Gênesis 4 — Análise Bíblica

Análise Bíblica de Gênesis 4





Gênesis 4

4:1-16 O mal entre irmãos: Caim e Abel
Adão e Eva começaram a obedecer à ordem de Deus para serem fecundos, multiplicar-se, encher a terra e sujeitá-la (1:28). Eva engravidou e deu à luz primeiro Caim, depois Abel (4:l-2a). Cada um desses rapazes possuía suas próprias aptidões, de modo que Abel foi pastor de ovelhas, e Caim, lavrador (4:26). Seus interesses distintos são demonstrados naquilo que ofereceram ao Senhor. Trouxe Caim do fruto da terra, uma oferta (4:3), enquanto Abel trouxe das primícias do seu rebanho (4:4a). Nesse momento crítico, o texto nos revela um dos detalhes mais cruciais da história humana: agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta; ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou (4:46-5a).
Não há indicação do motivo pelo qual a oferta de Caim não foi aceita, mas é provável que Deus tenha lhes dito diretamente ou por intermédio de seu pai, Adão, que tipo de oferta ele desejava receber. A oferta de Abel é bastante parecida com as prescrições de passagens como Levítico 3:16, sugerindo que não foi baseada em mera adivinhação sobre o que seria aceitável a Deus. O Senhor exigia que o sacrifício envolvesse a oferta de uma vida em troca de outra, pois esta seria a única maneira pela qual ele podería perdoar o pecado (cf. Jo 10:11; Rm 5:8; Ef 5:2). Ao que parece, Caim escolheu deliberadamente oferecer algo agradável a ele próprio, e não a Deus. Seus pais haviam sido expulsos do jardim do Éden por desobedecerem à ordem explícita de Deus, e é plausível que Caim tenha feito o mesmo. Não se pode negociar com Deus aquilo que lhe oferecemos. Ele é o Criador que possui e concede todas as coisas, e sua palavra sobre as ofertas é final.
Se toda rejeição é difícil, mais difícil ainda é deixar de encontrar favor da parte de Deus. Caim deve ter se sentido muito mal. Quando deparamos com esse tipo de sentimento, podemos reagir de duas maneiras: na primeira, voltamos à estaca zero, descobrimos por que não encontramos favor e corrigimos a situação. Na segunda, nós nos iramos contra Deus e permitimos que a inveja nos faça odiar aqueles a quem Deus concede seu favor. Caim escolheu a segunda alternativa. Irou-se, pois, sobremaneira, Caim, e descaiu-lhe o rosto (4:56).
Deus não abandona os seres humanos porque pecaram. Tudo indica que, mesmo depois de expulsar Adão do jardim, Deus continuou a falar com ele e conceder sua graça. Da mesma forma como buscou Adão e Eva e os interrogou em 3:9-13, Deus também procurou Caim e lhe perguntou: Por que andas irado, e por que descaiu o teu semblante? (4:6). Deus sabia a resposta para essas perguntas, mas queria dar a Caim uma oportunidade de refletir sobre sua atitude.
A terceira pergunta foi: Se procederes bem, não é certo que serás aceito? (4:7a). Se Caim tivesse tratado do motivo pelo qual sua oferta não havia sido aceita e confessado o pecado, teria desfrutado a paz interior do perdão.
No entanto, Caim não estava disposto a confessar. Também não atentou para a advertência de Deus de que a transgressão deliberada e não confessada conduz a uma transgressão ainda mais grave: se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti (4:7b). E não estava interessado na exortação final de Deus: cumpre a ti dominá-lo (4:7c).
A essa altura, o pecado tinha fácil acesso aos seres humanos, pois seu coração havia se tornado pecaminoso. Assim, o tentador não precisava mais se envolver em discussões complicadas como a que teve com Eva. Havia persuadido Caim a fazer as coisas a seu modo, e não ao modo de Deus e, portanto, podia explorar as tendências malignas de Caim e levá-lo a cometer o pecado da ira. Assim, a ira de Caim contra Deus gerou inveja do irmão, um sentimento que se transformou rapidamente em ódio e o levou a planejar a morte de Abel. O pecado havia prejudicado o relacionamento entre o homem e sua esposa e, aqui, entra no relacionamento entre os irmãos e afeta a comunidade familiar.
O pecado de Caim não é incomum. Quando vemos o Senhor abençoar outra pessoa, nossa tendência é sentir inveja, em vez de nos perguntarmos se existe algum motivo para não termos sido abençoados. Uma resposta honesta a essa pergunta nos colocaria diante do Senhor com toda humildade e disposição de corrigir aquilo que está nos impedindo de receber sua bênção. Porém, quando acrescentamos outros pecados à inveja, tomamos o caminho que conduz a mais homicídios. As guerras civis travadas na África não são outra coisa senão africanos assassinando seus semelhantes africanos!
Quando não é tratada, a inveja conduz ao ódio e, quando o ódio é alimentado, inspira o mal contra o objeto odiado. Quando o mal pretendido é o homicídio, sempre envolve intriga. Caim fingiu querer a companhia do irmão no campo e, então, estando eles no campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão, e o matou (4:8). A perversidade de Caim está tão viva hoje em nosso meio quanto naqueles tempos remotos. Em nossas cidades e vilas na África, muitas pessoas ardilosas preparam armadilhas fingindo ser prestativas e depois assaltando os incautos. Outros são convidados a ir a algum lugar que parece seguro, só para descobrir que caíram numa armadilha mortal. Aqueles que participam de intrigas desse tipo serão tratados como Caim.
Mais uma vez, Deus toma a iniciativa e oferece a Caim a oportunidade de confessar. Pergunta: Onde está Abel? Caim responde com uma mentira, Não sei, e recorre à grosseria: acaso, sou eu tutor do meu irmão? (4:9). Em sua amargura, ele rejeitou o relacionamento fraternal que é uma dádiva especial de Deus e escolheu o individualismo, tal como Eva. No entanto, Deus nos deu a responsabilidade de cuidar uns dos outros (lTs 5:11; Hb 3:13; 10:24-25).
Diante dessa negação, o Senhor revelou saber exatamente o que havia acontecido: A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim (4:10). Era preciso fazer justiça depois de um crime tão hediondo contra um semelhante, de modo que o Senhor castigou Caim com uma versão ainda mais severa da maldição proferida em 3:17-24. Caim continuou sendo “lavrador” (4:2), mas, a partir de então, todo o trabalho seria improdutivo (4:11-12a). 0 Deus Criador da terra pode ordenar que ela seja produtiva ou estéril. Nós, africanos, conhecemos muito bem a frustração de lavrar a terra ano após ano sem obter uma boa colheita. Será que existe um motivo semelhante para a falta de chuva na África?
Quando alguém pergunta se a África é amaldiçoada, há quem se apresse em responder que não e profetizar que, um dia, a África será um luminar. Mas não devemos simplesmente aceitar essa visão esperançosa pela qual todos ansiamos; precisamos refletir com cuidado. O solo africano está embebido de sangue de conflitos e crimes, tanto civis quanto tribais. Precisamos tratar desses problemas que trazem consigo elementos de maldição sobre a África de nossos dias.
Enquanto seus pais haviam sido expulsos do Éden, Caim é sentenciado a uma vida de perambulação irrequieta (4:1-26). Caim não possuiría nada em caráter permanente. Ficaria infeliz com sua situação, mas não saberia como corrigi-la. É assim que uma maldição funciona: não pode ser removida por simples ações sobre seus efeitos. A única maneira de lidar com uma maldição é tratar da situação que a provocou. Só então haverá paz interior e outras bênçãos. Apenas os ignorantes zombam dos efeitos que uma maldição pode ter sobre indivíduos, famílias, clãs, tribos e até mesmo nações.
Depois de ouvir o castigo pronunciado por Deus, ainda impenitente, Caim pediu misericórdia: é tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo (4:13). Repetiu os termos de sua punição corretamente, mas acrescentou um item: quem comigo se encontrar me matará (4:14). 0 Senhor prometeu que isso não aconteceria, e pronunciou um castigo contra qualquer um que o matasse: qualquer que matar a Caim será vingado sete vezes. E pôs o Senhor um sinal em Caim para protegê-lo, de modo que não o ferisse de morte quem quer que o encontrasse (4:15). Existem várias opiniões acerca da natureza desse sinal. É possível que fosse um sinal físico visível a outros ou que fosse um sinal que Caim pudesse ver e se certificar da proteção de Deus. No entanto, a mensagem do sinal não era consoladora, pois significava: “Este homem foi separado para que eu — e mais ninguém — o castigue!”. Não é de admirar que Paulo tenha advertido: “de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará” (G1 6:7). Cuidemos para semear aquilo que é agradável a Deus, pois é algo terrível ser adversário de Deus numa batalha!
Uma vez colocado o sinal, retirou-se Caim da presença do Senhor e habitou na terra de Node, ao oriente do Eden. Ele havia perdido a coisa mais importante da vida: a presença do Senhor (4:16).
4:17—5:32 As primeiras genealogias
4:17-24 A linhagem de Caim: a multiplicação do mal Na terra de Node, longe da presença do Senhor, Caim formou uma família. O leitor sem dúvida se pergunta onde Caim encontrou sua mulher (4:17a). A única pista se encontra em 5:4, onde lemos que, depois do nascimento de Sete, Adão “teve filhos e filhas”. A conclusão lógica é que Caim se casou com uma de suas irmãs. Casamentos entre irmão e irmã não foram proibidos nos primeiros anos da humanidade, pois Deus aceitou-os como algo necessário por determinado período, ainda que, posteriormente, os tenha condenado (Lv 18:6-18).
Também ficamos sabendo que Caim construiu uma cidade e lhe chamou Enoque, o nome de seu filho. Seis gerações da família de Caim são apresentadas em 4:17-6.18: Caim, Enoque, Irade, Meujael, Metusael e Lameque. São mencionadas primeiro não por uma possível proeminência, mas para tratar logo de seus descendentes e não precisar mais falar deles adiante. A árvore genealógica do capítulo 5 segue a linhagem de Sete, e não a de Caim. 0 pecado prejudica indivíduos e famílias, colocando-os numa situação em que não estariam se tivessem seguido o caminho da retidão (SI 1:1-4). Os chefes de família devem se lembrar sempre dessa advertência. Nossos atos afetarão nossos filhos e os filhos deles. Não obstante, não precisamos supor que todos os descendentes de Caim viveram fora da vontade do Senhor, pois a graça de Deus excede a perversidade humana.
É significativo que o ideal de Deus para o casamento tenha sofrido outro golpe na linhagem de Caim, como vemos pela primeira menção à poligamia. Lameque tomou para si duas esposas: o nome de uma era Ada, a outra se chamava Zilá (4:19). Deus podería ter criado várias auxiliadoras para Adão, uma vez que o homem possuía mais costelas. No entanto, criou apenas uma mulher. Lameque agiu de forma contrária ao plano de Deus. Sua esposa Ada deu à luz Jabal e Jubal. Os descendentes de Jabal são os que habitam em tendas e possuem gado (4:20), enquanto Jubal foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta (4:21). 0 texto indica que esses homens foram os primeiros a adquirir tais aptidões. Zilá, a outra esposa de Lameque, teve um filho e uma filha. 0 filho foi Tubalcaim, artífice de todo instrumento cortante, de bronze e de ferro (4:22).
Ao que parece, Lameque se orgulhava de seguir o mau exemplo de seu antepassado Caim, pois se vangloriava de suas realizações perversas. Gabava-se de sua reação violenta a ofensas insignificantes (4:23) e considerava-se um vingador mais competente do que Deus: sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta vezes (4:24; cf. 4:15). Com essa declaração, também estava alegando ter a proteção prometida a seu antepassado, considerando-a, porém, uma justificativa para pecar com impunidade. Esse comportamento mostra que, quando o pecado não é confessado claramente e abandonado, transforma-se em armadilha e veneno para toda a comunidade, especialmente para as crianças de gerações futuras (SI 32:3,6; Pv 28:13; At 19:18; Tg 5:16).
4:25-26 A linhagem de Sete: o substituto de Abel A descrição dos dois primeiros filhos de Adão mostra que Abel temia a Deus, mas Caim não. Caim matou Abel como quem elimina um concorrente. No entanto, o poder de Deus não é limitado nem seus planos são frustrados pelas circunstâncias. Quando Sete nasceu, Eva disse: Deus me concedeu outro descendente em lugar de Abel (4:25). Logo em seguida, o autor afirma que a Sete nasceu-lhe também um filho, ao qual pôs o nome de Enos (4:26 a), mostrando que Sete formou uma família por meio da qual sua linhagem teve continuidade.
Também lemos que daí se começou a invocar o nome do Senhor (4:26b). Essa declaração faz um contraste entre as atitudes que Sete e Caim transmitiram a seus descendentes. Sete e sua linhagem temiam a Deus e invocavam seu nome. Lameque, o descendente de Caim, chamava suas esposas para ouvirem-no vangloriar-se (4:23). Pela primeira vez desde os acontecimentos trágicos no jardim do Éden, a narrativa adquire um tom positivo ao falar de Sete e seus descendentes. A atitude demonstrada no sacrifício oferecido por Abel começa a se arraigar na linhagem de seu irmão.