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ABEL
Personagem bíblico do Antigo Testamento, “Abel” (MT.: הֶבֶל (heḇel), LXX: Ἄβελ (Ábel), Vg.: Abel) é uma das figuras principais no livro de Gênesis. Segundo filho de Adão e Eva, Abel é descrito na Bíblia como um pastor justo cuja breve existência tornou-se paradigma do adorador fiel e do mártir inocente. Sua oferta — dos primogênitos e da gordura do rebanho — foi aceita por Deus não por seu valor material, mas pela fé com que foi feita, em contraste com o sacrifício de Caim, rejeitado por refletir um coração corrompido. Assassinato que inaugura a violência humana, a morte de Abel faz seu sangue clamar da terra por justiça (Gênesis 4:10), ecoando em tradições judaicas, cristãs e islâmicas como o primeiro grito por retidão moral diante de Deus. Na tradição cristã, ele é visto como tipo de Cristo: sua morte injusta antecipa a cruz, enquanto seu sacrifício puro prefigura o culto aceitável. A teologia patrística e apocalíptica amplia sua figura como juiz, mártir e ícone do justo perseguido, cuja voz, mesmo depois da morte, ainda fala pela fé (Hebreus 11:4) — uma voz que, diferentemente do sangue de Cristo, clama por justiça, não por perdão.
I. Nome, Etimologia e Fontes Textuais
O nome “Abel” é de etimologia incerta. O termo hebraico heḇel, comumente traduzido como “sopro”, “vapor” ou “transitoriedade”, remete ao caráter efêmero da vida do personagem, cuja existência foi abruptamente interrompida por um ato fratricida. A raiz הבל (hbl) sugere o mesmo campo semântico da “vaidade” em Eclesiastes (“vaidade de vaidades”, heḇel hăḇālîm), indicando algo passageiro, frágil e sem substância. Alguns autores antigos e patrísticos, como Jerônimo (De Nominibus Hebraicis), associam o nome tanto a heḇel (“vapor, vaidade”) quanto a ʾāḇēl (“luto, pranto”), em alusão à morte precoce do personagem e à dor de seus pais.
Filo de Alexandria oferece uma etimologia simbólica dividindo o nome em אָב (ʾāḇ, “pai”) e אֵל (ʾēl, “Deus”), interpretando-o como “aquele que remete tudo a Deus” (ἀναφέρων ἐπὶ Θεόν), ou ainda como “o piedoso”, em contraste com o egoísmo de Caim (φιλαυτία). Outros intérpretes judaicos e patrísticos, como Agostinho, Ambrosio e Crisóstomo, mantêm essas leituras tipológicas, conectando Abel ao justo sofredor e mártir, figura prenunciadora de Cristo.
O nome também é associado à ideia de “filho” ou “herdeiro” em línguas semíticas orientais: no acádio encontramos 𒀀𒉈 (ablu) e no babilônico abil, ambos significando “filho”, sendo cognatos plausíveis para heḇel, especialmente considerando a ausência de descendência de Abel no relato bíblico e sua morte como uma interrupção da linhagem humana original.
A tradição islâmica, seguindo a pronúncia árabe هابيل (Hābīl), preserva o nome como designação do mártir inocente, reiterando o contraste com Caim (Qābīl) e enfatizando o princípio da aceitação divina por meio da justiça e do temor a Deus (cf. Alcorão, Sura 5.27–31).
Na tradição rabínica e apócrifa, o nome de Abel aparece relacionado a diversas lendas etiológicas, como aquela que o conecta ao primeiro local de sepultamento humano, à caverna dos tesouros, à origem do culto sacrificial e à oposição entre o justo e o ímpio. Na literatura cristã primitiva, Abel torna-se o paradigma do justo perseguido, primeiro mártir e tipo de Cristo, como será tratado nas seções seguintes.
O texto base de sua história é Gênesis 4:1–10, com menções adicionais em Mateus 23:35, Hebreus 11:4 e 12:24, e 1 João 3:12. O versículo Gênesis 4:2, por exemplo, afirma: “וַיְהִי־הֶבֶל רֹעֵה צֹאן וְקַיִן הָיָה עֹבֵד אֲדָמָה” (vayhî-heḇel rōʿê ṣōn veqayin hāyâ ʿōvēḏ ʾădāmâ) — “E Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra.”
Essa distinção entre os irmãos — um pastor e outro agricultor — forma o pano de fundo simbólico e teológico para as interpretações que seguem.
II. Abel como Pastor, Adorador e Justo
A primeira descrição de Abel em Gênesis 4:2 destaca sua ocupação: “וַיְהִי־הֶבֶל רֹעֵה צֹאן” (vayhî-heḇel rōʿê ṣōn) — “E Abel foi pastor de ovelhas.” Essa caracterização não é meramente funcional, mas simbólica. A imagem do pastor, recorrente em toda a Escritura, desde Abel até Davi (1Sm 16:11) e Cristo (Jo 10:11), representa uma postura de cuidado, humildade e dependência direta da provisão divina. Já a contraposição com Caim, descrito como “עֹבֵד אֲדָמָה” (ʿōvēḏ ʾădāmâ, “lavrador da terra”), ecoa tensões sociais e espirituais antigas entre os nômades e os sedentarizados, um tema recorrente nas tradições semitas do Antigo Oriente Próximo. No entanto, como observam intérpretes modernos (cf. Sarna, Understanding Genesis, p. 28), o texto não despreza a agricultura; a preferência divina não está na profissão, mas na pessoa e no sacrifício.
O ápice da narrativa de Abel se dá no momento do culto: “וַיָּבֵא הֶבֶל גַּם־הוּא מִבְּכֹרוֹת צֹאנוֹ וּמֵחֶלְבֵהֶן” (vayyāḇēʾ heḇel gam-hûʾ mibbekōrōṯ ṣōnô ûmēḥelḇēhen) — “E Abel também trouxe, ele mesmo, dos primogênitos do seu rebanho e da gordura deles” (Gn 4:4). A oferta de Abel é qualificada por dois elementos decisivos: era dos primogênitos (mibbekōrōṯ) e de sua gordura (ḥelḇēhen), indicando tanto a excelência quanto a espontaneidade sacrificial — um padrão que depois se tornaria regulado pela Lei mosaica (cf. Êx 22:29–30; Lv 3:16).
A aceitação de sua oferta não é explicitamente descrita em Gênesis por meios visíveis, mas textos posteriores, como Hebreus 11:4, interpretam que “pela fé” (πίστει, pistei) Abel ofereceu “uma oferta mais excelente que a de Caim” (πλείονα θυσίαν, pleíona thysían), implicando não apenas o conteúdo material do sacrifício, mas o coração crente do ofertante. Essa distinção é teologicamente determinante. O autor de Hebreus apresenta Abel como o primeiro crente justificado por sua fé, sendo “testificado como justo” (δικαιος, dikaios) e ainda hoje “falando” (λαλεῖ, laleî) por meio de sua morte.
No texto de Gênesis 4:5, Deus rejeita a oferta de Caim, e em 4:7 insinua que o problema não estava no tipo de oferta, mas na disposição interior: “הֲלוֹא אִם־תֵּיטִיב שְׂאֵת” (halōʾ ʾim-tēṭîḇ śeʾēṯ) — “Porventura, se fizeres o bem, não serás aceito?” O problema de Caim, portanto, não foi apenas ritual, mas existencial e moral: um coração corrompido pela inveja, não guiado pela fé.
Assim, Abel, em contraste, torna-se o paradigma do justo que agrada a Deus, não por seus atos exteriores, mas pela interioridade de sua devoção. Ele representa, segundo 1 João 3:12, “o justo” (τὸν δίκαιον, ton dikaion), enquanto Caim, que “era do maligno”, o assassinou “porque as suas obras eram más e as de seu irmão justas”.
Essa justificação é também escatológica. Hebreus 12:24 apresenta um contraste entre “o sangue de Abel” (αἵμα Ἄβελ, haíma Ábel), que clama por justiça e vingança (cf. Gn 4:10), e o “sangue de Jesus”, que fala “melhores coisas”, ou seja, graça e perdão. O sangue de Abel representa a justiça humana ferida e inconsolada; o de Cristo, a justiça divina satisfeita e reconciliadora.
A tradição judaica apocalíptica, como o Livro de Enoque (1En 22:7), reforça essa imagem, colocando a alma de Abel como a voz principal entre os justos martirizados no Sheol, clamando pela punição dos ímpios — um eco da justiça cósmica em suspenso. No Testamento de Abraão (versão A, cap. 13), Abel aparece como juiz das almas no além, função atribuída a ele por ser o primeiro mártir da humanidade, antes mesmo da Lei e dos Profetas.
Na tradição rabínica, Abel é frequentemente referido como “Abel, o Justo” (הבל הצדיק, Heḇel ha-ṣaddîq), um epíteto que perpassa também o Novo Testamento. A tradição vê seu sacrifício como paradigma do culto puro, como a Mishná exigirá posteriormente: min ha-beḵōr we-min ha-ḥēleḇ (“dos primogênitos e da gordura”), ou seja, o que é melhor e mais precioso.
III. Morte, Martírio e Tradições Posteriores
A morte de Abel é o primeiro homicídio registrado na Escritura e inaugura, na história humana, o drama do sangue inocente clamando da terra. Gênesis 4:8 relata o fratricídio de forma sucinta, mas carregada de tensão: “E disse Caim a Abel, seu irmão… E aconteceu que, estando eles no campo, Caim se levantou contra Abel, seu irmão, e o matou.”
A omissão do que exatamente Caim disse a Abel sugere uma fala truncada, talvez um convite ao campo, como indicam versões como a Septuaginta: “εἶπεν δὲ Κάϊν τῷ Ἀβελ... διέλθωμεν εἰς τὸ πεδίον” (eipen de Kaïn tōi Abel… dielthōmen eis to pedion) — “E Caim disse a Abel… vamos ao campo.” Essa lacuna textual intensifica o silêncio de Abel e antecipa sua morte como a de um justo mudo diante do opressor.
Imediatamente após o crime, Deus intervém com a célebre denúncia: “קוֹל דְּמֵי אָחִיךָ צֹעֲקִים אֵלַי מִן־הָאֲדָמָה” (qōl demê ʾāḥîḵā ṣōʿăqîm ʾēlay min-hāʾăḏāmâ) — “A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra” (Gn 4:10). O sangue, neste contexto, não é apenas substância biológica, mas testemunho da injustiça sofrida. No hebraico, o plural “sangues” (demê) foi interpretado pela tradição rabínica como indicativo da descendência que Abel não pôde ter, ou ainda, como sinal da gravidade multiplicada do crime.
A partir desse momento, Abel é elevado à condição de mártir, o primeiro “justo” assassinado por causa de sua fidelidade. Em Mateus 23:35, Jesus menciona seu sangue como o primeiro da cadeia de inocentes assassinados: “αἷμα Ἄβελ τοῦ δικαίου” (haíma Ábel tou dikaíou) — “o sangue de Abel, o justo”. A sua morte não é apenas individual, mas representativa, condensando toda a perseguição dos fiéis até os profetas e mártires cristãos. No Apocalipse (6:9–10), os mártires “clamam debaixo do altar”, repetindo a imagem arquetípica do sangue de Abel como clamor por justiça.
Tradições judaicas e cristãs ampliam esse papel de Abel como mártir e juiz. No Testamento de Abraão, Abel é descrito como o juiz das almas dos mortos, aquele que, por ter sido o primeiro a sofrer injustamente, foi colocado por Deus no trono do julgamento até o tempo da revelação plena do Messias. Essa imagem reflete também as ideias apocalípticas presentes no Livro de Enoque (22:7), onde Abel é o chefe das “almas dos mártires” que aguardam a justiça escatológica.
A literatura rabínica preserva diversas lendas que ampliam a narrativa de sua morte. No Pirqê de-Rabbi Eliezer (cap. 21), por exemplo, Caim mata Abel por inveja de sua irmã gêmea, mais bela, que ele desejava tomar por esposa. Ao vê-lo dormir, Caim teria usado uma pedra para esmagar sua cabeça — uma versão que ecoa nas tradições islâmicas (Alcorão, Sura 5.27–31) e apócrifas cristãs como o Livro das Cavernas dos Tesouros e o Livro das Abelitas.
A questão do sepultamento de Abel também é objeto de mitos. Segundo Gênesis Rabá e Pirqê de-Rabbi Eliezer, nem Adão sabia o que fazer com o corpo até que um corvo cavou um buraco para sepultar outro corvo morto. Imediatamente, Adão entendeu e sepultou seu filho — uma lenda ecoada no Alcorão, onde Deus envia um corvo para ensinar Caim a enterrar o corpo (Sura 5.31).
Segundo Eusébio e Jerônimo, a tradição que localiza o assassinato de Abel nos arredores de Damasco provém do nome da região (do hebraico dam + šāq, “bebida de sangue”), embora essa etimologia seja duvidosa. A colina conhecida como “Nebi Abel” (Profeta Abel), próxima de Seneiah, perpetua esse eco memorial.
Com essa morte, inaugura-se uma nova era na história da humanidade: a era do sangue derramado e da consciência moral. Abel se torna o arquétipo do justo perseguido, do adorador fiel, do mártir silencioso — o primeiro a sofrer por causa da justiça (cf. Mt 5:10–12) e, ao mesmo tempo, aquele cujo sangue clama até hoje por vindicação final.
IV. Abel como Tipo de Cristo e Relevância Teológica
A figura de Abel transcende sua breve aparição na narrativa de Gênesis e é elevada, especialmente na literatura patrística e no Novo Testamento, à condição de tipo de Cristo, o justo por excelência, cuja morte injusta inaugura a linhagem dos mártires e aponta para uma redenção superior. O autor da Carta aos Hebreus estabelece um contraste explícito entre o sangue de Abel e o de Jesus: “καὶ αἵματι ῥαντισμοῦ κρεῖττον λαλοῦντι παρὰ τὸν Ἄβελ” (kai haímati rhantismoû kreîtton laloûnti parà tòn Ábel) — “e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o de Abel” (Hb 12:24). Esse paralelo, além de tipológico, é teológico: o sangue de Abel clama por justiça; o de Cristo, oferece graça. O primeiro exige punição, o segundo concede reconciliação.
Agostinho, no De Civitate Dei (XV, 1), estabelece uma dicotomia entre Abel e Caim como símbolos das duas “civitas” — a cidade de Deus e a cidade dos homens. Caim representa a humanidade caída que busca domínio e construção de civilização à parte de Deus; Abel é o peregrino justo, cuja pátria é celestial, figura da Igreja no mundo. Abel é, assim, o paradigma do homo spiritalis, enquanto Caim é o homo carnalis. Essa antítese foi profundamente explorada também por Ambrósio, que viu em Abel o arquétipo da oferenda eucarística — o cordeiro puro oferecido a Deus —, e por João Crisóstomo, que destacou sua inocência como fundamento de sua justa rejeição.
A iconografia cristã antiga reforça esse paralelo entre Abel e Cristo: ambos são pastores, ambos oferecem sacrifício, ambos são mortos injustamente e ambos são reconhecidos como justos por Deus. Cirilo de Alexandria identifica Abel como “figura de Emmanuel”, o pastor inocente que oferece o sacrifício puro, não segundo a Lei mosaica, mas segundo uma justiça anterior à Torá, fundamentada na fé (cf. Glaphyra in Gen., I, 1.3). Na teologia de Irineu, Abel já é o primogênito dos justos e o primeiro a sofrer injustiça, como prenúncio do sofrimento do Justo por excelência.
Esse desenvolvimento tipológico é consolidado na liturgia. No Canon Romano da Missa, a oração “Supra quae” evoca o sacrifício de Abel como modelo da oblação aceita: “super quae propitio ac sereno vultu respicere digneris: sicut dignatus es munera pueri tui iusti Abel” — “digna-te olhar para estas oferendas com rosto sereno, como aceitaste as de teu servo justo, Abel.” Essa associação litúrgica perpetua a memória de Abel como símbolo de sacrifício puro e fé aceita.
Em tradições cristãs orientais e judaicas apocalípticas, Abel é também associado à função escatológica. No Testamento de Abraão, ele é juiz das almas antes da vinda do Messias. No Livro de Enoque (1En 22), é a voz principal entre os mártires clamando por justiça, antecipando o clamor dos mártires do Apocalipse (Ap 6:9–10). Ele é, portanto, não apenas o primeiro mártir, mas o primogênito escatológico da justiça aguardando vindicação.
Essa perspectiva ressurgirá com força na teologia protestante, especialmente em Hebreus 11, onde Abel figura como o primeiro na linhagem dos heróis da fé, aqueles que, “por ela, ainda que mortos, falam” (Hb 11:4). Sua fé é o fundamento de sua aceitação; seu sacrifício é a expressão externa dessa confiança. Não foi o tipo de oferta (animal vs. vegetal) que determinou sua aceitação, mas sua motivação espiritual. Abel adorou “em espírito e em verdade” (Jo 4:24, analogicamente), oferecendo o melhor de si, com humildade e reverência.
Essa dimensão teológica torna Abel não apenas um personagem ancestral, mas uma figura atemporal que tipifica a essência do verdadeiro culto, a natureza da justiça divina, o preço da fidelidade e a esperança da restauração final. Sua vida curta, seu silêncio eloquente, seu sangue derramado e seu legado profético tornam-no um símbolo poderoso da tensão entre o justo e o ímpio, entre o culto verdadeiro e o ritual vazio, entre o mundo presente e a cidade futura.
V. Abel e a Tradição Religiosa Universal: Judaísmo, Islã e Apócrifos
A figura de Abel, embora originária da tradição bíblica hebraica, encontrou ressonância profunda e duradoura nas tradições judaica, islâmica e em vários escritos apócrifos e pseudepígrafos, transformando-se em símbolo universal do justo perseguido, do mártir inocente e do adorador aceito por Deus.
No judaísmo helenista, representado por obras como o Livro de Enoque, Abel aparece como o chefe dos espíritos dos justos no Sheol, especialmente em 1En 22:7, onde seu sangue continua a clamar a Deus por justiça até que os descendentes de Caim sejam exterminados da terra. Essa concepção é desenvolvida mais ainda no Testamento de Abraão (versão A, cap. 13), onde Abel é descrito como “um homem terrível assentado sobre um trono para julgar todas as criaturas”, enquanto Enoque, o escriba celestial, registra os feitos bons e maus dos homens. Essa imagem apocalíptica foi de grande influência nos cristãos primitivos, reforçando a ideia de que a justiça de Deus se manifesta por meio daqueles que sofreram injustamente.
A tradição rabínica, por sua vez, preserva uma rica coleção de midrashim a respeito de Abel. Em Pirqê de-Rabbi Eliezer (cap. 21), é narrado que Caim e Abel nasceram cada um com uma irmã gêmea, e que a inveja de Caim surgiu porque ele desejava a irmã de Abel, mais bela. Essa motivação “romântica” do fratricídio é igualmente registrada no Gênesis Rabá (22:7) e em obras apócrifas como O Tesouro das Cavernas e o Livro das Abelitas. O assassinato de Abel, segundo algumas tradições, deu-se enquanto ele dormia, morto com uma pedra, uma vara, ou estrangulado com as mãos — versões que enfatizam a covardia e brutalidade de Caim.
Outra tradição midráshica, ecoada no Alcorão e no Tanḥuma Bereshit (§10), narra que, após o crime, Caim vagou com o corpo do irmão por dias, até que viu um corvo enterrar outro. Inspirado por isso, ele finalmente enterrou Abel — um relato que ressalta a ignorância do homem primordial sobre a morte e o rito funerário, e que serviu como base para a narrativa corânica da Sura 5:27–31. Lá, Abel aparece como um homem justo e submisso à vontade divina: “Se estenderes tua mão para me matar, não estenderei minha mão para te matar; temo a Deus, o Senhor dos mundos.” Essa fala pacífica atribui a Abel um papel de profeta da não-violência e da submissão piedosa — valores centrais da espiritualidade islâmica.
A tradição muçulmana posterior, refletida em autores como al-Ṭabarī e Ibn al-Athīr, preserva o nome de Abel como هابيل (Hābīl), e o de sua irmã como كليما (Kalimiyāʾ), enquanto a irmã de Caim seria لبدا (Lubdāʾ). É importante notar que essas tradições reconhecem Abel como o primeiro mártir e associam sua morte ao início da corrupção moral da humanidade. Segundo uma narrativa etíope preservada no Livro de Adão e Eva, o corpo de Abel foi depositado por Adão na “Caverna dos Tesouros”, onde, por gerações, seus descendentes viriam orar — associando o local de sua morte ao primeiro santuário humano.
As tradições cristãs orientais e patrísticas fazem ampla tipologia de Abel. Para os Padres Gregos e Latinos, como Gregório Nazianzeno, João Crisóstomo, Ambrósio e Agostinho, Abel era o arquétipo do mártir, do adorador puro e do cristão perseguido no mundo. Agostinho, em especial, vê nele o símbolo da “cidade de Deus” peregrina e sofredora (Civ. Dei XV, 1), enquanto Caim representa a “cidade do diabo”, arrogante e mundana. Para Ambrosio, Abel ofereceu a Deus “o primogênito dos cordeiros”, e por isso antecipou o sacrifício pascal de Cristo (De Incarnatione Domini sacr., I, 4). Ele é também a imagem do justo cuja oferenda é “agradável a Deus” não por sua substância, mas por sua interioridade (cf. Hom. Clem. II, 16).
Essa multiplicidade de tradições confirma que Abel, embora figura silenciosa na narrativa bíblica, se torna um símbolo universal de inocência, fé, adoração, martírio e justiça aguardada. Em um mundo onde a voz do justo é frequentemente silenciada, o sangue de Abel continua a clamar — não apenas por vingança, mas por restauração escatológica. Como ensina Hebreus 11:4, “por meio da fé, ele ainda fala, mesmo depois de morto.”
VI. Considerações Críticas e Simbolismo
A análise crítica moderna do relato de Abel em Gênesis 4 reconhece sua origem em tradições muito antigas e fragmentárias, provavelmente vinculadas à fonte javista (J). O texto, embora curto, é denso em simbolismo, e seu caráter arquetípico parece ultrapassar a função meramente narrativa. A oposição entre Caim e Abel ultrapassa os limites de uma tragédia familiar e se estabelece como paradigma eterno da luta entre o bem e o mal, o justo e o ímpio, a fé e o orgulho, o culto sincero e o ritual vazio.
Do ponto de vista literário, estudiosos como Hermann Gunkel e Gerhard von Rad reconhecem a perenidade do tema do irmão assassino na mitologia antiga, mas também a singularidade com que o texto hebraico o trata. Ao contrário dos mitos mesopotâmicos e egípcios — nos quais a violência fratricida pode ser santificada ou funcional ao equilíbrio cósmico —, o relato de Caim e Abel apresenta o assassinato como um mal absoluto, uma ruptura do projeto divino para a humanidade, já decaída desde o Éden. É a primeira vez que a terra se “abre” para beber sangue humano (cf. Gn 4:11), prefigurando o tema bíblico do solo amaldiçoado pela violência (cf. Is 24:5; Nm 35:33).
A crítica da fonte também sugere que o contraste entre agricultor e pastor não visa desvalorizar a agricultura, mas refletir antigas tensões socioculturais. Algumas tradições semíticas tinham preferência simbólica pelos pastores nômades, vistos como mais próximos de Deus (cf. Abraão, Moisés, Davi), enquanto os fundadores de cidades (como Caim) simbolizavam a sedentarização e, muitas vezes, a corrupção. No entanto, essa leitura não pode ser absolutizada, pois o próprio Adão é colocado por Deus no Éden “para o lavrar e o guardar” (Gn 2:15), e a Torá contém leis agrícolas minuciosas e sagradas.
Mais significativa que a profissão é a motivação interior de cada irmão. A estrutura do texto hebraico enfatiza que Deus primeiro “atentou para Abel e sua oferta” (vayyîšaʿ YHWH ʾel-heḇel wəʾel-minḥātô), mas “para Caim e sua oferta não atentou” (Gn 4:4–5), indicando que o homem é examinado antes da oferenda. Essa estrutura gramatical, que coloca o ofertante antes do objeto oferecido, sinaliza uma teologia onde o culto aceitável depende da disposição interior, não apenas da matéria do sacrifício — uma noção já presente nas palavras do profeta Isaías (Is 1:11–17) e que será enfatizada por Jesus (Mt 5:23–24).
No plano simbólico, Abel se torna o modelo do justo sofredor, do inocente morto pelos ímpios. Sua figura é ecoada em Jó, nos Salmos de lamentação e nos mártires proféticos (cf. Jr 26:20–23). Sua fé silenciosa antecipa a fé escatológica dos que, como ele, “morreram sem receber o cumprimento da promessa” (Hb 11:39). O silêncio de Abel é, paradoxalmente, sua eloquência: ele fala pela fé e pelo sangue, como Cristo fala pelo sacrifício e pela ressurreição.
Além disso, o contraste entre o sangue de Abel e o de Jesus (Hb 12:24) revela uma progressão teológica profunda. Ambos são vítimas inocentes, ambos oferecem um testemunho diante de Deus, ambos são mortos por inveja. Contudo, o sangue de Abel clama por justiça e vingança, enquanto o sangue de Cristo clama por reconciliação e misericórdia. O autor de Hebreus vê, nessa comparação, não um conflito, mas um cumprimento: o grito de Abel é respondido pela cruz; a justiça reivindicada pelo mártir é satisfeita na oferta do Filho.
Finalmente, a relevância teológica de Abel se amplia na tradição eclesial como ícone da verdadeira adoração. Ele aparece na liturgia latina, na oração eucarística romana, como paradigma da oblação perfeita: “munera pueri tui iusti Abel.” Ele é o primogênito da fé, o primeiro mártir, o modelo do culto sincero, e sua morte prenuncia tanto o drama da humanidade quanto a esperança da redenção.
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GALVÃO, Eduardo M. “Abel”. In.: Enciclopédia Bíblica Online. Biblioteca Bíblica [Aqui você coloca o ano. Não coloque o ano em que foi postado que consta no link (2025), mas o ano que aparece da última atualização que fica debaixo do título da postagem; ele marca a data da última atualização/edição, já que a maioria das páginas estão em constante atualização]. Disponível em “cole aqui o link do artigo”. Acessado em [Coloque aqui a data em que você acessou o link do artigo, com dia, mês e ano. Note que a data que você acessa é diferente da data que consta da última atualização da página.]