Gênesis 4 — Estudo Devocional
Gênesis 4
4.1 Adão teve relações com Eva. Literalmente, Adão conheceu Eva. É a mesma palavra de “conheceu o bem e o mal” (3.5), e isso é significativo: as consequências desse conhecimento adquirido por comer o fruto proibido se manifestam na intimidade da relação entre homem e mulher. A palavra hebraica para conhecer é próxima a penetrar, algo bem corporal. Eles já tinham relações sexuais antes, mas agora estas relações são inseridas em uma estrutura mental e emocional marcada pela tensão entre os extremos morais de bem e de mal. Mudou a palavra para designar as relações entre um homem e uma mulher; já não “se unem um ao outro para serem uma só carne”. Eva agora é quase um objeto para Adão, e a atividade agora é dele. Foi-se a fruição espontânea e mútua, “ingênua”, substituída por uma fruição carregada de ambiguidade e ambivalência (misturando bem e mal). O conhecimento é um processo corporal, que atinge dimensões da nossa interioridade antes de alcançar nossa razão. Então, todas essas dimensões experimentarão o “conhecer bem e mal”. Quando finalmente se tornar uma questão filosófica, já terá deixado suas marcas e traumas na interioridade humana e nas relações. Freud e outros teóricos da psicologia descobriram vários rastros dessas marcas. Eva deu à luz um filho e disse: — Com a ajuda de Deus, o SENHOR, tive um filho homem. Deus é fonte de toda fecundidade, e talvez por isso Eva se remeta a ele quando fala do nascimento de Caim. No entanto, a expressão “tive um filho homem”, também traduzida por “adquiri com Deus um filho homem”, tem significado dúbio, como tudo a partir do pecado, e talvez se ligue com a lógica que Caim terá, de tentar “adquirir” o favor de Deus com sua oferenda. Vemos os primeiros sinais de uma lógica de compra e venda com Deus. Não é esta a lógica que está tão presente hoje? É uma lógica diferente daquela de ser filho, de receber a vida como dádiva, que Jesus Cristo apontará como básica para nossa relação com Deus. E ela pôs nele o nome. Tal como Adão havia feito com ela (3.20), Eva exerce sua autoridade sobre o filho, dando-lhe o nome. Repare que ela menciona Deus, e não o pai, Adão. Qual a razão de excluí-lo? Terá algo a ver com o pecado? As mudanças na relação do casal, demonstradas na mudança da palavra utilizada para as suas relações, mudam também a relação pais-filhos. Ou seja, Eva foi despossuída de si, já não está numa relação de reciprocidade, foi transformada em objeto. Sendo usada como objeto, Eva se vinga, deixando Adão de fora, e adquire um filho-objeto. Se a relação sexual passou para o domínio do homem, a geração de filhos passou para o domínio da mulher (veja também o quadro “O casamento cristão”, Ef 5). A primeira relação mãe-filho é tão próxima e autônoma que praticamente funde os dois e exclui o pai, beirando o incesto. Tal atitude entre os pais fatalmente influenciará as atitudes dos filhos. Este filho não experimentará os limites tradicionalmente postos pelo pai, e assim se sentirá dono do bem supremo. A chegada de um irmão é que desafiaria essa situação. Caim (hebr. Qayin), além de ter a mesma raiz de “adquiri”, significa “lança”. Ele era agricultor, trabalhava com a terra, cortando-a como com a “lança”.
4.1-26 O tempo passou. Daqui em diante, e até “novos céus e nova terra”, descritos no Apocalipse, a vida humana fora do Paraíso sempre carregará a imperfeição, a mistura de bem com mal, onde as coisas nunca são plenamente “como deveriam ser”. A partir de Jesus, a certeza da morte dará lugar também à certeza da ressurreição, criando uma esperança verdadeira, que nos permite participar — ainda de forma parcial e imperfeita — do reino de Deus, numa vida pela fé. Mas o retorno à perfeição só será completo com o retorno do Messias. Por ora, participamos do drama da vida dos humanos longe do paraíso divino, com os olhos abertos para mal e bem, porém, impossibilitados de ver Deus. É nesta abertura para a maldade patrocinada pelo ser humano que podemos encontrar a causa última de tantas tristezas, como guerras, crueldades, doenças, deficiências, envelhecimento, morte e injustiças em geral. Felizmente, embora tenha sido vítima da rebelião do ser criado à sua imagem e semelhança, Deus continuará amando os humanos, e mesmo precisando modificar seu modo de tratá-los, continuará trazendo o bem para a humanidade (com o propósito de ainda salvá-la desse destino de morte, com o Messias). Veja também os quadros “Aprendendo a perfeição do Pai” (Mt 5), “A Esperança” (Ef 1)e “Guerras e matanças na Bíblia” (Êx 17).
4.2 Depois teve outro filho, chamado Abel, irmão de Caim. Novamente, o pai não é mencionado, e desta vez, nem a mãe: a referência a Abel é seu irmão mais velho, o que já inaugura uma disputa, novamente sem a mediação da figura paterna. “Abel”, em hebraico, tem um som parecido com “Eva”, e seu nome significa “vento”, “sopro” e também “vazio”. Ser parecido com a mãe em si não é o problema, mas se isso vem acrescido da ausência da referência ao pai, traz uma fragilidade à vida, juntando condições não tão favoráveis para um crescimento forte. Abel era pastor de ovelhas, e Caim era agricultor. As profissões diferentes correm paralelas, e não há indicação de trocas e parcerias. A Bíblia mostra, assim, que fraternidade não é um instinto que vem automaticamente com o fato de se ter irmãos, mas é um processo ético, que necessita do desejo de que aconteça. Veja o quadro “Fraternidade aprendida”.
4.3-5 Caim pegou alguns produtos da terra e os ofereceu a Deus. Abel… ofereceu as melhores partes. As rixas entre pastores/pecuaristas e agricultores parecem ser bem antigas. Os dois primeiros filhos de Adão e Eva, Caim e Abel, levaram uma oferta de seus produtos para Deus.
4.4 O SENHOR ficou contente com Abel e com sua oferta. Repare que Deus não considera somente as ofertas, mas também as pessoas que a oferecem. Esta é a primeira geração que não viu e não conheceu Deus pessoalmente no Paraíso, então estas são suas primeiras tentativas de se relacionar com o Criador, com muita expectativa sobre como Deus reagirá (veja também Rm 12.1, nota).
4.5 mas rejeitou Caim. No original hebraico o autor usa a negação do mesmo verbo com que se referiu a Abel, significando “dar atenção”, “considerar”, “agradar-se”, dessa vez a Caim. Parece difícil, em um primeiro momento, identificar se Caim teria feito algo errado e o que: o relato não dá as razões para Deus dar atenção a um e não a outro. Parece que Caim, como cumprindo uma obrigação, juntou “alguns produtos da terra” para oferecer a Deus, enquanto Abel se dedicou a oferecer “as melhores partes” do primeiro carneirinho nascido. Alguns comentaristas sugerem que a diferença entre as ofertas de Caim e Abel estaria indicada no pronome: Abel pegou algo que era “seu”, enquanto Caim pegou algo que era “da terra” — ou seja, ele próprio não estava implicado no que ofertava. João escreve que as obras deles eram diferentes (1Jo 3.12). Outros estudiosos percebem que aqui Deus pretende consertar o desequilíbrio que havia entre Caim e Abel. Para Caim, até agora, é como se o irmão não existisse; nem o pai participava da sua vida (veja 4.1, nota). Então, Deus dá atenção para Abel, o lado mais fraco, a “sombra do primeiro irmão”. Deus literalmente “não dá atenção para Caim e sua oferta”, e assim desconcerta toda a exclusividade deste. Mas logo depois irá falar com Caim, fazendo uma sequência de perguntas (vs. 6-7). Isso indica amor, o início de um processo terapêutico para que Caim se dê conta do problema. Caim ficou furioso e fechou a cara. Temos aqui o primeiro relato da raiva humana. A primeira consequência da raiva, que expulsa a alegria, também pode ser traduzida como “descaiu-lhe o semblante” (ARA). Veja também o quadro “Raiva humana e ira divina” (Sl 76).
4.6-7 Por que você está com raiva? Deus convida Caim a refletir e a dominar a sua raiva. O tom personalista e o uso de vários pronomes pessoais são uma ajuda de Deus para Caim olhar para si próprio, reconhecer-se e assumir sua condição e suas ações. O convite do pecado é para não tratar de si próprio, mas considerar o outro como responsável, deixando-se dominar pela força ambígua e eliminando o outro, imaginando que assim terá seu lugar garantido. Caim nunca se apropria da vida, não acolhe este convite de pensar e se examinar, dominar o pecado e ser feliz. Foi para ajudá-lo a se dar conta disso que Deus rejeita sua oferta. Psicologicamente, este é um convite para sair de um narcisismo (autocentrismo) ferido para um narcisismo curado, que reconhece o outro e a ação do outro, sem comparações, e que pode se voltar para o autoconhecimento. Em um processo de crescimento pessoal, parece ser mais fácil tomar a posição de Caim, de ficar furioso com o sucesso do outro em vez de se perguntar o motivo do próprio fracasso. Comparar-se com outros sempre foi sinal de pouca profundidade consigo mesmo. O aconselhamento e a psicoterapia justamente querem ajudar cada um a se examinar, ver onde estava ausente e omisso e sair da inveja pura do outro e do desejo de que ele morra, para assumir sua própria responsabilidade. Erro semelhante acontece, por exemplo, com namorados ou maridos que não aceitam o fim do relacionamento, e em vez de assumir sua parte de responsabilidade, partem para eliminar a ex-companheira. A raiva de Caim por aquilo que lhe parece injusto também lembra todos os episódios em que nós sentimos raiva, sensação de injustiça, discriminação. Isso em si não é pecado, mas é um momento de fragilidade, no qual, como Caim, temos a opção de pensar no que está acontecendo (veja os vários “porquês” de Deus para ele) ou de dar vazão ao sentimento e, então, sim, pecar. A história de muitas tragédias, como a que segue, inicia com esta sensação de injustiça e a falta de reflexão sobre ela. Repare que o conselho de Deus a Caim é praticamente o mesmo utilizado por Paulo em Ef 4.26: “Se vocês ficarem com raiva, não deixem que isso faça com que pequem.” Vencer a raiva (e o seu pecado) é não se deixar dominar por ela.
4.7 Se tivesse feito o que é certo. Caim teve oportunidade de se curar da ira, arrependendo-se quando interpelado por Deus; mas ele se calou, fechou a boca e partiu para uma ação inconsequente, trágica (1Jo 3.12). A cura dos complexos emocionais é importante para que não evoluam para o pecado. A reflexão, a fala e a confissão possibilitam a exposição dos conteúdos emocionais conscientes e inconscientes que, recebidos por um conselheiro ou terapeuta qualificados, poderão ser tratados, e o coração será purificado e pacificado. Assim, reconhecendo os problemas existentes com alguém, confessando para Deus e deixando com ele o acerto, desarmam-se as perigosas bombas relacionais. Ao se fechar e cultivar o ressentimento Caim ficou preso na própria cilada que armou. O convite de Deus é para sair da lógica de que só há lugar para um, e ir para a lógica de que ambos têm lugar, desde que ambos assumam sua vida. Esta nova lógica pode ser encontrada, por exemplo, nas parábolas de Jesus (veja o quadro “A parábola do semeador e as outras palavras”, Mc 4). Balmary compara este trecho com a parábola dos talentos, com o significado de fazer render a vida, doação recebida em liberdade e criatividade (que é ser imagem e semelhança de Deus), em vez de fazer como o servo que escondeu e ficou frustrado. mas você agiu mal. Caim agiu mal quando se comparou a Abel. O “segundo pecado”, na ordem da narrativa bíblica, é um homicídio, que parece ter começado com a comparação. Pecado é mais do que o sentido moral de certo ou errado. É tudo que me desvia do meu verdadeiro eu, criado por Deus. Sempre que me comparo, acabo olhando para o outro, em vez de manter o foco no que sou e no que posso vir a ser se melhorar. O melhor jeito de honrar e dar glória a Deus é buscar o meu verdadeiro eu, a minha identidade e ser eu mesmo (com consciência de também ser pecador). É para isso que ele me criou. o pecado está na porta, à sua espera. Essa imagem difícil lembra um animal à espreita, uma serpente escondida dentro de si, pronta para agir, que cabe ao ser humano dominar. Nossa condição pecaminosa nos expõe a constantes riscos de pecar. Cumpre-nos vigiar e orar para não entrarmos em tentação, não deixando o pecado entrar pela porta do coração. Figuradamente, o nosso coração é um espaço de intimidade; quem dele sairá e a quem acolheremos? Somos convidados a agir moralmente bem, mas nossa natureza conflita com as aspirações sublimes. Para este combate interno, na nova aliança, temos a ajuda do Espírito de Deus, que fala à nossa consciência para nos guiar. Jesus também se apresenta à porta, para restaurar o bom relacionamento com Deus (Ap 3.20). Desde o início, a humanidade é chamada a agir conscientemente e com responsabilidade.
4.8 Caim atacou Abel, o seu irmão, e o matou. Caim, tal como seus pais, não dá importância às palavras de Deus. Levado pela raiva e pelo ressentimento, atrai seu irmão com uma conversa, traindo sua confiança, e o mata, projetando nele sua frustração com Deus, por incapacidade de autoexame. Aqui aparece a primeira morte, consequência de uma série de desvios resultantes da entrada do pecado, que sempre traz ruptura e separação. Resumindo o encadeamento da desgraça: a serpente coloca em dúvida a relação com Deus e apresenta aos humanos o conhecimento do bem e do mal como meio para serem deuses. Eva come o fruto e o dá a Adão. Depois disso, Adão já não se une à sua mulher em reciprocidade, mas a transforma em objeto. Eva, por sua vez, o ignora e não o reconhece como pai de Caim e Abel. Ela possui Caim (dando-lhe nome), e este, despossuído de si, mata Abel para ter o seu lugar como único.
4.9 Onde está… o seu irmão? Esta pergunta ressoa até hoje, e é a base para a ética. Somos guardadores dos nossos irmãos — não apenas os de sangue, mas todos os humanos. Não podemos simplesmente sumir com eles quando nos atrapalham. Esta é a questão que retorna com investigações sobre desaparecidos em tantos sistemas políticos. Esta é a questão que aparece quando somos convocados à solidariedade com os que sofrem, perto e longe de nós. Por acaso eu sou o guarda de meu irmão? Deus interroga Caim sobre o paradeiro do seu irmão, e Caim desconversa em sua resposta. Qual o nosso interesse e envolvimento com as pessoas, seja um familiar ou um colega, um vizinho ou um estranho? Como olho para pobres, enfermos, deficientes? E para o premiado, o saudável e abastado, o que ganhou apreciação? Este texto nos lembra de que podemos ser como Caim. A tragédia que se abateu nesta família ilumina o que existe no profundo do nosso coração: a dificuldade de aceitarmos o próximo. Ciúme, inveja, mágoa, ressentimento, ira e impulsos destrutivos brotam de nosso coração muitas vezes. O mau humor e a agressividade de Caim são marcantes em sua resposta. Caim tipifica o lado sombrio da nossa alma, nossa potencialidade maligna, que necessita ser discernida, confessada e colocada sob o sangue de Cristo para cura.
4.10 Por que você fez isso? Na tradução tradicional consta: “Que fizeste?” Deus interpela Caim praticamente da mesma forma como havia feito com sua mãe (3.13), com uma pergunta que sugere: você não sabe o que fez? As atitudes pecaminosas dos pais tendem a se manifestar também no comportamento dos filhos. Da terra, o sangue do seu irmão está gritando, pedindo vingança. Deus escuta o clamor de adamá, o solo da terra, ao receber o pó do humano resultado da violência. Mesmo sendo agora terra amaldiçoada por causa do pecado de Adão, ela continua sendo observada e escutada por Deus. Aquilo que os seres humanos lançam na terra — sangue de irmãos, venenos — chega a Deus. Ele não está alheio ao sofrimento, após a saída do paraíso. Seu ouvido escuta o que acontece; ele está junto! O mesmo acontecerá no Egito com o seu povo, na vinda de Jesus e até hoje. Deus escuta o sofrimento da sua criação e do seu povo, e veio para sofrer com ele!
4.11-12 Por isso você será amaldiçoado… a terra… não produzirá nada. O pecado vai se alastrando, e com ele vem o juízo de Deus. Caim não teria mais êxitos como agricultor fixado em um lugar. O sangue do irmão o expulsaria da terra que lhe era familiar e ele teria de perambular buscando sustento e abrigo. A terra é vista como um organismo vivo, que não aceita mãos sujas de sangue para mexer nela. Como perdemos essa noção de terra viva, reduzindo-a a um amontoado de substâncias químicas! Agindo assim, perdemos também o respeito pela natureza — e por nós mesmos. andar pelo mundo sempre fugindo. O pecado vai afastando o ser humano, agora também da sua “casa”. Ainda muito próximo do Paraíso, esse castigo lança a humanidade em uma longa viagem sem rumo. É interessante que, tempos depois, feita a reconciliação por meio de Cristo, a figura da peregrinação como estranhos por esta terra já está mais aceita e, inclusive, serve para focar nosso rumo na “casa do Pai”, onde nosso lugar já está em preparação (Jo 14.2).
4.13-14 Eu não vou poder aguentar. Deus pronuncia um juízo sobre Caim, e este se queixa da sentença recebida: o castigo é grande demais para que o consiga suportar. Deus tem misericórdia e lhe concede uma proteção. me escondendo da tua presença. Desassossego, assim, sobrevém a quem vive fugindo e se escondendo de Deus, em uma continuação da atitude de Adão após ter conhecido o bem e o mal (3.10): a presença de Deus, com tanta vida, santidade e pureza, revela um insuportável peso de culpa em nossas costas. A consciência acusa os pecados, a alma se inquieta e a pessoa vive sobressaltada, com medo do castigo. A imagem de Deus se transformou na de um juiz severo e castigador (veja também o quadro “A neurose do medo de Deus”, Lc 19). qualquer pessoa que me encontrar. Aqui o texto parece sugerir que já haveria outros habitantes na terra. Também cabe lembrar que a “expectativa de vida” é muitíssimo longa, em torno de 900 anos (cap. 5), o que daria bastante tempo para várias gerações coexistirem.
4.15 serão mortas sete pessoas da família dele. Neste detalhe da resposta do Senhor se revela o antigo hábito de vingança, comum aos grupos humanos do qual Caim tinha conhecimento. O terror sobre a família do assassino reduz as possibilidades de nova morte. o SENHOR pôs um sinal em Caim. O diálogo segue — mesmo após a terrível ofensa de Caim. E a presença de Deus também segue: o sinal de Caim é um símbolo da presença protetora de Deus, e o seu significado é “não matarás” — para Caim se lembrar disso e para os outros não concretizarem a vingança, mesmo ele tendo cometido um crime horrível!
4.16 Então Caim saiu da presença do Senhor. Talvez Caim não precisasse ter saído da presença do Senhor. De qualquer forma, percebemos aqui o antigo hábito de associar a presença de Deus a um lugar físico, a uma região geográfica (compare Sl 37.4 e Jo 4.20-24). Caim tenta se afastar, mas Deus vai com ele, mesmo que seja escondido, no primeiro símbolo da história. Node. Região de perambulação de Caim, mais ao leste do Éden.
4.18-19 Enoque foi pai de Irade. As narrativas centradas em Adão e Eva, e que desembocarão em Jesus, não excluem as histórias paralelas de outras famílias e povos, mas acentuarão a linhagem do “povo de Deus”, no qual Deus se encarnará na história humana. Nesta genealogia, no original hebraico, o mesmo termo que se usa para a mulher (dar à luz) é empregado também para os homens — a procriação se torna fato comum, e a narrativa é “acelerada”, mas possivelmente também indique como, mais longe de Deus, o domínio masculino se acentua, o que logo desembocaria na poligamia.
4.20-22 Jabal… antepassado dos que criam gado e vivem em barracas… Jubal… de todos os músicos… Tubalcaim, que era ferreiro. Se nos povos pagãos são divindades que recebem o mérito pelas artes e pelos ofícios, a Bíblia desmistifica isso, ao atribuir ao próprio homem esses altos feitos. Aqui está o relato do desenvolvimento humano — o trabalho associado à criatividade, que faz a vida prosperar. Embora não se invoque o nome de Deus, ele está lá. A criatividade é uma dádiva que o ser humano recebe na sua imagem e semelhança de Deus. Assim como o Espírito organizou o primeiro caos, também o espírito humano organiza o caos e cria novas ordens de significado. Isso vale para todos, independentemente de invocarem ou não o nome de Deus. Assim como o sol paira sobre justos e injustos, também o espírito criador é dado para todos. O problema é que este espírito, sem o seu Criador, por vezes cria coisas sem sentido, ou, ainda pior, coisas mortíferas — o triste legado da história.
4.23-24 Lameque disse às suas mulheres… Matei um homem porque me feriu. A morte continua a espreitar os descendentes de Caim, mas também a proteção recebida. Lameque é uma figura típica de caráter autoritário, violento, forte e insensível. Dita para suas mulheres sua confissão do crime cometido contra um jovem, gabando-se por matar por vingança, em uma resposta passional, violenta e desproporcional, um ato revelador de falha moral e deficiência espiritual, uma falta contra a fraternidade, como Caim, ao qual se associa. E, por fazê-lo em forma poética, fica ilustrado como mesmo a beleza da arte humana pode ser utilizada para propósitos maus. Tristemente, a barbárie acompanha e ameaça as comunidades e revela o predador humano bruto, carnal, sem o Espírito. Existimos sempre em relação com outras pessoas e estamos sujeitos a atritos e mal-entendidos, que deveriam ser enfrentados com sabedoria e maturidade. O senso moral que exerce barreira contra o mal e direciona as emoções de forma não destrutiva é formado desde a infância, quando nutrido continuamente por pais ou cuidadores atenciosos, amorosos e sábios. Para uma saudável formação de caráter, temos o conjunto das Escrituras com seus ensinamentos; destaquem-se as palavras de Jesus no Sermão do Monte, base para uma cultura de paz, compaixão e justiça, em que a mansidão e a humildade são marcas do caráter do cidadão do reino de Deus (Mt 5; 6; 7). Mas, aqui, longe da presença de Deus, a maldade humana vai ganhando terreno rapidamente. As duas narrativas deste capítulo, das descendências de Caim (vs. 17-24) e de Sete (vs. 25-26), ilustram bem o que ocorre com o ser humano e sua civilização quando se está mais distante e quando se está mais próximo de Deus.
4.25 Adão e a sua mulher tiveram outro filho. Aqui, mais próximo de Deus, as coisas mudam: agora pai e mãe aparecem na genealogia, e Deus aparece como o doador da vida (veja 4.1, nota). Tudo no seu lugar, cada um no seu papel. E pôs nele o nome de Sete. Sete é o primeiro a ser um filho — vem depois de um morto e de um assassino. Agora a mulher já não diz “eu adquiri com Javé”, mas esse é o primeiro a ser chamado de filho, seu verdadeiro filho. Um recomeço, como por vezes Deus faz acontecer.
4.26 Sete foi pai de um filho e o chamou de Enos. Enos quer dizer “homem” — não mais Adão (“terroso”) ou ish (homem, face à mulher), mas homem vulnerável, humano masculino, que se reconhece vulnerável, que se proclama homem. Foi nesse tempo que o nome SENHOR começou a ser usado no culto de adoração a Deus. Deus começa a ser invocado depois que Eva nomeia Sete como filho, e este nomeia seu filho de “homem” (Enos). Agora, também, é tempo de proclamar Deus com um nome próprio, não só como o Criador. Passada a grande intimidade que houvera no Jardim do Éden, mas ainda de alguma forma vivendo perto da presença do Criador, o homem vulnerável estabelece uma relação com Deus lhe chamando por um nome (Javé, “Senhor”). Ao contrário da cidade de Enoque (4.17), com Enos há um relacionamento, um culto a Deus. Agora os humanos já não se colocam como única fonte de todo conhecimento.
O Livro de Gênesis narra diferentes relações de irmãos, e todas elas conflituosas: Caim e Abel, Ismael e Isaque, Esaú e Jacó. Segundo o estudioso Wenin, assim o livro indica que a fraternidade não é algo que se instala automaticamente na vida dos irmãos, mas que há um processo psicológico e ético que precisa acontecer: suplantar a inveja, renunciar à posse dos pais, transformar agressão em cuidado — tudo isso não esteve presente nessas primeiras duplas. Apenas na relação de José do Egito com seus irmãos é que surgirá o sentimento fraterno — e isso depois de muitas atitudes fratricidas. A Bíblia, nesse sentido, não procura embelezar artificialmente a cena: ela mostra que é muito mais difícil haver fraternidade do que fratricídios.
Uma postura fraterna será desenvolvida ou não, também dependendo do lugar que cada filho ocupa no coração dos pais e da atitude destes pais em relação aos filhos. Veja também o quadro “O perdão na vida e na família” (Mt 18).