Significado de Lucas 1
Lucas 1
Lucas 1 concentra-se principalmente nos eventos que levaram ao nascimento de João Batista e de Jesus Cristo. O capítulo começa com o anúncio do anjo Gabriel a Zacarias, um sacerdote, de que sua esposa Isabel dará à luz um filho que preparará o caminho para o Messias.
Gabriel então aparece a Maria, uma jovem virgem desposada com José, e anuncia que ela foi escolhida para gerar o Filho de Deus. Maria aceita humildemente esta notícia e louva a Deus por Sua misericórdia e fidelidade. O capítulo também inclui o belo cântico de Maria, conhecido como Magnificat, no qual ela expressa sua gratidão a Deus pelas grandes coisas que Ele fez por ela e por Seu povo.
Lucas 1 prepara o cenário para o nascimento de Jesus Cristo e destaca a natureza milagrosa de Sua concepção e nascimento. Também enfatiza a importância da fé, humildade e obediência no plano de salvação de Deus. O capítulo é um poderoso lembrete do amor e fidelidade de Deus para com Seu povo, e o papel central de Jesus Cristo no cumprimento de Seu plano divino.
II. Explicação de Lucas 1
Lucas 1:1
Visto que muitos se empenharam em compor um relato dos acontecimentos plenamente realizados entre nós,... (Gr.: Epeidēper polloi epecheirēsan anataxasthai diēgēsin peri tōn peplērophorēmenōn en hēmin pragmatōn — Tradução literal: “Uma vez que muitos empreenderam ordenar uma narrativa acerca dos acontecimentos plenamente realizados entre nós,”) O que aparece aqui é simples e forte: “muitos se empenharam” em organizar um relato do que já estava acontecendo “entre nós” como obra cumprida, não como boato ou ideia solta. Isso coloca o evangelho no chão da história: Deus não salva por abstrações, mas por atos reais, e aquilo que Ele promete Ele realiza; a fé cristã nasce dessa confiança de que a palavra do Pai não volta vazia, porque Ele mesmo faz com que ela “aconteça” no tempo (Isaías 55:11). E o centro desses acontecimentos, à luz do próprio caminho do evangelho, é Jesus: não como um símbolo útil, mas como o cumprimento daquilo que Deus vinha escrevendo na Lei, nos Profetas e nos Salmos, de modo que a história de Cristo não é um remendo tardio, é o alvo do enredo (Lucas 24:44). Para a vida cristã hoje, isso vira um chão firme: quando a fé balança por cansaço, culpa ou medo, a saída não é inventar “força interior”, mas voltar ao Deus que cumpre o que diz e lembrar que o coração do evangelho é um Deus-Pai que age de verdade, em favor de gente real; como aplicação pastoral (não afirmação histórica sobre intenções pessoais de quem escreveu), esse versículo convida a tratar o evangelho com seriedade — lendo, ouvindo, perguntando, deixando que a história de Jesus molde a oração, a esperança e a perseverança, porque o Senhor não nos chama a crer no vazio, mas no que Ele realizou.
A. Etimologia/Estrutura/Morfologia/Sintaxe
Em epecheirēsan (“empreenderam”), o verbo epicheireō (“pôr a mão, empreender”) deixa ver, já na própria tessitura da palavra, a junção de epi (“sobre”) com cheir (“mão”), como quem diz: “pôr a mão sobre a obra” e, portanto, “tentar/empreender”. Em anataxasthai (“ordenar, compilar”), o verbo anatassomai (“pôr em ordem de novo/para cima”) se mostra como composição transparente de ana (“para cima; de novo”) com o verbo-base “ordenar” (a família de tassō), de modo que a ideia de “arranjar em sequência” não é mero sentido “aprendido”, mas nasce da própria arquitetura do termo. Em diēgēsin (“narrativa”), o substantivo diēgēsis (“relato, narração”) deriva do verbo diēgeomai (“narrar”), e o efeito do prefixo dia (“através”) é o de uma narração “conduzida até o fim”, como um fio que atravessa os fatos e os põe em forma. Em peplērophorēmenōn (“plenamente realizados”), o verbo plērophoreō (“levar a termo, cumprir plenamente”) é explicado pelos léxicos como “carregar até o completo” e, significativamente, o próprio verbete associa a expressão “coisas… realizadas” a esta passagem; a formação indicada por Strong liga o campo de “plenitude” (plērēs, “cheio”) ao de “carregar/portar” (phoreō, “levar, portar”), como se a palavra carregasse em si a imagem de uma obra “levada até o cheio”. E, ao dizer pragmatōn (“acontecimentos, assuntos”), Lucas escolhe pragma (“feito, caso, matéria”), termo que vem do verbo “fazer” e mantém o valor semântico de “coisas feitas/ocorridas”, mais do que meras “alegações” a confirmar.
A oração abre com epeidēper (“visto que”), conjunção causal que marca dependência explícita: tudo o que segue constitui a prótase causal cujo encaixe lógico prepara uma apódose ulterior, e essa subordinação é mantida formalmente pelo fato de epeidēper (“visto que”) exigir uma oração finita completa. O núcleo verbal dessa oração é epecheirēsan (“empreenderam”), verbo no aoristo, indicativo, voz ativa, terceira pessoa do plural, cujo aspecto perfectivo compacta a ação como um todo global (“empreenderam” como ato tomado em bloco), e cujo sujeito é polloi (“muitos”), adjetivo no nominativo, masculino, plural, usado substantivamente (elipse de “homens/pessoas”), de modo que a concordância em número e pessoa com epecheirēsan (“empreenderam”) é a marca formal que fixa a função sintática de sujeito. O verbo epecheirēsan (“empreenderam”) seleciona como seu complemento verbal um infinitivo complementar, e esse complemento é anataxasthai (“ordenar/compilar”), infinitivo aoristo, voz média (forma deponente no uso), cujo aoristo novamente apresenta a ação pretendida como totalidade, e cuja voz média perfila a implicação do sujeito no próprio ato de “pôr em ordem” (não é mero “fazer acontecer”, mas “assumir a tarefa” como empreendimento).
O infinitivo anataxasthai (“ordenar/compilar”) governa como seu objeto direto diēgēsin (“narrativa/relato”), substantivo no acusativo, feminino, singular; o acusativo é a marca formal de objeto do infinitivo, e o encaixe é reforçado pela ordem: verbo no infinitivo seguido do acusativo que recebe sua ação. Essa diēgēsin (“narrativa/relato”) é qualificada quanto ao seu conteúdo pelo sintagma preposicionado peri (“acerca de”), que rege genitivo e, por isso, introduz o grupo no genitivo tōn (“dos”) + pragmatōn (“acontecimentos/fatos”): aqui o valor semântico de peri (“acerca de”) com genitivo é de referência temática (“sobre”, “a respeito de”), e o genitivo não é “genitivo de caso livre”, mas genitivo exigido pela preposição, o que determina a função sintática do conjunto como adjunto/complemento de conteúdo ligado a diēgēsin (“narrativa/relato”).
Dentro desse grupo genitivo, pragmatōn (“acontecimentos/fatos”) é o núcleo nominal (substantivo, neutro, plural, genitivo), e é especificado por peplērophorēmenōn (“plenamente realizados”), particípio perfeito, voz passiva, genitivo, neutro, plural, em concordância formal com pragmatōn (“acontecimentos/fatos”); a concordância em caso, gênero e número é o sinal de dependência sintática: trata-se de particípio atributivo que qualifica o núcleo “acontecimentos”, e o perfeito acrescenta a ideia de estado resultante (“acontecimentos que se encontram na condição de plenamente realizados”), enquanto a passiva indica que tal completude é recebida/efetuada (não meramente “fizeram-se completos”, mas “foram levados à plenitude”).
Ainda dentro da qualificação do particípio, surge en (“em”), preposição que rege dativo e cujo valor semântico é locativo/esferal (“no âmbito de”, “no interior de”), introduzindo hēmin (“nós”), pronome pessoal no dativo, primeira pessoa do plural, funcionando como complemento da preposição: a marca formal en (“em”) + dativo define a função de adjunto de esfera (“no meio de nós/entre nós”), e esse encaixe se liga naturalmente ao predicado participial peplērophorēmenōn (“plenamente realizados”), delimitando onde tais “acontecimentos” se dão como realidade plenamente efetuada.
A exegese formal decorre do próprio esqueleto gramatical: o aoristo de epecheirēsan (“empreenderam”) com o infinitivo complementar anataxasthai (“ordenar/compilar”) caracteriza não o resultado garantido, mas o gesto deliberado de assumir uma tarefa; o foco não é “já concluíram”, e sim “puseram-se a compor”. O objeto diēgēsin (“narrativa/relato”) é determinado por peri (“acerca de”) com genitivo, de modo que o “relato” é explicitamente “sobre” um conjunto definido de realidades, e não sobre abstrações. O particípio perfeito passivo peplērophorēmenōn (“plenamente realizados”) amarra o conteúdo do relato a acontecimentos percebidos como já plenamente efetuados, com a nuance do perfeito: eles são apresentados como portadores de um estado de completude, e a voz passiva reforça que essa completude não é autogerada pelo narrador, mas recebida como fato consumado. A moldura en hēmin (“entre nós”) delimita a esfera comunitária do que é narrado: os “acontecimentos” são descritos como ocorridos e reconhecíveis no interior do “nós”, o que prepara, por pura força sintática, a noção de uma memória compartilhada e publicamente acessível ao grupo que é designado pelo dativo de esfera.
B. Versões Comparadas
No encadeamento do texto crítico NA28, a abertura epeidēper (“visto que”) pede um conector causal solene, e aqui NASB traz “Since many have undertaken…” (PT: “Visto que muitos empreenderam…”) na forma de um prólogo historiográfico bem direto; ESV preserva a mesma gravidade com “Inasmuch as many have undertaken…” (PT: “Na medida em que muitos empreenderam…”); NRSV mantém o “Since” e acrescenta “set down an orderly account” (PT: “registrar um relato ordenado”), explicitando o valor de anataksasthai (“pôr em ordem”). Já KJV/ASV retêm a cadência arcaica (“Forasmuch as…”) e, no verbo, KJV faz uma escolha muito “etimológica”: “have taken in hand”, que se aproxima do modo como o léxico descreve epicheireō (“empreender/tentar”) como a ideia de “pôr a mão” numa tarefa. No infinitivo anataksasthai (“pôr em ordem/compilar”), registra a formação e o sentido básico como “arranjar em ordem”, e isso aparece com bastante nitidez onde as versões dizem “compile”, “draw up” ou “set forth in order”; e no substantivo diēgēsis (“narração/relato”), o texto mostra o uso em Lucas 1:1 e como as versões oscilam entre “account/narrative/declaration”. O ponto em que as traduções mais divergem do NA28 é o particípio perfeito passivo peplērophorēmenōn (“plenamente cumpridos/realizados”): este verbo pode descrever tanto “accomplish” (eventos levados a termo) quanto o uso de “be fully persuaded / be most surely believed” em certas tradições de tradução. Por isso, NASB/ESV com “the things accomplished among us / …have been accomplished among us” (PT: “as coisas realizadas entre nós”) se alinham naturalmente com “eventos” (pragmata, “fatos/acontecimentos”), enquanto NRSV/ASV preferem “fulfilled” (PT: “cumpridos”), que também encaixa bem na ideia de atos de Deus que chegam ao seu termo.
Em contraste, KJV diz “those things which are most surely believed among us” (PT: “as coisas mais seguramente cridas entre nós”) e YLT “the matters that have been fully assured among us” (PT: “os assuntos plenamente assegurados entre nós”), escolhas que ecoam a outra faixa semântica. CEV e GNB/GNT vão mais longe na reexpressão: CEV resume como “Many people have tried to tell the story of what God has done among us.” (PT: “Muitas pessoas tentaram contar a história do que Deus fez entre nós.”), e GNT introduz “Dear Theophilus:” já no versículo 1, o que não corresponde ao lugar em que o nome aparece no grego (ele surge adiante), mas ajuda o leitor moderno a perceber que se trata de uma dedicatória-prefácio. Indo às versões em português, ARA registra “Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada…” (muito próxima da solenidade causal e do esforço de “ordenação” implícito em anataksasthai); ACF enfatiza a ordenação com “empreendido pôr em ordem a narração…”; NVI-PT prefere “elaborar um relato…” e mantém “os fatos que se cumpriram” (boa aproximação do perfeito de peplērophorēmenōn); NVT fica muito próxima disso com “escrever uma narração dos acontecimentos que se cumpriram”; e NTLH simplifica com “a história das coisas que aconteceram entre nós”, perdendo um pouco a densidade de “cumprimento/realização”, mas ganhando imediatismo para leitura corrente.
C. Interpretação Teológica
Lucas 1:2
...assim como nos transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e servos da Palavra— (Gr.: kathōs paredosan hēmin hoi ap archēs autoptai kai hypēretai genomenoi tou logou — Tradução literal: “conforme nos transmitiram os que desde o princípio se tornaram testemunhas oculares e servos da palavra—”) Este versículo mostra de onde esse relato recebe seu peso: ele não nasce do nada; ele é “transmitido” por pessoas que estavam lá “desde o princípio”, vistas como testemunhas e servos da Palavra. Isso é precioso porque Deus costuma amar o caminho da mediação: Ele dá sua luz, e ao mesmo tempo levanta testemunhas para que essa luz seja conhecida com responsabilidade; por isso a Bíblia valoriza critérios de testemunho confiável, e não um “achismo sagrado” — o próprio Antigo Testamento lembra que “uma só testemunha não basta” para firmar um assunto (Deuteronômio 19:15). No Novo Testamento, esse mesmo cuidado aparece quando a comunidade entende que o anúncio de Jesus não pode ser desligado de gente que acompanhou sua vida e pode testemunhar sua ressurreição; por isso a ênfase em testemunhas desde o começo, ligadas ao Senhor Jesus e ao que Ele fez (Atos 1:21–22). Para a vida cristã hoje, isso impede dois extremos: de um lado, uma fé solitária que despreza a igreja e inventa Deus à sua própria imagem; de outro, uma fé que vira apenas tradição morta sem encontro com Cristo. Como aplicação pastoral (não afirmação histórica sobre cada pessoa envolvida), o versículo encoraja a receber o evangelho como dom confiado a uma comunidade: ouvir com humildade, checar com honestidade, aprender com quem serve a Palavra com temor, e então viver como alguém que também “passa adiante” — não fofoca religiosa, mas um testemunho cuidadoso, centrado em Jesus como Senhor e em Deus como Pai, de modo que a fé de hoje não seja capricho do momento, e sim resposta obediente ao que Deus já fez.
A. Etimologia/Estrutura/Morfologia/Sintaxe
Em paredosan (“transmitiram”), o verbo paradidōmi (“entregar, transmitir”) se forma de para (“de junto, ao lado”) + didōmi (“dar”), sugerindo a cena de algo “passado adiante” a partir de proximidade, como tradição entregue de mão em mão. Em ap archēs (“desde o princípio”), archē (“começo, origem”) carrega em sua etimologia a ideia de “ponto inaugural” e também, por extensão, “princípio” como fundamento — e a própria família lexical nasce do verbo ligado a “começar/encabeçar”, como atestam os léxicos. Em autoptai (“testemunhas oculares”), o substantivo autoptēs (“aquele que vê por si mesmo”) é explicitado como composto de “si mesmo” + “ver”, literalmente “auto-vidente”, palavra cuja própria carne verbal dá o peso da visão direta, não ouvida por terceiros. Em hypēretai (“servos, assistentes”), hypēretēs traz, segundo a explicação etimológica preservada nos verbetes, o quadro antigo do “remador de baixo” (subordinado), e daí a ideia geral de “assistente, servidor” — o termo nasce de elementos que apontam para “abaixo” e para a atividade do “remar”, e a metáfora histórica permanece como sombra no vocábulo. Por fim, logou (“palavra, mensagem”) vem de logos (“palavra, discurso, razão expressa”), ligado ao verbo legō (“dizer”), de modo que “a Palavra” aqui é, etimologicamente, aquilo que é “dito” e “posto em linguagem”, como sentido tornado forma.
A continuação se prende ao versículo anterior por kathōs (“assim como/conforme”), conjunção comparativa que cria uma dependência adverbial de modo/medida: o empreendimento de “ordenar narrativa” é situado “conforme” um padrão anterior de transmissão. O núcleo verbal agora é paredosan (“transmitiram/entregaram”), verbo no aoristo, indicativo, voz ativa, terceira pessoa do plural; o aoristo novamente apresenta a entrega como ato global (um “passar adiante” visto como inteiro), e a voz ativa põe os agentes em primeiro plano como responsáveis pelo ato de transmitir. O verbo paredosan (“transmitiram/entregaram”) toma como complemento dativo hēmin (“a nós”), pronome pessoal no dativo, primeira pessoa do plural, cuja função é dativo de destinatário/beneficiário: a marca formal do dativo, sem preposição, após verbo de “entregar/transmitir”, fixa o papel de recipiente.
O sujeito expresso de paredosan (“transmitiram/entregaram”) é o grupo introduzido pelo artigo hoi (“os”), artigo definido no nominativo, masculino, plural, que substantiva toda a expressão nominal subsequente; esse sujeito recebe um modificador preposicionado ap (“de”), forma elidida de apo (“de”), preposição que rege genitivo e cujo valor semântico é de origem/ponto de partida, aqui claramente temporal (“a partir de”), introduzindo archēs (“princípio”), substantivo no genitivo, feminino, singular: a regência (apo + genitivo) determina a função do sintagma como adjunto temporal (“desde o princípio”), e o lugar desse adjunto dentro do sujeito delimita o grupo como caracterizado pela sua posição temporal originária.
Em aposição/coordenção interna sob o mesmo artigo hoi (“os”), aparecem autoptai (“testemunhas oculares”) e hypēretai (“servos/assistentes”), ambos substantivos no nominativo, masculino, plural, unidos por kai (“e”), conjunção coordenativa que soma dois títulos ao mesmo referente; a ausência de um segundo artigo antes de hypēretai (“servos/assistentes”) favorece a leitura de uma única unidade referencial sob um só determinante (hoi), isto é, o mesmo grupo é descrito simultaneamente como “testemunhas oculares” e “servos/assistentes”. A qualificação final desse sujeito é feita por genomenoi (“tendo-se tornado”), particípio aoristo, voz média (deponente), nominativo, masculino, plural, em concordância formal com o sujeito articulado (hoi… autoptai… hypēretai): a concordância sinaliza dependência sintática; o aoristo do particípio condensa o ingresso no estado (“tornar-se”) como um ponto global, e a forma deponente mantém o sentido ativo (“tornaram-se”).
Quanto à função, o particípio genomenoi (“tendo-se tornado”) opera como qualificador circunstancial/attributivo do grupo, especificando-o como aqueles que “vieram a ser” algo em relação a um referente expresso no genitivo. Esse genitivo é tou logou (“da palavra”), com artigo tou (“da/do”) no genitivo, masculino, singular, governando logou (“palavra”), substantivo no genitivo, masculino, singular; aqui não se trata de genitivo regido por preposição, mas de genitivo dependente de hypēretai (“servos/assistentes”), leitura sintática mais provável como genitivo de relação/objeto de serviço (genitivo que identifica o âmbito/objeto ao qual o serviço se dirige), porque (i) tou logou (“da palavra”) está imediatamente após hypēretai genomenoi (“servos tendo-se tornado”), (ii) não há outro termo na oração que possa governar legitimamente esse genitivo, e (iii) o encaixe semântico “ser servos de X” é precisamente o tipo de relação que o grego exprime com genitivo dependente de substantivo de função/serviço.
A exegese formal, sem ultrapassar o que a gramática permite, mostra que kathōs (“conforme”) não é ornamento, mas a dobradiça: o ato de compor/ordenar uma diēgēsis (“narrativa”) é apresentado como alinhado a uma cadeia anterior de paradosis (transmissão), aqui verbalizada por paredosan (“transmitiram/entregaram”). O dativo hēmin (“a nós”) define o “nós” como destinatário direto dessa entrega, de modo que a narrativa projetada repousa, formalmente, sobre um fluxo de tradição recebido. O sujeito com ap archēs (“desde o princípio”) delimita a qualidade temporal das testemunhas: não são observadores tardios, mas vinculados ao início do processo narrado, e essa delimitação nasce do valor de apo (“de”) + genitivo como ponto inicial temporal.
A coordenação autoptai (“testemunhas oculares”) + hypēretai (“servos/assistentes”) sob um único hoi (“os”) faz com que a frase retrate um mesmo grupo por dupla caracterização, e o particípio aoristo genomenoi (“tendo-se tornado”) dá relevo ao momento de ingresso na condição: o serviço não é uma etiqueta vaga, mas uma identidade assumida. Por fim, o genitivo tou logou (“da palavra”), por seu encaixe imediato e por sua dependência natural de hypēretai (“servos/assistentes”), especifica o referente desse serviço como “a palavra” enquanto conteúdo/âmbito, fazendo com que a transmissão descrita por paredosan (“transmitiram/entregaram”) se apresente como tradição ancorada em visão direta e em ministério vinculado a um “logos” que é o objeto formal dessa assistência.
B. Versões Comparadas
A transição kathōs (“assim como”) exige que o versículo 2 seja ouvido como continuação lógica do 1: não é apenas “muitos escreveram”, mas escreveram “assim como” receberam uma tradição; por isso, NASB/NRSV/ESV/ASV preservam o encaixe com “just as / even as” (PT: “assim como”), mantendo o fluxo sintático do prólogo. O verbo paredosan (“transmitiram/entregaram”) aparece nas versões tanto como “handed down / handed on” (PT: “foram transmitidas”) quanto como “delivered” (PT: “foram entregues”), e aqui a variação é mais de estilo do que de sentido, porque o ponto é a cadeia de tradição: o que se escreve repousa no que foi recebido dos que viram e serviram. A convergência é forte em autoptai (“testemunhas oculares”): quase todas mantêm “eyewitnesses” (PT: “testemunhas oculares”), enquanto CEV/GNT reexplicam com “the ones who were there in the beginning and saw what happened / those who saw these things from the beginning” (PT: “os que estavam lá desde o começo e viram o que aconteceu”), que é fiel ao núcleo, mas menos técnico. A segunda designação, hypēretai (“servos/ministros”), é onde as versões sinalizam leituras diferentes do mesmo ofício: NASB/NRSV optam por “servants of the word” (PT: “servos da palavra”), ESV/ASV/KJV por “ministers of the word” (PT: “ministros da palavra”), e YLT por “officers of the Word” (PT: “oficiais da Palavra”), uma escolha que tenta dar corpo institucional ao termo. Aqui, a etimologia registrada no léxico é iluminadora: Blue Letter Bible deriva hypēretēs (“servo/assistente”) da imagem do “under-rower”, alguém que rema “por baixo”, isto é, um auxiliar subordinado; isso torna “servants/servos” uma opção muito transparente, sem excluir “ministers/ministros” como termo eclesiástico tradicional. Em português, ARA fecha o versículo 2 com “testemunhas oculares e ministros da palavra”; ACF mantém a mesma linha (“presenciaram… e foram ministros da palavra”), com a diferença de que “segundo nos transmitiram” expressa bem o kathōs… paredosan (“assim como… transmitiram”); NVI-PT e NVT preferem “servos da palavra”, que se aproxima mais da nuance de serviço embutida em hypēretai; e NTLH traduz o efeito prático do termo com “anunciaram a mensagem do evangelho”, uma explicitação interpretativa do que “servir a palavra” significa na prática, útil pastoralmente, embora menos literal no nível lexical.
C. Interpretação Teológica
Lucas 1:3
Pareceu-me bem também, depois de ter acompanhado tudo com exatidão desde o princípio, escrever-te em ordem, ó excelentíssimo Teófilo,... (Gr.: edoxen kamoi parēkolouthēkoti anōthen pasin akribōs kathexēs soi grapsai, kratiste Theophile — Tradução literal: “Pareceu bom também a mim, tendo acompanhado desde o princípio a todas as coisas com exatidão, escrever-te em sequência, ó excelentíssimo Teófilo”.) Aqui, o tom de “pareceu bom” nasce do verbo dokeō (“parecer”, “julgar”, “considerar”), cujo uso pode carregar a ideia de um juízo ponderado, uma decisão tomada por avaliação, não por impulso. O “acompanhar” de parakoloutheō (“seguir de perto”, “acompanhar atentamente”) traz no próprio corpo a imagem de proximidade, como quem não observa de longe, mas caminha “ao lado” do percurso dos fatos, sentido já sugerido pela formação com o elemento para (“junto”, “ao lado”) unido ao “seguir” do verbo. O advérbio anōthen (“desde o princípio”, “do alto”, “de cima”) deriva de anō (“acima”) e, aqui, põe o olhar no ponto inicial, no “começo” do fio narrativo. A precisão de akribōs (“exatamente”, “com rigor”) é a precisão de quem mede sem folga: o advérbio nasce do campo de akribēs (“preciso”, “exato”), termo bem atestado no grego mais amplo. E quando ele diz “em ordem”, kathexēs (“em sequência”, “um após outro”) se deixa ver por dentro: é composto de kata + hexēs, isto é, algo como “segundo a sequência”, “de acordo com a ordem”. O “escrever” de graphō (“escrever”, com a imagem primária de “gravar/incisar”) dá à obra um caráter de registro, de inscrição do testemunho em forma estável. Por fim, o tratamento kratistos (“excelentíssimo”) é o superlativo que aponta dignidade pública (“o mais distinto”), e o nome Theophilos (“amigo de Deus”) expõe sua composição de theos + philos de maneira quase transparente.
Lucas 1:4
...para que conheças plenamente a segurança das palavras em que foste instruído. (Gr.: hina epignōs peri hōn katēchēthēs logōn tēn asphaleian — Tradução literal: “a fim de que conheças plenamente a segurança das palavras acerca das quais foste instruído”.) O “conhecer plenamente” de epiginōskō é um conhecer que cresce “por cima” do simples saber: o verbo carrega a composição epi + ginōskō, sugerindo reconhecimento mais completo, conhecimento confirmado, como quem chega à clareza final e não apenas ao primeiro contato. O “foste instruído” de katēcheō traz uma etimologia sonora: kata + ēchos (“som”, “eco”), como “fazer ressoar para dentro”, o ensino que entra pelos ouvidos e forma a mente pela via oral. E a palavra-chave “segurança” é asphaleia, termo que pode ser explicado pela própria construção: o valor de firmeza nasce do prefixo privativo (a ideia de “não”) somado ao verbo ligado a “tropeçar/cair”, desenhando “o que não cai”, “o que não se deixa derrubar”, portanto “segurança/certidão”.
Lucas 1.4 A certeza. O propósito desta expressão foi dar uma garantia a Teófilo, que possivelmente era um novo fiel e alguém muito interessado na mensagem cristã.
É provável que Teófilo fosse um gentio, considerando que muito de Lucas e Atos tem ligação com a relação entre gentios e judeus (At 10; 11; 15). Ele não precisava apenas saber a verdade e a exatidão do que a Igreja ensinava, mas também necessitava que isto fosse reafirmado. Teófilo deve ter se perguntado o que ele, na condição de gentio, estava fazendo em um movimento que era originalmente judeu, especialmente quando muitos israelitas estavam rejeitando a mensagem.
Um Messias morto poderia realmente ser o centro da promessa de Deus? A perseguição da Igreja é um sinal do julgamento de Deus sobre um movimento que fez a Sua graça tão generosa, incluindo diretamente nela os gentios sem que estes precisassem tomar-se judeus primeiro? Lucas desejava garantir a Teófilo (e aos outros leitores deste trabalho) que Jesus de fato cumpriu a promessa do Senhor, que Seu ministério e, especialmente, Sua ressurreição mostram que Deus está por trás, e que qualquer gentio pertence a este movimento. Além disso, como demonstra Atos, a perseguição da Igreja é como aquela com a qual Cristo se deparou, e deu a oportunidade de que a Palavra de Deus fosse espalhada por toda região, até mesmo por lugares tão distantes como Roma.
Lucas 1.5 Lucas é muito preciso ao dar a exata informação histórica e cronológica. Tal fato pode ser observado nas palavras deste versículo, bem como em outras referências a importantes personagens históricos, eventos e datas, como acontece em Lucas 2.1-3; 3.1,2,19,23. Este Herodes, conhecido como Herodes, o Grande, era descendente de Esaú (compare com Gn 27.39-40). Nascido em 73 a.C., ele foi designado rei dos judeus pelo senado romano em 40 a.C. Reinou até sua morte, em 4 a.C. Arquelau (Mt 2.22), Filipe (Lc3.1) e Herodes Antipas (Lc 23.7- 12,15) eram seus filhos. Herodes Agripa I, em Atos 12.1-6,19-23, foi seu neto, e Herodes Agripa II, em Atos 25— 26, seu bisneto. O sacerdócio de Israel estava separado em 24 divisões, e um dos grupos sacerdotais pertencia à família de Abias (1 Cr 24.10; Ne 12.17).
Lucas 1.6 E eram ambos justos perante Deus. Esta expressão indica que o sacerdote e sua mulher foram reconhecidos por Deus como cristãos. Eles andaram em fé junto ao Senhor e cumpriram Sua Lei (Dt 6.24,25). Isso não indica a impecabilidade, visto que cumprir a Lei também significava levar sacrifícios pelo pecado e responder apropriadamente a sua presença. Simeão (Lc 2.25), Cornélio (At 10.22) e José (Mt 1.19) são descritos desta forma.
Lucas 1.7 Ser estéril era um infortúnio muito grande no antigo Israel (1 Sm 1). As Escrituras registram um vasto número de mulheres inférteis que foram abençoadas por Deus e conceberam filhos (Gn 18.11; 21.2,3; 1 Sm 1.2). Este ato de Deus indica que Ele estava em ação, considerando também que Isabel e Zacarias eram de idade avançada.
Lucas 1.8, 9 Duas vezes por ano, Zacarias servia durante uma semana no templo do Senhor, e era um dos talvez 18 mil sacerdotes que serviam lá. Os deveres sacerdotais eram designados por sorte, e oferecer o incenso era algo que o sacerdote poderia fazer apenas uma vez em sua vida — e, algumas vezes, nunca. Zacarias foi um dos contemplados com a permissão de fazer esta oferta ao Senhor, o que representou um grande momento para ele, sobretudo por causa do soberano plano de Deus para a vida dele e de sua família.
Lucas 1.10, 11 A hora do incenso acontecia duas vezes por dia, provavelmente na parte da manhã e no meio da tarde. Não se sabe ao certo se Zacarias ofertou o incenso na hora matinal ou na vespertina.
Lucas 1.12 O temor diante da presença de Deus ou de Seu mensageiro (v. 11) é muito comum nas Escrituras (Lc 1.29,65; 2.9; 5.8-10,26; 7.16; 8.37; 9.34; Êx 15.16; Dn 8.16,17; At 5.5,11; 19.17).
Lucas 1.13 Os anjos geralmente acalmam os temores daqueles aos quais aparecem (Lc 1.30; 2.10; Gn 15.1; Dn 10.12; Mt 1.20; At 18.9; 27.24; Ap 1.17). A tua oração foi ouvida. Com esta expressão, o anjo provavelmente estava fazendo referência ao clamor de Zacarias pela redenção de Israel, ou às suas preces anteriores por um filho. Na verdade, a ação de Deus começa um processo que responde aos dois pedidos de uma vez só. Possivelmente ele não estava orando por um filho, visto que o versículo 18 indica que Zacarias não tinha mais esperança quanto a isso. E lhe porás o nome de João. Quando Deus nomeia uma pessoa, esta geralmente se toma em alguém grandioso (Gn 16.11; 1 Rs 13.2; Is 7.14).
Lucas 1.14 Alegria é um tema importante ao longo dos escritos de Lucas (Lc 1.44,47,58; 2.10; 10.20; 13.17; 15.5-7; 19.6; 24.52; At 5.41).
Lucas 1.15 João possuía um lugar de destaque nos desígnios de Deus, mas sua função era inferior ao papel singular de Jesus. João era um profeta, e como tal ele foi cheio com o Espírito Santo desde o ventre de sua mãe (Is 49.1; Jr 1.5). Estar cheio do Espírito Santo significa ser dirigido por e obediente a Ele (Ef 5.18). E não beberá vinho, nem bebida forte. Como aconteceu com Samuel e Sansão, um voto foi estabelecido para a criança, o qual indicava sua consagração especial ao Senhor. João seria preparado para sua missão por meio de uma vida consagrada. Não fica claro se este foi um voto de nazireado, visto que nada é dito acerca da proibição do corte de cabelo (Nm 6.1-4; Jz 13.5,7).
Lucas 1.16 João Batista prometeu a reconciliação com Deus àqueles que responderam ao seu chamado ao arrependimento (Lc 3.1-14). Converter é um termo que indica uma mudança de orientação, a libertação do pecado e o olhar voltado para Deus (1 Ts 1.9,10). A missão do profeta João Batista foi preparar Israel para a vinda do Messias.
Lucas 1.17 Irá adiante dele no espírito e virtude de Elias. Esta descrição faz lembrar Malaquias 3.1 e 4-5, pois João era o precursor do Messias. O ministério de João Batista possuiu um paralelo com o de Elias, pois ambos os profetas chamaram Israel a arrepender-se (1 Rs 17.18).
A mensagem de reconciliação pregada por João Batista envolve tanto o relacionamento das pessoas com Deus (voltar à prudência dos justos) como o relacionamento dos indivíduos uns com os outros (converter o coração dos pais aos filhos). O fato de que João Batista agiria no mesmo poder e Espírito de Elias não significa que a esperança da vinda de um novo profeta como Elias esgota-se em João Batista. Este profeta e Jesus sugeriram o retorno de um indivíduo parecido com Elias no fim dos tempos (Mt 17.11-13; Jo 1.21). Como muitos elementos do plano de Deus, há um cumprimento inicial e um posterior, que é diferente, mas relacionado. Preparar ao Senhor um povo. Esta expressão descreve o propósito do ministério de João Batista, que visava apresentar a Cristo um povo preparado, arrependido, convertido, justo e sincero, a fim de cumprir os propósitos especiais do Senhor. O paralelo mais próximo disso no Antigo Testamento está em 2 Samuel 7.24, onde o povo preparado alegrou-se na esperança da promessa davídica. Conexões com esperança davídica reaparecerão em 1.31,32.
Lucas 1.18 Como saberei isso? Esta expressão mostra a dúvida de Zacarias, uma falta de fé que foi sanada nos versículos 64 e 65. Zacarias ignorou completamente a origem divina da promessa e o mensageiro angelical que a comunicou. A fim de que as palavras do anjo se tornassem realidade, seria necessário que Deus agisse sobre o processo natural de envelhecimento de Zacarias e que corrigisse a infertilidade do útero de Isabel. Este líder religioso não se lembrou de que uma situação similar aconteceu com Abraão, o pai do povo judeu?
Como David Gooding, em seu livro According to Lukes, disse pungentemente: “um milagre, de fato. Mas, se tal maravilha é impossível, como Zacarias pensou a princípio, toda a conversa sobre redenção é inútil, ou, na melhor das hipóteses, possui uma designação incorreta. Um novo corpo que não teve nada a ver com o velho, um novo mundo que não teve nada a ver com o antigo, isso certamente seria uma coisa maravilhosa — mas não seria redenção. A redenção deve significar abandonar a natureza corruptível, renovando corpos desfalecidos, ressuscitando os mortos e restaurando os espíritos caídos”.
Lucas 1.19 Gabriel, um dos dois anjos nomeados na Bíblia, foi o mensageiro frequente dos planos de Deus (Dn 8.16; 9.21). Miguel é o outro anjo cujo nome é mencionado (Dn 10.13,21; Jd 9; Ap 12.7).
Lucas 1.20 Todavia ficarás mudo. Este sinal também foi uma oportunidade para refletir sobre a falta de fé. Ao que tudo indica, Zacarias estava apenas incapacitado de falar (v. 62,63). A chegada do filho quebraria o silêncio de Zacarias. O sacerdote seria preenchido com alegria, louvando a Deus por Sua fidelidade (veja o cântico de Zacarias nos v. 68-79).
Lucas 1.21, 22 O povo no templo esperava a bênção araônica do sacerdote (Nm 6.24-26). O término da oferta ocorria apenas quando os sacerdotes saíam do lugar santo.
Lucas 1.23 A casa de Zacarias estava localizada na área montanhosa ao sul de Jerusalém (v. 39).
Lucas 1.24 O motivo pelo qual Isabel se ocultou não fica claro. A sugestão mais aceita é que ela se retirou para louvar a Deus, como sugere o versículo 25, e para se preparar privativamente para a chegada de sua criança especial.
Lucas 1.25 No antigo Israel, a infertilidade era vista como opróbrio [humilhação, na NVI]. O fato de uma mulher estéril engravidar indicava a graça de Deus (Gn 21.6; 30.23; 1 Sm 1; 2; SI 128.3). Neste versículo, Isabel louva ao Senhor por tê-la abençoado misericordiosamente.
Lucas 1.26-38 O anúncio feito a Maria apresenta a concepção virginal de Jesus (v. 27,34,35), mas relaciona-se ao Antigo Testamento pois, em Mateus 1.23, de fato é citado Isaías 7.14. A passagem de Lucas conta a história do ponto de vista de Maria, enquanto Mateus 1.18-25 foca em José. A narrativa traça um paralelo com mensagens similares do Antigo Testamento (Isaque: Gn 16.7-14; 17.15-22; 18.9-15; Gideão: Jz 6.11-17; Sansão: Jz 13.3-23; Samuel: 1 Sm 1.9-20). O anúncio do anjo Gabriel enfatiza a magnífica condição de Jesus, bem como Sua origem singular. Lucas deixa claro que Maria não percebeu a importância teológica deste nascimento, algo que constatamos na resposta dela no capítulo 2, versículo 48. Lucas prefere mostrar como Jesus se revelou gradualmente e como as pessoas travaram contendas por Ele ser quem era.
Lucas 1.26, 27 O anúncio do anjo Gabriel ocorreu no sexto mês após João Batista ter sido concebido. Nazaré era uma pequena vila na Galileia, uma região da parte norte de Jerusalém.
Lucas 1.28-31 Bendita és tu entre as mulheres. Maria, como todos os mortais, foi alvo da graça de Deus, e não uma concessora desta. Ela desempenhou um papel fundamental, da mesma forma que João Batista recebeu um chamado especial. Maria foi simplesmente agraciada por Deus (v. 30).
Lucas 1.32, 33 Grande [...] Filho do Altíssimo. Ao compararmos com 1.15, Jesus é simplesmente chamado de grande (talvez haja uma alusão a Mq 5.3 aqui). A referência ao Altíssimo é outra forma de falar da majestade de Deus com a qual Jesus possui uma relação singular como Filho. Sua grandeza e Sua qualidade de filho são definidas pelo que se segue no versículo 32. Ele cumpre promessas, feitas a Davi, de um domínio eterno (isto é, Ele é o Messias). O Antigo Testamento apresenta e desenvolve esta promessa em detalhes (2 Sm 7.8-17, especialmente os v. 13,16; 1 Rs 2.24,25; SI 2.1-12; 89.14,19-29,35-37; 110.1-7; 132.11,12; Is 9.6,7; 11.1-5,10; Jr 23.5,6). Já o Novo Testamento exibe as manifestações mais visíveis dessa promessa apontando para a segunda vinda de Jesus (Ap 19 e 20).
Lucas expõe aspectos que evidenciam Cristo como Rei, Filho de Deus. Contudo, seus elementos serão expostos mais claramente no futuro (Lc 18.39; 19.38; 22.69; At 2.30-36). Lucas ainda enfatiza a conexão da aliança davídica com a promessa da vinda de Jesus (Lc 1.27,32,69; 2.4,11).
Lucas 1.34 Como se fará isso? Maria não pediu um sinal. Logo, essa pergunta não reflete uma descrença. Ela aceitou sua função sem questionar (v. 38) e deste modo se tornou um modelo de fé, mesmo que não possuísse a total compreensão do acontecimento. A obra de Deus em Maria apresentou algo inédito: o nascimento, por intermédio da raça humana, daquele que é Deus e homem.
Lucas 1.35, 36 Descerá sobre ti o Espírito Santo. Esta é uma declaração direta da concepção divina de Jesus. A associação do Espírito com a virtude [poder, na NVI] é constante para Lucas (Lc 1.17; 4.14; At 1.8; 6.8-10; 10.38). A concepção virginal de Jesus indica que Ele é singularmente separado, o Santo, expressão que aqui é mais do que um título, é uma descrição da natureza sem pecado de Jesus. O nascimento ímpar é outra razão pela qual o menino pode ser chamado de Filho de Deus.
Lucas 1.37 Porque para Deus nada é impossível. O Senhor manteve a Sua promessa, independente de quão difícil as circunstâncias poderiam parecer. A declaração de fé de Gabriel a respeito de Deus deveria também ser a nossa afirmação de confiança: para Deus nada é impossível. A demonstração máxima do poder do Altíssimo foi o infinito Criador encarnar como criatura.
Lucas 1.38 A palavra serva indica a humildade de Maria perante o Senhor, a prontidão da fé e o serviço obediente, coisas que deveriam caracterizar todo aquele que crê. Paulo usa a mesma expressão para definir a si mesmo (Rm 1.1).
Lucas 1.39-41 Ao ouvir Isabel a saudação de Maria, a criancinha saltou no seu ventre. A chegada de Maria causou uma reação em João, que estava na barriga de Isabel. O precursor do Messias deu testemunho de Jesus mesmo antes de nascer. O anjo tinha dito a Zacarias que esse bebê seria preenchido com o Espírito Santo desde o ventre (v. 15).
Lucas 1.42-44 E de onde me provém isso a mim, que venha visitar-me a mão do meu Senhor? Isabel maravilhou- se com a graça concedida a ela de fazer parte do grande plano divino. Ela sabia que Deus não lhe devia nada, mas também estava convicta de que Ele lhe tinha dado misericordiosamente muita coisa.
Lucas 1.45 A confiança de Maria contrasta com a dúvida de Zacarias. Bem-aventurada a que creu. Esta resposta de fé de Maria foi exemplar. Ela estava somente servindo a Deus para que Ele fizesse cumprir Suas promessas.
Lucas 1.46 O termo engrandece deu origem ao nome do hino Magnificat, que vem da tradução em latim, a Vulgata. Este cântico é pessoal nos versículos 46 a 49, enquanto nos versículos 50 a 55 se volta para os princípios pelos quais Deus age. E um salmo de louvor, visto que Maria louva a Deus recitando o que Ele fizera. O cântico é um dos quatro hinos em Lucas 1 e 2. Os outros estão em 1.67-79; 2.14 e 2.29-32.
Lucas 1.47 Deus, meu Salvador. A ação de Deus como Salvador é destacada neste hino (v. 46-55). Maria considerou uma honra participar do desígnio divino. Deus, o Pai, é o foco deste cântico, pois Ele é a origem e o executor do plano. O atributo do Senhor (Salvador) não é declarado como abstração, mas relacionado ao Seu plano redentor. As expressões engrandece e se alegra sugerem a contínua presença do louvor.
Lucas 1.48 Desde agora. Esta expressão também pode ser traduzida como “de agora em diante”. Ou seja, as coisas não seriam mais as mesmas (Lc 5.10; 12.52; 22.69; At 18.6). Todas as gerações me chamarão bem-aventurada. Maria deixou de ser uma pobre e desconhecida moça hebreia para se tornar a mulher mais honrada da história mundial.
Lucas 1.49 O Poderoso. Esta expressão realça que Deus é Aquele que protege Seus filhos e luta por eles (SI 45.3; 89.8; S f 3.17). Santo é seu nome. Deus é único e distinto dos outros seres (Lv 11.44,45; SI 99.3; Is 57.15).
Lucas 1.50 O termo misericórdia expressa os conceitos de lealdade, graça e amor fiel do Antigo Testamento (Sl 103). Sobre os que o temem. Estas são as palavras-chave no cântico, pois mostram que Deus não está tratando de classes sociais nem dos humildes sem considerar sua orientação espiritual. O cântico reflete os comprometimentos da aliança (v. 54,55) bem como a orgulhosa resposta a Deus. A misericórdia é dada àqueles que procuram respeitosamente por Ele. Portanto, o uso do hino para demonstrar apenas pontos político-sociais não é apropriado.
Lucas 1.51-53 Estes versículos demonstram uma “reversão” no final dos tempos, quando aqueles que abusaram do poder serão julgados e os que sofreram perseguição serão exaltados. Embora seja usado o tempo verbal passado, os versículos vislumbram o futuro, visto que eles carregam os princípios pelos quais Deus age e são expressos com a certeza de um evento passado. Maria olhava adiante, para o dia em que o povo de Deus não seria mais oprimido, mas sim abençoado por Deus. Com o seu braço, agiu valorosamente. Esta expressão descreve, de forma figurada, a ação e o poder de Deus como Salvador de Seu povo (Lc 1.47; Dt 4.34; SI 89.13; 118.15).
Lucas 1.54-56 E auxiliou a Israel, seu servo. A ideia de Israel como servo de Deus é frequentemente encontrada no livro de Isaías (Is 41.8,9; 44.1,2,21; 48.20; 49.3). Israel desempenhou um papel especial no serviço e na revelação do Senhor. Maria vê o dia em que Israel será liberto, e ela poderá concluir sua incumbência. Como falou a nossos pais. As ações de Deus na vida de Maria foram baseadas nos compromissos que Ele fez séculos antes (Gn 12.1-3; 22.16-18). Ele manterá Sua promessa, por isso Maria pôde ser tão confiante.
Lucas 1.57-59 E lhe chamavam Zacarias. E descrito aqui o antigo costume de dar o nome de um membro da família ao recém-nascido.
Lucas 1.60, 61 O fato de Isabel não ter seguido os costumes — ao colocar em seu filho um nome que ninguém possuía em sua parentela — mostra a obediência dela e seu marido ao Senhor, que anunciara previamente o nome a ser posto na criança a Zacarias (v. 13).
Lucas 1.62, 63 E perguntaram, por aceno. Isto pode indicar que Zacarias também ficou surdo, além de mudo (v. 20). Tabuinha de escrever era uma placa de madeira coberta com cera.
Lucas 1.64 Zacarias aprendeu sua lição de fé, como o versículo 63 indica. Assim, sua punição chegou imediatamente ao fim.
Lucas 1.65, 66 Temor. Esta é uma resposta natural à presença de Deus. O fato de Zacarias voltar a falar, louvando a Deus, gerou duas reações: temor e uma discussão reflexiva.
Lucas 1.67 A presença do Espírito aqui capacitou Zacarias para anunciar a promessa de Deus. Além disso, embora ele fosse um sacerdote, o Espírito o habilitou para profetizar. Há três tipos de profecias na Bíblia: a que prediz o futuro, a que proclama a Palavra de Deus e a que louva a Deus. A profecia de Zacarias inclui os três tipos. O cântico de louvor a Deus entoado por Zacarias é chamado de Benedictus [Bendito], por causa da primeira frase do trecho na tradução da Bíblia em latim, a Vulgata.
Lucas 1.68 Como também aconteceu no cântico de Maria, Deus, o Salvador, é o objeto do louvor de Zacarias. A salvação à qual Zacarias se refere é o livramento dos inimigos (v. 71) e a salvação espiritual (v. 75,77,79).
Lucas 1.69, 70 Uma salvação. O original em grego diz “um chifre de salvação”. O chifre de carneiro representa o guerreiro e o poder (1 Sm 2.10; 2 Sm 22.3; SI 75.4,5,10; 132.17; Ez 29.21). Davi. O ancestral real de Jesus é destacado aqui por Zacarias e vinculado à promessa de Deus (v. 70).
Lucas 1.71 Deus prometera libertar os israelitas de seus inimigos. Em Lucas, tais opositores incluem forças humanas e espirituais (Lc 4.16-30; 11.14-26).
Lucas 1.72, 73 E para manifestar misericórdia, e para lembrar-se do seu santo concerto. Estas ações de Deus representaram Seu compromisso de amor fiel aos israelitas (v. 50) e o cumprimento de Suas promessas aos ancestrais deles (v. 54,73; Lv 26.42).
Lucas 1.74, 75 Zacarias ansiava por servir a Deus em santidade e em justiça. Lucas mostra que o sacerdote aprendeu muito com o nascimento de seu filho. Cristo veio para nos dar a liberdade de servir ao Senhor sem medo [NVI] da perseguição de nossos inimigos, para viver em santidade de coração diante de Deus e em justiça na conduta perante os outros.
Lucas 1.76 Hás de ir ante a face do Senhor. Embora seja discutido se a alusão aqui é feita a Deus, o Pai, ou a Jesus, o objeto do louvor e da ação de graças é Deus, o Pai. Este comentário feito por Zacarias repete as referências de 1.16,17, onde fica claro que há a menção ao Pai. De forma bastante consistente, Lucas exibe a salvação e os benefícios do Senhor por intermédio de Jesus (At 2.30-36). Por outro lado, João Batista deve preparar o caminho para Yahweh, uma referência à condição de precursor do Messias.
Lucas 1.77 Dar ao seu povo conhecimento da salvação. Esta também era a tarefa de João Batista como profeta — preparar as pessoas informando as da necessidade do arrependimento (Lc 3.1-14) e da esperança que viria por intermédio daquele que se seguiria após ele (Lc 3.15-18). Um dos motivos para esta observação não se referir a Jesus é que o sujeito da frase encontrado no versículo 76 é João Batista.
O ministério de João Batista foi de suma importância para preparar o povo para a vinda de Jesus. A salvação, porém, viria pela remissão dos pecados, pois uma não poderia acontecer sem a outra. João Batista, com seus batismos, ilustrou esta possibilidade, enquanto o “grande batismo”, que Jesus trouxe com Espírito (Lc 3.15 -18), reflete a presença da salvação.
Lucas 1.78, 79 O oriente é uma referência ao Messias vindouro (Nm 24.17; Ml 4.2). A mesma palavra grega também foi usada para traduzir o termo hebraico que corresponde a ramificar ou brotar, um conceito com nuanças messiânicas (Is 11.1-10; Jr 23.5; 33.15; Zc 3.8; 6.12). Para alumiar [...] dirigir os nossos pés. Como o raiar do dia ou a alvorada, o Messias proverá a luz da verdade e o perdão àqueles cegos pela escuridão de seus pecados.
A palavra paz descreve a relação harmoniosa com Deus.
Lucas 1.80 E o menino crescia. Esta expressão finaliza a história do nascimento de João Batista. Dois refrãos similares saúdam a passagem de Jesus (Lc 2.39, 52), sendo que a duplicidade é outro toque estilístico que enfatiza a superioridade de Jesus em relação a João Batista, assim como a diferença do fraseado entre os versículos. João Batista esperou 30 anos para que o Messias se manifestasse a Israel. Não teve apenas uma imensa humildade, mas também uma grande paciência.
I. Intertextualidade com o Antigo e Novo Testamento
Lucas 1 abre sua narrativa com a consciência explícita de estar registrando “as coisas que entre nós foram plenamente cumpridas” (Lucas 1:1), expressão que já situa o evangelho no horizonte das promessas veterotestamentárias que agora chegam ao seu telos em Jesus; o verbo peplērophorēmena (peplērophorēmena, “plenamente cumpridas”) sugere não apenas ocorrência, mas consumação, ecoando a leitura cristã do Antigo Testamento como história de promessas cumpridas (Lucas 24:27; Atos 13:32–33). O prólogo (Lucas 1:1–4) invoca “testemunhas oculares e servos da palavra”, linguagem que ressoa o Deuteronômio, onde a palavra dada por Deus exige testemunho fiel (Deuteronômio 17:6; Deuteronômio 19:15), e prepara a continuidade com Atos, em que as “testemunhas” garantem a transmissão apostólica (Atos 1:8, 21–22). A alusão à “ordem” (kathexēs, Lucas 1:3) e à “segurança” (asphaleia, Lucas 1:4) cria uma ponte com a historiografia bíblica que persegue uma sequência teológica, como em 1–2 Crônicas ao reler 1–2 Samuel e 1–2 Reis sob o prisma da aliança davídica (1 Crônicas 17).
A anunciação a Zacarias (Lucas 1:5–25), no cenário do templo e sob a sombra do incenso, retoma matrizes patriarcais de esterilidade vencida por intervenção divina: Sara (Gênesis 18:10–14), Rebeca (Gênesis 25:21) e Ana (1 Samuel 1:19–20). O anjo Gabriel — o mensageiro das visões do fim em Daniel (Daniel 8:16; Daniel 9:21) — anuncia o nascimento de João como profeta escatológico que virá “no espírito e poder de Elias” (Lucas 1:17), cumprindo a expectativa de Malaquias: o “mensageiro” que prepara o caminho (Malaquias 3:1) e o retorno de Elias “antes do grande e terrível dia do Senhor” para converter corações (Malaquias 4:5–6). A fórmula “converter o coração dos pais aos filhos” (Lucas 1:17) cita e atualiza literalmente Malaquias 4:6, enquanto a expressão “preparar ao Senhor um povo bem disposto” condensa Isaías 40:3 (“Preparai o caminho do Senhor”) e a tradição do Êxodo, em que o povo é preparado para encontrar o Deus que vem (Êxodo 19:10–11). O voto nazireu implícito (“não beberá vinho nem bebida forte”, Lucas 1:15) convoca a memória de Sansão (Juízes 13:3–5), mas, diferentemente de Sansão, João é apresentado como profeta que conduz a Israel ao arrependimento (Lucas 3:3), antecipando o batismo cristão (Atos 19:3–5).
Na anunciação a Maria (Lucas 1:26–38), Gabriel desloca-se ao interior de Israel — “uma cidade da Galileia, chamada Nazaré” — sinalizando que o cumprimento não se restringe ao templo. O vocativo “alegra-te” (chaire, Lucas 1:28) e a declaração “o Senhor é contigo” ecoam fórmulas de chamamento profético e militar (Juízes 6:12 com Gideão), ao mesmo tempo em que a promessa “conceberás e darás à luz um filho” remete ao sinal dado a Acaz em Isaías 7:14, cuja leitura lucana converge para a identidade messiânica de Jesus. A promessa de trono e reino “para sempre” (Lucas 1:32–33) é uma citação teológica de 2 Samuel 7:12–16 e Salmos régios como Salmos 89:3–4, 26–37 e Salmos 132:11–18: o herdeiro de Davi reina sem fim; a expressão “Filho do Altíssimo” (hypsistos) alinha-se aos títulos do Deus supremo no Antigo Testamento (Gênesis 14:18–20) e prepara o uso lucano em Atos (Atos 7:48; 16:17). A sombra do Espírito e o “poder do Altíssimo” (Lucas 1:35) atualizam teofanias criacionais: o Espírito pairando sobre as águas (Gênesis 1:2) e a “sombra” da nuvem da presença que cobre a tenda (Êxodo 40:34–35), como também o “revestir” do Espírito em juízes e profetas (Juízes 6:34; Isaías 11:2). A santidade do nascituro (“será chamado santo, Filho de Deus”, Lucas 1:35) antecipa a confissão cristológica do Novo Testamento (Marcos 1:1; João 20:31) e fundamenta a concepção virginal como ato soberano de nova criação (2 Coríntios 5:17).
A visitação de Maria a Isabel (Lucas 1:39–45) transforma a “montanha de Judá” em palco de arca teofânica: assim como a arca subiu “à região montanhosa de Judá” e Davi exultou diante dela (2 Samuel 6:1–15), João “salta” no ventre de Isabel (Lucas 1:41, 44), e Maria permanece “cerca de três meses” (Lucas 1:56; cf. 2 Samuel 6:11). Essa tipologia da arca reaparecerá em Lucas 2 com a linguagem do “glória” e da “paz”, marcas da presença divina (Lucas 2:14; cf. Êxodo 40:34; 1 Reis 8:10–11). A bem-aventurança de Isabel — “bem-aventurada a que creu” (Lucas 1:45) — antecipa a bem-aventurança de Jesus à fé obediente (Lucas 11:27–28) e ressoa Habacuque 2:4 (“o justo viverá pela fé”), texto que o Novo Testamento lerá como eixo da resposta humana à promessa (Romanos 1:17; Gálatas 3:11).
O Magnificat (Lucas 1:46–55) é uma tessitura de salmos e de Ana (1 Samuel 2:1–10). A abertura “engrandece a minha alma ao Senhor” retoma o refrão dos Salmos (Salmos 34:3; 35:9) e o verbo “exultar” (agalliaō, Lucas 1:47) marca a alegria escatológica prometida em Isaías (Isaías 61:10). O Deus que “atenta para a humildade” (Lucas 1:48) ecoa Salmos 138:6; 113:5–8 e Isaías 57:15. A série de reversões — “derribou poderosos… exaltou humildes… encheu de bens os famintos e despedidos os ricos de mãos vazias” (Lucas 1:52–53) — costura Salmos 107:9; 113:7–8; Jó 5:11 e anuncia o programa ético de Lucas 6:20–26 (bem-aventuranças e ais), além de dialogar com Tiago 2:5–6 e 4:6 (“Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes”). O “braço” que faz proezas (Lucas 1:51) é figura clássica do Êxodo (Êxodo 6:6; Deuteronômio 4:34; Isaías 51:9–10). A fidelidade “à sua misericórdia” (eleos, Lucas 1:50, 54) e “ao juramento feito a Abraão” (Lucas 1:55) recupera Gênesis 12:1–3; 17:7; 22:16–18 e Salmos 98:3; 105:8–11, e já abre a porta para a leitura paulina de que a promessa a Abraão aponta para Cristo e para a inclusão dos gentios (Gálatas 3:8, 16, 29; Romanos 4:13–17).
O nascimento e a nomeação de João (Lucas 1:57–66) convergem com o motivo profético de nomes dados por revelação (Isaías 7:14; Oseias 1:4–9). “João” (Yōḥanan, “o Senhor mostrou graça”) é, por si, um midraxe do tema da chēsēd divina que estrutura Lucas 1 (Lucas 1:58, 72). A ruptura com o costume de “Zacarias” sublinha que o novo tempo não se pauta por linhagens, mas por promessa (cf. Filipenses 3:4–8; João 1:13). A língua de Zacarias se solta quando ele escreve o nome revelado (Lucas 1:63–64), sinal de que fé obediente desemboca em louvor profético — dinâmica que Paulo traduzirá como “crer com o coração… confessar com a boca” (Romanos 10:9–10).
O Benedictus (Lucas 1:67–79) recompõe, em chave profético-salvífica, o mosaico da aliança. “Visitou e redimiu” (epeskepsato kai epoiēsen lytrōsin, Lucas 1:68) convoca a visitação graciosa de Deus em Êxodo (Êxodo 3:16; 4:31) e o vocabulário jubilar de redenção (Levítico 25; Isaías 52:9; 63:4). O “chifre de salvação” levantado “na casa de Davi” (Lucas 1:69) remete a Salmos 132:17 e 2 Samuel 22:3, imagem régia de força. “Salvos dos inimigos” e “livres para servir sem temor” (Lucas 1:71, 74) reescrevem Êxodo 14–15 (libertação) e Isaías 41:8–14 (não temas), transformando a libertação política em serviço cultual (“em santidade e justiça”, Lucas 1:75; cf. 1 Pedro 2:9–10). O miolo do cântico declara o eixo abrahâmico: “lembrar-se da sua santa aliança e do juramento que fez a Abraão” (Lucas 1:72–73), que o Novo Testamento lerá como cumprimento em Cristo e extensão aos gentios (Atos 3:25–26; Gálatas 3:14). Quando Zacarias chama João de “profeta do Altíssimo” que “irá adiante do Senhor, preparando-lhe os caminhos” (Lucas 1:76), ele combina Isaías 40:3 com Malaquias 3:1; 4:5 e inscreve João como ponte entre as duas alianças (cf. Mateus 11:10–14). “Dar conhecimento da salvação… na remissão dos pecados” (Lucas 1:77) antecipa a missão de Jesus (Lucas 5:20–24; 7:48–50) e o querigma apostólico (Atos 2:38; 10:43). A imagem do “sol nascente das alturas” (anatolē ex hypsous, Lucas 1:78) tem duplo lastro: a “luz que nasce” de Isaías 9:2; 60:1–3 e a “renovação” davídica, já que anatolē pode evocar “renovo” (Zacarias 3:8; 6:12 LXX), título messiânico; essa luz “ilumina os que jazem em trevas e sombra da morte” (Lucas 1:79; cf. Salmos 23:4; Isaías 42:6–7) e “guia nossos pés no caminho da paz”, alinhando-se com Isaías 59:8 e antecipando o cântico dos anjos em Lucas 2:14 e a ética da paz no ensino de Jesus (Lucas 6:27–36).
Em toda a composição, Lucas 1 estabelece temas que o restante do Novo Testamento desenvolverá. A promessa a Davi (2 Samuel 7) converge para a confissão de Jesus como Messias e Senhor (Romanos 1:3–4); a promessa a Abraão projeta a bênção às nações (Gálatas 3:8; Atos 15:14–18 com Amós 9:11–12); a presença e o poder do Espírito sobre João e sobre Maria (Lucas 1:15, 35) prenunciam Pentecostes (Atos 2:1–4) e a vida da igreja no Espírito (Romanos 8:1–17). As reversões do Magnificat informam a diaconia da comunidade (Tiago 1:9–10; 5:1–6) e o ethos do Reino nas bem-aventuranças (Lucas 6:20–26). A figura de João como “Elias” que prepara o caminho explica a transição entre Lei e Profetas e o evangelho (Lucas 16:16; Mateus 11:13–14), enquanto seu ministério de arrependimento e perdão (Lucas 3:3) abre a grande comissão de perdão anunciado em nome de Cristo a todas as nações (Lucas 24:46–49; Atos 1:8).
Assim, Lucas 1 funciona como um portão intertextual: do lado do Antigo Testamento, ele recolhe Êxodo, Samuel, Salmos, Isaías, Jeremias, Zacarias e Malaquias; do lado do Novo Testamento, ele aponta para o querigma apostólico, a inclusão gentílica e a vida no Espírito. O fio que cose tudo é a fidelidade de Deus ao eleos prometido aos pais e ratificado em Cristo, de modo que a história de Israel se reabre, agora, como evangelho para Israel e para as nações (Lucas 1:54–55; Atos 13:47; Romanos 15:8–12).
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