “deem gratuitamente.” A Lei exigia que os rabinos ensinassem gratuitamente; estava-lhes absolutamente proibido receber dinheiro pelo ensino da Lei, visto que Moisés a tinha recebido gratuitamente de Deus. Somente em um caso podia o rabino receber algum pagamento: quando seu discípulo fosse um menino; porque ensinar ao menino era uma responsabilidade dos pais, e nenhum outro podia esperar-se que gastasse seu tempo e sabedoria naquilo que era dever do pai e da mãe. Mas o ensino superior devia repartir-se gratuitamente, sem dinheiro e sem preço. Na Mishná a Lei estabelece que se alguém cobrar por agir como juiz, seus julgamentos não são válidos, e se receber alguma retribuição por dar testemunho, seu testemunho é nulo.

O rabino Zadok disse: “Não faça da Lei uma coroa para se engrandecer nenhuma pá com a qual cavar.”. Hillel afirmou: “Quem faz uso mundano da coroa da Lei perecerá. Você pode inferir disto que quem quiser obter benefícios ou lucros de qualquer tipo com as palavras da Lei está contribuindo para sua própria destruição.” Outro mestre disse: “Assim como Deus ensinou a Moisés de graça, faça você o mesmo.”

Há uma história que se refere a um tal rabino Tarfón. Ao finalizar a colheita dos figos, ele estava caminhando por um horta e comeu alguns dos figos que tinham sido deixados nas árvores pelos ceifeiros. Os guardiões do campo vieram e lhe deram uma surra, mas ele lhes disse quem era, e ao reconhecê-lo como um famoso rabino o deixaram ir. Toda sua vida o rabino Tarfón se lamentou de ter-se valido de sua condição de rabino para ajudar-se em uma situação difícil. “Todos os dias de sua vida se lamentou dizendo: ‘Miserável de mim, porque usei a coroa da Lei para meu próprio benefício’.”

Ao dizer Jesus a seus discípulos que tinham recebido gratuitamente o que tinham e deviam dar gratuitamente, estava repetindo as mesmas palavras que os mestres de religião de seu povo tinham vindo ensinando a seus próprios discípulos desde longa data. Se alguém possuir um segredo precioso, seu dever, evidentemente, não é guardá-lo para si mesmo até que o paguem, mas deve comunicá-lo de boa vontade. É um privilégio compartilhar com outros as riquezas que recebemos de Deus.

Jesus diz aos doze que não procurem ouro, prata ou cobre para levar em seus cintos. Os cintos com que os judeus atam a roupa na cintura eram bem largos, e em suas extremidades possuíam um duplo fundo no qual era costume levar o dinheiro. O cinto era a carteira dos judeus. Além disso, os discípulos não deviam levar alforjes. Estes alforjes podem ser a espécie de mochila em que comumente se levavam as provisões. Mas há outra possibilidade. A mesma palavra designava naquela época a bolsa que os mendigos usavam para mendigar. Às vezes os filósofos ambulantes depois de ter ensinado recolhiam uma esmola entre os que tinham recebido seu ensino.

Com todas estas disposições, Jesus não procurava criar uma situação difícil para seus discípulos. Outra vez, pode dizer-se neste caso, que estava repetindo ensinos que todos os judeus conheciam muito bem desde há muito tempo. O Talmud diz que ninguém deve ir ao Monte do Templo “com cajado, sapatos, cinturão de dinheiro ou pés sujos de pó”. A idéia era que ao entrar no templo tudo o que estivesse relacionado com os negócios, com os trabalhos ou as preocupações deste mundo ficasse para trás. Aqui Jesus está dizendo a seus discípulos que devem considerar o mundo inteiro como templo de Deus. O homem de Deus, não deve dar a impressão de ser um homem de negócios, atento ao que pode obter. As instruções que Jesus dá a seus discípulos indicam que o homem de Deus deve demonstrar por sua atitude para com as coisas materiais que é um homem de Deus, e que seu primeiro interesse é Deus e não as coisas materiais.

Por último, Jesus diz que digno é o trabalhador do seu alimento. Isto também qualquer judeu o teria reconhecido. É certo que o rabino não estava autorizado a receber pagamento por seu ensino. Mas ao mesmo tempo se considerava um privilégio e um dever dar de comer aos mestres religiosos, se estes eram verdadeiramente homens de Deus.

O rabino Eliézer Ben Jacob disse: “Quem recebe a um rabino em sua casa, ou como seu hóspede, e lhe permite desfrutar de suas posses, a escritura o reconhece como se tivesse feito uma oferenda contínua. O rabino Jocanán estabeleceu que toda comunidade judia tinha a obrigação de manter um rabino, quanto mais porque o rabino descuida seus próprios assuntos para concentrar-se nos de Deus.

Aqui temos a dupla verdade: o homem de Deus nunca deve preocupar-se muito pelas coisas materiais; mas o povo de Deus nunca deve esquecer seu dever de que o homem de Deus receba tudo o que razoavelmente pode necessitar para seu sustento. Esta passagem estabelece uma obrigação tanto sobre o ministro como sobre o povo.

Estudo sobre Mateus 10:11-15

Eis aqui uma passagem cheia de conselhos práticos para os mensageiros do Rei.

Quando entrarem em uma cidade ou aldeia deverão procurar para hospedar uma casa que seja digna. A idéia é que se escolhiam como lugar de residência uma casa de má reputação, esta circunstância podia agir como impedimento em sua tarefa. Não deviam identificar-se com ninguém que pudesse dificultar sua tarefa. Isto não quer dizer que não deviam tratar de ganhar nessas pessoas para Cristo, mas sim o mensageiro de Cristo deve ser cuidadoso na escolha de seus amigos íntimos.

Quando chegavam a uma casa, deviam ficar nela até que viajarem para outra cidade. Esta recomendação tem a ver com a mais elementar cortesia. É bem possível que depois de ter chegado a um lugar e procurado alojamento nele, o mensageiro, tendo ganho alguns discípulos, se visse tentado a mudar-se a outra casa que pudesse lhe oferecer maior luxo ou comodidade ou melhor companhia. O mensageiro de Cristo nunca deve dar a impressão de que corteja as pessoas por sua posição material, ou de que age guiado pelas exigências de sua comodidade.

A recomendação sobre a saudação, que se não for recebido deve recolher-se, é tipicamente oriental. No Oriente a palavra falada é concebida de maneira tal que pode atribuir-se a ela uma sorte de existência independente e ativa. Saía da boca do que fala com a mesma realidade que uma bala sai da boca de um revólver. Esta idéia aparece em repetidas oportunidades no Antigo Testamento, especialmente quando se trata das palavras que Deus fala. Isaías ouviu que Deus dizia: “Por mim mesmo tenho jurado; da minha boca saiu o que é justo, e a minha palavra não tornará atrás. Diante de mim se dobrará todo joelho, e jurará toda língua” (Isaías 45:23). “Assim será minha palavra que sai de minha boca; não voltará para minha vazia mas sim fará o que eu quero, e será prosperada naquilo para que a enviei” (Isaías 55:11). Zacarias vê um rolo voador e ouve uma voz que lhe diz: “Esta é a maldição que sai sobre a face de toda a terra” (Zacarias 5:3).

Até nossos dias, no Oriente, se alguém saudar outro pela rua com uma bênção e depois descobre que o outro professa uma fé diferente à sua, voltará para recolher de volta sua bênção. A idéia nesta passagem é que o mensageiro do Rei pode pronunciar sua bênção sobre uma casa, e se esta é indigna de recebê-la pode, por assim dizer, recolher sua bênção e levá-la de volta.

Se em algum lugar a mensagem é rechaçada, os mensageiros do Rei devem sacudir o pó desse lugar que tiver ficado preso em suas sandálias e ir para outra parte. Para o Judeu o pó de um caminho ou lugar de gentios tinha a qualidade negativa de torná-los impuros; portanto, cada vez que um judeu cruzava o limite da Palestina, depois de ter viajado por terra de gentios, sacudia de suas sandálias o pó dos caminhos gentios, para eliminar deste modo, até a mais insignificante partícula de impureza. Jesus diz a seus discípulos: “Se alguma cidade ou vila não receber a mensagem, devem tratá-la como se fosse um lugar gentio.” Devemos procurar entender claramente qual é a idéia que Jesus está tratando de comunicar.

Nesta passagem há duas verdades, uma transitiva e a outra eterna.
(1) A verdade transitiva é a seguinte. Jesus não está dizendo que certas pessoas deviam ser abandonadas como se estivessem fora do alcance da mensagem do evangelho e da graça. Esta instrução é similar a de que no momento não devem dirigir-se aos gentios ou aos samaritanos. Seu significado depende da situação em que a reparte. Deve-se principalmente ao fator tempo. Os discípulos dispunham de pouco tempo; era necessário que a maior quantidade possível de pessoas ouvisse a proclamação do Reino; nesse momento não havia tempo para discutir com os discutidores ou tratar de ganhar os teimosos. Isso viria mais tarde. Naquele momento os discípulos deviam percorrer toda a região, o mais rapidamente possível, e portanto deviam prosseguir seu caminho quando sua mensagem não tinha uma acolhida imediata.

(2) A verdade permanente é a seguinte: Um dos fatos mais importantes da vida é que em geral as grandes oportunidades nos são apresentadas uma só vez, e se não formos capazes das aproveitar, perdemos definitivamente a possibilidade de fazer uso delas. Os habitantes da Palestina tinham a grande oportunidade de conhecer e aceitar o evangelho. Se não a recebiam, muito provavelmente nunca mais se lhes voltaria a oferecer. Como diz um provérbio tradicional inglês: “Há três coisas que não voltam: A palavra falada, a flecha que se arrojou e a oportunidade perdida.” Isto ocorre em todas as esferas da vida. Em sua autobiografia, Chiaroscuro, Augustus John, o famoso artista inglês, relata um incidente de sua vida e o comenta de maneira lacônica, dizendo:

“Estava em Barcelona, Espanha e tinha chegado o momento de viajar a Marselha, na França. Tinha enviado antecipadamente minha bagagem e me dirigia caminhando para a estação quando encontrei três ciganas que compravam flores em um quiosque. Tanto me impressionou a beleza dessas mulheres e sua fulgurante elegância, que quase perco o trem. Quando cheguei a Marselha a visão daquelas mulheres ainda seguia me perseguindo. Senti que tinha que voltar para Barcelona para buscá-las. E o fiz. Mas nunca voltei a encontrar a aquelas três ciganas. Nunca encontramos o que perdemos uma vez.”

O artista estava sempre procurando brilhos de beleza que transferir ao tecido mas sabia que se não a pintava quando a achava, provavelmente nunca voltaria a ter essa visão. Muito frequentemente a tragédia de muitas vidas é a tragédia de uma grande oportunidade perdida.

Por último ouvimos que no dia do juízo será menos grave o destino da Sodoma e Gomorra que o do povo ou a aldeia que tenha rechaçado a mensagem de Cristo e do Reino. Sodoma e Gomorra, no Novo Testamento,, são exemplos clássicos de maldade (Mateus 11:23-24; Lucas 10;12-13; 17:29; Romanos 9:29; 2 Pedro 2:6; Judas 7).

É interessante e pertinente com relação a esta passagem assinalar que justamente antes de sua destruição Sodoma e Gomorra foram culpados de uma grave violação das leis da hospitalidade (Gênesis 19:1-11). Eles também tinham rechaçado aos mensageiros de Deus. Mas Sodoma e Gomorra não tiveram a oportunidade de rechaçar a mensagem do Cristo e seu Reino. É por isso que seu destino o dia do julgamento será menos trágico que o das cidades e aldeias da Palestina. A maior privilégio, maior responsabilidade.

Estudo sobre Mateus 10:16-22

Antes de começar o estudo detalhado desta passagem, devemos tomar nota de dois importantes aspectos gerais.

Quando estudávamos o Sermão da Montanha, vimos que uma das características de Mateus era seu afã por apresentar os materiais de que dispunha segundo uma meticulosa organização. Vimos que seu costume era reunir em um mesmo lugar todas as passagens que tivessem que ver com um mesmo tema, embora Jesus houvesse dito ou feito essas coisas em diferentes ocasiões. Mateus sistematizou os ensinos de Jesus ao as preparar para escrever seu evangelho.

Esta passagem é um dos exemplos de como Mateus reúne em um mesmo lugar materiais que provêm de diferentes oportunidades. Aqui encontramos reunidos vários ensinos de Jesus sobre a perseguição. Não cabe dúvida de que até a primeira vez que Jesus enviou a seus discípulos, deve ter-lhes dito algo com respeito à sorte que os esperava. Mas, por exemplo, enquanto que na passagem anterior Jesus ordena a seus discípulos não pisar em território de gentios ou samaritanos, aqui O ouvimos antecipando o destino dos mensageiros que seriam levados perante governadores e reis, algo que só podia ocorrer muito longe da Palestina. A explicação é que Mateus reúne aqui coisas que Jesus disse sobre o tema das perseguições em diferentes oportunidades. De maneira que temos palavras reunidas que Jesus deve ter pronunciado quando enviou a seus discípulos a pregar pela primeira vez e palavras que lhes comunicou depois da ressurreição, quando os enviou a pregar o evangelho a todo o mundo. Aqui temos, pois, não só palavras de Jesus da Galileia, mas também do Cristo Ressuscitado.

Por outro lado, deve destacar-se que nestas palavras Jesus faz uso de ideias e imagens que formam parte da tradição do pensamento judeu. Já vimos como era o costume judeu, quando se tratava de representar o futuro, dividir o tempo em duas idades ou eras. Havia a era presente, totalmente má e pecaminosa, e havia a era vindoura ou futura, que seria a idade áurea de Deus. Entre ambas, como evento separador, estava o Dia do Senhor, um momento de transição entre ambas, um dia de terrível caos e destruição e juízo.

Um dos conceitos recorrentes no judaísmo com respeito ao dia do juízo, era que os parentes e os amigos seriam separados entre si irreparavelmente. Os laços humanos mais tenros se transformariam, então, em acérrimas inimizades.

“Todos os amigos se destruirão entre se” (2 Esdras 5:9). “Naquele dia os amigos farão guerra entre si como inimigos” (2 Esdras 6:24). “E lutarão entre si, o jovem contra o velho, o pobre contra o rico, o inferior contra o superior, e o mendigo contra o príncipe” (Jubileus 23:19). “E se odiarão entre si, e se provocarão à luta, e os indignos governarão sobre os dignos, e os de baixa condição serão exaltados sobre os que são famosos” (Apocalipse de Baruque 70:3). “E começarão a lutar entre si, e sua mão direita se fortalecerá contra eles mesmos; e não se conhecerão entre os irmãos, nem entre filhos e pais, ou mães, até que o número dos cadáveres que sobrarão da luta não poderá contar-se” (Enoc 56:7). “Naquele dia os carentes irão embora levando seus filhos, e os abandonarão, e seus filhos perecerão por culpa deles mesmos; abandonarão a seus filhos de peito e não voltarão a recolhê-los; não terão piedade de seus seres amados” (Enoque 99:5). “E naqueles dias os pais e os filhos lutarão, e os irmãos entre si, até que se formem correntes de sangue como rios. Porque ninguém deterá sua mão para não matar a seus próprios filhos e os filhos de seus filhos, e o pecador não deterá sua mão para não matar a seu irmão justo; da saída do sol até o crepúsculo se matarão entre si” (Enoque 100:1-2).

Todas estas citações aparecem em livros que foram escritos pelos judeus, e que estes conheciam muito bem, respeitavam e amavam, e com os quais alimentavam a esperança de seus corações nos dias entre o Antigo e o Novo Testamento. Jesus conhecia estes livros assim como seus discípulos; e quando falava dos horrores do juízo final, e das lutas fratricidas que romperiam até os laços humanos mais tenros, estava dizendo, em realidade: “O dia do Senhor já chegou.” E seus homens sabiam que isto era o que Jesus queria dizer, e sairiam a pregar sabendo que estavam vivendo nos dias supremos de toda a história.

Ninguém poderia ler esta passagem sem ficar profundamente impressionado pela honestidade de Jesus. Nunca vacilou em dizer a seus discípulos qual era a sorte que podiam esperar se o seguiam. É como se houvesse dito: “Esta é a tarefa que tenho para encomendar-lhes; não é fácil nem está livre de perigos. Vocês são capazes de aceitá-la?”

Plummer comenta: “Esta não é a maneira que o mundo tem de ganhar partidários.” O mundo sempre oferece rosas, um caminho de rosas, comodidade e seguranças, junto com o cumprimento de todas as ambições mundanas. Jesus oferece dificuldades, e até a morte. E entretanto, a história demonstrou que Jesus tinha razão. No mais íntimo, os seres humanos apreciam mais o chamado à aventura; no coração de cada um de nós há escondido um aventureiro.

Depois do sítio de Roma, em 1849, Garibaldi dirigiu a seguinte proclama a seus partidários: “Soldados: Todos os nossos esforços contra forças superiores foram inúteis. Não tenho nada a lhes oferecer a não ser fome e sede, dificuldades e morte; mas chamo a todos os que amem a pátria a unir-se comigo” – e foram por centenas. Depois da derrota de Dunquerque, Churchill ofereceu aos ingleses, “sangue, suor e lágrimas”.

Pizarro confrontou o seu bando de seguidores com uma escolha tremenda. A opção era entre a segurança conhecida do Panamá e o ainda ignorado esplendor do Peru. Tirou sua espada e riscou uma linha na areia, do leste a oeste: “Amigos e camaradas!”, disse, “desse lado da linha encontrarão trabalhos, fome e nudez, a tormenta, a deserção e a morte; do outro lado, comodidade e prazeres. Lá fica o Peru, com suas riquezas; aqui, Panamá e sua pobreza. Que cada homem escolha agora qual é o destino mais adequado para um valente castelhano. Quanto a mim, eu escolho o Peru.” Treze de seus homens, cujos nomes são imortais, escolheram aventurar-se com ele.

Quando Shackleton propôs sua marcha para o Pólo Sul, pediu voluntários para que o seguissem por esse caminho no qual os esperava a tormenta branca dos gelos polares. Não esperava que muitos respondessem a seu chamado, mas recebeu uma avalanche de cartas provenientes de jovens e anciãos, ricos e pobres, nobres e plebeus, todos animados pelo mesmo desejo de participar da grande aventura. Talvez a Igreja deva voltar a aprender que não deve convidar os homens a percorrer veredas suaves; é o chamado ao heróico o que, finalmente, toca de maneira mais direta o coração dos homens.

Jesus ofereceu a seus seguidores três classes de provas:

(1) O Estado os perseguiria; seriam levados aos tribunais, ante reis e governadores. Muito antes Aristóteles se perguntou se um homem verdadeiramente bom podia ser um bom cidadão, porque, dizia, o dever do cidadão consiste em obedecer sempre ao Estado, e apoiá-lo em seus esforços, e às vezes o homem bom verá que isto lhe é impossível.

Quando fossem levados ante os juízes e submetidos a julgamento, não deviam preocupar-se com as palavras com que se defenderiam; porque Deus poria tais palavras em sua boca. “Agora, pois, vê, que eu estarei em sua boca” , disse Deus a Moisés, “e te ensinarei o que deves falar.” (Êxodo 4:12). Os primeiros cristãos não temiam a humilhação, nem mesmo a dor e a agonia; muitos deles, em troca, temiam que sua incapacidade para expressar-se de maneira eloquente prejudicasse à fé em vez de beneficiá-la. A promessa de Deus é que quando o crente é julgado por sua fé, encontrará as palavras.

(2) A Igreja os perseguiria. Seriam expulsos e perseguidos pelas sinagogas. A Igreja não quer ser perturbada e tem seus próprios métodos para enfrentar e eliminar os que alteram a paz. Os cristãos foram e são os que “transtornam ao mundo” (Atos 17:6). Tem ocorrido com muita freqüência que o crente possuidor de uma mensagem de parte de Deus tenha que suportar o ódio e a inimizade de uma ortodoxia fossilizada.

(3) A família os perseguiria. As pessoas mais próximas e queridas de seus discípulos os veriam como loucos, e lhes fechariam as portas de seus próprios lares. Às vezes o cristão deve enfrentar a opção mais difícil de todas – entre obedecer a Cristo ou obedecer a seus parentes e amigos.
Jesus advertiu a seus discípulos que no futuro muito possivelmente deveriam confrontar-se com a aliança opositora do Estado, a Igreja e a família, aliados contra eles.

Olhando de nosso ponto de vista, é-nos difícil entender por que governo algum pode ter querido jamais perseguir os cristãos, cujo único objetivo sempre foi viver na pureza, no amor e respeito para com os outros. Mas o governo de Roma, anos depois, teve o que ele acreditou ser boas razões para perseguir os cristãos (veja-se sobre este tema às págs. 126-129).

(1) Circulavam certas calúnias sobre os cristãos. Eram acusados de canibalismo, pelas palavras da comunhão, nas quais se falava de comer a carne de Cristo e beber o seu sangue. Eram acusados de imoralidade, devido a que o nome de sua reunião semanal era ágape, ou seja “festa de amor”. Eram acusados de incendiários, pelas vívidas imagens que os pregadores usavam para descrever o fim do mundo. Eram acusados de ser cidadãos rebeldes e desleais, por negar-se insistentemente a reconhecer o imperador como uma divindade.

(2) É duvidoso que até os pagãos tenham acreditado verdadeiramente nestas acusações. Mas havia outras acusações, de outra ordem, que eram mais sérias. Os cristãos eram acusados de “perturbar as relações familiares”. Era certo que a fé cristã com muita frequência dividia em dois bandos as famílias, como já o vimos. Para muitos pagãos o cristianismo era um elemento de divisão que separava os filhos de seus pais e os maridos de suas esposas.

(3) Uma dificuldade muito real era a posição dos escravos dentro da Igreja. No Império Romano havia sessenta milhões de escravos. Um dos maiores temores dos romanos era que esses escravos se levantassem em rebeldia. Para que a estrutura imperial seguisse em pé era necessário que esses escravos fossem mantidos em seu lugar. Ninguém devia fazer nada para estimular o espírito de rebelião entre os milhões de escravos de Roma, porque as consequências teriam sido terríveis, além do imaginável. A Igreja cristã não fez intentos por liberar os escravos nem condenou a escravidão; mas, pelo menos dentro da Igreja, os escravos eram tratados como iguais.

Clemente da Alexandria afirmou que “os escravos são como nós”, e que a regra áurea, o mandamento do amor, aplicava-se também a eles. Lactâncio escreveu: “Os escravos para nós não são tais, são irmãos no Espírito, conservos conosco na religião.” É notável que mesmo que a Igreja contava em suas filas milhares de membros que eram escravos. nunca se encontra a palavra “escravo” nas lápides das tumbas cristãs. Mais ainda, era perfeitamente possível que os escravos ocupassem cargos de dirigentes na Igreja.

A princípios do século II, dois dos bispos de Roma, Pio e Calixto, tinham sido escravos. Não era incomum que os presbíteros ou os diáconos fossem escravos. No ano 220 Calixto, que como acabamos de ver tinha sido escravo, declarou que a Igreja aceitaria desse momento em adiante, os casamentos entre livres e libertos, algo que a lei romana declarava como carente de valor legal e que, portanto, não era um casamento como deve ser. Pelo trato que concedia os escravos, a Igreja deve ter parecido, às autoridades romanas, uma força que ameaçava destruir o próprio fundamento de sua civilização e a existência do Império, visto que considerava em um mesmo nível os escravos e os cidadãos livres, outorgando aos primeiros uma posição que a lei romana jamais lhes teria concedido.

(4) Não há dúvida de que o cristianismo deve ter afetado seriamente importantes interesses criados com relação ao culto pagão. Quando o cristianismo entrou em Éfeso, por exemplo, a profissão dos ourives sofreu um golpe mortal, ao diminuir o mercado dos que compravam as imagens da deusa Diana, que eles fabricavam (Atos 19:24-27).

Plínio era governador da Bitínia durante o império do Trajano, e em uma carta que escreveu ao imperador (Plínio, Cartas, 10:96) conta como precisou tomar medidas para controlar o rápido crescimento das comunidades cristãs, de tal maneira “que os templos, abandonados pelo povo, agora voltam a ser frequentados; depois de um compulsivo recesso, as festividades religiosas voltam a celebrar-se, e há uma demanda geral de animais para sacrificar nos templos, que tinha diminuído durante um tempo”. É evidente que a expansão do cristianismo deve ter significado a abolição de certos artesanatos, profissões e mercados. Os que perdiam seus empregos ou seu dinheiro, como é muito natural, sentiam-se ressentidos contra a fé cristã.

O cristianismo prega um conceito do homem que nenhum Estado totalitário pode aceitar. Deliberadamente tende a eliminar certos comércios e profissões e maneiras de fazer dinheiro. E isto segue sendo tão real hoje como no princípio, o que significa que o cristão ainda hoje pode ser açoitado por sua fé.

Estudo sobre Mateus 10:23

Esta passagem recomenda uma prudência que ao mesmo tempo é sábia e cristã. Nas épocas de perseguição as testemunhas cristãs devem enfrentar alguns perigos. Houve quem diretamente cortejou o martírio; tinham sido levados a tal ponto de entusiasmo fanático e histérico que procuravam converter-se em mártires por causa da fé. Jesus era sábio. Disse a seus seguidores que não devia haver um inútil desperdício de vidas cristãs; que não deviam entregar sua vida ao martírio assim desnecessariamente. Como alguém disse, a vida de cada testemunha cristã é suficientemente preciosa como para que não ser dilapidada irrefletidamente. “A bravata não é martírio.” Muitos cristãos tiveram que morrer por sua fé, mas nenhum devia entregar-se ao martírio de maneira que não ajudasse realmente à causa. Como se disse posteriormente, o cristão deve lutar por sua fé legalmente.

Quando Jesus falava deste modo, os judeus podiam compreender perfeitamente o que lhes queria dizer, Nenhum povo tinha sido tão açoitado como os judeus, e nenhum tinha compreendido melhor no que consistem os deveres do mártir.

O ensino dos grandes rabinos era bem clara. Quando se tratava da santificação pública ou da aberta profanação do nome de Deus, o dever do bom judeu era bem evidente. Devia estar preparado a entregar sua vida. Mas quando não se tratava de fazer declaração pública de apostasia com respeito à santidade do nome divino, qualquer judeu podia salvar sua vida, mesmo que significasse quebrantar a lei; mas por nenhuma razão devia submeter-se a práticas idolátricas ou cometer pecados contra a castidade ou homicídios.

Um caso que os rabinos citavam era o seguinte: “Suponhamos que um judeu é tomado por um soldado romano, com o propósito de zombar dele, e sem outra intenção que divertir-se um momento humilhando a um judeu e lhe ordena: ‘Come esta carne de porco, quem é judeu pode comê-la, porque as leis de Deus foram ditadas para vida e não para morte. Mas suponhamos que o soldado romano lhe diz: ‘Come esta carne de porco como sinal de que renuncia ao judaísmo; come esta carne de porco como sinal de que está disposto a adorar a Júpiter e ao Imperador, então a obrigação do judeu é morrer antes que comer.”

Em toda época de perseguição por parte das autoridades o judeu devia morrer antes que renunciar à sua fé, como o afirmavam os rabinos: “As palavras da Lei são firmes somente naqueles que estão dispostos a morrer por elas.” Era proibido ao judeu desperdiçar sua vida em uma ação desnecessária de martírio sem sentido; mas quando se tratava de oferecer um autêntico testemunho de sua fé, devia estar disposto a morrer.

Convém-nos recordar que embora nós devemos estar sempre preparados a aceitar o martírio por nossa fé, não devemos cortejar o martírio. Se devemos sofrer por nossa fé pelo cumprimento do dever de cristãos, devemos aceitar esse sofrimento. Mas não devemos procurar o sofrimento em si; pois convidar o sofrimento faz mais mal que bem à fé que professamos. O mártir por vocação própria é um personagem muito comum em diversas esferas da vida humana.

Afirmou-se que às vezes há mais heroísmo em atrever-se a fugir do perigo que em enfrentá-lo. Dar-se conta do momento em que podemos escapar é verdadeira sabedoria.

André Maurois, em Por que Caiu a França, narra uma conversação que teve com Winston Churchill. Houve um momento, no princípio da Segunda Guerra Mundial, quando a Inglaterra parecia muito pouco disposta a encarar a ação direta contra Alemanha. Churchill disse ao Maurois: “Observou você o costume das lagostas marinhas?” Maurois respondeu que não a esta estranha pergunta.

“Se alguma vez tiver oportunidade, estude-as. Em certos períodos de sua vida a lagosta perde o carapaça que a protege. Nesse momento de transição até o crustáceo mais valente se esconde em alguma greta entre as rochas e aguarda com paciência, até que lhe cresce uma nova carapaça. Uma vez que essa nova armadura adquiriu a suficiente rigidez, sai de sua greta e volta a ser o mesmo lutador de antes, senhor dos mares. Inglaterra, por culpa de ministros irresponsáveis, perdeu sua carapaça; por ora devemos esperar em nossa greta entre as rochas, até que a nova carapaça seja o suficientemente forte.”

Há momentos em que a passividade é mais sábia que a ação; e quando fugir é mais sábio que atacar. Se alguém possui uma fé débil, convém-lhe evitar as discussões e disputas sobre questões duvidosas, e não lançar-se irresponsavelmente a tais confrontações. Se alguém souber que é suscetível ante certa tentação, fará bem em evitar aqueles lugares onde essa tentação pode atacá-lo, e não freqüentá-los. Se alguém souber que há pessoas que o fazem zangar e irritar, e que conseguirão sempre tirar à lume o pior que existe nele, será sábio evitar sua companhia e não sair à procurá-la. Coragem não é temeridade; não há virtude alguma em correr riscos desnecessários. A graça de Deus não está destinada a amparar os irresponsáveis, mas sim os prudentes.

Esta passagem contém um estranho dito que não podemos, em honra à honestidade, passar por cima. Mateus descreve o modo em que Jesus envia a seus discípulos, e como parte de suas instruções, como lhes diz: “Vocês não acabarão de percorrer todas as cidades do Israel antes que venha o Filho do Homem.” Aparentemente, o significado destas palavras é que Jesus voltará em glória e em poder antes que os apóstolos terminassem sua excursão de pregação. A dificuldade com esta passagem é que simplesmente as coisas não ocorreram do modo em que foi anunciado. Se nesse momento Jesus tinha tal expectativa, estava equivocado. Se disse estas palavras com o sentido que interpretamos à primeira vista, anunciou algo que não aconteceu. Mas há uma explicação perfeitamente boa e suficiente que salva esta aparente dificuldade.

Os crentes da Igreja primitiva acreditavam ardentemente na Segunda Vinda de Cristo, e acreditavam que ocorreria muito em breve, sem dúvida antes que terminasse o lapso normal de suas vidas. Não havia nada mais natural que isto, porque viviam em uma época de selvagens perseguições, e desejavam ansiosamente o dia de sua liberação e glória. O resultado era que se aferravam a qualquer dito de Jesus que parecesse profetizar seu retorno glorioso e triunfal; e às vezes, simplesmente, interpretavam alguns ditos de Jesus, fazendo-os dizer muito mais e de maneira muito mais definida que sua intenção original.

Podemos ver este processo em algumas passagens que aparecem no próprio Novo Testamento. Encontramos, por exemplo, três versões de um mesmo dito de Jesus. Vamos vê-las uma junto à outra: “Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Homem no seu reino.” (Mateus 16:28).

“Em verdade vos afirmo que, dos que aqui se encontram, alguns há que, de maneira nenhuma, passarão pela morte até que vejam ter chegado com poder o reino de Deus.” (Marcos 9:1).

“Verdadeiramente, vos digo: alguns há dos que aqui se encontram que, de maneira nenhuma, passarão pela morte até que vejam o reino de Deus.” (Lucas 9:27).

É evidente que estas são três versões de um mesmo dito. O evangelho de Marcos é o mais antigo, e o mais provável é que sua versão seja a mais fiel ao dito original. Marcos diz que alguns dos que estavam ouvindo a Jesus não morreriam até ter visto o Reino de Deus vindo com poder. Esta afirmação é gloriosamente verídica, porque trinta anos depois da crucificação a mensagem da cruz se expandiu por todo mundo conhecido de então, chegando até Roma, a capital do mundo. Os homens estavam sendo arrastados ao Reino; o Reino se estava manifestando em poder. Lucas transmite a declaração de Jesus aproximadamente do mesmo modo que Marcos.

Vejamos agora a versão de Mateus. Aqui ele nos apresenta de maneira ligeiramente diferente. Diz que alguns não morrerão sem ter visto a vinda em poder do Filho do Homem. Isto, de fato, não ocorreu. A explicação é que Mateus escreveu entre os anos 80 e 90, em dias em que aumentava a perseguição. Os crentes se aferravam a tudo o que pudesse lhes prometer uma pronta liberação de sua agonia; tomaram um dito que anunciava a expansão do Reino e o transformaram em uma profecia da Volta de Cristo antes que eles morreram. Quem poderia culpá-los?

Isso é o que Mateus fez aqui. Partindo da versão que temos em Mateus, procuremos imaginar como o teriam apresentado Marcos ou Lucas. Provavelmente o original dissesse: “Vocês não contemplarão sua excursão pelas cidades do Israel sem ter visto como vem o Reino de Deus.” E isto era uma verdade bendita, porque quando os apóstolos saíram, os corações se abriam a Jesus Cristo, e o aceitavam universalmente como Senhor e Salvador.

Em uma passagem como esta não devemos pensar que Jesus estava errado; devemos interpretar que Mateus, autor do evangelho, entendeu equivocadamente um dito de Jesus, cujo significado original era o anúncio da vinda do Reino de Deus, como uma profecia da Segunda Vinda de Cristo. E o fez deste modo, porque nos momentos de terror os crentes se aferravam à esperança de Cristo; e Cristo vinha a eles em seu Espírito, pois ninguém jamais sofreu sozinho por sua fé no Salvador.

Estudo sobre Mateus 10:24-25

Aqui se trata da advertência de Jesus a seus discípulos de que deviam esperar que lhes acontecesse o mesmo que acontecia a ele. Os judeus conheciam muito bem a frase que dizia: “O escravo deve contentar-se sendo como seu senhor.” Em uma época posterior, estas palavras adquiririam para eles um significado especial. No ano 70 a cidade de Jerusalém foi destruída por completo, até o ponto de que sobre suas ruínas foi passado o arado. O templo e a Cidade Santa estavam totalmente em ruínas. Os judeus foram dispersos por todo o mundo, e muitos lamentavam, e choravam, e amaldiçoavam pelo destino que lhes cabia sofrer pessoalmente. Foi então quando os rabinos ensinaram a suas congregações que nenhum judeu tinha direito de lamentar-se por suas desgraças pessoais, quando o Templo de Deus tinha sido destruído.

Nesta declaração de Jesus há duas coisas importantes:

(1) Há uma advertência. É a advertência de que, assim como Cristo teve que levar uma cruz, cada cristão individualmente deverá carregar com sua própria cruz. A palavra traduzida os de sua casa é oikiakoi, que possui em grego um significado técnico que vale a pena recordar. Significa os membros da servidão de um funcionário do governo; quer dizer, seu séquito ou o pessoal que colaborava com ele. É como se Jesus dissesse: “Se eu, que sou o dirigente, o líder, devo sofrer, vocês, que são membros de meu séquito, não poderão escapar às perseguições.”

Jesus nos chama a compartilhar sua glória, mas também sua luta e sua agonia; e ninguém merece usufruir dos frutos da vitória se negar-se a participar da luta que produzirá tais frutos.

(2) Jesus estabelece um privilégio. Sofrer por Cristo significa participar da obra de Cristo; ter que sacrificar-se pela fé é participar do sacrifício de Cristo. Quando se torna difícil ser cristão não só podemos dizer: “Irmãos, estamos transitando pelo mesmo caminho dos santos”, mas também: “Irmãos, estamos caminhando nas pegadas de Jesus Cristo.” Sempre é emocionante pertencer a uma nobre companhia.

Eric Linklater, em sua autobiografia, conta suas experiências durante a desastrosa retirada de março, na Primeira Guerra Mundial. Pertencia ao regimento do Guarda Negro, e tinham saído do combate com um só oficial sobrevivente, trinta soldados e um gaiteiro. Isso era tudo o que restava do regimento.

“No dia seguinte, enquanto partíamos pacificamente sob o glorioso sol da campina francesa, encontramo-nos com os fragmentos dispersos de um batalhão dos Guardas de Infantaria. Nosso gaiteiro soprou em sua gaita de fole e saudou nossos camaradas como se os saudasse com tal energia que o ar pareceu encher-se com o som de toda uma banda de divisão. Eles, que ainda conservavam um ou dois dos tambores, e alguns instrumentos de vento, responderam a saudação garbosamente. Assim cruzamos, rígidos, com os peitos inchados, as cabeças voltadas para a direita, partindo como em um desfile. O pompom vermelho de nossas boinas era como a demonstração de uma fé possivelmente ferida, mas jamais morta. Nós estávamos barbudos e nossos uniformes estavam manchados de barro. Os Guardas, por sua vez, tinham lustrado os botões de suas jaquetas, e estavam recém barbeados. Nós fomos os moços sujos das minas de carvão de Escócia e das ruas escuras dos subúrbios industriais do norte, mas ao partir o mais marcialmente possível, ao som de uma melodia tradicional escocesa, repentinamente me vi chorando com o deleite dos tolos e com a simples alegria de estar em semelhante companhia.”

Uma das experiências mais extraordinárias da vida é ter a sensação de formar parte de uma companhia e fraternidade de homens dignos e honoráveis. Quando a fé cristã nos custa algo, estamos um pouco mais perto de Jesus Cristo do que estávamos antes e se conhecemos a comunhão de seus sofrimentos, também conheceremos o poder de sua ressurreição.

Estudo sobre Mateus 10:26-31

Nesta passagem Jesus recomenda a seus discípulos três vezes que não tenham medo. No mensageiro do Rei deve manifestar-se certa intrepidez cheia de coragem que o distingue dos outros homens.

(1) A primeira ordem está nos versículos 26-27 e se refere a uma dupla liberdade do temor.

(a) Não devem temer que haja coisas tampadas que não vão ser destampadas, ou coisas ocultas que não se venham a manifestar. O significado destas palavras é que a verdade finalmente há de triunfar. “Grande é a verdade”, dizia um provérbio latino, “e a verdade triunfará”.

Quando o rei Jaime VI ameaçou mandar pendurar Andrew Melville ou enviá-lo ao exílio, este lhe replicou: “Não podes pendurar nem exilar a verdade.” Mesmo que o cristão deva sofrer privações e necessidades por sua fé, até no momento do martírio, deve lembrar que chegará o dia quando todas as coisas serão vistas tal como são, e então se poderá avaliar com seu justo valor tanto o poder do perseguidor como o testemunho do cristão, e a cada um corresponderá seu respectivo pagamento.

(b) Não devem ter temor de apresentar com ousadia a mensagem que receberam. Devemos comunicar a todos os homens o que Jesus lhes comunicou. Aqui, neste versículo (v. 27) temos um resumo perfeito da função do pregador. Em primeiro lugar, o pregador deve ouvir; deve acompanhar a Cristo no segredo de sua presença oculta, para que nas horas mais escuras Cristo lhe faça chegar sua palavra de consolo, e na solidão lhe sussurre ao ouvido palavras de estímulo. Ninguém pode falar no nome de Cristo a menos que Cristo tenha falado a ele; ninguém pode proclamar a verdade a menos que tenha ouvido falar a verdade; porque ninguém pode falar do que não conhece.

Nos grandes dias quando estava a ponto de produzir-se Reforma, Colet convidou a Erasmo para que visitasse Oxford e pronunciasse uma série de conferências sobre Moisés e Isaías; mas Erasmo sabia que não estava em condições. E respondeu por escrito:

“Eu, que aprendi a viver comigo mesmo, e sei até que ponto é pobre minha equipe, não posso pretender ter à minha disposição nem a sabedoria que esta tarefa requer, nem acredito ter a fortaleza mental para suportar o ciúme de tantos homens, que estarão dispostos a sustentar seus pontos de vista com insistência. A campanha não exige um principiante e sim um general experiente. Não me acusará você de falta de modéstia ao me negar a aceitar uma posição que seria muito imodesto de minha parte assumir. Não está você atuando com prudência, Colet, ao querer espremer água de uma pedra-pome, como disse Plauto. Com que cara poderia ensinar eu coisas que jamais aprendi? Como faria para esquentar o frio de outros, quando eu mesmo estou tremendo?”

Aquele que tem a responsabilidade de pregar e ensinar deve começar ouvindo, no segredo da comunhão, para aprender.

Em segundo lugar, o pregador deve dizer o que recebeu de Cristo, e deve dizê-lo embora desse modo a única coisa que consiga seja o ódio dos homens, embora ao dizê-lo arrisque sua vida. Os homens se desagradam de ouvir a verdade, como disse Diógenes, porque a verdade para os homens é como a luz para os olhos fatigados.

Em certa oportunidade Latimer pregava estando presente o rei Henrique. Sabia que ia dizer coisas que não agradariam ao rei. Então, antes de entrar nessa parte de seu sermão, deteve-se e disse em voz alta como falando consigo mesmo: “Latimer, Latimer, tome cuidado com o que vais dizer, porque o rei está presente!” E depois de um instante acrescentou: “Latimer, Latimer, tome cuidado com o que vais dizer, porque o Rei dos reis está presente!”

O homem que tem uma mensagem fala com outros homens, mas o faz na presença de Deus. Quando enterraram John Knox, foi dito com respeito a ele: “Aqui jaz um homem que temeu tanto a Deus que jamais temeu os homens.” A testemunha cristã é um homem que não conhece temor algum, porque sabe que os julgamentos da eternidade corrigirão os julgamentos do tempo. O pregador e mestre cristão, é alguém que ouve com reverência e fala com intrepidez, porque sabe que, seja ouvindo ou falando, sempre está na presença de Deus.

(2) O segundo mandamento está no versículo 28. Para dizê-lo de maneira muito simples, Jesus quer que seus discípulos entendam que seja qual for o castigo que os homens possam administrar, não é nada em comparação com a sorte final de quem é achado culpado de infidelidade e desobediência a Deus. É verdade que os homens podem até tirar a vida física de outro homem, mas Deus pode condenar o homem à morte de sua alma. Há três coisas que devem notar-se nesta passagem:

(a) Há uma forma de acreditar na imortalidade que se denomina tecnicamente imortalidade condicional. Segundo este ponto de vista a alma dos justos ascende e sobe até identificar-se com a imortalidade, a bem-aventurança e a eterna alegria de Deus, e que o castigo do pecador contumaz que não corrige seus caminhos apesar de todas as reclamações que recebe de Deus, é que sua alma, depois da morte, desce mais e mais até ser finalmente obliterada, extinguindo-se e cessando de existir. Não se pode construir uma doutrina sobre a base de um único texto, mas os que sustenta esta interpretação afirmam algo muito similar ao que Jesus está dizendo aqui. Os judeus sabiam muito bem até que ponto pode ser terrível o castigo de Deus.

Porque você tem poder sobre a vida e a morte,
E conduz até as portas do Hades, e desde elas
pode levar de novo até o céu.
Mas mesmo que um homem em sua maldade pode até matar,
Não pode trazer de volta o espírito que se foi,
Nem pode liberar o alma que o Hades recebeu.
(Salmos de Salomão 16:13-14)

Durante as épocas das matanças, na rebelião dos Macabeus, os sete irmãos martirizados se estimulavam entre si, dizendo: “Não temamos ao que pensa que pode matar; porque enormes são as torturas e o sofrimento da alma que esperam na eternidade ao que transgride as ordenanças de Deus” (4 Macabeus 13:14-15). Convém-nos sempre recordar que os castigos que pode administrar o ser humano não são nada, comparados com os castigos da eternidade, ou com os prêmios que Deus pode dar.

(b) A segunda coisa que esta passagem nos ensina , é que há lugar na vida cristã para o que se poderia denominar um santo temor. Os judeus conheciam muito bem este “temor de Deus”.

Uma das histórias rabínicas conta de uma época quando o Rabino Jocanan estava doente.

“Seus discípulos foram visitá-lo. Ao vê-los, Jocanan começou a chorar. Seus discípulos lhe disseram: ‘Ó lâmpada de Israel, pilar da mão direita, poderoso martelo, por que choras?’ E ele lhes respondeu: ‘Se fosse levado à presença de um rei terrestre, que hoje está aqui e amanhã na tumba, e que se ficasse zangado comigo, sua ira jamais poderia ser eterna, que se me pusesse no cárcere, minha prisão jamais seria eterna, e que se me matasse, sua morte para mim não seria para sempre, e a quem poderia aplacar com palavras ou subornar com dinheiro – até então choraria. Mas agora, quando estou a ponto de ser conduzido à presença do Rei dos reis, o Santo Bendito, louvado seja o seu nome, que vive e permanece por toda a eternidade, que se estivesse zangado comigo sua ira eu jamais conseguiria aplacar, que se me pusesse na prisão, eu jamais voltaria a ser livre, que me condenasse a morte, minha morte seria eterna, e a quem não posso aplacar com palavras nem subornar com dinheiro... mais ainda, agora que frente a mim são apresentados dois lugares, um o Jardim do Éden e o outro o Geena, e não sei qual me corresponde pela eternidade, como não deveria chorar?’ “

Não é que os pensadores judeus se esqueceram de que há amor, e que o amor é a maior de todas as coisas. “A recompensa de quem age por amor”, costumava dizer-se “é dupla ou quádrupla. Age por amor, porque não há amor onde há temor, nem há temor onde há amor, exceto com respeito a Deus.” Os judeus estavam seguros de que na relação com Deus sempre estão presentes, unidos, o amor e o temor. “Ama e teme a Deus; a Lei diz ambas as coisas; age a partir tanto do amor como do temor; a partir do amor, porque se odiasse, ninguém que ame é capaz de odiar; e com temor, porque se te rebelasses, ninguém temente se rebela.” Mas o judeu nunca esquecia a absoluta santidade divina – e tampouco nós devemos esquecê-la.

Para o cristão a santidade divina é ainda mais digna de santo temor, porque não tememos o castigo divino, e sim ofender seu amor. O judeu não corria o perigo de cair em sentimentalismos do amor de Deus, nem Jesus corria esse perigo. Deus é amor, mas também é santidade, porque Deus é Deus; e em nossos corações e em nossos pensamentos deve haver lugar tanto para o amor que é resposta ao amor de Deus, como para o respeito e o temor que são respostas ante a santidade divina.

(c) Além disso, nesta passagem somos lembrados de que há coisas piores que a morte; e a deslealdade é pior que a morte. Se um cristão incorrer em deslealdade; se compra sua tranqüilidade às custas da honra, a vida deixa de ser tolerável. Não pode encarar os homens nem pode enfrentar-se a si mesmo, e finalmente, não pode enfrentar a Deus. Há momentos em que o conforto, a segurança, o lazer, e até a própria vida podem custar muito caro.

(3) A terceira ordem de não temer está no versículo 31; e se baseia na certeza do minucioso cuidado que Deus tem de cada um de nós. Se Deus cuida dos pardais, não podemos duvidar de que também cuidará de nós.

Mateus diz que dois pardais se vendem por uma poucas moedas e que, entretanto, nenhum morre sem que Deus saiba. Lucas nos transmite este mesmo dito de Jesus em uma versão ligeiramente diferente: “Não se vendem cinco passarinhos por dois quartos? Contudo, nenhum deles está esquecido diante de Deus” (Lucas 12:6).

A idéia é que embora se vendiam dois pardais por um quarto, segundo Mateus, se o comprador estava disposto a pagar dois quartos, em vez de quatro pardais podia adquirir cinco. O quinto pardal era um acréscimo que, como fazia parte do acordo, não possuía valor algum. Deus cuida até do passarinho que se recebe grátis, que, segundo as contas que os homens fazem, não tem valor algum. Até o passarinho que se dá de presente ao comprador tem valor para Deus.

A imagem é ainda mais vívida se lançamos mão do original grego. Porque em grego a palavra que nossas versões traduzem cair em terra (o qual nos faz pensar na morte do pardal) provavelmente represente um termo aramaico que significa “pousar” sobre a terra. Não se diz, então, que Deus tem em conta o pardal quando morre, e sim mesmo cada vez que a ave pousa suas patas sobre a terra. A argumentação de Jesus é que se Deus tem tal cuidado com os pardais quanto mais cuidado terá de nós.

Uma vez mais podemos dizer que os judeus sabiam perfeitamente bem sobre o que estava falando Jesus. Nenhuma nação teve jamais uma noção tal do minucioso cuidado de Deus por suas criaturas.

O rabino Chanina disse: “Ninguém machuca um dedo nesta terra, se assim não está disposto por Deus para ele.” Havia um dito rabínico segundo o qual, “Deus está sentado no alto e alimenta o mundo, desde os chifres do búfalo até a semente do camundongo.”

Hillel interpretava de maneira realmente maravilhosa o Salmo 136. Este salmo começa falando de maneira poética sobre o Deus que é Senhor da criação, o Deus que criou os céus e a Terra, o Sol, a Lua e as estrelas (versículos 1-9); depois, segue fazendo referência ao Deus que é Deus da História, que resgatou a Israel do Egito e lutou por Israel as batalhas contra seus inimigos (versículos 11.24); por último, conclui referindo-se ao Deus que “alimenta toda carne” (versículo 25). O Deus que criou o universo, o Deus que controla a História, é o Deus que dá alimento aos homens. A recepção cotidiana dos mantimentos com que nos nutrimos é um ato divino, tal como o são a criação ou a liberação do Egito. O amor de Deus para com os homens fica manifesto não somente na criação e nos grandes acontecimentos da história, mas também na alimentação dia a dia de cada ser humano.

A coragem do mensageiro do Rei se baseia na convicção de que, seja o que for que lhe aconteça, jamais estará mais à frente do amor e o cuidado divinos. Sabe que seus dias estão pela eternidade nas mãos de Deus; que Deus não o abandonará nem se esquecerá dele; que está para sempre rodeado pelo amoroso cuidado divino. E sendo assim, a que ou a quem haveremos de temer?

Estudo sobre Mateus 10:32-33

Aqui se estabelece qual tem que ser a dupla lealdade da vida cristã. Se alguém é leal a Jesus Cristo nesta vida, Jesus Cristo lhe será leal na vida vindoura. Se alguém reconhece com orgulho que Jesus Cristo é seu Senhor, Jesus Cristo se orgulhará de reconhecê-lo como seu servo. É um fato histórico que se na Igreja primitiva não tivesse havido homens e mulheres que enfrentaram o sofrimento e a agonia e a morte sem negar a Jesus Cristo, hoje não haveria Igreja cristã. A Igreja de nossos dias está fundada na lealdade inquebrantável de quem se aferrou a sua lealdade e sua fé. Plínio, o governador da Bitínia, escreveu uma carta a Trajano, imperador de Roma, sobre como tratava os cristãos em sua província. Informantes anônimos denunciavam a certas pessoas como cristãos. Plínio diz que dava aos tais a oportunidade de invocar os deuses romanos, oferecer um pingo de incenso como sacrifício ante uma imagem do imperador e, à maneira de prova limite, amaldiçoar o nome de Cristo. E acrescenta: “Conforme se diz, os que verdadeiramente são cristãos jamais podem ser obrigados a realizar nenhum destes atos.”

O próprio governador romano reconhece sua impotência frente à inquebrantável lealdade de quem era verdadeiramente cristãos.

Ainda segue sendo possível negar a Jesus Cristo.

(1) Negamo-lo mediante nossas palavras. diz-se de J. P. Mahaffy, o famoso erudito e homem de mundo irlandês, do Trinity College, de Dublin, que quando alguém lhe perguntou se era cristão, respondeu: “Sim, mas não em forma ofensiva.” O que quis dizer é que embora se considerasse cristão, não estava disposto a permitir que sua religião interferisse com as amizades e a classe de vida que o tornaram famoso.

Às vezes nós também dizemos a quem pergunta que sim, somos membros da Igreja, mas isso em realidade não é importante, que não temos a intenção de ser diferentes dos outros; que estamos dispostos a participar da medida que nos corresponde nos prazeres do mundo; e que não esperamos que nossos amigos respeitem os vagos princípios espirituais e religiosos que possamos ter. O verdadeiro cristão não pode escapar jamais ao dever de ser diferente com relação ao mundo. Não é nossa obrigação nos adaptar ao mundo; nosso dever é ser transformados e feitos diferentes com respeito ao mundo.

(2) Podemos negar a Cristo mediante nosso silêncio. Um novelista francês muito famoso relata a história de como uma jovem entra, mediante o casamento, em uma família muito antiga e tradicionalista. A família não estava de acordo com o casamento, embora eram muito bem educados para formular suas objeções e críticas de maneira direta. Mas a jovem esposa confessa, depois de muitos anos, que toda sua vida tinha sido um tortura, “pela ameaça das coisas que jamais se diziam”. Na vida cristã, pode existir a ameaça de coisas que jamais se dizem. Uma e outra vez a vida nos dará a oportunidade de dizer algumas palavras em favor de Cristo, de pronunciar nosso protesto contra o mal de adotar alguma posição, de demonstrar de que lado estamos. Vez após vez em tais ocasiões é muito mais fácil guardar silêncio que falar. Mas esse silêncio é em si uma negação de Jesus Cristo. É muito provável que bem mais pessoas neguem a Jesus Cristo com seu silêncio covarde, que expressando-se deliberadamente contra Ele.

(3) Podemos negar a Cristo mediante nossas ações. Podemos viver de tal modo que nossas ações sejam uma contínua negação da fé que professamos com nossas palavras. Aquele que se consagrou a um evangelho de pureza, pode ser culpado de inumeráveis faltas aparentemente pequenas, de brechas em uma conduta que deveria ser estritamente honrada. Aquele que aceitou seguir a um Senhor que o convida a tomar sua cruz, pode, entretanto, viver uma vida dominada pela atenção ao seu próprio luxo e satisfação. Aquele que entrou ao serviço de um Mestre que viveu perdoando e recomendou a seus discípulos perdoar até a seus inimigos, e amá-los deste modo, pode, entretanto, viver uma vida cheia de amargos ressentimentos e de hostilidade contra seus próximos. Aquele que se comprometeu a viver tendo como meta a um Cristo que amou, até morrer por esse amor, a todos os homens, pode, entretanto, viver uma vida na qual o serviço, a caridade e a generosidade cristãs estejam claramente ausentes.

Para a conferência de Lambeth (onde se reúnem periodicamente todos os dirigentes da Igreja Anglicana) de 1948 se escreveu uma oração especial que dizia:

Deus Todo-poderoso, dá-nos tua graça para que não sejamos apenas ouvintes mas também praticantes de tua Santa Palavra, para que não apenas admiremos mas também obedeçamos tua doutrina, para que não apenas professemos mas também pratiquemos tua religião, e para que não apenas amemos mas também vivamos teu evangelho. Concede-nos, pois, que recebamos em nossos corações tudo o que possamos aprender de tua glória e o ponhamos de manifesto em nossas ações. Por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.

Esta é uma oração que, em suas palavras ou em seu espírito, todos nós deveríamos lembrar e usar constantemente.

Estudo sobre Mateus 10:34-39

Em nenhum outro lugar se manifesta como aqui a extraordinária honestidade de Jesus Cristo. Aqui nos fala da exigência da fé cristã da maneira menos equivocada e mais comprometedora possível. Diz aos seus exatamente o que podem esperar se aceitarem a ordem de sair como mensageiros do Rei. Nesta passagem Jesus oferece quatro coisas.

(1) Oferece uma luta; luta na qual até os próprios parentes e amigos do cristão serão seus inimigos. Jesus usa uma linguagem que os judeus conheciam perfeitamente bem. Os judeus acreditavam que uma das características do Dia do Senhor, o dia em que Deus irromperia na história, seria a divisão das famílias. Os rabinos diziam: “Quando vier o Filho de Davi, a filha se levantará contra sua mãe, a nora se rebelará contra sua sogra.” “O filho desprezará a seu pai, a filha se rebelará contra sua mãe, a nora contra sua sogra e os inimigos de cada homem serão os de sua própria casa.” É como se Jesus estivesse dizendo: “O fim que todos vocês esperavam chegou; a intervenção de Deus na história está já dividindo os lares, os grupos, as famílias.”

Toda causa de certa magnitude inevitavelmente divide os homens; sempre haverá quem responda ao desafio e quem se negue a fazê-lo. Ao ser confrontados por Jesus inevitavelmente somos também confrontados pela decisão de aceitá-lo ou rejeitá-lo; enquanto o mundo existir está e estará sempre dividido entre os que aceitaram e os que não aceitaram a Cristo.

A amargura maior desta luta era que os inimigos do homem seriam os de sua própria casa. É possível que um homem ame tanto a sua esposa e a seus filhos, que se negue a aceitar o desafio de uma grande aventura, de uma forma de serviço, de um chamado ao sacrifício, seja porque não quer abandoná-los, seja porque acredita que se aceitar, os que ama se veriam envoltos em riscos e perigos.

T. R. Glover cita uma carta que Oliver Cromwell, um puritano que chegou a governar a Inglaterra, escrevera a Lorde Wharton. A carta está datada de 19 de janeiro de 1649. A idéia de Cromwell era que muito provavelmente Wharton estivesse tão afeiçoado com sua esposa e tão apegado a seu lar que pudesse rechaçar o chamado à aventura e à batalha que lhe dirigia, e que escolhesse ficar em sua casa: “Dê minhas saudações a sua muito apreciada esposa. Gostaria que você não a transformasse em uma tentação maior do que já é. E o mesmo com todas as outras relações humanas. As misericórdias jamais deveriam ser transformadas em tentações; e entretanto com muito freqüência é precisamente isso que fazemos.”

Tem sucedido muitas vezes que os homens rejeitem o chamado de Deus a uma vida de serviço, aventura ou luta por permitir que suas amizades ou família os imobilizassem.

Muito poucas vezes nos encontraremos de frente com esta terrível opção; possivelmente a maioria passe toda sua vida sem ter que decidir desta maneira; mas subsiste o fato de que é possível que os seres mais amados se transformem em nossos inimigos, ao nos impedir de fazer o que sabemos que Deus quer de nós e espera que nós façamos.

(2) Jesus nos oferece uma escolha. Nela às vezes será necessário escolher entre os laços mais tenros que pode haver sobre a Terra e nossa lealdade a Jesus Cristo.

Bunyan, o autor de O Peregrino, conhecia muito bem a severidade desta opção. O que mais lhe preocupava de seu confinamento no cárcere era o efeito que a separação podia ter em sua esposa e seus filhos. O que lhes aconteceria quando ele não estivesse para ajudá-los e defendê-los? Escreveu no cárcere:

“A separação de minha esposa e meus pobres filhos esteve presente mais de uma vez, comigo, nesta cela, como ganchos de ferro que me arrancassem a carne dos ossos; e não somente porque possivelmente aprecie muito estas misericórdias de Deus, mas sim porque pensava que tivesse tido que refletir, antes, nas muitas dificuldades, misérias e carências que minha família teria que suportar no caso que eu lhes faltasse, especialmente meu pobre filho cego, que está mais perto de meu coração que todo o resto. Quando pensava na miséria de meu pobre ceguinho, meu coração parecia que ia romper-se em pedaços. Entretanto, recuperando o controle de meus pensamentos, penso que não poderia ter agido de outro modo, e que se hoje pudesse voltar a decidir, arriscaria tudo de novo, em nome de Deus, embora abandoná-los me desgarrasse. Bem via que nessa situação era eu um homem que estava derrubando sua casa sobre a cabeça de sua esposa e filhos; e no entanto, pensava, isso, precisamente, era o que estou obrigado a fazer.”

Repetimos, decisões de tão extrema magnitude nos imporão muito de vez em quando; graças à misericórdia de Deus a maioria de nós jamais será confrontada por elas; mas o fato é que todas as lealdades devem ceder diante da exigência da lealdade a Deus.

(3) Jesus lhes ofereceu uma cruz. Os galileus sabiam muito bem o que era uma cruz. Quando o general romano Varus conseguiu subjugar a revolta de Judas da Galiléia, crucificou a dois mil judeus, colocando as cruzes ao longo de todo os caminhos da Galiléia. Na antiguidade os criminosos eram obrigados a levar a sua cruz até o lugar da execução. Os homens a quem Jesus se dirigia tinham visto mais de uma vez a seus compatriotas vergando sob o peso de suas cruzes, e morrendo na mais terrível agonia sobre elas. Os grandes crentes, cujos nomes estão inscritos na lista de honra da fé, sabiam perfeitamente bem o que estavam fazendo.

Depois de seu julgamento no castelo do Scarborough, George Fox escreveu: “E os magistrados me ameaçavam, dizendo que me pendurariam dos muros do castelo... falavam todo o tempo de me pendurar. Mas eu lhes disse que se isso era o que desejavam, e se lhes fosse permitido fazê-lo, eu estava disposto.”

Quando Bunyan foi levado perante o magistrado, disse: “Senhor, a lei de Cristo oferece duas formas de obediência; a primeira é fazer o que em minha consciência acredito que é minha obrigação, e esta é a forma ativa da obediência; a segunda, quando a obediência ativa não é possível, é estar disposto a sofrer tudo o que queiram me fazer.”

O cristão pode ser chamado a sacrificar suas ambições pessoais, o conforto e o lazer de que poderia ter desfrutado, a carreira que poderia levá-lo a triunfo pessoal; pode ter que deixar de lado seus sonhos, compreender que coisas brilhantes das que percebeu um brilho não são para ele. Certamente deverá sacrificar sua vontade, porque nenhum cristão pode jamais voltar a fazer o que gostaria muito; deve fazer o que Cristo quer que faça. No cristianismo sempre há alguma cruz, porque o cristianismo é a religião da cruz.

(4) Jesus lhes ofereceu uma aventura. Disse-lhes que o homem que encontrava sua vida, em realidade a perdia; e que o homem que perdia sua vida, a achava. Uma e outra vez esta afirmação aparentemente contraditória foi demonstrada nos fatos como verdadeira até em um sentido literal. Sempre foi certo que mais de um cristão poderia ter salvo sua vida; mas ao fazê-lo, a teria tivesse em realidade perdido, porque ninguém jamais teria ouvido falar dele, e o que ele fez na história jamais teria sido feito, e teria perdido o lugar que ocupa na galeria dos homens que deram forma ao presente em que vivemos.

Epicteto diz de Sócrates: “Ao morrer salvou sua vida, porque não fugiu.” Sócrates poderia ter salvo sua vida com facilidade, mas se o fizesse, o verdadeiro Sócrates teria morrido, e ninguém jamais teria ouvido falar dele.

Quando Bunyan foi acusado de recusar-se a assistir os serviços religiosos oficiais e celebrar reuniões espirituais proibidas em sua casa, pensou seriamente se seu dever era procurar a segurança na fuga ou sustentar a posição que acreditava correta. E como todo mundo sabe, escolheu defender suas convicções.

T. R. Glover conclui seu ensaio sobre Bunyan dizendo:

“Suponhamos que se conseguisse convencê-lo de seu erro, e que tivesse aceito participar do culto divino oficial, abandonando suas reuniões ilegais que subvertiam a paz do reino e serviam como oportunidade de manifestar sua rebeldia a muitos súditos da coroa, contra os leis do rei... A cidade de Bedford teria tido um funileiro a mais (porque esse era seu ofício), possivelmente não dos melhores, pois nada indica que os renegados sejam bons funileiros – e Inglaterra teria perdido uma de suas glórias nacionais.”

Na vida cristã não há lugar para a política da segurança a qualquer custo. O homem que busca o conforto, a tranquilidade e o cumprimento de suas ambições pessoais possivelmente as obtenha – mas não será feliz, porque sua razão de ser no mundo era servir a Deus e a seu próximo. A pessoa pode entesourar a vida, se deseja fazê-lo. Mas deste modo a única coisa que conseguirá é perder todas as coisas que fazem da vida um bem valioso, tanto para outros como para ele mesmo. O caminho do serviço a outros, o caminho do serviço a Deus, o caminho da verdadeira felicidade é empregar nossa vida até o final no serviço e o testemunho, porque somente deste modo encontraremos a verdadeira vida, aqui e no além.

Estudo sobre Mateus 10:40-42

Quando Jesus disse isto, estava fazendo uso de um modo de expressar-se muito comum entre os judeus. Os judeus acreditavam que receber o enviado ou mensageiro de uma pessoa era como receber a essa mesma pessoa. Render honras a um embaixador era o mesmo que render honras ao rei que o tinha enviado. Receber com amor o mensageiro de um amigo, era como receber o amigo em pessoa. Assumia-se esta atitude especialmente com respeito aos sábios e os homens que tinham sido instrutores na verdade de Deus. Os rabinos diziam: “Quem oferece sua hospitalidade ao sábio é como se levasse a Deus a oferenda de seus primeiros frutos.” “Quem recebe o estudioso é como se recebesse a Deus.” Se um homem de Deus é verdadeiramente um homem de Deus, recebê-lo é como receber ao Deus que o enviou.

Nesta passagem podemos nos dar conta de quais são os elos da cadeia da salvação. É uma cadeia que tem quatro elos.

(1) Em primeiro lugar vem Deus, que por Seu amor inicia todo o processo da salvação.
(2) Em segundo lugar vem Jesus, que trouxe a mensagem aos homens.
(3) Em terceiro jogar vem o mensageiro humano, o profeta de Deus. O crente sincero que é um bom exemplo para outros, o discípulo que aprende os ensinos do Mestre, e então ele transmite a outros as boas novas que ele mesmo recebeu.
(4) Em quarto lugar vem o crente que recebe os homens de Deus e sua mensagem, que é a mensagem de Deus, e assim, fazendo isso encontra a vida para sua alma.

Nesta passagem há algo muito precioso para todas as almas simples e humildes.
(1) Nem todos podemos ser profetas, ou proclamar e pregar a Palavra de Deus. Mas o que oferece ao mensageiro de Deus o simples dom da hospitalidade receberá a mesma recompensa que o profeta mais exaltado. Há muitos homens que chegaram a ser figuras reconhecidas na história; há muitos homens cujas vozes conseguiram incendiar de entusiasmo e amor os corações de seus ouvintes; há muitos homens que tiveram que suportar tremendas cargas de responsabilidade em seu serviço ao próximo, à nação e ao mundo, todos os quais teriam dado alegremente testemunho de que não teriam suportado as exigências de seu ofício sem o apoio do amor, do cuidado e da simpatia e do serviço de alguém no lar, que nunca figurou em público. Quando se medir a verdadeira grandeza de cada ser humano, segundo as pautas com que julga Deus, descobrir-se-á que todos os homens que comoveram o mundo por sua grandeza dependiam de outros que, desconhecidos para o mundo, fizeram possível sua obra. O profeta também necessita que se prepare para ele o café da manhã, e que se cuide de sua roupa; até ele necessita de um lar.

Que todos os que têm a ingrata tarefa de cuidar da casa, preparar as refeições, lavar a roupa, fazer as compras, cuidar dos meninos, não mais pensem que suas tarefas carecem de importância e de mérito; provavelmente seja, aos olhos de Deus, o serviço mais importante de todos. Quando chegar o momento de receber a recompensa, a sua não será menor do que do profeta, e certamente será maior que a daqueles que não souberam cuidar de um lar por ocupar-se muito em comissões e tarefas várias na igreja.

(2) Nem todos podemos ser exemplos brilhantes de bondade e santidade. Nem todos podemos ser aclamados pelo mundo como homens justos. Mas aquele que ajuda o santo a ser santo recebe a recompensa do santo.

H. L. Gee escreveu uma bela história. Havia um moço de um povo de campanha que depois de muitas lutas conseguiu chegar a ser pastor da igreja. Um amigo dele, que era sapateiro em seu próprio povo, tinha-o ajudado para que pudesse seguir seus estudos. No dia que o jovem pregador foi ordenado, o sapateiro, que como muitos dos membros de seu ofício era um homem capaz de profundas reflexões, disse-lhe:

“Sempre foi meu desejo ser um ministro do evangelho, mas as circunstâncias de minha vida o fizeram impossível. Mas você obteve o que para mim foi um caminho fechado. E quero que me prometa uma coisa: Quero que sempre me permita remendar de graça os seus sapatos. Quando você subir ao púlpito levará postos os sapatos que eu remendei, e então eu sentirei que você está pregando o evangelho que eu sempre quis pregar... em meus sapatos.”

E sem lugar a dúvidas o sapateiro estava servindo a Deus tanto quanto o pregador, e a recompensa dos dois seria, algum dia, a mesma.

(3) Nem todos nós podemos ensinar aos meninos; mas em um sentido muito real todos podemos fazer algo para ajudar no crescimento dos meninos. Possivelmente não tenhamos os conhecimentos ou o domínio das técnicas do ensino que requer a profissão docente, mas há outras tarefas, possivelmente mais humildes, que são necessárias para que os meninos vivam e cresçam felizes e sãos.

É possível que nesta passagem Jesus não fale tanto de meninos pequenos no sentido cronológico, como de meninos na fé. Os rabinos costumavam chamar “filhos” e “pequenos” a seus discípulos. É possível que não sejamos capazes de “ensinar” no sentido técnico da palavra mas há um ensino que se transmite pelo exemplo, que até a pessoa mais humilde e singela pode oferecer a todos os que estão a seu redor.

A grande beleza desta passagem é o acento que põe nas coisas mais simples e humildes. A Igreja e Jesus Cristo sempre necessitarão seus grandes oradores, seus brilhantes exemplos de santidade, seus grandes mestres e teólogos, aqueles cujos nomes serão conhecidos em sua época, e muito tempo depois, por todo mundo. Mas a Igreja e Cristo, necessitarão também sempre a aqueles em cujos lares há hospitalidade, em cujas mãos está a virtude do serviço humilde que mantém em funcionamento o lar, e em cujos corações há essa preocupação pelo bem-estar dos outros, cujo verdadeiro nome é “caridade cristã”. Podemos estar seguros de que todo serviço é de idêntico valor aos olhos de Deus.

Intertextualidade com o Antigo Testamento

O capítulo 10 começa com a lista dos doze apóstolos que Jesus escolheu (vv. 1-4), sem dúvida baseada no número de tribos de Israel nos tempos do AT (cf. 19:28). Jesus está reconstituindo a comunidade da aliança de Deus entre seus seguidores. O restante do capítulo contém suas instruções aos Doze, tanto para sua primeira missão de curto prazo (10:5–16) quanto para o restante da “era da igreja” (10:17–42). A referência às ovelhas perdidas da casa de Israel (10:6) pode aludir a Jer. 50:6 (veja também Isaías 53:6; Ezequiel 34). Os discípulos são encarregados de proclamar a mesma mensagem do reino que João e Jesus pregaram (sobre o que ver acima, pp. 11-12, 18). Seu ministério de operação de milagres (10:8) também dependerá dos mesmos textos do ministério de Jesus (especialmente Isaías 35:5-6). A referência a Sodoma e Gomorra (10:15) relembra os eventos de Gênesis 18:20–19:28. A derrubada dessas cidades já havia se tornado proverbial nos tempos do AT (Isa. 1:9; 13:19; Jer. 23:14; 50:40; Amós 4:11; ver Davies e Allison 1988–1997: 2:179) . “Astuto” é uma característica natural para atribuir às serpentes (10:16), à luz da descrição da serpente no jardim (Gn 3:1).

Na segunda metade do capítulo (10:17-42), o conflito familiar previsto em 10:21 ecoa Mic. 7:6 e prenuncia 10:35, que citará este texto explicitamente. O versículo 30 parece ecoar 1 Sam. 14:45, sobre não permitir que um fio de cabelo da cabeça de Jônatas caísse no chão. O versículo 37 contém um eco de Deut. 33:9, no qual Levi diz que não tinha consideração por seus pais, não reconhecia seus irmãos e não reconhecia seus próprios filhos, mas vigiava a palavra de Deus e guardava sua aliança. “Receber um profeta” em 10:41 pode remontar às histórias sobre a recepção de Elias pela viúva de Sarepta (1 Reis 17:9–24) e de Eliseu pela sunamita (2 Reis 4:8–37). . “Pequeninos” como designação para os discípulos (10:42) pode ter sido emprestado de um texto como Zac. 13:7, que Mateus citará mais explicitamente mais tarde (26:31) (Davies e Allison 1988–1997: 2:229).
10:35

A. Contexto do NT. Um tema central em Mat. 10:17–42 é a hostilidade que os discípulos experimentariam após a morte e ressurreição de Cristo, refletida em parte nas perseguições descritas em Atos, nas epístolas e no Apocalipse. Nesse contexto, Jesus lembra a seus seguidores que não veio trazer paz, no sentido de ausência de conflitos externos, nesta vida (10:34a). Schweizer (1975: p. 251) observa: “O reino de Deus nunca foi a paz dos falsos profetas que clamam ‘Paz, paz!’ enquanto a avareza e a mesquinhez devastam a terra e transformam a boa criação de Deus em seu oposto (Jr 6:14; etc.); nem, porém, é a ‘guerra santa’ dos devotos que entram em campo para vencer seus opressores com o poderoso apoio de Deus”. Muito pelo contrário, às vezes seu ministério criava conflito, pois as pessoas ficavam polarizadas em suas respostas à sua mensagem e aos missionários (10:34b). Assim, Jesus pode declarar: “Eu vim para colocar um homem contra seu pai, uma filha contra sua mãe, uma nora contra sua sogra, e os inimigos de uma pessoa serão os membros da família” (10 :35–36). Pela primeira vez até agora, Mateus não dá nenhuma introdução para mostrar que a Escritura está sendo citada, mas a falta de tal fórmula era bastante comum no judaísmo antigo.

A citação não se aplica da mesma forma aos lares inteiramente cristãos; Jesus está pensando principalmente nas lealdades conflitantes de crentes e incrédulos. No entanto, mesmo nas melhores famílias, os desejos de uma pessoa podem ir contra a vontade de Deus, caso em que a lealdade a Deus deve claramente ter precedência até mesmo sobre os laços humanos mais íntimos (10:37). Tal lealdade pode levar a carregar a cruz, literal ou metaforicamente (10:38), mas aqueles que perdem suas vidas físicas por Cristo ganharão a vida eterna (10:39). O contexto deixa claro que Jesus não está iniciando diretamente a guerra dentro das famílias, mas está falando sobre a resposta frequente daqueles que o rejeitam. Sabendo que isso aconteceria e ainda levando adiante sua missão, Jesus pode alegar indiretamente estar causando a hostilidade. France (1985: p. 188) conclui: “Jesus pede não uma atitude desamorosa, mas uma vontade de colocá-lo em primeiro lugar na situação concreta em que o chamado de Jesus e o da família entram em conflito”. O mesmo ditado aparece de forma expandida em Lucas 12:53. Se este foi um Q logion, nem Mateus nem Lucas o seguiram tão de perto, mas presumivelmente Mateus preservou a forma mais original (ver Heil 1997).

B. Contexto do AT. Miquéias 7 descreve a impiedade em Israel antes de sua derrota pela Assíria em 722 AC. Os pecados incluem assassinato (7:2b), suborno e injustiça (7:3) e traição, mesmo dos amigos mais íntimos (7:5). A lista de exemplos de inimigos dentro da própria casa (7:6) segue naturalmente. Wolff (1990: 210) vê isso como a intensificação da hostilidade provisória já descrita. Todos os homens (incluindo adultos) em uma casa estavam sob a autoridade do patriarca; todas as mulheres (incluindo esposas de filhos e filhos homens) estavam sob a tutela da matriarca. Portanto, os exemplos fornecidos cobrem todas as violações possíveis (Andersen e Freedman 2000: p. 573). Finalmente, Miquéias contrasta sua atitude: vigiar com expectativa o Senhor e esperar que Deus, seu Salvador, o ouça (7:7). A principal diferença do contexto em que Jesus emprega essas palavras é que Miquéias aparentemente não prevê vítimas inocentes - os justos para quem os injustos causam problemas - uma vez que ele já declarou que os piedosos foram varridos da terra e que não restou nenhum justo. (7:2a)!

C. Uso em fontes judaicas. Miquéias 7:1–5 no Targum continua a descrever a impiedade nos dias de Miquéias, mas 7:6 muda abruptamente para o tempo futuro: “Pois naquele tempo o filho rejeitará o pai, a filha brigará com a mãe, a filha... a sogra tratará a sogra com desprezo; a própria família de um homem serão seus inimigos. Se o Targum entendesse esse versículo como uma profecia de algo além do que ocorreu no século VIII aC, e se Jesus conhecesse essa tradição interpretativa, teria sido muito natural para ele reaplicar o versículo à hostilidade que ele conhecia. seguidores enfrentariam. A partir de textos como estes e outros citados abaixo, Hagner (1993: p. 292) pensa que a própria passagem de Miquéias originalmente se referia a “um tempo de angústia antes da libertação escatológica”. Curiosamente, 7:7 no Targum continua: “Mas eu me alegrarei na Memra do Senhor, exultarei no Deus que realiza a minha salvação; meu Deus ouvirá minha oração”, enquanto 7:8 identifica explicitamente o tempo de cumprimento como o da opressão romana, acrescentando: “Não te alegres de mim, ó Roma, minha inimiga”.

Caso contrário, não há citações judaicas explícitas e comprovadamente pré-cristãs de Mic. 7:6. Possíveis alusões incluem Ahiqar 139: “Minha angústia é minha própria culpa, diante de quem serei considerado inocente? Meus próprios filhos espiaram minha casa, o que direi a estranhos? (e cf. linha 140 com sua referência a um envenenador da própria casa); 3 Barra. 4,17: “Irmão não se compadece de irmão, nem pai de filho, nem filho de pai”, falando de quem pratica o mal através da embriaguez (cf. também 5,17); 1 Pt. 56: 7: “Um homem não reconhecerá seu irmão, nem um filho sua mãe, até que haja um número (significativo) de cadáveres dentre eles”, falando de quando a cidade de “meus justos” se tornará um obstáculo aos inimigos de Israel (cf., mais vagamente, 99:5; p. 100:2); Irmão Ou. 8:84–85: “Nem os pais serão amigos dos filhos nem os filhos dos pais por causa da impiedade e aflição além da esperança”, falando de um futuro tempo de confusão em toda a terra quando o governante universal vier e julgar toda a humanidade. A última dessas referências é talvez o paralelo mais interessante com Matt. 10:35–36, mas também a referência pós-cristã mais provável. Park (1995: p. 154) encontra ideias paralelas em 4Q175 14–20, mas os paralelos não parecem tão próximos quanto nas passagens citadas aqui. Ainda assim, havia cenas gerais suficientes de famílias em guerra no apocalíptico judaico anterior para tornar natural a aplicação de Jesus desse texto ao seu contexto (LC Allen 1976: 389). A literatura rabínica muito posterior aplicaria especificamente Mic. 7:6 até os dias do Messias (ver esp. b. Sanh. 97a; cf. m. Soṭah 9:15; b. Soṭah 49b, Midr. Song 2:13; sobre o qual, ver Grelot 1986).

D. Contexto Textual. O MT diz literalmente: “Pois um filho trata como um tolo o pai; a filha se levanta contra a mãe, a nora contra a mãe do marido; os inimigos de um homem [são] os homens de sua casa”. A LXX traduz “trata como um tolo” como “desonra”, mas traduz o hebraico literalmente para o grego, fornecendo pronomes possessivos apropriados e o verbo necessário na cláusula final. Mateus substitui “filho” por “homem”, omite o primeiro verbo (já que Jesus já usou um), mas apropriadamente, com base em seu uso posterior no versículo, insere “contra”, omite o segundo verbo e parafraseia ou abrevia a cláusula final lendo simplesmente “os inimigos de um homem são seus chefes de família”. É difícil demonstrar dependência exclusivamente do MT ou da LXX, mas o sentido de ambos é claramente retido.

E. Hermenêutica empregada. Porque nem Mateus nem Jesus introduzem esta citação com qualquer fórmula, é bem possível que nenhum deles tenha pensado nisso como algum tipo de cumprimento de profecia. A hermenêutica empregada é citar a linguagem bíblica apropriada a um contexto específico que contém certos paralelos com seu contexto original, assim como podemos hoje tentar encorajar um cristão oprimido dizendo: “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os últimos”. seja o primeiro” (um ditado que foi usado em vários contextos diferentes do NT). De fato, pode-se argumentar que “esta não é uma citação, mas apenas uma linguagem alusiva derivada de um versículo do AT que trata de tensões no lar durante o reinado de Acaz, que foi uma época de moralidade decadente, apresentando um padrão de apostasia que Miquéias teve que denunciar” (Archer e Chirichigno 1983: p. 159). Dada a quantidade de paralelismo, no entanto, talvez seja melhor chamá-la de citação, mas não tentar categorizá-la como um esquema particular de profecia e cumprimento. Jesus está falando do que veio fazer e simplesmente cai na linguagem bíblica por causa dos paralelos nas duas situações. Ao mesmo tempo, especialmente se a tradução do Targum já fosse conhecida, pode-se imaginar isso como uma forma de tipologia com bastante facilidade: um padrão recorrente de hostilidade por parte dos oponentes de Deus em momentos-chave da história de seu povo.

F. Uso teológico. Empregando ou não tipologia deliberadamente, Jesus, conforme relatado por Mateus, está usando a linguagem bíblica solenemente para sublinhar sua previsão de futura oposição a seus seguidores, mesmo entre seus próprios parentes. (Nolland [2005: p. 441] pensa que a direção da hostilidade – da geração mais jovem para a mais velha – tem como objetivo apontar a desobediência ao mandamento de honrar os pais.) Ao contrário de todas as passagens tratadas até agora, o ponto focal da citação é nem o próprio Jesus, nem João como precursor, nem algum princípio moral permanente, mas sim a futura perseguição aos seguidores de Jesus. Ainda assim, Jesus e Mateus, como os judeus antigos em geral, acreditavam que as Escrituras falavam de maneira relevante e abrangente para todas as situações, daí a adequação de expressar essas previsões na terminologia bíblica. Se qualquer um deles visse alguns em sua audiência relembrando o próximo versículo em Miquéias também (7:7), ele poderia ter esperado que eles inferissem que a salvação que Miquéias esperava foi agora fornecida em Cristo (ver Waltke 1993: p. 749) .

Notas Adicionais:

10:1 Jesus chamou seus doze discípulos como trabalhadores na colheita (Mt 9:37-38). A escolha de doze não é acidental - lembra as doze tribos de Israel. Jesus estava nomeando novos líderes para o novo povo de Deus sob seu reinado como Messias (Mateus 16:18-19; 18:18; 19:28; 21:43). • deu-lhes autoridade (Mateus 9:6-8; 28:18): Jesus capacitou os Doze a realizar ministérios que os líderes judeus não podiam realizar (Mateus 9:32-34; 10:5-8). A autoridade para expulsar espíritos malignos (literalmente impuros) (Mateus 8:28) e para curar são atribuídas a Jesus (Mateus 4:23; 8:1–9:35) em termos semelhantes.

10:2-4 As quatro listas dos apóstolos (veja também Marcos 3:16-19; Lucas 6:14-16; Atos 1:13) são todas diferentes, embora as diferenças sejam mínimas. A ordem dentro de cada lista varia um pouco, mas apenas os nomes Tadeu (10:3; Marcos 3:18) e Judas, filho de Tiago (Lucas 6:16; Atos 1:13) diferem. Eles podem ser dois nomes para o mesmo homem.

10:2 Os apóstolos são embaixadores ou mensageiros, autorizados e enviados por uma autoridade para representar e realizar tarefas prescritas (ver Mt 10:1-8, 40; 28:16-20). O termo também é usado para Paulo (Gl 1:1). • primeiro, Simão (também chamado de Pedro): Pedro tinha prioridade no tempo (Mateus 4:18-22; 16:17-19) e posição como líder representativo dos apóstolos (ver Mateus 19:27; 26:33; Atos 2:14).

10:3 Mateus (o cobrador de impostos) (ver 9:9) também é chamado de Levi (Marcos 2:14). • Tadeus: Outros manuscritos lêem Lebbaeus; ainda outros leem Lebbaeus, que é chamado Tadeus.

10:4 o fanático: grego, o cananeu, um termo aramaico para nacionalistas judeus. Os zelotes eram judeus militantes que pensavam que a violência e a guerra eram capazes de realizar a vontade de Deus. Como um nacionalista judeu, Simão provavelmente era zeloso pela lei (Atos 22:3-5; Gálatas 1:14; Fp 3:6). Josefo culpou o partido zelote pela grande guerra com Roma em 66-70 DC. • Iscariotes pode se referir a alguém de Queriote no sul da Judéia (Js 15:25) ou de Queriote na Peréia (Jr 48:24).

10:5 Não vá para os gentios: a missão de Jesus foi limitada aos judeus nesta fase (Mt 15:24). Através dos judeus, Deus alcançaria os gentios (Is 2:2-4; 42:6-7; 49:6; 60:3). • Os judeus consideravam os samaritanos como judeus impuros (Lucas 17:18) por causa de seu casamento misto com gentios durante e após os exílios assírio e babilônico (2 Reis 17:24-41). A tensão foi provocada em 128 AC, quando o líder judeu João Hircano destruiu o templo samaritano no Monte Gerizim (Josefo, Antiguidades 13.9.1).

10:6 Ser perdido é o resultado da negligência de seus pastores (Mt 9:36; 15:24).

10:7-8 Ao fazer essas coisas no nome e na autoridade de Jesus, os apóstolos demonstraram o status de Jesus como o Messias (veja 11:2-6).

10:8 Dê tão livremente quanto você recebeu! Embora a remuneração não seja imprópria (1 Cor 9:3-19; Gl 6:6; 1 Tm 5:17), Jesus exortou os apóstolos a evitar acusações de ganância (ver Atos 8:20; 20:33).

10:9-10 Os discípulos de Jesus deveriam confiar na provisão de Deus (Mateus 6:11, 25-34; 7:7-11), evitar a ganância que daria a outros a oportunidade de difamar o nome do Senhor e encorajar o comunidades recém-formadas para atender às necessidades de seus líderes (ver 1 Cor 9:3-19).

10:12 dê sua bênção: Saudações foram mais significativas do que um simples olá. Frequentemente, uma saudação transmitia uma bênção para aqueles que a recebiam (comp. Rute 2:4).

10:13 Um lar digno abraçaria a mensagem sobre Jesus e o Reino (Mt 10:37-38; 22:8). • A bênção dos discípulos era uma oferta de salvação; retirar a bênção era um sinal de julgamento, pois a oferta foi retirada.

10:14 sacuda o pó de seus pés: Este gesto profético (veja “ Atos dos Sinais Proféticos “ em Ezequiel 4) é explicado pelo costume israelita de expressar descontentamento com a impiedade, sacudindo o pó dos gentios sempre que cruzam a fronteira para Israel. O gesto significa a rejeição dos discípulos àqueles que se opõem à obra de Deus (veja Atos 18:6). Pronunciar julgamento sobre aqueles que rejeitam a mensagem faz parte da proclamação das Boas Novas sobre o Reino (ver Mt 11:20-24; 13:10-15; 23:37-39; 24:1-36).

10:15 Deus destruiu Sodoma e Gomorra por causa de sua maldade (Gn 18:16–19:29). Agora, com uma revelação mais completa em Jesus Cristo, uma cidade que rejeitasse a pregação dos discípulos receberia um julgamento mais completo. • tal cidade: Uma vila ou cidade inteira é culpada quando uma maioria significativa rejeita a mensagem (veja Atos 13:45-47, 50-51; 14:1-7). No entanto, os indivíduos que respondem com fé são salvos (por exemplo, Ló; veja Gn 19:1-29; 2 Pe 2:6-9).

10:16 Falsos líderes que se aproveitam da vulnerabilidade espiritual das pessoas ao invés de exercer cuidados pastorais apropriados são frequentemente chamados de lobos (Ezequiel 22:27; Sofonias 3:3; compare com Provérbios 28:15). • seja astuto como as cobras e inofensivo como as pombas: O provérbio exige ser astuto, mas não enganoso.

10:18 Mas esta será sua oportunidade de contar aos governantes e outros incrédulos sobre mim: Ou Mas este será seu testemunho contra os governantes e outros incrédulos.

10:19-20 Assim como Deus deu a Moisés um porta-voz em Arão (Êxodo 4:10-17), assim Deus daria aos discípulos de Jesus as palavras certas na hora certa por meio do Espírito (João 14:26; Atos 4:8).

10:21-22 Os judeus regularmente associavam conflitos familiares com os últimos tempos (ver 24:9-10). Jesus também experimentou tais conflitos (12:46-50). • Todo aquele que persevera até o fim refere-se àqueles que permanecem fiéis a Jesus, até a morte ou até a sua volta (10:23). • serão salvos: Embora alguns tenham entendido esta frase como significando libertação temporal da perseguição (como libertação da prisão), a ideia aqui é a salvação eterna para aqueles que permanecem fiéis.

10:22 porque vocês são meus seguidores: Literalmente por causa do meu nome.

10:23 Filho do Homem é um título que Jesus usou para si mesmo. • retornará: Os estudiosos estão divididos quanto a se isso se refere à segunda vinda de Cristo para sua igreja ou a uma vinda anterior para julgamento — ou seja, a destruição de Jerusalém em 70 DC (ver 16:28). • antes de você chegar: Jesus quis dizer “antes de você ter fugido por todas as cidades” ou “antes de ter evangelizado todas as cidades”. O foco na perseguição no contexto (ver 10:17-39) favorece o primeiro, sugerindo que as cidades eram como cidades de refúgio (Nm 35:9-32). A ênfase está em quão ampla será a rejeição da mensagem - ou seja, “não até que toda a nação os expulse da cidade”.

10:25 Nos dias de Jesus, Satanás era frequentemente chamado de príncipe dos demônios. O termo grego é Beelzeboul (outros manuscritos leem Beezeboul), do nome de uma divindade pagã do AT, Baal-zebul (“senhor, o príncipe”). A versão latina diz Belzebu, que é uma transliteração de uma frase hebraica (“senhor das moscas”), que provavelmente foi um insulto judaico a Baal-Zebul (veja 2 Reis 1:2).

10:28 Os discípulos de Jesus devem temer somente a Deus, obedecendo-o e testificando dele; em contraste com as autoridades humanas, a autoridade e o julgamento de Deus são ilimitados. • inferno (Gehenna grega): Veja nota em 5:29.

10:29-31 Porque Deus se importa com cada pardal, e porque os discípulos de Jesus são muito mais valiosos, certamente os discípulos não precisam temer - Deus cuidará providencialmente deles.

10:29 uma moeda de cobre: grego um assarion (ou seja, um “as”, uma moeda romana igual a 1/16 de um denário).

10:32-33 Deus aceita aquele que reconhece Jesus publicamente no contexto de julgamento e perseguição (10:16-25). Esses versículos dizem respeito ao padrão de vida de uma pessoa (ver 7:13-27) e não a uma única confissão ou negação. Por exemplo, Judas reconheceu Jesus em casos individuais, mas foi condenado (26:23-24), enquanto Pedro negou Jesus (ver 26:69-75), mas foi salvo.

10:34 Jesus trouxe paz (João 14:27), mas não de tipo social e político. Em vez disso, Jesus chama os humanos para tomarem uma decisão sobre ele, o que traz uma espada — ou seja, divisão (ver Mateus 8:21-22; 12:46-50; Lucas 12:51).

10:37-39 A cruz era um instrumento romano de tortura e execução (27:27-55). Tomar a cruz e seguir a Jesus envolve amá-lo acima de todas as coisas e estar disposto a segui-lo independentemente das consequências físicas ou sociais.

10:41 Receba um profeta como alguém que fala por Deus: Literalmente receba um profeta em nome de um profeta. • A mesma recompensa de um profeta (literalmente, a recompensa de um profeta) significa a mesma recompensa que um profeta receberia ou o benefício do ministério do profeta. • Pessoas justas são aquelas que conformam seu comportamento à lei de Deus conforme ensinado por João Batista (Mateus 21:32) e Jesus (ver Mateus 3:15) e, portanto, são aprovados por Deus (Mateus 13:43, 49; 25:37-46).

10:42 O menor dos meus seguidores provavelmente se refere à baixa posição social da maioria dos seguidores de Jesus (comp. Mateus 5:3; 18:1-5 e Mateus 6:5; 23:5-12).

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