Provérbios 6: Significado, Explicação e Devocional
Provérbios 6
Provérbios 6 fornece sabedoria prática e advertências sobre vários tópicos, incluindo responsabilidade financeira, trabalho duro, honestidade e pureza sexual. O capítulo fornece, como centro de seu significado, sabedoria prática e advertências sobre responsabilidade financeira, trabalho árduo, honestidade e pureza sexual, todos importantes para viver uma vida justa e plena. O capítulo começa com uma advertência contra assumir obrigações financeiras pela dívida de outra pessoa. O autor enfatiza a importância de ser sábio com o dinheiro e evitar as armadilhas da escravidão financeira.A seguir, o capítulo discute o valor do trabalho árduo e as consequências da preguiça. O autor usa o exemplo de uma formiga, que trabalha arduamente para se preparar para o futuro, para demonstrar a importância de ser trabalhador e não ser complacente.
O capítulo então aborda o tema da honestidade, exortando os leitores a serem verdadeiros e a evitar comportamentos enganosos. O autor adverte contra as consequências da mentira e do roubo, que podem levar à ruína e à desgraça.
A seção final do capítulo enfoca a pureza sexual, exortando os leitores a evitar as tentações do adultério e da imoralidade sexual. O autor enfatiza a gravidade desses pecados, alertando que eles podem destruir a reputação e os relacionamentos de uma pessoa.
Explicação de Provérbios 6
Provérbios 6:1
Filho meu! Se foste fiador do teu amigo, se feriste o estranho (Hb.: benî ʾim-ʿāraḇtā lereʿekā tāqaʿtā lazzār kappeykā — “meu filho, se te fizeste fiador do teu amigo, se bateste a tua mão para um estranho”). O vocativo benî (“meu filho”) abre a cena como um chamado terno e, ao mesmo tempo, grave: o mestre se aproxima não como jurista frio, mas como pai, e a gramática já carrega esse tom pastoral, com um substantivo masculino singular com sufixo de 1ª pessoa, usado em valor vocativo, puxando o leitor para dentro da relação pedagógica. O verbo ʿāraḇtā (“foste fiador”) é Qal perfeito 2ª masc. sing., marcando uma ação já consumada: não é uma hipótese abstrata, mas um fato que o pai supõe como real, como quem olha o filho e diz: “tu já te enredaste nisso”. O complemento lereʿekā (“do teu amigo”), substantivo masculino com sufixo 2ª masc. sing., insinua ironicamente a fragilidade dessa amizade: o amigo pelo qual se arriscou o futuro pode ser justamente o elo que o fará cair. O segundo verbo, tāqaʿtā (“feriste / bateste”), também Qal perfeito 2ª masc. sing., retoma o gesto jurídico de “bater a mão” em garantia, onde kappeykā (“a tua palma”, feminino dual com sufixo 2ª masc. sing.) é a imagem concreta da assinatura, o selo físico do compromisso. O termo lazzār (“para o estranho”) desloca a cena da esfera de aliança para a zona cinzenta do outro, do não-irmão, e a sintaxe paralela das duas orações condicionais (ambas com o mesmo sujeito na 2ª pessoa) reforça que se trata de um único movimento imprudente: sair do cuidado responsável para a temeridade que confunde generosidade com exposição tola. Exegesicamente, o versículo pinta o quadro de um coração bem-intencionado mas descuidado, que transforma a mão, criada para o trabalho e a bênção, em laço que o prende às dívidas de outrem; a teologia de Provérbios, aqui, não condena a solidariedade, mas denuncia o “amor” que ignora limites e, por isso, deixa de ser sabedoria e passa a ser desordem, lembrando que a verdadeira responsabilidade diante de Deus inclui também administrar com prudência o próprio risco e a própria casa.
A literatura rabínica lê este versículo como muito mais do que um conselho financeiro: em Êxodo Rabbah 27:9, a imagem do fiador que “bate a mão” é aplicada ao líder que aceita sobre si o peso da comunidade. Enquanto é apenas “companheiro” (ḥaver), ele não é responsabilizado pelas falhas públicas; mas, quando “toma o manto” da liderança, todo o fardo do povo passa a repousar sobre seus ombros, e, se vê alguém oprimindo outro ou cometendo pecado e se cala, torna-se culpado com ele. Nesse contexto, o midrash ouve a ruaḥ ha-qodesh clamando este versículo — “Filho meu, se te fizeste fiador pelo teu companheiro…” — como uma acusação dirigida ao dirigente que se comprometeu, como um fiador, com o destino espiritual e social do povo (Shemot Rabbah 27:9). A imagem da “mão batida para o estranho” torna-se o gesto de quem entrou voluntariamente “na arena”, como o próprio midrash descreve: ao aceitar o cargo, o líder se coloca num espaço de risco em que “ou vence ou é vencido”, e Deus mesmo se apresenta como parceiro de aliança nesse risco. O que em Provérbios parece advertir um jovem contra um contrato imprudente, na leitura rabínica se transforma em teologia da responsabilidade: ninguém assume autoridade apenas para benefício próprio; todo pacto, toda assinatura, todo aperto de mão implica tornar-se fiador do outro diante de Deus. Em paralelo, outro texto, Midrash Tanchuma, Mishpatim 2, insiste que o sábio que se envolve no julgamento e na defesa da justiça “faz a terra permanecer”, enquanto o que se omite “destrói o mundo”, ecoando o mesmo Provérbios 6:1 como fundo ético da vocação pública (Midrash Tanchuma, Mishpatim 2). Assim, a pequena cena do fiador que se compromete por um “amigo” ganha dimensão cósmica: cada compromisso assumido, cada liderança aceita, é um “aperto de mão” com o destino dos outros.
Aqui fala um pai, mas atrás da voz paterna está o próprio Deus a segurar o pulso do filho antes que ele assine com a tinta imprudente da generosidade vaidosa. Ser fiador é oferecer o próprio peito como penhor da dívida alheia; é pôr o nome, a paz, a casa no gancho do compromisso de outro homem. A Escritura já havia advertido: Judá se ofereceu fiador por Benjamim, dizendo “da minha mão o reclamarás” (Gênesis 43:9), e essa frase ficou gravada como lembrete de que, quando o coração assina por outro, o corpo todo fica debaixo daquele juramento. Outros provérbios levantam o mesmo estandarte: “Aquele que ficar por fiador de outrem sofrerá males, mas o que foge de ser fiador estará seguro” (Provérbios 11:15; cf. Provérbios 17:18), como quem diz: o amor ao próximo não se mede pela ligeireza com que te tornas escravo dos credores, mas pela sabedoria com que ajudas sem cair na mesma cova. E, no entanto, há um fiador que a Escritura exalta: no Novo Testamento, diz-se que o Filho se tornou “fiador de uma melhor aliança” (Hebreus 7:22), não por imprudência, mas por amor perfeito; Ele tomou a dívida que não contraiu, feriu as suas mãos não num aperto com o estranho, mas nos cravos do madeiro. O texto de Provérbios, então, é um espelho: se o Filho de Deus é o fiador que salva, o filho humano que se faz fiador levianamente pode ser o fiador que se perde. É como se o Senhor cochichasse ao ouvido: “Filho meu, não vendas a tua liberdade por uma aparência de nobreza; deves ao teu irmão o amor (Romanos 13:8), não a tua ruína. Aprende a distinguir entre a cruz que Eu te dou e as correntes que tu mesmo forjas no aperto de mão com o estranho”.
Provérbios 6:2
foste enredado pelas palavras da tua boca, foste cativo pelas palavras da tua boca (Hb.: nōqaštā beʾimrê-pîkā nilkadtā beʾimrê-pîkā — “foste enlaçado pelas palavras da tua boca, foste capturado pelas palavras da tua boca”). O verbo nōqaštā (“foste enredado”) traz o campo semântico da caça e das armadilhas; morfologicamente é um perfeito 2ª masc. sing. em construção passiva/de resultado, indicando que o laço já se fechou, e o sujeito, agora, sente a tensão da corda que ele mesmo acionou com a língua. O sintagma beʾimrê-pîkā (“pelos ditos da tua boca”), com ʾimrê no plural construto, sublinha que não se trata de uma única frase infeliz, mas de um conjunto de expressões, promessas, talvez juras excessivas, que se acumularam até formarem uma rede; a boca, pé de página do coração em toda a literatura sapiencial, aparece como fonte que materializa no mundo compromissos espiritualmente vinculantes. O segundo verbo, nilkadtā (“foste capturado”), também perfeito 2ª masc. sing., ecoa o vocabulário de laços e redes e, colocado em paralelismo quase idêntico com a primeira oração, intensifica a ideia de aprisionamento: a repetição de beʾimrê-pîkā não é pobreza de estilo, mas martelar pedagógico, como se o texto dissesse: “não foi o azar, não foi o inimigo, foste tu, com a tua própria fala”. Sintaticamente, duas cláusulas coordenadas sem conjunção (parataxe) criam um efeito de martelo duplo, martelando a mesma verdade; exegesicamente, o versículo faz a ponte entre a ética da palavra e a ética das finanças: no universo bíblico, a pessoa é aquilo que promete, e a sabedoria denuncia o abismo entre lábios rápidos e coração pouco ponderado. A teologia que emerge é severa e ao mesmo tempo libertadora: não se trata de fatalismo mágico, mas da afirmação de que Deus governa um mundo em que compromissos assumidos com a boca têm peso real, e em que a vida justa passa pela disciplina de falar pouco, falar verdade e não vincular o próprio futuro com juras que o coração não mediu.
O Talmud lida com este versículo não apenas como advertência contra promessas imprudentes, mas como chave de toda a ética da fala. Em Yoma 87a, Rabi Yitsḥaq toma o bloco de Provérbios 6:1–3 como prova de que “quem provoca o amigo, mesmo apenas com palavras, precisa apaziguá-lo”: se as palavras enredam, são também elas que devem ser usadas para desatar o laço (Yoma 87a). A expressão repetida beʾimrê fîkha (“pelos ditos da tua boca”) é lida à luz de toda uma tradição que vê em devarim (“palavras”) não simples sons, mas atos morais: o mesmo Talmud, em Bava Metzia 58b, afirma que quem humilha o próximo em público é “como se derramasse sangue”, pois as palavras fazem o sangue subir ao rosto e em seguida desaparecer, como se ferissem a vida do outro (Bava Metzia 58b). Desse modo, “ser enredado pelas palavras” deixa de ser apenas metáfora de um mau negócio e passa a descrever a rede invisível de culpas e dívidas que a linguagem cria entre as pessoas: insultos, promessas que não se cumprem, pactos de amizade quebrados. A resposta rabínica não é cínica (“palavras são só palavras”), mas profundamente realista: se as palavras te algemaram, é por meio delas — confissão, pedido de perdão, reparação verbal e material — que o laço deve ser desfeito, antes que se feche sobre ti como armadilha.
O pai continua a homilia e faz ver ao filho que a prisão começou antes da assinatura: começou na língua. Não foi o contrato, foi a conversa; não foi a caneta, foi o primeiro “sim” dito sem vigia. O coração, que devia ser poço de águas vivas, fez-se rede de caçador para si mesmo. Em Eclesiastes, o mesmo sopro exorta: “Não te precipites com a tua boca… quando a Deus fizeres algum voto, não tardes em cumpri-lo… não consintas que a tua boca faça pecar a tua carne” (Eclesiastes 5:2–6); o que prometes, de algum modo, já te possui. O Senhor Jesus, que conhece a contabilidade secreta de cada sílaba, disse que “de toda palavra ociosa que os homens disserem hão de dar conta no dia do juízo” e que “pelas tuas palavras serás justificado e pelas tuas palavras serás condenado” (Mateus 12:36–37); e Tiago, no Novo Testamento, descreve a língua como pequeno leme que dirige navios e pequena fagulha que incendeia florestas (Tiago 3:3–6). O provérbio, então, é um sermão sobre a boca que constrói algemas: quando a língua se apressa a garantir, a garantir-se, a vangloriar-se, ela tece cordas invisíveis em torno da própria liberdade. O Pai do céu, que abriu a boca para criar o mundo (“disse Deus…” em Gênesis 1) e abriu a boca do Filho para anunciar perdão, pede ao filho de barro que abra a sua boca não para se enredar, mas para se entregar: que prometa menos e ore mais; que jure menos e bendiga mais; que faça do verbo um altar, não uma armadilha.
Provérbios 6:3
Faze isto agora, filho meu, e livra-te, porque caíste nas mãos do teu amigo. (Hb.: ʿăsēh zōt ʾēpōʾ benî wəhināṣēl kî bāʾtā ḇekaf-rēʿekā — “faz isto, pois, meu filho, e sê libertado, porque vieste à palma da mão do teu amigo”). O imperativo ʿăsēh (“faz”) em Qal 2ª masc. sing. abre uma cadeia de comandos que rompem com a passividade dos versículos anteriores: a gramática muda do perfeito (fato consumado) para o imperativo (ação urgente), como se a sabedoria, vendo o laço apertar, sacudisse o filho pela gola. O pronome demonstrativo zōt (“isto”) é deixado propositadamente aberto, remetendo tanto às instruções que seguem quanto à decisão de tomar qualquer medida necessária para sair da armadilha. A partícula ʾēpōʾ (“então”, “pois agora”) adiciona um sabor de “é o momento”, um advérbio que colore o tempo com urgência. O vocativo benî reaparece, reforçando que a correção nasce do amor, e logo em seguida vem wəhināṣēl (“e livra-te”), Nifal imperativo 2ª masc. sing., forma reflexiva/passiva que desenha a libertação como algo que o filho deve buscar ativamente, embora dependa também de uma graça externa: ele não se salva sozinho, mas precisa colaborar com o caminho de saída que lhe é oferecido. A cláusula explicativa kî bāʾtā ḇekaf-rēʿekā (“porque vieste à palma da mão do teu amigo”) é de uma força imagética notável: bāʾtā é Qal perfeito 2ª masc. sing. (“tu vieste, tu entraste”), e kaf (“palma da mão”) sugere não só posse, mas vulnerabilidade total, como um passarinho espremido entre dedos. Exegesicamente, o versículo marca o ponto de virada: não é ainda a descrição de como sair, mas o chamado para reconhecer o perigo e agir sem demora. A teologia aqui é profundamente prática: Deus, pela sabedoria, não apenas condena a imprudência, mas chama o tolo arrependido a cooperar com sua própria libertação, a tratar promessas malfeitas não como destino irrevogável, mas como nó que deve ser desatado com humildade e prontidão.
Aqui a literatura rabínica desenvolve com grande minúcia a urgência dessa ordem. Yoma 87a lê o imperativo ʿăśēh zōʾt como um “agora” existencial: não há tempo a perder quando se está “na mão” do outro, isto é, quando se depende do perdão dele. A passagem talmúdica, a partir desses versos, descreve o caminho concreto de reconciliação: se a dívida é de dinheiro, diz Rabi Yitsḥaq, “abre a palma da mão” e paga; se a ofensa foi verbal, não basta um pedido de desculpas tímido, é preciso buscar o outro e multiplicar os esforços de apaziguamento (Yoma 87a). O mesmo trecho acrescenta que quem feriu o próximo deve tentar apaziguá-lo diante de “três fileiras de três pessoas”, isto é, publicamente, porque ofensas públicas exigem reconciliações à altura, e que não se peça perdão menos que três vezes, ecoando o triplo “por favor” dirigido a José em Gênesis 50:17. Tudo isso é lido como desdobramento daquela expressão: “caíste nas mãos do teu amigo”. A mão do outro, na leitura rabínica, não é apenas mão que cobra uma dívida; é mão que segura a tua história diante de Deus. Por isso, o mandamento “faze isto agora e livra-te” ganha uma dimensão litúrgica: antes de Yom Kippur, diz a Mishná e o Talmud, Deus perdoa apenas o que é “entre o homem e Deus”; o que é “entre o homem e o seu próximo” só é perdoado quando este próximo se vê honradamente procurado e apaziguado (Yoma 85b).
O tempo do pai muda: já não aconselha antes do laço, urge depois da queda. “Agora”, diz ele, como quem abre a porta estreita do instante e mostra, além dela, o corredor da graça. Estás na palma da mão do teu amigo, como ave que pousou no punho do passarinheiro; mas ainda é tempo de voar. O Antigo Testamento conhece esta urgência: “Buscai o Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto” (Isaías 55:6); “hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração” (Salmos 95:7–8). O Novo Testamento repete com outra música: “Eis agora o tempo aceitável, eis agora o dia da salvação” (2 Coríntios 6:2). Aqui, o “salvar-te” não é sair de um inferno distante, é sair de um laço muito concreto: uma dívida imprudente, uma palavra mal dada, um jugo desigual. O texto manda o filho erguer-se não para acusar o amigo, mas para se livrar com humildade: reconhecer o erro, pedir a revisão, desfazer o nó antes que o nó o estrangule. Em termos espirituais, é a mesma lógica do altar que o Senhor Jesus traça: “se estiveres trazendo a tua oferta ao altar e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali a tua oferta… vai reconciliar-te primeiro com o teu irmão” (Mateus 5:23–24). O altar espera; a reconciliação corre. Assim também aqui: o pai está dizendo ao filho que não espere pelo dia do vencimento, pelo oficial de justiça, pelo colapso; que faça agora o que, amanhã, poderá ser tarde demais.
Vai, esmaga-te a ti mesmo e fortalece o teu amigo. (Hb.: lēk hitrapēs ûrəhav rēʿekā — “vai, humilha-te e insiste com o teu amigo”). O primeiro verbo, lēk (“vai”), é imperativo Qal 2ª masc. sing. e funciona como verbo de movimento que introduz a ação reconciliadora: não basta lamentar o laço, é preciso atravessar a cidade, bater à porta, encarar o rosto do credor. O núcleo da imagem está no Hitpael imperativo hitrapēs (“humilha-te”), de um verbo que evoca a ideia de ser pisado como soleira, de pôr-se, por assim dizer, debaixo do pé alheio; a forma reflexiva (Hitpael) sublinha que não é Deus nem o outro que o lançam ao chão, mas ele mesmo, deliberadamente curvando o orgulho, transformando-se em limiar sobre o qual passa a reconciliação. Em seguida, ûrəhav (“e insta / pressiona”) é outro imperativo, de um verbo que pode significar “impelir, fazer pressão”, aqui com sentido de insistir, implorar, “apertar” o amigo em súplicas até que ele aceite liberar o fiador, e isso é completado por rēʿekā (“teu amigo”), que reaparece para lembrar que, por trás da frieza do contrato, há um rosto, uma relação que precisa ser curada. Sintaticamente, a sequência de três ordens curtas — ir, humilhar-se, insistir — produz um ritmo quase litânico, que ecoa na alma como um pequeno rito de arrependimento público: caminhar, ajoelhar, pedir. Exegesicamente, o texto não legitima autodestruição, mas desenha uma humildade radical: a sabedoria manda esmagar o orgulho, não a dignidade, para salvar tanto a própria casa quanto a amizade. Em termos teológicos, esse conselho antecipa o ensino mais amplo da Escritura sobre reconciliação: a verdadeira fé não foge aos embaraços criados por promessas tolas, antes assume a responsabilidade, baixa a cabeça e, se preciso, passa pela vergonha de pedir perdão e renegociar, porque a restauração da justiça vale mais do que a aparência de honra.
Em Yoma 87a, cada verbo é alvo de um jogo exegético: hitrapēs (imperativo hitpael, “humilhar-se”, “prostrar-se”) é associado à imagem de abrir a mão — pēset yad — para pagar o que se deve; ûrehaḇ reʿeka (“insta teu amigo”) é ouvido como harbeh reʿim (“multiplica amigos”), isto é, multiplica os intermediários que levarão teu pedido de perdão até ele (Yoma 87a). A cena se torna quase dramática nos relatos que o Talmud acopla a esse versículo: Rabi Yirmiyá senta-se à porta da casa de Rabi Abba para que o outro tenha ocasião de perdoá-lo; quando é molhado por água suja, ele aceita a humilhação e cita para si o salmo “do monturo levanta o necessitado”, até que Rabi Abba sai e diz: “agora eu é que preciso ir ao teu encontro, porque está escrito: ‘vai, humilha-te e implora ao teu companheiro’”. Em outro caso, Rav, ofendido por um açougueiro, decide ir ele mesmo apaziguá-lo na véspera de Yom Kippur, como que encarnando o imperativo “vai”, não esperando o ofensor vir até ele. Assim, a literatura rabínica lê este meio versículo como um pequeno manual espiritual da reconciliação: aceitar ser ferido no orgulho, ir ao encontro do outro, dar a ele todas as possibilidades de reatar o laço. O texto bíblico, que no contexto imediato trata de um fiador imprudente, é elevado a princípio geral de teshuvá nas relações humanas: a verdadeira garantia que oferecemos ao outro não é dinheiro, mas a disposição de “nos esmagar” — abdicar da auto-justificação — para que a amizade sobreviva.
A língua de fogo deste versículo é quase escândalo: “esmaga-te” — quebra o orgulho, mói a vaidade, deixa que o teu eu se torne pó de trigo sob a mó da responsabilidade. O caminho para fora do laço passa por um abaixamento: a cabeça que se ergueu para se mostrar generosa terá de se inclinar para confessar imprudência. O texto manda ir, não mandar recado; manda suplicar, não exigir direitos; manda “alargar” o amigo, isto é, insistir até que ambos fiquem livres do aperto. Quem conhece o evangelho ouvirá aqui o eco daquela ordem sublime: “quem quiser vir após mim negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Marcos 8:34). Negar-se, aqui, é aceitar parecer pequeno para ser justo; é preferir a humilhação curadora à altivez que apodrece. E “fortalecer o amigo” é mais do que libertar-se do compromisso: é desejar o bem dele, que não fique também ele debaixo de um jugo que não pode carregar. A lei antiga já dizia que não se devia “oprimir o estrangeiro” (Êxodo 22:21) nem “explorar o pobre” (Provérbios 22:22); o evangelho mandará “levar as cargas uns dos outros e assim cumprir a lei de Cristo” (Gálatas 6:2). Neste pequeno verso, a caridade e a prudência se abraçam: a verdadeira amizade não é cúmplice de laços injustos, mas se esforça para que nenhum dos dois fique prisioneiro da mesma corda. O filho é chamado a esmagar o ídolo do próprio prestígio para erguer o irmão, e nisso se parece, de longe, com Aquele que “se esvaziou, tomando a forma de servo” (Filipenses 2:7), para nos tirar da dívida que jamais pagaríamos.
Provérbios 6:4
Não dês sono aos teus olhos, nem repouso às tuas pálpebras. (Hb.: ʾal-titten šēnā leʿêneykā ûtenûmā leʿapʿappeykā — “não dês sono aos teus olhos, nem cochilo às tuas pálpebras”). O negativo ʾal seguido de titten (“não dês”) configura um jussivo proibitivo, com titten em Qal imperfeito 2ª masc. sing., usado aqui com valor de ordem urgente: o pai pede ao filho que suspenda até mesmo o gesto mais básico de descanso, não porque o sono seja mau, mas porque há algo mais urgente que o travesseiro. O substantivo šēnā (“sono”) e o termo quase sinônimo tenûmā (“cochilo, torpor”) desenham dois círculos concêntricos: o descanso profundo e o início de relaxamento; a sabedoria proíbe ambos enquanto o laço da fiança não for desfeito. Leʿêneykā (“aos teus olhos”) e leʿapʿappeykā (“às tuas pálpebras”) reforçam a imagem com um paralelismo intensivo: primeiro o órgão, depois a borda delicada que se fecha sobre ele, como se o texto dissesse “não permitas que nem mesmo o piscar pesado do cansaço te roube a vigilância”. A sintaxe de duas proibições coordenadas, sem explicação adicional, cria um efeito de urgência pura, um comando quase ofegante. Esta hipérbole não pretende uma proibição literal de dormir, mas dramatiza a seriedade do perigo: o fiador que trata sua situação como algo que pode ser resolvido “amanhã” está cortejando o desastre. A teologia que se insinua é a de um Deus que chama à diligência: fé não é fatalismo que cruza os braços e diz “Deus proverá” enquanto a casa é hipotecada por imprudência; fé, em Provérbios, é ficar acordado até que tudo que depende de nós tenha sido feito, recusando o consolo barato de um sono que apenas adia o colapso.
Embora os rabinos citem explicitamente sobretudo os versículos 1–3, a ética que eles constroem em torno deles ilumina diretamente este imperativo de insônia espiritual. Em Yoma 85b, a Mishná e o Talmud estabelecem que Yom Kippur expia as faltas “entre o homem e Deus”, mas não expia de modo algum as faltas “entre o homem e o próximo” enquanto a pessoa não tiver buscado e obtido o perdão do ofendido (Yoma 85b). Se Provérbios 6:4 manda não entregar os olhos ao sono, os rabinos traduzem isso em halacá: não se deve “adormecer” espiritualmente confiando apenas no rito; é preciso levantar-se e ir até quem foi ferido, antes que a noite litúrgica de Yom Kippur caia. A imagem das pálpebras pesadas ganha, assim, um contorno existencial: cada adiamento da reconciliação é como ceder à sonolência quando o perigo está à porta. Em chave rabínica, este versículo é lido como a recusa da passividade piedosa: não basta “esperar que o tempo cure”, porque o tempo, sem atos concretos de reparo, apenas endurece as dívidas. O sábio, segundo essa tradição, é aquele que perde o sono por causa das pessoas que magoou, e que deixa as pálpebras sem repouso até ter feito tudo o que está ao seu alcance para desatar o laço.
O pai agora prega contra a procrastinação espiritual. Não está proibindo o sono da criatura, que o Salmo celebra como dom (“em vão madrugais… aos seus amados ele o dá enquanto dormem”, Salmos 127:2); está proibindo o sono da consciência, esse torpor que embala o erro para amanhã. Há um salmo que ressoa como irmão deste versículo: “Não darei sono aos meus olhos nem repouso às minhas pálpebras, até que eu ache um lugar para o Senhor, uma morada para o Poderoso de Jacó” (Salmos 132:4–5). Ali, o salmista recusa o descanso enquanto não assentar o trono de Deus; aqui, o pai recusa o descanso enquanto o filho não quebrar o laço que o prende. No Novo Testamento, a voz aumenta: “já é hora de despertardes do sono; porque a nossa salvação está agora mais perto do que quando no princípio cremos” (Romanos 13:11); “não durmamos, pois, como os demais, mas vigiemos e sejamos sóbrios” (1 Tessalonicenses 5:6). Em todos esses textos, o sono é metáfora de descuido quando o tempo é de urgência. O provérbio quer que o filho perca uma noite para não perder a vida; que troque algumas horas de travesseiro por um acerto que lhe salve anos. É como se o pai dissesse: “Melhor olhos ardendo de vigília do que pálpebras pesadas de remorso”. E, por trás, sussurra a figura do Cristo no Getsêmani, pedindo aos discípulos: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação” (Mateus 26:41), enquanto eles, vencidos pelo sono, perdiam a hora mais grave da história. O filho de Provérbios é chamado a não repetir esse erro em escala doméstica: há decisões que não podem ser adiadas até amanhã sem que algo santo se perca hoje.
Provérbios 6:5
Livra-te como a gazela da mão, e como a ave da mão do passarinheiro. (Hb.: hināṣēl kiṣvî miyād ûkəṣippôr miyad yāqûš — “livra-te como a gazela da mão, e como a ave da mão do caçador de pássaros”). O verbo hināṣēl (“livra-te”) é Nifal imperativo 2ª masc. sing., retomando e intensificando o wəhināṣēl do versículo 3: aqui a ênfase recai na urgência da própria ação de fuga, como se o narrador, quase ofegante, repetisse: “escapa, escapa, agora”. A comparação kiṣvî (“como gazela”), com ṣvî designando o animal veloz e nervoso do campo, convoca à imaginação a cena de um cervo que sente a mão do caçador e, num sobressalto, rasga o ar com um salto, sem medir distância, apenas buscando romper o contato. Miyād (“da mão”) concentra em uma palavra a ideia de poder e controle: quem está “na mão” de alguém está debaixo de sua capacidade de apertar ou soltar. A segunda imagem, ûkəṣippôr miyad yāqûš (“e como ave da mão do passarinheiro”), acrescenta um outro tipo de criatura: frágil, pequena, leve, cujo único recurso é bater asas com desespero; o termo yāqûš alude ao especialista em laços, o armador de redes, indicando que aquele que tomou o fiador é tecnicamente hábil em prender. O paralelismo entre gazela e ave integra força e fragilidade, vigor e delicadeza, mostrando que, seja qual for o temperamento do leitor, a resposta sábia deve ser a mesma: mobilizar todos os recursos disponíveis para sair do laço. Exegesicamente, o versículo converte a teologia em metáfora corporal: escapar da imprudência assumida não é gesto elegante, mas fuga quase animal, corrida trêmula para preservar a vida antes que a mão se feche em definitivo. Espiritualmente, essa imagem dialoga com outros textos que falam da alma libertada “como ave do laço do passarinheiro” (Salmos 124:7), sugerindo que o Deus da aliança não apenas perdoa pecados invisíveis, mas também socorre aqueles que, pelas próprias decisões tolas, se deixaram cair na palma de compromissos esmagadores, chamando-os a uma corrida humilde e decidida em direção à liberdade.
A tradição rabínica sobre o arrependimento gosta de recorrer a imagens de fuga súbita e de libertação, e esse versículo torna-se um emblema narrativo desse movimento. Em Yoma 86a, a partir de Oséias 14, Rabi Ḥama bar Ḥanina afirma que “grande é a teshuvá, pois traz cura ao mundo”, descrevendo a conversão como uma virada que cura feridas antigas, quase como um salto de um animal que escapa da armadilha (Yoma 86a). Do mesmo modo, em Mishná Pesachim 10:5, cada geração é convocada a ver-se “como se tivesse saído do Egito”, ou seja, a experimentar existencialmente a passagem da escravidão à liberdade, da noite à saída apressada, sem tempo sequer de fermentar o pão (Mishnah Pesachim 10:5). Lendo Provérbios 6:5 à luz desses textos, a gazela e o pássaro se tornam figuras da alma em teshuvá: não se trata de um recuo lento, mas de um salto. O caçador pode ser a dívida assumida como fiador, o ressentimento não resolvido, o pecado que ainda prende; a mão do passarinheiro é o laço que demora mais um instante a apertar. A literatura rabínica insiste que a resposta adequada é esse movimento ágil: como a gazela, que sente o perigo e se lança; como o pássaro, que aproveita a mínima abertura para alçar voo. O que começou em Provérbios 6:1 como um contrato imprudente torna-se, pela leitura rabínica, uma pedagogia do arrependimento: não basta reconhecer que se está preso — é preciso fugir agora, com a velocidade de quem sabe que um segundo a mais pode ser tarde demais.
Agora a sabedoria troca o tom grave pela pressa da floresta: manda o filho aprender com os cascos e com as asas. A gazela não discute com a mão que a segura; ela se solta. A ave não filosofa com o laço do passarinheiro; ela se debate até abrir um rasgo no nó. Assim deve ser o movimento do coração quando percebe o laço moral ou espiritual: não negociação prolongada, mas fuga. O salmista já tinha cantado: “Ele te livrará do laço do passarinheiro e da peste perniciosa” (Salmos 91:3); e, noutro lugar, geme: “A nossa alma escapou como ave do laço dos passarinheiros; o laço quebrou-se, e nós escapamos” (Salmos 124:7). No Novo Testamento, o mesmo verbo se faz mandamento: “Fugi da prostituição” (1 Coríntios 6:18); “foge também das paixões da mocidade” (2 Timóteo 2:22); “fugi da idolatria” (1 Coríntios 10:14). Não é dito: raciocina junto com ela, não é dito: caminha ao lado dela; é dito: foge. A gazela e a ave pregam assim ao filho: há laços que se rompem com argumentos, há laços que só se rompem com distância. O fiador imprudente, o amigo enredado em sua própria palavra, o coração que se enlaçou em compromissos que o afastam da liberdade de Deus, todos são convidados a esse salto: sair da mão alheia para voltar à mão de Deus. E quando o filho, atordoado, pergunta se é possível, responde-lhe o evangelho que houve Um que desceu às armadilhas da morte, entrou no laço até o fundo, deixou-se segurar como cordeiro, para que a nossa alma pudesse, enfim, ser gazela liberta e ave solta no céu da graça.
Provérbios 6:6
Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, observa os seus caminhos e sê sábio; (Hb.: lēḵ ʾel-nĕmālā ʿāṣēl rĕʾeh dĕrākeyhā waḥăkām — “vai até a formiga, ó preguiçoso, vê os seus caminhos e torna-te sábio”). O versículo abre com lēḵ (“vai”), Qal imperativo 2ª pessoa masc. singular, que funciona como verbo de ruptura: é o primeiro golpe contra a inércia do preguiçoso, um verbo de deslocamento que arranca o corpo do leito. O destino desse movimento é ʾel-nĕmālā (“até a formiga”), substantivo feminino singular que designa o pequeno inseto social, aqui elevado a lugar de escola; a etimologia da palavra é incerta, mas na tradição sapiencial a formiga torna-se paradigma de diligência e previsão, a ponto de ser retomada em leituras rabínicas como modelo de acumular “no verão” para sobreviver ao inverno. Em seguida vem o vocativo ʿāṣēl (“preguiçoso”), adjetivo masc. singular que personifica a indolência recorrente em Provérbios, criando um contraste irônico: o mais insignificante dos seres se torna mestre do homem que se julgava senhor do campo. O segundo imperativo, rĕʾeh (“vê”), Qal imperativo 2ª masc. singular, indica não um olhar distraído, mas uma observação concentrada dos dĕrākeyhā (“seus caminhos”, substantivo masculino plural em construto com sufixo 3ª fem. sing.), isto é, dos hábitos, rotinas e trajetórias da formiga. O fecho, waḥăkām (“e sê sábio / torna-te sábio”), é outro imperativo Qal 2ª masc. singular com vav conjuntivo, apontando não para mera informação, mas para transformação de caráter: o verbo indica processo, não instante mágico. Sintaticamente, os quatro elementos — imperativo de movimento, destino, vocativo e dois imperativos de observação e transformação — formam uma pequena liturgia pedagógica: levantar-se, ir, contemplar, mudar. Exegesicamente, o versículo propõe uma “teologia do aprender com a criação”: assim como Jó é convidado a perguntar aos animais e às aves para compreender o agir de Deus (Jó 12:7–8), aqui o preguiçoso é enviado à formiga para entender como a sabedoria divina se inscreve em hábitos de trabalho constante e previsão; e, à luz do Novo Testamento, o olhar que Jesus lança às aves do céu em Mateus 6:26 ecoa esse mesmo princípio de que a criação funciona como parábola viva da providência e da responsabilidade humanas. O ato de “ir até a formiga” torna-se, assim, metáfora de uma conversão silenciosa: sair de si, abaixar o orgulho antropocêntrico e deixar que um ser minúsculo pregue, com o corpo, um sermão de diligência que o coração preguiçoso não quis ouvir da boca de Deus.
Na literatura rabínica, a formiga deixa de ser apenas um inseto diligente e passa a ser um pequeno mestre de escatologia. Em Devarim Rabbah 5:2, os sábios descrevem a formiga como tendo “três casas”, evitando a de cima por causa da chuva e a de baixo por causa do lodo, e vivendo apenas seis meses; ainda assim, ela junta trigo, cevada e lentilhas no verão, embora seu consumo de toda a vida seja apenas “um grão e meio”. Esse excesso de provisão é lido como parábola da vida humana: se uma criatura sem ossos nem tendões vive na suposição de que Deus pode prolongar-lhe os dias, preparando-se como se tivesse longa vida, tanto mais o ser humano deve converter o hoje em semeadura para o “inverno” do mundo vindouro, acumulando mitzvot neste mundo para poder “comê-las” no mundo que há de vir. O mesmo midrash sublinha ainda a honestidade da formiga: conta-se que uma formiga deixa cair um grão, todas as outras passam, cheiram, mas nenhuma toca nele até que a dona volte e o recupere, de modo que o versículo se torna não só um apelo à diligência, mas também a uma ética de trabalho que recusa o roubo, mesmo quando ninguém vigia. Noutro desenvolvimento de Midrash Mishlei 6, citado em uma folha de estudo sobre preguiça, os ímpios, no fim dos tempos, pedem a Deus mais tempo para se arrepender, e Ele lhes responde apontando para a formiga: este mundo é como a véspera de Shabat e o mundo vindouro como o próprio Shabat; quem não se prepara na sexta-feira não tem o que comer no dia seguinte. Assim, a frase “vai ter com a formiga” é lida como um chamado para contemplar, na rotina silenciosa de um inseto, o drama todo da preparação para o juízo: diligência diária, honestidade radical e consciência de que o tempo presente é apenas a véspera de algo infinitamente maior.
Deus, que poderia mandar o preguiçoso à escola dos anjos, manda-o primeiro ao formigueiro; porque quem não aprende com os insetos não está pronto para ouvir os serafins. Em Jó se diz: “pergunta, pois, aos animais, e eles te ensinarão” (Jó 12:7), e em Provérbios se acrescenta: pergunta à formiga, que não fala, mas prega com as patas. Ela não tem púlpito, mas cada grão que carrega é um sermão; não tem voz, mas o rastro que deixa no chão é uma homilia inteira sobre a arte de viver. Noutro lugar, o mesmo Espírito a apresenta entre as “quatro coisas pequenas da terra, porém das mais sábias… as formigas são povo sem força, todavia, no verão preparam o seu alimento” (Provérbios 30:24–25). A preguiça, ao contrário, é povo com força que não prepara nada. O evangelho manda “olhar as aves do céu” para não andar ansioso (Mateus 6:26); aqui, o Espírito manda olhar a formiga para não andar ocioso. É como se o Pai dissesse ao filho: olha este pequeno povo que não tem salário, não tem seguro, não tem aposentadoria, e, no entanto, trabalha como se cada dia fosse dom e cada grão, milagre. Enquanto o preguiçoso se deita sobre promessas flácidas, a formiga se ergue sobre pernas finas. E quando o Novo Testamento adverte que “se alguém não quer trabalhar, também não coma” (2 Tessalonicenses 3:10–12), a formiga aparece por detrás dessas palavras, como testemunha miúda que acusa a moleza dos grandes: quem tem mais braços do que ela, e menos obras?
Provérbios 6:7
Quem não tem capitão, supervisor e governador? (Hb.: ʾăšer ʾên-lāh qāṣîn šōṭēr ûmōšēl — “a qual não tem comandante, oficial nem governante”). O pronome relativo ʾăšer (“a qual”) conecta este verso diretamente à formiga, definindo-a pela ausência de estruturas hierárquicas formais; ʾên-lāh (“não há para ela”) é uma construção negativa com partícula de inexistência ʾên mais preposição-lamed e sufixo 3ª fem. sing., marcando que, na esfera dela, não existe o que normalmente sustenta sociedades humanas. O substantivo qāṣîn (“chefe, capitão”), masc. singular, é um termo militar-administrativo que sugere comando organizacional; šōṭēr (“supervisor, oficial”), substantivo masc. singular derivado de uma raiz ligada a registrar e fazer cumprir ordens, evoca a figura do fiscal que cobra e controla; mōšēl (“governante, dominador”), particípio Qal masc. singular do verbo “governar, dominar”, aponta para um poder mais amplo e político. A sequência nominal, sem verbos adicionais, cria uma tríade crescente de autoridade — comandante tático, fiscal executivo, governante político — para sublinhar que a formiga vive e trabalha sem nenhuma dessas instâncias externas. Sintaticamente, o verso funciona como oração relativa descritiva, cuja força retórica está na acumulação: a repetição de títulos que ela não possui aumenta o espanto com a sua organização interna. Exegesicamente, o texto não idealiza anarquia, nem desafia o papel legítimo da autoridade humana, mas mostra que há uma sabedoria de responsabilidade interna que antecede qualquer sistema externo de comando: a formiga, sem chicote nem decreto, trabalha porque sua natureza foi moldada por Deus para a diligência. Intertextualmente, isto dialoga com a crítica de Provérbios a quem precisa constantemente de “vara e freio” para se mover (Salmos 32:9) e com o chamado neotestamentário a servir “não só na presença, para agradar homens, mas como servos de Cristo” (Colossenses 3:22–23), sugerindo que a verdadeira sabedoria consiste em uma obediência interior, que continua a fazer o que é certo mesmo quando ninguém vigia ou manda. A ausência de capitão, supervisor e governador, portanto, é menos elogio de desordem e mais denúncia do coração humano que, ao contrário da formiga, só se move por pressão externa.
A literatura rabínica fixa-se com fascínio nessa ausência de comando externo. No mesmo Devarim Rabbah 5:2, depois de louvar a disciplina da formiga, o midrash observa que “todo esse elogio que há nela” não vem de ter mestre ou juiz, pois “não tem juiz nem oficial”, e justamente por isso a sua sabedoria é tão impressionante. O midrash então faz um qal va-ḥomer: se a formiga, que não possui “juiz e oficial”, evita o roubo e organiza sua vida com tanta prudência, quanto mais Israel, a quem Deus deu juízes e oficiais à luz de Deuteronômio 16:18, deveria escutar as instituições de justiça que lhe foram concedidas. A leitura rabínica, portanto, transforma o detalhe poético do provérbio em crítica teológica: o preguiçoso e o moralmente negligente não podem justificar-se alegando falta de orientação externa, porque até mesmo a formiga vive como se tivesse uma Torá gravada na própria natureza. Em termos de espiritualidade, a ausência de “capitão, supervisor e governador” sublinha a exigência de um governo interior — uma consciência moldada pela Torá — que substitua a necessidade de coerção permanente: o sábio é aquele que faz o bem mesmo quando ninguém o vigia, porque interiorizou o olhar divino.
A formiga não tem relógio de ponto, não tem capitão a gritar “avante”, não tem supervisor a fiscalizar; e, no entanto, não falta ao dever. O preguiçoso precisa de despertador, precisa de chefe, precisa de ameaça; a formiga é governo de si mesma. Aqui, o sábio põe diante do filho uma pequena república sem polícia, sem tribunal, sem exército, em que tudo funciona porque cada um obedece à lei escrita dentro. E não é esse o ideal da própria aliança? Deus prometeu: “porei a minha lei no seu íntimo e a escreverei no seu coração” (Jeremias 31:33); Paulo dirá que os gentios, “não tendo lei, mostram a obra da lei escrita em seus corações” (Romanos 2:14–15). A formiga é parábola dessa lei interior: sem capitão visível, ela marcha sob um invisível; sem supervisor, ela vive diante de um olho maior. O preguiçoso só se mexe quando o patrão olha; o discípulo de Cristo trabalha “não servindo à vista, como para agradar aos homens, mas como servos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus” (Efésios 6:6; Colossenses 3:23). A formiga não conhece esse versículo, mas o cumpre; muitos cristãos o recitam, mas dormem. Diz, pois, o Espírito: aprende, ó preguiçoso, essa obediência que não precisa de vigilância externa, porque já tem um Rei invisível entronizado na consciência.
Provérbios 6:8
Ela prepara no verão o seu pão, e na sega ajunta o seu mantimento. (Hb.: tākîn baqqāyitz laḥmāh ʾāgrā baqqāṣîr maʾăkālāh — “prepara no verão o seu pão, ajunta na colheita o seu alimento”). O verbo tākîn (“prepara”) é Hifil imperfeito 3ª fem. singular da raiz de kûn (“firmar, estabelecer”), apontando para uma ação habitual: a formiga, vista como sujeito feminino implícito, está constantemente “firmando” seu sustento na estação certa, e o aspecto imperfeito sugere repetição anual. Baqqāyitz (“no verão”), substantivo masc. singular com artigo e preposição bêth, marca o tempo da abundância e das colheitas, quando o trabalho é intenso e o calor desanima; é justamente nesse período que ela se esforça mais. Laḥmāh (“seu pão”), substantivo masc. singular com sufixo 3ª fem. sing., é aqui sinédoque para alimento em geral, mas o uso desse termo, tão carregado na Escritura (como no “pão nosso de cada dia” de Mateus 6:11), lembra que o tema é subsistência básica, e não luxo. O segundo verbo, ʾāgrā (“ajuntou / ajunta”), Qal perfeito 3ª fem. singular, pode funcionar como perfeito gnômico, descrevendo uma ação típica que se tornou proverbial: na época do qāṣîr (“sega, colheita”), substantivo masc. singular, ela recolhe e armazena maʾăkālāh (“seu mantimento”, substantivo masc. singular com sufixo 3ª fem. sing.). A estrutura poética em dois hemistíquios paralelos (verão/pão ↔ colheita/mantimento) desenha um ritmo de estações: momento de preparação intensa, momento de armazenar. O versículo explicita a lição que o preguiçoso deveria aprender ao “observar os caminhos” da formiga: sabedoria não é só trabalhar muito, é trabalhar no tempo certo, transformando tempos de abundância em reservas para as épocas magras. Essa lógica ecoa a prudência de José ao estocar durante os sete anos de fartura para enfrentar os sete anos de fome (Gênesis 41:33–36), e ressoa com o chamado neotestamentário a remir o tempo porque “os dias são maus” (Efésios 5:15–16): administrar bem as estações, materiais e espirituais, é forma concreta de temor do Senhor. A formiga se torna, assim, uma parábola viva contra a teologia da improvisação: ela prega com seus grãos que a graça de Deus não dispensa a disciplina de planejar.
Em Devarim Rabbah 5:2, o contraste entre verão e inverno torna-se um mapa do tempo teológico: o verão é a travessia desta vida, em que há liberdade para agir, e o inverno simboliza o mundo vindouro, quando já não é possível trabalhar, apenas desfrutar do que foi ajuntado. O midrash insiste que “tudo o que ela recolhe no verão é para o inverno”, e conclui: assim também o ser humano deve “preparar mitzvot deste mundo para o mundo que há de vir”, ligando explicitamente o trabalho da formiga à construção de capital espiritual eterno. Em Midrash Mishlei 6, aplicado em folhas de estudo sobre preguiça, essa mesma imagem é retomada para mostrar que os ímpios trataram o “verão” de suas vidas como se fosse um brincar sem consequência, quando na verdade era o único tempo de reparo possível antes do “Shabat” escatológico. A repetição do verbo de ajuntar, na boca dos rabinos, ganha coloração sacramental: cada grão que a formiga traz para o formigueiro é comparado a uma mitsvá, e a montanha de provisão torna-se figura de uma alma que, ao fim do caminho, não chega diante de Deus com as mãos vazias. Assim, o versículo, lido à luz da literatura rabínica, deixa de ser apenas um elogio do planejamento econômico e se converte numa catequese sobre o tempo: há um “verão” para obedecer e um “inverno” para colher, e quem desperdiça o primeiro descobre tarde demais que nada tem para comer no segundo.
O formigueiro é celeiro profético: ele prega que o presente foi feito para cuidar do futuro. O verão é o tempo da abundância, da fruta gorda, das espigas cheias; é também o tempo em que o preguiçoso diz: “há muito ainda por colher, posso folgar”. A formiga, ao contrário, escuta outra voz: “Vai vir inverno; a fartura de hoje é provisão para a escassez de amanhã”. Em Gênesis, José faz a mesma leitura dos sonhos de Faraó: sete vacas gordas não são convite à gula, são aviso de sete vacas magras; por isso, ele “ajuntou todo o mantimento dos sete anos em que houve fartura… e o guardou nas cidades” (Gênesis 41:48–49). José foi o grande formigueiro do Egito. O Novo Testamento traduz esta prudência na parábola das dez virgens: cinco levaram azeite de sobra, cinco confiaram na improvisação; quando o esposo tardou, “as prudentes” tinham reserva, as loucas tinham só lâmpada vazia (Mateus 25:1–13). A formiga está do lado das prudentes: sabe que a vida tem invernos e tardanças, e por isso faz do verão oficina, não parque de diversões. O mesmo se aplica ao tempo da graça: “Eis agora o tempo aceitável, eis agora o dia da salvação” (2 Coríntios 6:2); quem desperdiça esse verão espiritual, quem não ajunta “tesouros no céu” (Mateus 6:19–20) enquanto o sol da misericórdia brilha, descobrirá, mais tarde, que não tem sequer um grão de oração guardado para a noite. Deus te dá hoje o pão e a oportunidade de guardá-lo na alma; a formiga, com suas mandíbulas atarefadas, é um pequeno sacramento desse grande conselho.
Provérbios 6:9
Até quando, ó preguiçoso, ficarás deitado? Quando te levantarás do teu sono? (Hb.: ʿad-mātay ʿāṣēl tiškāḇ mātay tāqûm miššenāteḵā — “até quando, ó preguiçoso, te deitarás? Quando te levantarás do teu sono?”). O advérbio interrogativo ʿad-mātay (“até quando”) abre o versículo com uma nota de impaciência amorosa: é um clamor que estica o tempo e pergunta quanto ainda será gasto na mesma postura. O vocativo ʿāṣēl (“preguiçoso”), repetindo o adjetivo masc. singular já visto, crava o chamado diretamente na pessoa, não apenas no comportamento; não é a circunstância que é preguiçosa, mas o coração. O verbo tiškāḇ (“ficarás deitado”), Qal imperfeito 2ª masc. singular, sugere um hábito continuado: não é deitar para descansar, mas permanecer estendido, como estilo de vida. A segunda pergunta retórica começa com mātay (“quando”), ecoando e intensificando a primeira, e o verbo tāqûm (“te levantarás”), Qal imperfeito 2ª masc. singular, projeta a ação ainda não realizada: o futuro da pessoa preguiçosa está, por enquanto, preso ao travesseiro. Miššenāteḵā (“do teu sono”), substantivo feminino singular com preposição min e sufixo 2ª masc. sing., amarra a cena à imagem anterior: o sono aqui é menos fisiológico e mais moral, um símbolo de inconsciência quanto às consequências. Sintaticamente, as duas perguntas, sem resposta explícita, deixam o versículo em suspensão — a resposta está nas mãos do próprio preguiçoso. Exegesicamente, este “até quando?” lembra o clamor profético de Deus ao seu povo indiferente (como em Jeremias 4:14: “até quando…?”) e também o chamado neotestamentário para despertar do sono espiritual, “pois a nossa salvação está agora mais perto” (Romanos 13:11). A indolência, em Provérbios, não é apenas falha de caráter econômico: torna-se metáfora de uma alma que adia eternamente o arrependimento, sempre prometendo levantar-se “um dia”, enquanto o tempo, silencioso, continua a escorrer pela ampulheta.
No Midrash Mishlei 6, preservado em edição de Buber e citado em compilações rabínicas, esta pergunta é dirigida não a um preguiçoso qualquer, mas ao homem que já viu a formiga e ainda assim preferiu persistir na indolência. Os sábios comentam que “a formiga não tem polícia nem governante para torná-la sábia; sua sabedoria vem dela mesma, e os ímpios deveriam ter aprendido com ela, mas se fortaleceram em sua preguiça e tolice e não fizeram teshuvá; por isso Salomão disse: ‘Até quando, ó preguiçoso, ficarás deitado?’”. A interrogação, assim, deixa de ser pura repreensão moral e torna-se acusação de uma oportunidade desperdiçada: o preguiçoso não é ignorante, é alguém que recebeu sinais, modelos, chamados — inclusive o exemplo da formiga — e decidiu endurecer-se contra eles. A “cama” onde ele se deita é, na leitura midráshica, tanto o corpo que busca conforto quanto a inércia espiritual que adia o arrependimento. O versículo torna-se eco da voz divina reagindo aos pedidos tardios dos ímpios por mais tempo: “Até quando?”, isto é, “quanto mais tempo seria necessário, se nem a sabedoria de uma formiga foi suficiente para te despertar?”.
Quando te levantarás do teu sono?”. Agora o pai já não aponta para a formiga, aponta para a cama. A pergunta “até quando?” é o grito que atravessa a Escritura: “Até quando amareis a vaidade?” (Salmos 4:2); “até quando, Senhor?” (Salmos 13:1–2); “até quando vos negareis a guardar os meus mandamentos?” (Êxodo 16:28). Aqui, não é o homem que pergunta a Deus; é Deus que pergunta ao homem: até quando hás de negociar com o travesseiro o tempo que roubas à tua vocação? O sono do corpo é necessário; o sono da alma é mortal. Paulo dirá à igreja: “já é hora de despertardes do sono, porque a nossa salvação está agora mais perto” (Romanos 13:11), e ainda: “Desperta, tu que dormes, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará” (Efésios 5:14). O preguiçoso é um vivo com hábitos de morto: gosta de lençóis como quem ama lençol de sepultura, abraça a almofada como quem abraça a própria inércia. O Pai, então, repete como Cristo no Getsêmani: “Não pudestes vigiar comigo nem uma hora?” (Mateus 26:40). Cada manhã é um pequeno juízo: ou o homem se levanta para a jornada, ou renova o pacto com a letargia. A cama, que poderia ser altar de gratidão pelo descanso, torna-se, para o preguiçoso, templo de idolatria do próprio conforto. E o provérbio, com esse duplo “até quando… quando?”, bate à porta do quarto como trombeta do último dia em miniatura, chamando o filho a ressuscitar antes que seja tarde.
Provérbios 6:10
Um pouco de sono, um pouco de cochilo, um pouco de apertar de mãos para descansar, (Hb.: mĕʿaṭ šēnōt mĕʿaṭ tĕnûmōt mĕʿaṭ ḥibbûq yāḏayim liškāḇ — “um pouco de sono, um pouco de cochilos, um pouco de abraço de mãos para deitar-se”). A anáfora mĕʿaṭ (“um pouco”), advérbio usado aqui três vezes em sequência, dá ao verso um ritmo de cantiga, quase uma musiquinha interna do preguiçoso: cada “só mais um pouco” parece inofensivo, mas a repetição revela o autoengano cumulativo. Šēnōt (“sonos”), substantivo masculino plural, e tĕnûmōt (“cochilos, dormideiras”), substantivo feminino plural, formam um par quase sinônimo, que abrange do dormir mais profundo ao dormitar preguiçoso; a morfologia plural sugere que não é um episódio isolado, mas uma sucessão de pequenas entregas à inércia. A expressão ḥibbûq yāḏayim (“apertar / abraço de mãos”), com ḥibbûq como substantivo masculino singular derivado da raiz “abraçar” e yāḏayim como dual de “mãos”, descreve o gesto típico de cruzar os braços sobre o peito quando se se deita, ou de abraçar os próprios braços em postura de descompromisso: o corpo inteiro entra na liturgia do não fazer. O infinitivo liškāḇ (“para deitar-se”), Qal infinitivo construto com preposição lamed, fecha o quadro indicando a finalidade desses “pouquinhos”: prolongar o permanecer estendido. A sintaxe sem verbos finitos, composta apenas de grupos nominais e infinitivo, espelha o próprio tema: falta ação, só há estado. Exegesicamente, o versículo funciona como monólogo interior do preguiçoso, que transforma a fuga da responsabilidade em pequenas concessões justificáveis; mas, aos olhos da sabedoria, essa sequência de “um pouco, um pouco, um pouco” é o carrinho de mina que leva, silencioso e constante, para o desfiladeiro da ruína. Intertextualmente, o paralelo com Provérbios 24:33–34, onde quase as mesmas palavras reaparecem, reforça o caráter proverbial e insistente deste aviso, e se conecta com o ensino apostólico de que “quem não quer trabalhar também não coma” (2 Tessalonicenses 3:10): não se trata de culpar o fraco ou o oprimido, mas de denunciar a autossabotagem sistemática de quem tem possibilidade de agir e escolhe, reiteradamente, não fazê-lo.
O Midrash Mishlei 6, em formulação preservada no texto hebraico, desmonta a autoilusão da preguiça fazendo uma leitura quase casuística de cada “pouco”: “um pouco de sono” é explicado como o mínimo necessário para que possas levantar-te para o estudo; “um pouco de cochilo” é o mínimo para poderes levantar-te para a oração; já “um pouco de cruzar as mãos para deitar” é entendido como alusão ao uso legítimo do leito para a intimidade conjugal. Em outras palavras, o midrash não demoniza o sono, o descanso ou a sexualidade, mas denuncia a forma como o preguiçoso transforma cada “pouco” permitido em escorregador para uma inércia sem fim. A santidade, no olhar rabínico, consiste em manter essas concessões na medida certa — dormir o “pouco” que restitui forças para servir a Deus, cochilar o “pouco” que não rouba a hora da oração, desfrutar o “pouco” que não anula o dever —, ao passo que a preguiça consiste em usar o vocabulário do “pouco” para justificar um muito de negligência. Assim, o versículo adquire tonalidade quase litúrgica: cada “pouco” é um exame de consciência, perguntando se o corpo está a serviço da Torá ou se a Torá está sendo lentamente sacrificada no altar do conforto.
O perigo aqui não é o muito, é o pouco; não é a grande rebelião contra o dever, é o “só mais um pouco”. A preguiça não chega declarando greve, chega oferecendo cinco minutos. Cinco minutos de ontem, cinco de hoje, cinco de amanhã, e, quando se vê, a vida virou um colar de pequenos nadas que pesam como grande pedra. O texto descreve o ritual do autoengano: primeiro “um pouco de sono” — a concessão; depois “um pouco de cochilo” — a insistência; por fim “um pouco de apertar de mãos” — a postura: os braços cruzados sobre o peito, como ensaio de caixão. É como a noiva de Cântico dos Cânticos que diz: “Eu dormia, mas o meu coração velava… Já despi a minha túnica; como a tornarei a vestir?” (Cântico 5:2–3); enquanto ela negocia com a comodidade, o amado passa, bate, e se retira. No evangelho, o mesmo drama se repete: Cristo fala de um senhor que tarda, e os servos que dizem “o meu senhor tarda em vir” (Mateus 24:48) começam a relaxar a vigilância; nas virgens loucas, o “um pouco de sono” torna-se lâmpada apagada (Mateus 25:5–8). A fórmula do preguiçoso é sempre essa: “um pouco”. Um pouco de concessão ao pecado, um pouco de tolerância à frieza, um pouco de descuido com a oração, um pouco de atraso na reconciliação; e esse pouco, como fermento, leveda toda a massa. O provérbio desmonta essa aritmética mentirosa e mostra que o que o preguiçoso chama de “pouco” é, aos olhos de Deus, a porta por onde entra o muito da ruína.
Provérbios 6:11
E a tua pobreza virá como um viajante (Hb.: ûḇā kimhallēḵ rēʾšekā — “e virá como um que caminha depressa a tua pobreza”). O verbo ûḇā (“e virá”), Qal perfeito 3ª masc. singular com vav conjuntivo, projeta um futuro certo com o peso de algo já decretado: a pobreza está “a caminho”, não como hipótese, mas como consequência em marcha. O advérbio comparativo kimhallēḵ (“como um viajante / como quem anda apressado”), formado por preposição ke- (“como”) e particípio Piel masc. singular de hālaḵ (“andar, caminhar”), pinta a pobreza não como uma nuvem parada no horizonte, mas como um caminheiro ligeiro, que cobre distâncias sem ser notado até bater à porta. O substantivo rēʾšekā (“tua pobreza”), masc. singular com sufixo 2ª masc. sing., é termo que pode ser relacionado a “miséria, carência extrema”, não apenas baixa renda; ao ligá-lo por sufixo ao “tu”, o texto faz a costura entre os versículos anteriores e este: os “poucos” cochilos se convertem, pouco a pouco, em miséria pessoal. A ordem invertida — “virá como viajante a tua pobreza” — enfatiza primeiro a imagem (a marcha do viajante) e só depois nomeia o sujeito real (a pobreza), aumentando o efeito dramático: o leitor vê chegar um vulto na estrada e, ao aproximar-se, descobre que esse viajante é a sua própria ruína. Exegesicamente, o versículo mostra que a destruição, quando nasce da preguiça, raramente é explosiva; ela caminha em silêncio, passo a passo. Em termos teológicos, isso se harmoniza com a visão bíblica de que Deus governa o mundo por meio de causas ordinárias: a pobreza que chega ao preguiçoso não é “azar”, mas fruto de um hábito que recusou deliberadamente organizar o tempo, como a formiga, na estação oportuna. Ao lado de outras passagens que ligam conduta e destino (como Gálatas 6:7–8, sobre semear e colher), este verso lembra que a graça não anula a colheita moral das escolhas persistentes.
A pobreza aqui não é a dos que nasceram sem meios, mas a dos que gastaram o verão em bocejos. Ela vem “como viajante” — não manda aviso, não envia carta de intenção; aparece um dia à porta, com poeira nos pés e direito de entrar. É a figura do andarilho que passa e, passando, consome. Esse mesmo quadro se repetirá mais adiante: “assim virá a tua pobreza como um ladrão que anda, e a tua penúria como um homem armado” (Provérbios 24:33–34), como se o Espírito, para falar da miséria do preguiçoso, precisasse repisar a imagem. No Novo Testamento, o Senhor aplica linguagem semelhante ao juízo: “Se tu não vigiares, virei como ladrão” (Apocalipse 3:3), e Paulo diz que “o dia do Senhor virá como ladrão de noite” (1 Tessalonicenses 5:2). Aqui, a visita é econômica, lá é escatológica; mas, em ambos, a lição é igual: aquilo que negligencias vem sem combinar hora. A pobreza, fruto da indolência, é um pequeno dia do Senhor que chega à vida financeira do preguiçoso: tira-lhe as almofadas, despe-o dos lençóis, e põe-no a trabalhar tarde demais. O que não levantou cedo por amor ao dever levanta-se, depois, forçado pela necessidade.
...e a tua necessidade como um homem armado. (Hb.: ûmaḥsorekā kəʾîš māgēn — “e a tua carência, como um homem de escudo”). O substantivo maḥsorekā (“tua necessidade, tua carência”), masc. singular com sufixo 2ª masc. sing., aprofunda a ideia de rēʾšekā: não é apenas pobreza objetiva, mas falta sentida, buracos na vida onde algo essencial deveria estar e não está. O comparativo kəʾîš (“como um homem”), com ʾîš masc. singular, introduz a segunda imagem, e o termo māgēn (“escudo”), substantivo masc. singular, completa o quadro de um guerreiro armado, pronto para o ataque. Aqui, diferentemente do “viajante”, não se trata apenas de alguém que caminha em nossa direção, mas de uma força agressiva: a necessidade chega como soldado, não como visitante. A sintaxe paralela rēʾšekā / maḥsorekā e kimhallēḵ / kəʾîš māgēn constrói um duplo movimento: primeiro a miséria se aproxima discretamente, depois ela se impõe com violência. Exegesicamente, a metáfora sugere que a carência produzida pela preguiça deixa de ser apenas estado econômico e passa a ser adversário ativo: dívidas, relações rompidas, oportunidades perdidas e até tentações éticas (como recorrer à desonestidade para sobreviver) se erguem contra a pessoa como um guerreiro armado. Em chave mais ampla, o versículo toca no tema da escravidão por falta de disciplina: quem não aprendeu com a formiga a preparar o pão no verão pode acabar submetido a credores, sistemas injustos ou tentações de atalhos, vendo a própria liberdade sitiada. Na perspectiva da teologia bíblica, essa imagem prepara o terreno para o ensino, no Novo Testamento, de que a vigilância e a sobriedade são armas espirituais indispensáveis (1 Tessalonicenses 5:6–8): onde a preguiça abre brechas, a necessidade entra, primeiro como viajante, depois como inimigo, e o chamado da sabedoria é acordar antes que o escudo do adversário esteja batendo à porta.
Na leitura rabínica, o movimento das duas imagens — o “viajante” e o “homem armado” — é explorado como gradação de juízo. Rashi observa que, se o homem insiste naquele “pouco de sono”, o seu ḥesrôn (“falta”, “perda”) chega rápido, “como um homem que anda depressa”, e a carência se instala firme “como um homem de escudo” que veio proteger o seu senhor; ele acrescenta que todo esse trecho é, em sua raiz, um mashal dos que se mostram preguiçosos no estudo da Torá (Rashi on Proverbs 6:11). Em outra chave de peshat, comentaristas medievais como Ralbag (Gersonides) leem o versículo no fluxo da perícope como continuação de uma dupla advertência: primeiro contra o apetite desordenado, depois contra a preguiça; ambos impedem a šelemût (perfeição) e podem levar o homem a “morrer na falta de tudo”, de modo que o “viajante” é a pobreza que vai e volta, mas a “necessidade” que chega como guerreiro armado representa a ruína que já não se afasta com facilidade (Ralbag on Proverbs 6:11; cf. Proverbs 6:9–10). O Midrash Mishlei desloca o foco para o horizonte escatológico: ao comentar a sequência da formiga e do preguiçoso, ele termina dizendo que “ûḇā kimhālēḵ rēʾšekā” é “o Rei Messias, que há de vir à frente de Israel”, e amarra o nosso versículo a Miqueias 2:13 — “o seu rei passará adiante deles, e o Senhor na sua dianteira” — de modo que o “viajante” é agora o próprio Messias que se aproxima, enquanto o preguiçoso espiritual continua pedindo “apenas mais um pouco” (Midrash Mishlei 6:2, Miqueias 2:13; ver também o texto paralelo em Wikisource – Midrash Mishlei 6). A literatura de musar retoma essa metáfora em chave interior: Mesilat Yesharim, ao tratar da “zrizut” (diligência), cita justamente o par “meʿaṭ šenôt, meʿaṭ tenûmôt… ûḇā kimhālēḵ rēʾšekā ûmaḥsorkā keʾîš māgēn” na forma paralela de Provérbios 24:33–34, dizendo que a preguiça é como “veneno que se espalha pouco a pouco, cuja ação não se nota até a morte”; primeiro vêm as pequenas concessões — “um pouco de sono, um pouco de cochilo” —, depois, de repente, a pobreza e a carência chegam como viajante e como soldado armado, dominando vida e alma (Proverbs 24:33–34, Mesilat Yesharim 6; para um texto hebraico acessível, ver também Mesilat Yesharim 6). Em registros mais normativos, obras como Sefer Yereim recorrem ao nosso versículo ao tratar de faltas éticas — por exemplo, fraudes em pesos e medidas — como prova de que a mesma lógica se aplica ao injusto: a vantagem obtida pela transgressão é apenas aparente, porque a “pobreza que vem como viajante” alcança, cedo ou tarde, aquele que corrompe a ordem justa do comércio e do pacto social (Sefer Yereim 124). Assim, sob a luz da literatura rabínica, a frase que à primeira vista descreve apenas a ruína econômica do preguiçoso se alarga em três planos entrelaçados: como advertência pedagógica para o trabalho e para a Torá (Rashi, Ralbag), como chamado urgente à teshuvá antes que o Messias-“viajante” passe adiante (Midrash Mishlei), e como figura do processo lento e inexorável pelo qual a negligência — material e espiritual — se transforma, um dia, em necessidade cerrada que se ergue diante do homem como guerreiro com escudo em punho, impossível de contornar (Mesilat Yesharim, Sefer Yereim.
Se o viajante ainda poderia ser hospede recebido com honra, o homem armado é irredutível: não pede, exige; não bate à porta, arromba. A necessidade que o preguiçoso atrai sobre si é assim: não se deixa negociar, não aceita “um pouco de sono” como moeda. Lembra-nos o Senhor dizendo aos seus: “Estai vós também preparados, porque virá o Filho do Homem à hora que não imaginais” (Lucas 12:40); e também a admoestação: “se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão, vigiaria” (Lucas 12:39). A figura do “homem armado” é um ladrão anunciado, é o dia em que as desculpas perdem a eficácia. O preguiçoso, que outrora se deitava como rei sobre o próprio leito, descobre-se, de repente, súdito de um tirano chamado Necessidade: ela manda vender móveis, cortar gastos, abaixar o padrão, acolher humilhações que antes desprezava. E, mais fundo, há outra necessidade, mais terrível, que visita o homem que gastou a vida dormindo espiritualmente: a falta de óleo na lâmpada quando o Esposo chega, a falta de fruto quando o Senhor vem buscar figos na figueira (Lucas 13:6–9). Também aí, a penúria aparece como “homem armado”: não há como improvisar santidade na última hora. Por isso, o pai de Provérbios levanta a voz e, com essas duas figuras — viajante e guerreiro —, pinta diante do filho a chegada da pobreza e do juízo, para que ele prefira hoje o cansaço salvador ao conforto que amanhã se converte em espada.
Provérbios 6:12
Homem inútil, homem de iniquidade, que anda com perversidade de boca (Hb.: ʾîš bĕliyyaʿal ʾîš ʾāwen hōlēḵ ʿiqšût peh — “homem de belial, homem de iniquidade, que caminha em perversidade de boca”. O versículo abre com o substantivo ʾîš (“homem”) repetido duas vezes, criando uma espécie de título solene e, ao mesmo tempo, irônico: não se trata de qualquer pessoa, mas de um tipo humano fixo, um “modelo” de maldade. A expressão bĕliyyaʿal é provavelmente composta de belî (“sem”) + raiz yāʿal (“ser útil, valer”), dando a ideia de “sem proveito, sem valor”, que evolui para “canalha, destruidor”; depois se tornará quase um nome próprio (“Belial”), mas aqui funciona como adjetivo substantivado, “homem de inutilidade”. Em seguida, ʾîš ʾāwen (“homem de iniquidade / maldade”), com ʾāwen marcando tanto perversão moral quanto ruína, é um segundo rótulo que aprofunda o primeiro: este homem não é apenas inútil, ele é ativamente destrutivo. O particípio Qal hōlēḵ (“que anda / que caminha”) descreve um hábito contínuo, um estilo de vida, e liga o título à conduta concreta: ele “vai” por aí, sua existência é deslocamento constante nessa trilha. O complemento ʿiqšût peh (“perversidade de boca”), substantivo abstrato de raiz ʿ-q-š (“torto, distorcido”) mais peh (“boca”), desloca o eixo da maldade para a esfera da linguagem: o seu caminhar é definido pela fala deformada. Sintaticamente, os dois sintagmas nominais em paralelismo (ʾîš bĕliyyaʿal / ʾîš ʾāwen) seguidos do particípio com complemento funcionam como sujeito + predicado estendido: quem ele é → como ele anda. Exegesicamente, o texto enfatiza que, aos olhos da sabedoria, não existe neutralidade na palavra: o “homem de belial” se revela antes de tudo pelo modo como fala, torcendo o discurso, usando ironia maldosa, insinuação, sarcasmo que corrói. A teologia de Provérbios, aqui, aproxima-se da de Tiago 3: a boca é pequena, mas governa a direção da vida; quando se entrega à ʿiqšût, ela faz do homem uma espécie de anti-sábio, cuja influência dissemina desordem em vez de shalom.
Na literatura rabínica, esse adam beliyyaʿal é lido, no Midrash Mishlei, como o “dono da língua maldizente” (baʿal lashon hara), aquele cuja identidade moral é definida pelo uso destrutivo da boca: “‘Homem de Belial, homem de iniqüidade, que anda em perversidade de boca’ — estes são os donos de lashon hara, que o Santo, bendito seja Ele, comparou à idolatria, ao derramamento de sangue e à imoralidade sexual, porque lashon hara é tão grave quanto idolatria, derramamento de sangue e relações ilícitas; quando alguém vai e delata ao governo é como se derramasse sangue” (Midrash Mishlei 6:3 em Sefaria). Assim, o “homem inútil” não é apenas um vagabundo moralmente frouxo; ele se torna, aos olhos dos sábios, o protótipo do difamador que fere a vida alheia com a boca, a ponto de seu pecado ser alinhado com a tríade clássica — idolatria, imoralidade sexual e assassinato. A tradição de musar retoma esse eixo: Reshit Chokhmah, ao descrever a “seita dos mentirosos”, cita Provérbios 6:12 e 6:16–19 para dizer que o mentiroso e o enganador são “odiosos e abomináveis” ao Senhor, sublinhando que três dos sete vícios listados ali giram em torno da falsidade (língua mentirosa, quem exala mentiras, testemunha falsa), de modo que toda a figura do adam beliyyaʿal se concentra na corrupção da palavra (Reshit Chokhmah, Shaʿar ha-Qedushah 12). Rabeinu Yoná, em Shaʿarei Teshuvah 3:36, reforça que a mentira, além dos danos concretos que causa, é “abominação” diante de Deus, e cita diretamente Provérbios 6:17 (“olhos altivos, língua mentirosa…”) como prova de que o discurso enganoso integra a lista dos pecados que Deus odeia (Shaʿarei Teshuvah 3:36). Em folhas de estudo em Sefaria sobre o termo beliyyaʿal, a tradição ainda conecta essa palavra à recusa prática da misericórdia (tsedaqá): quem “desvia os olhos” da necessidade do pobre é chamado “filho de Belial”, como em Deuteronômio 13:14 e 15:9; assim, o “homem de inutilidade” de Provérbios 6:12 torna-se, na leitura rabínica, síntese daquele que, pela boca tortuosa e pelo coração endurecido, rompe tanto com a verdade quanto com a justiça que sustentam a aliança.
A Escritura começa pelo nome, porque há homens que se chamam pelo batismo de “filhos de Deus”, mas, aos olhos do céu, são “filhos de Belial” como os filhos de Eli, que “não conheciam o Senhor” embora vivessem no templo (1 Samuel 2:12). “Homem inútil, homem de iniquidade” é aquele cuja existência pesa na balança e só inclina para o mal: respira, mas não frutifica; fala, mas não edifica; vive, mas não serve. E onde se vê isso? Na boca. “Que anda com perversidade de boca”: não é apenas que, às vezes, tropece em palavras; é que o caminho dele é linguajar torto, o passo dele é frase venenosa. O salmista descreve assim os ímpios: “A maldade fala no coração do ímpio… palavras de malícia e de engano há na sua boca” (Salmos 36:1–3); e Tiago dirá que uma língua assim é “mundo de iniquidade… inflamada pelo inferno” (Tiago 3:6). O homem belial é um anticristo doméstico: o Cristo é o Verbo que, abrindo a boca, cria, consola, cura; este é o verbo que, abrindo a boca, destrói, amarga, mata. E, no entanto, quantas vezes esse “homem inútil” se esconde atrás de títulos, de cargos, de aparências piedosas! Foi de gente assim que Jesus disse: “Raça de víboras! Como podeis vós dizer coisas boas, sendo maus? Porque a boca fala do que está cheio o coração” (Mateus 12:34). Onde o provérbio diz “perversidade de boca”, o evangelho lê “perversidade de coração” com microfone nos lábios. O Pai, então, mostra ao filho esse retrato para que ele se examine: a tua boca é estrada por onde Deus passa, ou rua por onde Belial desfila?)
Provérbios 6:13
Piscando os olhos, falando com os pés, dirigindo com os dedos (Hb.: qōrēṣ bĕʿênāyw mōlēl bĕraglāyw mōreh bĕʾeṣbĕʿōtāyw — “piscando com os seus olhos, fazendo sinais com os seus pés, apontando com os seus dedos”). O versículo é uma sequência de três particípios masculinos singulares (qōrēṣ, mōlēl, mōreh), que descrevem ações contínuas e características, não gestos isolados. Qōrēṣ vem da raiz q-r-ṣ, “contrair, piscar”, e aqui retrata o piscar calculado, sinal conspiratório, não um tique inocente; os ʿênāyw (“seus olhos”) são os instrumentos dessa comunicação encoberta. Depois, mōlēl bĕraglāyw traz um particípio Qal de raiz provavelmente ligada a “fazer movimentos repetidos”, “agitar”, por isso muitos entendem “falar / gesticular com os pés”: os pés tornam-se código, linguagem cifrada que combina com o olhar. Por fim, mōreh bĕʾeṣbĕʿōtāyw, particípio Hifil de yārāh (“apontar, instruir, dirigir”) com “seus dedos”, mostra alguém que, literalmente, com as mãos, “dirige” a trama, indicando disfarçadamente o que deve ser feito. A sintaxe, sem verbos finitos e com esta tríade de particípios, cria um retrato quase cinematográfico, em câmera lenta, da comunicação silenciosa do perverso: olhos que sinalizam, pés que confirmam, dedos que comandam. Exegesicamente, o texto mostra que a maldade descrita no versículo anterior não é apenas verbal; ela infecta toda a linguagem corporal. A perversidade de boca se prolonga em gestos cúmplices, meias-palavras, sinais combinados — aquilo que Jesus denuncia quando fala de olhos maus e corpos cheios de trevas (Mateus 6:22–23). A sabedoria bíblica, assim, desnuda esse tipo de sociabilidade em que, por trás de sorrisos e piscadelas, se tramam injustiças, fofocas, exclusões; o corpo inteiro torna-se linguagem de conspiração.
O Midrash Mishlei entende estes gestos como a sequência da maldição lançada sobre o mesmo difamador de 6:12: depois de identificá-lo como baʿal lashon hara, o midraxe diz que Salomão “o amaldiçoou” com essa cadeia de sinais — ‘piscando com os olhos, arrastando com os pés, apontando com os dedos, perversidades no coração, que trama o mal em todo tempo e envia contendas; que está escrito depois? “Portanto, subitamente virá a sua calamidade, de repente será quebrado, sem cura”’ (Midrash Mishlei 6:3). Os comentários clássicos em Sefaria convergem: Metzudat David diz, de forma concisa, que “o sentido de todos é que são sinais de lashon hara”, isto é, maneiras de sugerir, ridicularizar e denunciar sem precisar pronunciar claramente as palavras (Metzudat David sobre Provérbios 6:13). Malbim aprofunda, explicando que “piscando com os olhos” se opõe ao mandamento de não seguir “após os vossos olhos”; “com os pés” e “com os dedos” a pessoa compõe uma linguagem corporal que insinua o mal, transformando o corpo inteiro em instrumento de calúnia (Malbim sobre Provérbios 6:13). Na tradição talmúdica, essa duplicidade entre o que a pessoa mostra e o que de fato faz ecoa a lista de três pessoas que o Santo, bendito seja Ele, “odeia”: uma delas é quem “fala uma coisa com a boca e outra com o coração”, colocando o sorriso, o aceno e o gesto como máscara para um interior que planeja o mal (Pesachim 113b). Assim, os rabinos lêem o versículo como denúncia da comunicação cifrada que humilha, denuncia ou destrói o outro “à distância”, por meio de insinuações oculares e corporais que evitam formalmente a palavra, mas carregam toda a maldade da língua.
O texto passa da boca aos sinais: porque o coração torto não fala só em palavras, fala em piscadelas, em passos, em dedos que acenam o que a boca finge negar. Nos Salmos, o justo suplica: “Não se alegrem sobre mim os meus inimigos sem motivo, nem pisquem os olhos aqueles que me odeiam sem causa” (Salmos 35:19), como quem diz: há um ódio que se veste de brincadeira, há uma traição que se disfarça em gesto de cumplicidade. O homem de iniquidade é poliglota do mal: fala com tudo, menos com a verdade. Pisca com os olhos para combinar intrigas, mexe os pés para se aproximar do conluio, aponta com os dedos para desviar a culpa. É o oposto daquele de quem Jesus diz: “Seja o vosso falar: Sim, sim; não, não” (Mateus 5:37); aqui, o sim vem com um não escondido por trás do dedo, e o não vem com um sim piscado por cima do ombro. Se o corpo do cristão é “templo do Espírito Santo” (1 Coríntios 6:19), o corpo do ímpio é templo de sinais obscuros: os olhos são vitral de malícia, os pés são corredores de intriga, os dedos são ícones de acusação. Em vez do “levantar mãos santas, sem ira nem contenda” (1 Timóteo 2:8), ele levanta dedos cúmplices; em vez de “pés formosos que anunciam boas novas” (Isaías 52:7; Romanos 10:15), tem pés que marcham para o conselho ímpio. O provérbio desmascara essa liturgia do gesto: há pecados que se pronunciam em silêncio, há iniquidades que se escrevem no ar com o corpo inteiro.
Provérbios 6:14
A perversidade está no seu coração (Hb.: tahpukkôt bĕlibbô — “perversidades [estão] no seu coração”). A palavra tahpukkôt, plural feminino de um substantivo abstrato ligado à raiz h-p-k (“virar, inverter”), significa “coisas viradas”, “torções”, daí “perversidades, distorções”. O plural intensifica a ideia: não é uma torção ocasional, é um estoque inteiro de distorções dentro dele. Bĕlibbô (“no seu coração”), preposição bĕ + “coração” em forma dupla com sufixo 3ª masc. sing., aponta para o centro da personalidade — mente, vontade, afeições. A ausência de verbo explícito (não há “está”) faz do sintagma nominal uma espécie de equação: “perversidades = o conteúdo do coração dele”. Sintaticamente, o plural abstrato no início da cláusula, seguido do complemento locativo, tem valor enfático: o coração não é vítima passiva, ele é depósito ativo de inversões, um laboratório de torções do que é direito. Exegesicamente, o texto desloca o foco da mera exterioridade (olhos, pés, dedos) para a fonte interior de tudo: a raiz da conspiração não está apenas na técnica de sinalizar, mas na disposição íntima de inverter aquilo que Deus chama de bom. É o mesmo movimento que Jesus retoma ao dizer que “do coração procedem maus pensamentos, homicídios…” (Mateus 15:19): a perversidade não foi colada de fora, ela brota de dentro, e é por isso que o retrato desse “homem de belial” é tão grave.
Metzudat David, citado em Sefaria, observa que se trata de “pensamentos do coração para inverter a coisa da sua verdade”, isto é, uma disposição interior a distorcer a realidade, reinterpretando fatos e palavras para produzir dano (Metzudat David sobre Provérbios 6:14). O Midrash Mishlei, no mesmo trecho que comenta 6:12–15, toma essa expressão como desenvolvimento psicológico do baʿal lashon hara: primeiro vem o homem de Belial, depois os gestos ambíguos, e então a indicação de que o seu interior é um laboratório de distorções — um coração que “vira” (hofekh) os fatos para transformar tudo em matéria de acusação.
...maquina o mal em todo o tempo; contendas ele envia (Hb.: ḥōrēš rāʿ bĕḵol-ʿēt middānîm yĕšallēaḥ — “arando o mal em todo tempo, contendas ele manda para fora”). O particípio Qal ḥōrēš vem da raiz ḥ-r-š, cujo sentido básico é “arar”; aplicado metaforicamente, é “lavrar, maquinar”, como quem revolve o solo do coração e da sociedade para plantar maldade. O objeto rāʿ (“mal”), masculino singular, é aqui o conteúdo semeado. A expressão temporal bĕḵol-ʿēt (“em todo tempo”), com ḵol (“todo”) + ʿēt (“tempo, ocasião”), indica constância: não há pausa, férias da maldade, intervalos neutros. Em seguida, middānîm (“contendas”), plural masculino de um substantivo relacionado à disputa, à briga judicial ou verbal, torna-se o “produto” dessa lavoura; e o verbo yĕšallēaḥ, Piel imperfeito 3ª masc. sing. de šālaḥ (“enviar, lançar para fora”), descreve a ação intensiva de “espalhar contendas”, como quem solta faíscas ou cães bravos. Sintaticamente, o versículo tem duas cláusulas justapostas: uma, com particípio e complemento, sublinha o processo interno contínuo (“lavrar o mal”); a outra, com imperfeito em Piel, sublinha o efeito externo (“disparar contendas”). Exegesicamente, a imagem é agrícola e bélica ao mesmo tempo: o perverso ara o solo com más intenções e depois lança, como projéteis, brigas e divisões. Em termos teológicos, isso contrasta frontalmente com a vocação bíblica de ser “pacificador” (Mateus 5:9): enquanto o sábio procura “semear paz” (Tiago 3:18), este homem semeia litígios. A sabedoria de Provérbios, ao expor essa dinâmica, mostra que conflitos constantes não são acaso, mas fruto de corações que, dia após dia, vão lavrando o mal e exportando contenda como seu principal “produto”.
Aqui, o midraxe pousa no verbo “enviar contendas” (meshaléaḥ medanim) para aproximar esse provocador de conflitos à figura paradigmática do motzi shem ra, o difamador que fabrica má reputação. Em Vayikra Rabbah 16:1, que se abre justamente com a citação de Provérbios 6:16–19, os rabinos afirmam que todas essas qualidades — olhos altivos, língua mentirosa, coração que maquina maldade, pés que correm ao mal, testemunha falsa e quem “envia contendas entre irmãos” — se concretizam em personagens bíblicos que são feridos com tsaraʿat, a lepra ritual, como sinal visível do seu pecado interior (Vayikra Rabbah 16:1; ver especialmente a continuação com Rabi Yohanan em Vayikra Rabbah 16:1). Nessa leitura, o “lavrar o mal” é a persistência quase agrícola do provocador: ele ara o solo das relações humanas, lançando sementes de suspeita, até colher o fruto amargo das divisões; o midraxe vê nele a raiz das rupturas comunitárias que, mais tarde, serão tratadas como doença espiritual do corpo de Israel.
Agora o sábio abre o peito desse homem e mostra o segredo: não é apenas que ele pratique mal, é que a perversidade “está” no coração, instalada como moradora, não como visita. É irmão daqueles de antes do dilúvio, de quem se diz que “toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente” (Gênesis 6:5). O verbo “lavrar” o mal evoca um lavrador às avessas: em vez de sulcar a terra, ele sulca almas; em vez de semear trigo, espalha veneno; em vez de esperar frutos, deseja ruínas. O salmista descreve esse labor: “Trabalham a iniquidade, maquinam o mal em seu leito; põem-se em caminho que não é bom” (Salmos 36:4). E o provérbio acrescenta a exportação: “contendas ele envia”. Não guarda o mal para si, faz dele correspondência, encomenda, mensagem. O coração é escritório de guerra, e cada palavra, cada gesto, é carta de convocação ao litígio. Tiago dirá que “onde há inveja e sentimento faccioso aí há confusão e toda obra perversa” (Tiago 3:16), e Paulo falará de gente que “aprendeu a fazer guerra contra a paz”, “insensatos, desleais, sem afeição natural” (Romanos 1:29–31). Este homem de Provérbios é um emissário desse reino de confusão: onde chega, brotam processos, brigas, divisões; ele é o contrário do bem-aventurado que Jesus proclama: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9). Se os pacificadores são correios da paz, este é carteiro de contenda. A pergunta que o Espírito sussurra ao filho é: o que sai do teu coração são cartas de reconciliação ou despachos de guerra?
Provérbios 6:15
Portanto, subitamente vem a sua calamidade, num instante ele é quebrantado, e não há cura. (Hb.: lāḵēn pitʾōm yābōʾ ʾêdô peṯaʿ yiššāḇēr wĕʾên marpēʾ — “por isso, de repente virá a sua calamidade; num instante será quebrado, e não há cura”). A partícula lāḵēn (“portanto, por isso”) amarra logicamente o juízo às atitudes descritas: não é azar, mas consequência moral. O advérbio pitʾōm (“subitamente”) acentua a surpresa: o juízo vem como algo que não foi agendado nem previsto por quem se julgava seguro. O verbo yābōʾ, Qal imperfeito 3ª masc. sing. (“virá”), projeta um futuro certo, e o sujeito ʾêdô (“sua calamidade, seu desastre”), com sufixo 3ª masc. sing., indica um colapso que lhe pertence, um “desastre feito sob medida” pelas próprias escolhas. Em paralelo, peṯaʿ (“num instante, de repente”), substantivo usado adverbialmente, reforça a força súbita do golpe, seguido de yiššāḇēr, Nifal imperfeito 3ª masc. sing. de šāḇar (“quebrar”), indicando um quebrantamento passivo, sofrido, em que ele se torna objeto da ação. O fecho wĕʾên marpēʾ (“e não há cura”), com ʾên como partícula de inexistência e marpēʾ (“cura, remédio”), sela a sentença com um eco clínico: não se trata aqui de falta de misericórdia da parte de Deus, mas de uma situação em que o próprio caráter se tornou tão endurecido que o “quebrar” não conduz ao arrependimento, mas ao colapso final de sua trajetória maligna. Sintaticamente, o paralelismo entre “virá a calamidade” e “será quebrado” com dois advérbios de súbito cria um ritmo de martelo: causa → consequência, intriga prolongada → juízo repentino. Exegesicamente, o texto adverte que a estabilidade aparente do perverso é ilusória; enquanto ele lavra o mal no coração, a própria história caminha para um ponto de ruptura em que Deus, que parecia calar, intervém. Essa lógica ecoa em Salmos 37:35–36, onde o ímpio que florescia “de repente desaparece”, e em 1 Tessalonicenses 5:3, onde a destruição vem “de repente, como as dores de parto”, sobre quem dizia “paz e segurança”.
O Midrash Mishlei faz desta frase a conclusão lógica da cadeia anterior: depois de descrever o homem de Belial, seus gestos insinuantes, seu coração de distorções e sua prática de semear contendas, a pergunta “o que está escrito depois?” recebe a resposta desse versículo — a ruína súbita e sem remédio do difamador (Midrash Mishlei 6:3). A literatura midráshica associa essa “quebra sem cura” a formas de punição que, embora possam admitir arrependimento, deixam um rastro permanente: em Vayikra Rabbah 16:1, logo após citar “Estas seis coisas o Senhor odeia, e sete são abominações para a sua alma”, os sábios explicam que todos os sete traços culminam em tsaraʿat, e que essa lepra é sinal de uma quebra profunda entre a pessoa e a comunidade, mais difícil de sarar que outros pecados “privados” (Vayikra Rabbah 16:1). Assim, a “calamidade súbita” não é um raio arbitrário, mas a revelação dramática de um processo longo de corrupção da fala: quem vive de virar fatos, soprar insinuações e separar irmãos acaba, no imaginário rabínico, experimentando na própria carne — e na própria reputação — o colapso que cultivou nos outros.
A paciência de Deus é longa, mas não é eterna no tempo; há um dia em que o fio se rompe. O homem que vive lavrando mal pensa que também o juízo será plantio lento; mas o texto diz “de repente”. É o mesmo advérbio com que Paulo descreve a ruína daqueles que dormem na ilusão: “Quando disserem: Há paz e segurança, então lhes sobrevirá repentina destruição” (1 Tessalonicenses 5:3). E é o mesmo cenário da parábola do rico insensato, que planejou muitos anos e ouviu: “Louco, esta noite te pedirão a tua alma” (Lucas 12:20). O martelo de Deus pode ficar levantado muito tempo; mas, quando desce, não avisa. “Num instante é quebrantado”: o verbo hebraico lembra o de Provérbios 29:1 — “o homem que endurece o pescoço, sendo muitas vezes repreendido, será quebrado de repente, sem que haja cura”. A ausência de cura aqui não nega a oferta de arrependimento enquanto é hoje; denuncia é a obstinação que atravessou todas as advertências até chegar ao ponto em que já não quer ser curada. Como Esaú, que “depois, querendo herdar a bênção, foi rejeitado, porque não achou lugar de arrependimento, ainda que, com lágrimas, o buscou” (Hebreus 12:17). A calamidade súbita é o espelho final onde o homem vê, em segundos, o que fez durante anos. O Pai mostra ao filho esse fim para que ele não trilhe esse meio: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração” (Salmos 95:7–8; Hebreus 3:7–8), porque o amanhã pode ser o dia em que o endurecimento se torne estilhaço.
Provérbios 6:16
Estas seis coisas o Senhor detestou, e sete são abominações para a sua alma. (Hb.: šēš hennāh śānēʾ YHWH wĕšeḇaʿ tôʿăḇōt napšô — “seis coisas há que o SENHOR odiou, e sete são abominações para a sua alma”). A construção numérica šēš… wĕšeḇaʿ (“seis… e sete”) é um recurso poético típico da sabedoria hebraica, não para somar, mas para intensificar: a lista é completa e transborda, como em Amós 1–2, onde “três… e quatro” crimes saturam a medida. O pronome demonstrativo feminino plural hennāh (“estas”) liga o número às coisas que virão na lista. O verbo śānēʾ, Qal perfeito 3ª masc. sing. (“odiou”), atribui a YHWH um ódio moral, não caprichoso, a certas atitudes; o uso do perfeito pode ter valor gnômico: ele sempre odiou tais coisas, faz parte do seu caráter. O substantivo tôʿăḇōt (“abominações”), plural feminino de uma palavra forte usada para idolatria e práticas profundamente contrárias à santidade divina, desloca o campo semântico do meramente “desagradável” para aquilo que é repulsivo do ponto de vista da aliança. Napšô (“sua alma”), com sufixo 3ª masc. sing., é antropomorfismo que acentua a intensidade afetiva: não é um decreto frio, é algo que fere o próprio “interior” de Deus, falando em linguagem humana. Sintaticamente, as duas cláusulas — “seis coisas odiou YHWH” / “sete são abominações para a sua alma” — correm em paralelo crescente: ódio → abominação. Exegesicamente, este versículo funciona como portão da lista seguinte (vv. 17–19), deslocando o foco do “homem de belial” para aquilo que, mais fundo ainda, está em conflito direto com o caráter de Deus. A teologia que emerge é que o pecado aqui descrito não é apenas erro humano, mas afronta pessoal ao Senhor: o que Ele odeia é aquilo que destrói a justiça e a comunhão entre as pessoas, e, por isso mesmo, agride a própria santidade com que se revelou a Israel e, em última instância, em Cristo.
O Midrash Mishlei faz aqui um movimento programático: depois de desenhar o perfil do homem de Belial e do provocador de contendas, ele enumera sete categorias de pecado que Deus odeia: idolatria, imoralidade sexual, derramamento de sangue, lashon hara, o “ancião adúltero”, quem bajula o próximo com palavras e quem diz algo em nome de alguém que não o disse; e conclui com o contraste: “quem, ao contrário, diz algo em nome de quem o disse, traz redenção ao mundo”, conforme Ester 2:22, em que Ester relata ao rei “em nome de Mordecai” (Midrash Mishlei 6:3, via Provérbios 6:12 em Sefaria; Ester 2:22 com Midrash). Em Vayikra Rabbah 16:1, essa mesma abertura é usada para introduzir o tema do metzora: “Esta será a lei do leproso…”, e então o midraxe cita Provérbios 6:16–19, afirmando em nome de Rabi Meir que “seis e sete” podem ser lidos como treze, ao passo que os demais sábios insistem em contar sete, explicando que a sétima — aquele que provoca contendas entre irmãos — é “mais severa que todas” (Vayikra Rabbah 16:1; ver explicação de Etz Yosef em Vayikra Rabbah 16:1). Outra linha interpretativa, preservada em coleções de Mikraot Gedolot, atribui a Rabi Eliezer ben Rabi Yossi ha-Gelili a ideia de que esses sete traços são ditos “a respeito da sotá”, a mulher suspeita de adultério: “olhos altivos” — porque levanta os olhos para outro homem; “língua mentirosa” — porque nega a culpa; “mãos que derramam sangue inocente” — porque a suspeita recai sobre filhos inocentes etc. (Mishlei 6:17 em Mikraot Gedolot, via AlHaTorah). No plano ético mais amplo, textos de musar como Reshit Chokhmah retornam ao versículo para dizer que, embora a lista reúna pecados diversos, ela é “pendurada” no eixo do engano: das sete “abominações”, três são diretamente formas de falsidade (língua mentirosa, quem exala mentiras, testemunha falsa), e as demais acabam por gravitar em torno de uma visão deformada de si (orgulho) e do outro (exploração, violência, discórdia).
Aqui se abre, como rolo de acusação, o catálogo das coisas que Deus não suporta. Nós costumamos pensar o céu em tons de aprovação: o que Deus ama, o que Deus recebe, o que Deus acolhe. O provérbio lembra que há também um “ódio santo”, um nojo divino, um abominar que nasce, paradoxalmente, do amor: porque Deus é amor, odeia tudo o que destrói o amado. “Aborreço, desprezo as vossas festas… não aceitarei as vossas ofertas” (Amós 5:21–22), declara Ele ao culto hipócrita; “as vossas luas novas e as vossas solenidades a minha alma odeia… já me são pesadas” (Isaías 1:14). O mesmo verbo ecoa aqui: “detestou”. Não é capricho divino, é diagnóstico: essas sete coisas são cancro na criação, são ferrugem na imagem de Deus no homem. No Novo Testamento, Paulo pedirá: “Amai o que é bom, aborrecei o mal” (Romanos 12:9); e o Apocalipse pintará uma lista de excluídos da Jerusalém celeste, onde aparecem “os covardes, incrédulos, abomináveis, homicidas… e todos os mentirosos” (Apocalipse 21:8). As sete abominações de Provérbios 6 formam o esqueleto desse veredito final. Quando o texto diz “são abominações para a sua alma”, põe Deus em posição de quem, olhando, se enoja: como Jesus, que diante dos cambistas no templo, faz um chicote de cordas e diz: “Não façais da casa de meu Pai casa de negócio” (João 2:16). O Pai mostra ao filho essa lista não para aterrá-lo gratuitamente, mas para educar nele um coração sintonizado com o coração divino: aprender a odiar o que Deus odeia é a outra face de aprender a amar o que Deus ama.
Provérbios 6:17
Olhos altivos (Hb.: ʿênayim rāmôt — “olhos elevados / soberbos”). O substantivo dual ʿênayim (“olhos”) funciona como metonímia da percepção e da atitude interior: são os olhos que denunciam a postura do coração. O adjetivo feminino plural rāmôt, de raiz rûm (“elevar, ser alto”), descreve não simplesmente olhos erguidos para cima, mas olhos “erguidos demais”, carregados de soberba, desprezo, superioridade. A combinação cria a imagem de um olhar que vê os outros de cima, como menores. Sintaticamente, trata-se de um sintagma nominal que, dentro da lista, funciona como primeiro item, representando o pecado da arrogância. Exegesicamente, “olhos altivos” inauguram a série porque a soberba é a raiz silenciosa de muitos outros males: quem se julga acima dos demais se sente autorizado a manipulá-los, enganá-los, explorá-los. Esse retrato conversa com a insistência bíblica de que Deus “resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Provérbios 3:34; Tiago 4:6), e mostra que, antes de qualquer gesto violento, há um modo de ver o mundo que já é, em si, abominação diante de Deus.
Um comentário que recolhe a tradição talmúdica, preservado no comentário medieval de Rabi Neḥemyah (Neḥamyash) a Provérbios 6:17, explica que “olhos altivos — isto é a soberba, o oposto de ‘olhos abatidos ele salvará’ (Jó 22:29), e isso se reconhece nos olhos, como está dito: ‘olhos altivos e coração dilatado, a esse não posso suportar’ (Salmos 101:5)”; e cita o ensinamento de que “qualquer um que tem soberba é como se adorasse ídolos”, pois sobre ele se diz “abominação do Senhor é todo coração soberbo” (Provérbios 16:5), enquanto em Deuteronômio 7:26 está escrito “não trarás abominação à tua casa” (Neḥamyash sobre Provérbios 6:17). A passagem citada remete diretamente ao ensinamento talmúdico em Sotah 4b, onde a soberba é comparada à idolatria, pois ambos são chamados de “abominação”; assim, “olhos altivos” se tornam, na leitura rabínica, a face visível de um coração que expulsa Deus do centro e se coloca a si mesmo como ídolo.
...língua mentirosa (Hb.: lĕšôn šāqer — “língua de mentira”). Lĕšôn (“língua”) é, como frequentemente na Escritura, símbolo da fala e, por extensão, do ensino, da comunicação. Šāqer, substantivo ligado à raiz š-q-r (“mentir, enganar”), descreve a mentira não apenas como ato pontual, mas como qualidade: é uma “língua de falsidade”, feita de engano. A ausência de verbo faz do sintagma nominal um item de catálogo na lista das abominações. Esta “língua mentirosa” prolonga o tema do “homem de belial” que anda em “perversidade de boca”: Deus não trata a mentira como falha leve, mas como ataque ao tecido da realidade que Ele criou com sua própria Palavra (Gênesis 1; Hebreus 11:3). Por isso, a teologia bíblica coloca na mesma raiz mentira, idolatria e injustiça: quem falsifica o discurso abre caminho para falsificar contratos, amizades, testemunhos; e o Novo Testamento ecoa isso ao chamar Satanás de “pai da mentira” (João 8:44), mostrando que toda língua estruturada em engano se alinha, ainda que sem perceber, ao seu modo de agir.
Para os autores de musar, este é um dos eixos da lista. Shaʿarei Teshuvah 3:36 declara que a mentira, além da injustiça concreta que produz, é em si mesma “abominação diante de Deus”, apoiando-se justamente em Provérbios 6:17 (“olhos altivos, língua mentirosa…”) e 6:18 (“coração que trama pensamentos de maldade”) para mostrar que o falso discurso contamina tanto a relação com o próximo quanto a interioridade do sujeito (Shaʿarei Teshuvah 3:36). Reshit Chokhmah, no “Portão da Santidade”, retoma Provérbios 6:16–19 para falar “da gravidade da seita dos mentirosos”: citando o versículo completo — “Estas seis coisas o Senhor odeia… olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que trama pensamentos de maldade, pés que correm para o mal, quem exala mentiras, e quem envia contendas entre irmãos” — o autor nota que, dentre os sete traços listados, três se referem explicitamente à falsidade (língua mentirosa, quem exala mentiras, testemunha de falsidade), e conclui que todas as outras faltas acabam “penduradas” na degradação da verdade (Reshit Chokhmah, Shaʿar ha-Qedushah 12). O Talmud, em Pesachim 113b, reforça essa linha ao dizer que há “três pessoas que o Santo, bendito seja Ele, odeia”: a primeira é “quem fala uma coisa com a boca e outra com o coração”, isto é, o sujeito cuja língua e interior nunca coincidem — a encarnação viva da “língua mentirosa” de Provérbios (Pesachim 113b em Sefaria).
...mãos que derramam sangue inocente (Hb.: wĕyāḏayim šōpĕḵôt dām nāqî — “e mãos derramando sangue inocente”). Yāḏayim (“mãos”), dual, simboliza a ação, o fazer; aqui aparecem com a conjunção wĕ (“e”), ligando-as aos olhos e à língua anteriores: orgulho → mentira → violência. O particípio feminino plural šōpĕḵôt, Qal de šāpaḵ (“derramar”), descreve uma ação continuada ou característica: são mãos habituadas a fazer correr sangue. Dām (“sangue”) é a vida em sua forma mais vulnerável, e nāqî (“inocente, limpo”) sublinha a injustiça radical do ato: trata-se de violência contra quem não tem culpa. Sintaticamente, o conjunto forma um terceiro sintagma nominal na lista, completando a tríade percepção orgulhosa → palavra enganosa → ação homicida. Exegesicamente, este item mostra que, para Deus, violência física contra o inocente está no mesmo patamar das outras abominações listadas; não é “pior” por estar em terceiro lugar, mas aparece como consequência de um processo interior: olhos altivos permitem desprezar o outro, língua mentirosa permite desumanizá-lo, mãos violentas, então, se sentem livres para derramar seu sangue. Em toda a Bíblia, o clamor do “sangue inocente” sobe diante de Deus (Gênesis 4:10; Apocalipse 6:10), e Provérbios 6 insere esse clamor na lista do que fere diretamente o coração do Senhor.
No bloco midráshico de Vayikra Rabbah 16:1, que abre com Provérbios 6:16–19, Rabi Yohanan afirma que “todos [os sete] foram castigados com tsaraʿat”, e então o midraxe aplica cada traço a figuras concretas: “olhos altivos” às filhas de Sião de Isaías 3, “pés que se apressam para o mal” a Geazi, servo de Eliseu, e assim por diante, de modo que “mãos que derramam sangue inocente” é lido à luz de personagens bíblicos marcados pela violência (Vayikra Rabbah 16:1 com notas). Em alguns derashot modernos que retomam esse midraxe, como os estudos de Yeshivat Har Etzion e de outros centros de Torá, destaca-se o fato de que o midraxe insere o tema das “mãos sanguinárias” dentro de uma reflexão mais ampla sobre lashon hara e motzi shem ra: o assassinato não é apenas físico, mas também simbólico — a difamação, o ódio e a calúnia podem matar o nome e o lugar do outro na comunidade, motivo pelo qual o Midrash Mishlei já havia aproximado lashon hara de “derramar sangue” e de “enviar contendas entre irmãos” (Midrash Mishlei 6:3 em Sefaria; ver também a síntese em artigo sobre metzora e lashon hara). Na imaginação rabínica, portanto, as “mãos que derramam sangue inocente” formam um arco com a língua mentirosa e com o coração que maquina o mal: é o mesmo impulso homicida que se expressa ora pela espada, ora pelo boato, ora pela conspiração silenciosa, e por isso toda essa série é agrupada sob a rubrica das “sete abominações” que Deus odeia.
O catálogo de Provérbios 6:17 começa de cima para baixo: olhos, língua, mãos; soberba, falsidade, violência. “Olhos altivos” são aqueles que se habituaram a olhar todos por cima, como se o mundo fosse escada e eles, o último degrau. Isaías anuncia que “os olhos altivos do homem serão abatidos, e a altivez dos homens se humilhará; só o Senhor será exaltado naquele dia” (Isaías 2:11), e Maria, no Magnificat, canta que Deus “dispersa os soberbos no pensamento de seus corações” (Lucas 1:51). A soberba começa no olhar: não é ainda palavra, não é ainda gesto, mas é já juízo; pesa o outro, mede-o em palmos de desprezo. Logo abaixo, “língua mentirosa”: se os olhos mentem sobre o valor do próximo, a língua mente sobre a realidade das coisas. Jesus disse que o diabo é “mentiroso e pai da mentira” (João 8:44); cada falsidade, então, é adoção temporária dessa paternidade. A mentira desfigura o mundo que Deus fez com a palavra verdadeira; é falsificação do ser. Por fim, “mãos que derramam sangue inocente”: é o extremo da mentira e do orgulho, quando o homem chega a achar que pode decidir quem merece viver. De Caim, que mata Abel (Gênesis 4:8–10), à condenação de Cristo, justo entre malfeitores (Lucas 23:41), a Escritura é história de sangue inocente clamando da terra. João dirá que “todo aquele que odeia seu irmão é homicida” (1 João 3:15); assim, mesmo quem nunca manchou as mãos com sangue físico pode ter, no coração, mãos vermelhas de ressentimento. O provérbio põe esses três membros juntos para mostrar que o pecado não é acidente isolado: da altura dos olhos altivos desce a língua que falseia, e da língua que falseia descem as mãos que ferem. A cura, portanto, tem de subir o mesmo caminho ao contrário: olhos baixos que reconhecem a própria poeira, língua convertida à verdade, mãos lavadas no sangue daquele que, sendo inocente, se deixou ferir para reconciliar culpados.
Provérbios 6:18
Coração que maquina pensamentos vãos (Hb.: lēv ḥōrēš maḥšĕḇôt ʾāwen — “coração que lavra pensamentos de vaidade/maldade”). O substantivo lēv (“coração”) no singular masculino designa, no hebraico bíblico, o centro da pessoa, onde pensamento, vontade e afetos se entrelaçam; é mais cérebro e vontade do que mera emoção. Sobre esse “coração” pousa o particípio Qal ḥōrēš (“lavrando, maquinando”), derivado da raiz que significa primeiro “arar o solo”: a imagem é a de um agricultor paciente, que revolve a terra com o arado; aqui, porém, o campo é a interioridade, e o que se lavra são planos sombrios. Maḥšĕḇôt (“pensamentos, projetos”), plural feminino de um termo ligado à ideia de traçar, arquitetar, indica não impulsos soltos, mas esquemas pensados, estratégias, desenhos mentais; e o genitivo ʾāwen colore esses projetos com o tom de “vaidade, ruína, injustiça”, um mal que é ao mesmo tempo vazio e destrutivo. Sintaticamente, “coração” + particípio + objeto formam um retrato estático e ao mesmo tempo dinâmico: o sujeito é um coração em ação contínua, lavrando sem descanso projetos de maldade. Exegesicamente, esta expressão aprofunda a lista das “abominações” do Senhor: não se trata apenas de atos externos, mas de um centro interior que se tornou oficina de distorções. O mal, aqui, não é acidente, é agricultura: dia após dia, o coração passa o arado em sua própria terra e nela lança a semente dos pensamentos que, mais adiante, brotarão em palavras torcidas, em violência, em contendas; e por isso a sabedoria não se contenta em regular comportamentos, ela mira a forja invisível onde os pensamentos são fabricados.)
...pés que se apressam para o mal. (Hb.: raglayim mĕmaharôt lāruṣ lārāʿāh — “pés apressados para correr ao mal”). O dual raglayim (“pés”) representa todo o movimento exterior, a direção concreta da vida. Sobre eles recai o particípio Piel feminino plural mĕmaharôt (“apressando-se, apressados”), de uma raiz que indica pressa, urgência; a forma intensiva sugere não apenas rapidez física, mas um impulso ansioso, quase alegre, em direção ao que é errado. O infinitivo Qal lāruṣ (“para correr”) com preposição lamed reforça a ideia de deslocamento deliberado, não um escorregar involuntário, e o alvo lārāʿāh (“para o mal”), com artigo e he final, define esse movimento como viagem com destino conhecido. Sintaticamente, este hemistíquio é paralelo ao anterior: coração que lavra pensamentos → pés que se precipitam; o verso faz um arco que vai do plano interior ao gesto exterior, mostrando que não há lacuna entre o que se maquina e o que se pratica. Exegesicamente, a imagem denuncia um tipo de energia pervertida: a pressa, que em Provérbios pode ser virtude quando dirigida à justiça e à diligência, aqui é consagrada à corrupção; é o oposto do passo lento e meditativo da sabedoria. Em termos mais amplos, este retrato ecoa a crítica profética aos que “correm para derramar sangue inocente” (Isaías 59:7) e é retomado em Romanos 3:15; a Escritura inteira vê, nesses pés apressados para o mal, não apenas indivíduos isolados, mas uma humanidade que muitas vezes corre mais depressa para o mal do que para o bem, revelando pela direção dos passos aquilo que já se decidiu no secreto do coração.
A literatura rabínica lê esse versículo como radiografia de um ser humano que se tornou “máquina de pecado”: em Yalkut Shimoni sobre os Profetas, a expressão lēv ḥōrēš maḥašĕvōt ʾāven é explicada como um coração que praticamente não conhece outro tipo de pensamento senão planos de maldade, enquanto raglāyim mĕmaharōt lārāʿ descreve pés que correm com pressa para realizar esses desejos, sem qualquer hesitação moral, uma combinação em que a fantasia e a ação se alimentam mutuamente (Sefaria – Yalkut Shimoni on Nach 938). Em outra linha, o midraxe sobre a sotah (a mulher suspeita de adultério) aplica este versículo ao par adúltero: o coração deles está constantemente ocupado em marcar lugar e hora do encontro ilícito, e os pés se apressam até a cena do pecado, mostrando que o provérbio não fala de uma queda ocasional, mas de um estilo de vida tramado, combinado e repetido (Daat – Parashat Sotah). O mesmo conjunto de sete pecados é retomado em Vayikra Rabbah 16:1, onde Rabi Yohanan afirma que “todos eles foram atingidos por tsaraat”, isto é, a lepra bíblica é lida como metáfora visível da corrupção escondida nesse coração que ara o mal e nessas pernas que correm para o crime, ligando diretamente Provérbios 6:16–19 à teologia da impureza em Levítico 13–14 (Vayikra Rabbah 16:1; Nechama Leibowitz, folha sobre Metzora). Comentadores posteriores, como o Abarbanel, ampliam esse eixo: ao comentar Gênesis 3:22, ele associa a expressão de Provérbios ao pecado de Adão, sugerindo que esse “coração que lavra maldade” é precisamente o motor que introduz a morte no mundo e continua, em cada geração, a abreviar a vida de quem segue os passos de Adão, de modo que o versículo deixa de ser apenas uma máxima moral e se torna um diagnóstico da história humana como tal (Abarbanel on Torah, Genesis 3:22).
Provérbios 6:19
Testemunha falsa que profere mentiras (Hb.: yāpîaḥ kĕzāḇîm ʿēd šāqer — “aquele que exala mentiras, testemunha falsa”). O verbo yāpîaḥ vem da raiz pûaḥ (“soprar, exalar”) e está aqui em forma verbal que descreve ação habitual: não é um deslize ocasional, é alguém que vive soprando falsidades, como quem solta vapores envenenados pela boca. O objeto kĕzāḇîm (“mentiras”), plural masculino, sublinha a multiplicidade do engano: não é uma mentira isolada, é um fluxo. O sintagma ʿēd šāqer (“testemunha falsa”), substantivo masculino “testemunha” seguido de adjetivo que significa “falso, enganoso”, situa esse sopro no contexto jurídico e comunitário: trata-se de alguém que se apresenta como fonte de verdade diante dos outros, mas, na realidade, converte o tribunal e a conversa em teatro de distorção. A ordem hebraica — primeiro o sopro de mentiras, depois a identificação como testemunha falsa — cria um efeito de revelação: ouvimos o bafo do engano antes de enxergar o rosto de quem fala. Exegesicamente, o texto toca no coração da ética bíblica: a testemunha é chamada, na Torá, a ser guardiã da justiça; quando ela se torna canal de mentira, corrompe não apenas um caso, mas todo o sistema de confiança que sustenta a vida comunitária. Não é por acaso que este tipo figura entre as coisas que o Senhor abomina: uma sociedade em que a palavra da testemunha não vale mais está construída sobre areia, e o sopro de suas falsidades acaba por desmoronar casas, reputações e vidas.)
...e aquele que provoca contendas entre irmãos. (Hb.: ûmĕšallēaḥ mĕdānîm bên ʾaḥîm — “e o que envia contendas entre irmãos”). O verbo mĕšallēaḥ, particípio Piel masculino singular de šālaḥ (“enviar”), indica ação intensiva e repetida: ele vive “despachando” contendas, como quem envia cartas ou mensageiros. O objeto mĕdānîm (“contendas, brigas”), plural masculino, vem de raiz ligada a disputa, litígio; são conflitos que se espalham como fagulhas num campo seco. O complemento bên ʾaḥîm (“entre irmãos”) aumenta a gravidade: não se trata de inimigos antigos, mas de pessoas que deveriam estar ligadas por laços de sangue, de fé ou de aliança. Sintaticamente, o vav conjuntivo liga este tipo ao anterior, como se a testemunha falsa e o semeador de contendas fossem duas faces da mesma moeda: um mente no tribunal, o outro leva a mentira e a suspeita para o espaço íntimo da fraternidade. Exegesicamente, este é o ponto mais agudo da lista: arruinar a confiança entre irmãos é ferir diretamente a imagem da comunhão que Deus deseja para o seu povo. Aquele que “envia contendas” age como anti-pastor: em vez de juntar o rebanho, espalha-o; em vez de curar feridas, abre novas rachaduras. Por isso, a tradição bíblica tratará com tanta seriedade o “homem faccioso” (Tito 3:10): dividir irmãos, abrir cisões deliberadas, é alinhar-se ao que Deus declara abominável.
Na malha rabínica, esse versículo é o ápice da lista: em Vayikra Rabbah 16:1, o midraxe encadeia as sete abominações de Provérbios 6 e, apoiando-se em discussões como a do comentarista Maharzu, nota que “ûmĕšallēaḥ mĕdānîm bēn ʾāḥîm” é colocado em último lugar justamente para assinalar sua gravidade singular, como uma espécie de coroa sombria de todos os outros vícios (Perush Maharzu on Vayikra Rabbah 16:1; Sefaria – sheet sobre Metzora e Provérbios 6). O Malbim, comentando Provérbios 6 e 25:18, descreve a “testemunha falsa” como alguém que, ao mentir “acerca de assuntos de fé”, age como um instrumento de destruição em três escalas: como um martelo que dispersa pessoas e destrói relações, como uma espada que mata de perto e como uma flecha que mata à distância pelo lashon hará, a maledicência que continua ecoando mesmo quando o mentiroso já se calou (Malbim on Proverbs 6; Malbim on Proverbs 25:18). Outros textos, como Nishmat Chayyim, retomam o catálogo inteiro — olhos altivos, língua mentirosa, mãos homicidas, coração e pés inclinados ao mal, testemunha falsa e semeador de contendas — para mostrar como cada membro do corpo se torna um eixo de pecado; mas o que lança discórdia entre irmãos aparece como o pecado que desagrega a própria estrutura comunitária, dissolvendo a fraternidade que deveria ser o tecido de Israel (Nishmat Chayyim, First Treatise 12).
Provérbios 6:20
Guarda, filho meu, o mandamento de teu pai, e não abandones o ensinamento de tua mãe. (Hb.: nĕṣōr benî miṣwat ʾāḇîkā wĕʾal-tittōš tôrath ʾimmekā — “guarda, meu filho, o mandamento de teu pai, e não deixes a instrução de tua mãe”). O imperativo Qal nĕṣōr (“guarda, preserva”) traz a ideia de vigiar como quem guarda um tesouro ou protege uma muralha; o objeto é miṣwat ʾāḇîkā (“o mandamento de teu pai”), em que miṣwah (“mandamento”) aparece em construto com “teu pai”, apontando para a instrução paterna como expressão concreta da sabedoria. O vocativo benî (“meu filho”) mantém o tom afetivo da coleção; aqui o pai não fala como legislador distante, mas como alguém que oferece ao filho a herança mais preciosa. Em paralelo, a segunda metade do verso traz a negativa wĕʾal-tittōš (“e não abandones”), com a partícula ʾal marcando proibição e o verbo tittōš (Qal imperfeito 2ª masc. sing.) significando “deixar, largar, desamparar”, aplicado à tôrath ʾimmekā (“a instrução de tua mãe”). A palavra torah aqui não é apenas “lei” em sentido técnico, mas ensino orientador, catequese doméstica que molda o caráter. Sintaticamente, a estrutura “guarda… e não abandones…” junta um chamado positivo e um negativo, como duas mãos segurando o mesmo bem; pai e mãe aparecem paralelamente como mediadores da sabedoria divina. Exegesicamente, o versículo mostra que o campo de batalha descrito anteriormente (palavras, contendas, orgulho, sangue inocente) não começa na praça pública, mas em casa, no espaço onde o filho aprende a tratar a instrução como carga ou como luz. A teologia de Provérbios enxerga no mandamento paterno e na torah materna uma extensão da própria sabedoria de Deus: ao guardá-los, o filho não está apenas honrando os pais, está se alinhando ao caminho do Senhor.
A tradição rabínica vê aqui muito mais do que um simples conselho familiar: em Ahavat Yehonatan sobre a haftará de Deuteronômio, “pai” é lido como a Torá escrita e “mãe” como a Torá oral, de tal forma que o versículo se torna um apelo a não separar texto e tradição, letra e comentário, mas guardá-los juntos, como se pai e mãe sentassem à mesma mesa para educar o filho na aliança (Ahavat Yehonatan, Haftarah of Devarim). Um midraxe preservado em coleções como Mikraot Gedolot sobre Provérbios 6:20 desenvolve outra imagem: “nossos primeiros pais separaram terumá e ma‘aser”; Abraão, Isaque e Jacó são apresentados como modelos de fidelidade que sustentam a comunidade por meio de seus dízimos, e o versículo termina identificado com a própria nação: “não abandones a Torá de tua mãe” é explicado como “não abandones a Torá da tua gente”, a umá que te gerou, de modo que “pai” aponta para Deus e “mãe” para Israel como matriz viva de costumes e mandamentos (AlHaTorah – Mishlei 6:20; Tora.ws – drash sobre ‘Netsor beni mitzvat avikha’). Além disso, decisores haláchicos evocam repetidamente “não abandones o ensino de tua mãe” para fundamentar a obrigação de manter minhagim ancestrais: abandonar o costume de pais e mães é visto como violar essa advertência dos Provérbios, o que confere ao versículo um peso normativo no debate sobre tradição e mudança ritual (Daat – Torat ha-minhag).
Provérbios 6:21
Ata-os continuamente ao teu coração, ata-os ao teu pescoço. (Hb.: qōšrēm ʿal-libbekā tāmîd ʿandēm ʿal-gargĕrōteykā — “ata-os sobre o teu coração sempre, pendura-os sobre o teu pescoço”). Os dois verbos são imperativos Qal 2ª masc. sing.: qōšrēm (“ata-os”) e ʿandēm (“prende-os, pendura-os”), ambos com sufixo de 3ª pessoa plural referindo-se aos mandamentos e à instrução do versículo anterior. A primeira imagem, “sobre o coração” (ʿal-libbekā), une o vocabulário do vínculo físico (amarrar) ao centro interior da pessoa: o ensino não deve ficar solto, deve ser amarrado ao ponto de pulsar junto com a vida. O advérbio tāmîd (“sempre, continuamente”) indica constância, não um momento devocional isolado. A segunda imagem, “sobre o pescoço” (ʿal-gargĕrōteykā), usa um termo que pode remeter à garganta, à região frontal por onde passa o fôlego e onde se colocam colares e adornos; prender a instrução ali sugere algo visível, que marca a identidade exterior, como as filactérias que mais tarde Israel colocaria como sinal da lei. Sintaticamente, os dois hemistíquios correm em paralelismo: interior → coração; exterior → pescoço; ambos unidos pelo mesmo “eles”, os ensinamentos. Exegesicamente, a sabedoria aqui não se satisfaz em ser consultada de vez em quando; ela quer ser laço permanente, colar de honra e jugo suave. Há um convite a que a instrução paterna-materna se torne tanto internalizada (afetando desejos, decisões) quanto publicamente reconhecível (marcando escolhas e postura diante dos outros), ecoando o chamado de Deuteronômio 6:8 de atar as palavras do Senhor como sinal sobre a mão e por frontal entre os olhos.
Os sábios transformam essa imagem num retrato da vida inteira abraçada pela Torá. Em Nedarim 62a, o Talmud adverte contra estudar Torá como coroa para autopromoção ou como “pá” para cavar vantagens materiais; em vez disso, cita precisamente este versículo — “ata-os ao teu coração… pendura-os ao teu pescoço” — para ensinar que o estudo deve ser feito por amor, até que as palavras se tornem algo amarrado ao íntimo da pessoa e não um adereço social (Nedarim 62a). Comentários como o de Alshich sobre Provérbios 6, distinguem também entre “mandamento do pai” e “lei da mãe”: o primeiro é associado à Torá escrita, a segunda à Torá oral; os mandamentos “amarrados ao coração” evocam a dimensão interior, meditativa, enquanto o “ornamento no pescoço” aponta para a exterioridade visível — fala, gestos, comportamento — de modo que o justo carrega a Torá tanto como segredo interno quanto como colar público, lembrando a imagem de Provérbios 1:8–9, onde a sabedoria dos pais se torna grinalda na cabeça e colar ao pescoço (Provérbios 1:8–9; Torat Emmet – Rashi e outros sobre Provérbios).
Provérbios 6:22
Ao subir e descer, ela te guia... (Hb.: bĕhitallĕkekā tanḥeh ʾōṯāḵ — “ao caminhares, ela te guiará”). O infinitivo hitpael bĕhitallĕkekā (“ao andares, enquanto te deslocas”) com sufixo 2ª masc. sing. descreve a vida em movimento, o ir e vir cotidiano, mais do que uma viagem específica: é a existência inteira em marcha. O verbo tanḥeh, Hifil imperfeito 3ª fem. sing. de nāḥâ (“guiar, conduzir”), toma como sujeito implícito a instrução/mandamento do versículo 20; ela é a que guia, ele é o conduzido. O objeto ʾōṯāḵ (“a ti”) torna pessoal essa direção: não é uma abstração, é um cuidado concreto. Sintaticamente, a cláusula temporal “ao caminhares” prepara a afirmação principal “ela te guiará”, desenhando a sabedoria como companheira que anda ao lado. Exegesicamente, este trecho traduz em imagem o que antes era ordem: aquilo que foi atado ao coração e ao pescoço agora se manifesta como presença que orienta o caminho. A estrada da vida, com suas curvas e bifurcações, não é percorrida sozinho; a instrução paterna, enraizada no temor do Senhor, torna-se bússola que aponta, silenciosamente, a direção.
...ao deitar, ela te guarda... (Hb.: bĕšāḵbĕkā tišmōr ʿāleykā — “ao deitares, ela velará sobre ti”). O sintagma bĕšāḵbĕkā (“ao deitares-te”), com infinitivo Qal de šākhaḇ e sufixo 2ª masc. sing., leva a cena ao momento da vulnerabilidade: quando os olhos se fecham, quando as defesas conscientes caem. O verbo tišmōr, Qal imperfeito 3ª fem. sing. de šāmar (“guardar, vigiar”), retoma o campo semântico do “guarda” do versículo 20, mas agora aplicado à própria instrução: aquilo que tu guardaste, agora te guarda. O complemento ʿāleykā (“sobre ti”) sugere vigilância amorosa, como um sentinela debruçado sobre alguém que dorme. A estrutura é paralela à do primeiro hemistíquio: “ao caminhares… ela te guia; ao deitares… ela te guarda”; a sabedoria é companheira tanto nos esforços do dia quanto no repouso da noite. O texto pinta um quadro delicado: a instrução internalizada não é peso que rouba o sono, mas presença que protege o sono, como um colar que, em vez de apertar, parece envolver o pescoço com segurança.
...quando acordas, ela fala contigo. (Hb.: wahaqîṣōtā hîʾ tĕśîḥekā — “e quando acordares, ela conversará contigo”). O verbo haqîṣōtā, Hifil perfeito 2ª masc. sing. de qûṣ (“acordar, despertar”), introduz a terceira fase do ciclo diário: depois do caminho e do sono, vem o despertar. O pronome independente hîʾ (“ela”) reforça o sujeito, apontando novamente para a instrução/mandamento atados ao coração. O verbo tĕśîḥekā, imperfeito 3ª fem. sing. de śîaḥ com sufixo 2ª masc. sing., traz uma tonalidade de conversa íntima, de meditação mútua; não é um discurso frio, mas um falar que se mistura ao pensamento, como quando a alma rumina palavras lembradas. O vav conjuntivo liga este terceiro momento aos dois anteriores, completando o quadro: ao andar → guia; ao deitar → guarda; ao acordar → conversa. A instrução paterna-materna, fundamentada na sabedoria de Deus, torna-se uma voz interior que dialoga com a pessoa logo ao despertar, antes que outras vozes disputem o dia: ela sugere, adverte, consola, recorda. O texto desenha, assim, uma espécie de liturgia silenciosa das 24 horas, em que a palavra recebida e guardada envolve toda a jornada humana — passos, sono, manhã — como se a própria sabedoria de Deus se fizesse companheira, guarda e amiga de conversa.
Este é um dos versículos mais queridos na tradição rabínica, justamente porque descreve a Torá como companheira em todos os tempos e mundos. A Mishná em Avot 6:9 afirma que, na hora da morte, o ser humano não é acompanhado por ouro, prata ou pedras preciosas, mas apenas pela Torá e pelas boas obras, e cita Provérbios 6:22, desdobrando-o: “ao caminhares, ela te guiará” — neste mundo; “ao te deitares, ela te guardará” — no túmulo; “e quando despertares, ela falará contigo” — no mundo vindouro (Mishná Avot 6:9). O Talmud em Sotá 21a retoma essa mesma derashá, contrapondo “mitzvá” e “Torá”: uma mitzvá é comparada a uma lâmpada que ilumina por um momento, enquanto a Torá é um fogo permanente; para ilustrar, o texto cita Provérbios 6:22, novamente aplicando “ao caminhares, ao deitares, ao despertares” às três etapas — vida presente, morte e ressurreição —, de modo que a Torá se torna como uma voz que guia, uma sentinela noturna e um diálogo no despertar escatológico (Sotah 21a; Sefaria – sheet com a derashá). Midrash Mishlei 6:4, junta tudo: lê a sequência “guarda o mandamento de teu pai… ata-os ao teu coração… ao caminhares, ela te guiará” como uma cadeia contínua em que o mandamento gera o vínculo, o vínculo gera companhia, e a companhia da Torá atravessa o dia, a noite e o despertar final; comentaristas como Ralbag resumem esse movimento dizendo que o versículo abrange as três posturas básicas do ser humano — caminhar, deitar, despertar — e promete que, em todas elas, quem se amarrou à instrução divina será guardado de tropeços e medos (Mgketer – Provérbios 6:22).
Provérbios 6:23
Porque a lâmpada é o mandamento, e a lei, a luz... (Hb.: ki ner miṣwah wĕtôrāh ʾôr — “porque lâmpada é o mandamento, e luz é a instrução/lei”). A partícula ki (“porque”) liga este versículo ao apelo anterior para guardar o mandamento e a instrução do pai e da mãe: agora vem a razão profunda. Ner (“lâmpada”) é substantivo masculino que evoca a pequena chama que ilumina apenas alguns passos à frente, em contraste com luz plena de dia; já miṣwah (“mandamento”), substantivo feminino, designa a ordem concreta, o preceito pontual, a palavra específica que orienta uma situação particular. A cláusula é nominal, sem verbo expresso, e a equação “lâmpada = mandamento” sugere que cada ordem de Deus acende um pequeno foco de claridade na escuridão moral: não ilumina tudo de uma vez, mas deixa visível o próximo passo. Em paralelismo, tôrāh (“lei, instrução”) traz um termo mais amplo, que não significa apenas código jurídico, mas o conjunto do ensino sapiente de Deus, como uma tradição viva que educa; ʾôr (“luz”) é substantivo de campo semântico mais abrangente, ligado à clareza, orientação, vida. A sintaxe espelha esse paralelismo: mandamento ↔ lâmpada, torah ↔ luz, como se a poesia hebraica dissesse que Deus oferece tanto pequenos focos de orientação quanto um horizonte mais vasto de sentido. O versículo apresenta a revelação divina como claridade para o caminho, ecoando o Salmos 119:105 (“lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para o meu caminho”): o mandamento particular evita tropeços concretos; a torah como conjunto abre um dia novo na compreensão. A imagem sugere que viver sem essa luz é caminhar às cegas, e que a sabedoria consiste em deixar-se iluminar, passo a passo, por essa Palavra que acende centelhas de entendimento no meio da noite.
Na leitura rabínica clássica, este verso torna-se um axioma: em Rashi a Provérbios 6:23, a miṣwâ é comparada a um pequeno facho que ilumina por um tempo limitado, enquanto a tôrâ é o sol que permanece, cuja luz acompanha o homem para sempre, mesmo quando a chama da ação pontual já se apagou; daí a famosa fórmula: “como a luz do sol ilumina sempre o mundo, assim o mérito da Torá permanece para sempre, mas o mérito da mitzvá é como a luz de uma vela, por um momento” . O Talmud, em Sotah 21a, transforma estas imagens em parágrafo dramático: um homem caminha na escuridão da noite, tropeçando em buracos, espinhos e fossos; quando acende uma lâmpada, vê apenas o que está ao alcance imediato, mas quando “o sol nasce” ele enxerga o caminho inteiro — assim, as mitzvot protegem pontualmente de quedas concretas, mas é o estudo da Torá que dá visão abrangente, mostra o início e o fim do caminho e revela o “perigo estrutural” do pecado, sendo este versículo citado textualmente como chave da parábola . Midraxim posteriores (como os reunidos em folhas de estudo de Shavuot e Cântico dos Cânticos em Sefaria.org) voltam a este mesmo versículo para descrever a relação entre a “luz” da Torá e a “lâmpada” das obras: a Torá é o horizonte estável em que as pequenas chamas das ações se acendem, e por isso a espiritualidade rabínica insiste que o estudo não é mero adorno intelectual, mas a fonte de claridade sem a qual até as boas obras podem ser tateantes e cegas.
...e o modo de vida são repreensões para a instrução... (Hb.: wĕderekh ḥayyim tokhaḥot mûsār — “e caminho de vida são as repreensões da disciplina”). Derekh (“caminho”) é aqui metáfora clássica para estilo de vida, rota existencial; ligado a ḥayyim (“vida”), no construto derekh ḥayyim, sugere o percurso que, de fato, leva à vida, não apenas sobrevivência biológica, mas existência plena segundo Deus. Essa expressão funciona como predicado para o sujeito tokhaḥot mûsār, “repreensões da disciplina”: tokhaḥot é plural feminino de “repreensão, correção, contestação daquilo que está errado”, e mûsār (“disciplina, instrução corretiva”) indica educação que inclui confronto e poda, não apenas consolo. A construção é novamente uma oração nominal: “caminho de vida = repreensões da disciplina”, como se o texto dissesse que não existe rota para a vida que não passe pelo corredor estreito das correções. Morfologicamente, o plural de tokhaḥot aponta para a recorrência dessas repreensões: não é um puxão de orelha isolado, é uma série de correções ao longo dos anos. Sintaticamente, o “e” que abre o hemistíquio liga esta afirmação à metáfora da lâmpada e da luz, completando o tríptico: mandamento ilumina como lâmpada, torah como luz mais ampla, e o caminho de vida é pavimentado pelas repreensões que essa luz revela. Exegesicamente, a sabedoria de Provérbios vai contra qualquer espiritualidade que queira a luz de Deus sem a dor da correção: o mesmo Deus que acende a lâmpada aponta, com essa luz, para os cantos empoeirados da alma, e suas repreensões, longe de matarem, são o traçado exato da estrada que preserva a vida. O discípulo que foge da disciplina, portanto, não está fugindo apenas de incômodos; está saindo da estrada onde a vida se conserva.
Os rabinos enxergam aqui a conclusão do mashal de Sotah 21a: não basta ter vela e luz; é quando o caminhante chega às encruzilhadas que as “repreensões de mûsār” se tornam “déreḵ ḥayyîm”, o caminho efetivo da vida, como placas de estrada que o obrigam a escolher para que lado dobrar . Em coleções como Ein Yaakov, que preservam a camada homilética do Talmud, este verso é associado à experiência de tokheḥah como algo doloroso, mas salvador: admoestações da Torá, reprovações dos sábios, até sofrimentos que sacodem o indivíduo, todos são lidos como “repreensões de disciplina” que o arrancam de veredas de morte e o reconduzem à rota da vida, razão pela qual o midrash pode falar de “caminho de vida” precisamente quando descreve yissurim que purificam e redirecionam . Assim, o verso, na leitura rabínica, costura a tríade: mitzvá como vela, Torá como luz, e as correições divinas como trilha concreta em que essa luz se traduz em passos.
Provérbios 6:24
Para te guardar da mulher má, da lisonja da língua da mulher estranha. (Hb.: lishmorkhā mēʾeshet rāʿ mēḥelqat lashon nokhriyyāh — “para te guardar da mulher maligna, da suavidade de língua da mulher estrangeira”). O infinitivo lishmorkhā (“para te guardar”) com preposição le indica finalidade: toda a luz do mandamento e toda a disciplina da torah têm, entre outros efeitos, o de funcionar como muro protetor. ʾEshet rāʿ (“mulher má”) é expressão em construto, unindo “mulher” e “mal” num tipo: trata-se menos de uma pessoa específica e mais de uma figura paradigmática de sedução destrutiva, já introduzida antes em Provérbios. Em paralelo, nokhriyyāh (“estranha, estrangeira”) qualifica outra mulher como de fora — não necessariamente só em termos étnicos, mas moral e culticamente alheia à aliança, alguém que não partilha os padrões da comunidade de fé. Entre essas duas expressões está mēḥelqat lashon (“da suavidade/lisonja de língua”), em que ḥeleq pode significar “lisura, suavidade”, apontando para um falar escorregadio, sedutor, polido demais; a língua, aqui, é instrumento que alisa o caminho para o pecado. Sintaticamente, as duas expressões com min (“de, contra”) — da mulher má, da suavidade da língua da estrangeira — dependem do mesmo verbo “guardar”, sugerindo que tanto a pessoa quanto o discurso que ela usa são alvo dessa proteção. Exegesicamente, o versículo mostra que a Palavra de Deus não é apenas farol abstrato, mas guarda concreta contra seduções bem específicas: aqui, contra a sedução sexual que combina maldade de caráter e lisonja verbal. A teologia subjacente não demoniza a feminilidade em si, mas denuncia um tipo de relação em que a palavra sedutora é usada como ferramenta de desvio, e lembra que o coração, iluminado pelo mandamento, passa a reconhecer, por detrás da melodia das frases, o veneno que se esconde nelas.
No prólogo de seu comentário a Provérbios, Rashi estabelece uma chave alegórica que a tradição rabínica repete: a “mulher boa” é a Torá, a “mulher estranha” é a idolatria e a heresia; por isso, os capítulos sobre a “estranha” são lidos também como advertências contra doutrinas sedutoras que afastam de Deus . Em comentários reunidos em plataformas como Otzar HaMikra, citando Rashi e outros, esta “mulher má” de Provérbios 6:24 é explicitamente identificada com a minut (heresia) e com a sedução para a idolatria: a “língua suave” (ḥelqat lāšôn) torna-se metáfora da retórica polida, dos argumentos engenhosos que, como carícias verbais, vão desconstruindo a fidelidade ao mandamento . Assim, o versículo, que no nível literal protege contra o adultério, na literatura rabínica se amplia para proteger contra alianças religiosas espúrias: a Torá é colocada como guarda à porta do coração, tanto contra o corpo estranho quanto contra o credo estranho.
Provérbios 6:25
Não cobices a sua formosura no teu coração... (Hb.: ʾal-taḥmod yofyāh bilvavekha — “não desejes a sua beleza no teu coração”). A partícula ʾal introduz proibição, e o verbo taḥmod (Qal jussivo 2ª masc. sing.) vem da raiz que significa “desejar intensamente, cobiçar”, a mesma que aparece no décimo mandamento: o que está em jogo não é apenas notar beleza, mas prendê-la com desejo possessivo. Yofyāh (“sua formosura”), substantivo ligado a “beleza”, com sufixo 3ª fem. sing., concentra o foco naquilo que, à primeira vista, parece inofensivo e admirável. O locativo bilvavekha (“no teu coração”), com “coração” em forma intensificada e sufixo 2ª masc. sing., desloca a batalha do corpo para o interior: o texto não começa proibindo o ato externo, mas o movimento secreto do desejo que se torna cultivo interior de imagens e fantasias. A ordem do hebraico — “não cobices... no teu coração” — coloca a proibição diretamente dentro da esfera afetiva e imaginativa, como se dissesse: é aí dentro, no lugar onde ninguém vê, que o pecado começa a ser autoconsumido como doçura proibida. Exegesicamente, este versículo antecipa com impressionante clareza a ligação que Jesus fará entre cobiça no coração e adultério (Mateus 5:28): a sabedoria veterotestamentária já via que o olhar só se torna devastador quando o coração decide fazer da beleza alheia um ídolo secreto. A Palavra, como lâmpada, é colocada justamente nesse ponto escuro da alma, para que o discípulo aprenda a agradecer pela beleza, mas recuse transformá-la em objeto de posse e de consumo.
Os comentaristas rabínicos sublinham que o verbo ḥāmad (“cobiçar”) aqui é deslocado do ato para a imaginação: em coleções de comentários como as organizadas em Mikraot Gedolot e em mgketer, explica-se que o texto proíbe “introduzir a sua imagem no coração”, cultivar interiormente a beleza da estranha, mesmo sem contato físico, porque é nesta câmara interior que o desejo se torna projeto . A literatura de musar se apoia neste versículo para insistir que a vigilância começa antes dos gestos — começa no teatro secreto da fantasia, onde o olhar interno fixa o rosto desejado; por isso, rabinos posteriores repetem que este mandamento é um chamado a purificar as representações mentais, não apenas a conter o corpo.
...nem te deixes seduzir pelos seus olhares. (Hb.: wĕʾal-tiqqaḥekha beʿafʿappehā — “e não te deixes tomar pelos seus olhos/pálpebras”). O wĕʾal mantém o tom proibitivo, agora com o verbo tiqqaḥekha, forma intensiva que deriva de raiz ligada a “tomar, capturar”: a ideia é “não permitas que ela te apanhe”. O sujeito oculto é a mulher sedutora; o objeto direto é “tu”, expresso no sufixo; o instrumento são os ʿafʿappehā (“seus olhos/pálpebras”), plural intensivo que pode sugerir o jogo de olhos, o piscar calculado, o olhar demorado que prende. Sintaticamente, o hemistíquio funciona em paralelismo com “não cobices no teu coração”: primeiro, o interior que cobiça; depois, o exterior que se deixa capturar pelo brilho do olhar alheio. Exegesicamente, a sabedoria mostra a progressão do pecado: um coração que se permite cobiçar se torna vulnerável ao olhar sedutor que o confirma; não é apenas a mulher que prende com os olhos, é o homem que, por dentro, já escolheu ser preso. A luz do mandamento intervém nesse processo exato, chamando o discípulo a recusar tanto a fantasia interna quanto o jogo externo, para que a beleza do outro não seja convertida em ímã que puxa a alma para fora do caminho de vida.
Aqui a exegese rabínica fixa-se na estranheza da imagem: os “cílios” (ʿapʿappîm) tornam-se símbolo de sinais mínimos — um piscar de olhos, um aceno quase imperceptível — pelos quais a sedução se insinua. Em coleções de comentários acessíveis via mgketer, encontramos a explicação de que se trata de “remoções e sinais de engano”, pequenos gestos que, sob aparência de inocência, convocam o encontro ilícito e, segundo alguns, até sugerem os códigos e sinais usados por quem incitava à idolatria, reforçando a leitura alegórica do versículo . Assim, a literatura rabínica lê estes “olhares” tanto como gestos eróticos quanto como figuras de mensagens doutrinárias sub-reptícias: a alma é advertida a não se deixar “tomar” nem pelo brilho do olho, nem pelo brilho da ideia sedutora.
Provérbios 6:26
Porque a meretriz se consome num pedaço de pão... (Hb.: ki beʿad ishshāh zōnāh ʿad kikkar leḥem — “porque por causa de uma mulher prostituta até um pedaço de pão”). A partícula ki aqui introduz explicação do perigo: por que é tão grave brincar com olhar e desejo? Beʿad (“por causa de, em troca de”) indica preço, negociação; ishshāh zōnāh (“mulher prostituta”) combina o termo comum “mulher” com o particípio feminino “prostituta, aquela que se vende”, mostrando alguém cujo corpo e afetos foram convertidos em mercadoria. A expressão ʿad kikkar leḥem (“até um pão redondo”) contém certa dureza: kikkar é “pão redondo, rosca, porção de pão”, e a preposição ʿad pode sugerir que o encontro com a prostituta reduz o homem “até o valor de um pedaço de pão”, ou que, por pouco preço, ele compromete sua honra. Sintaticamente, a frase é comprimida, quase enigmática, reforçando a ideia de rebaixamento: da promessa de prazer luxuoso passa-se à realidade de ser consumido ou reduzido a algo barato. Exegesicamente, o texto denuncia a ilusão do prazer pago: aquilo que parece luxo se revela transação miserável, em que tanto o corpo da mulher quanto a dignidade do homem são barateados. O desejo que devia ser dom e aliança é trocado por moeda miúda; a fome de intimidade é respondida com pão barato, e a pessoa vai se tornando, ela mesma, coisa que se compra e se joga fora.
Rashi, citado em edições tradicionais e em repositórios como Wikisource e mgketer, lê aqui o desfecho econômico do vício: quem segue a zônâ acaba em pobreza extrema, reduzido a mendigar “um pedaço de pão”, tendo consumido “toda coisa boa” de que dispunha; a expressão descreve a queda social e material daquele que troca tudo por desejos fugazes . O Talmud, porém, toma o versículo e o expande em direção moral inesperada: em Sotah 4b, por meio de aggadot recolhidas em comentários como os de Steinsaltz e em ensaios haláchicos, lê-se que “todo aquele que come pão sem lavar as mãos é considerado como se tivesse ido a uma prostituta”, apoiando-se precisamente neste versículo para mostrar que o desprezo de uma mitsvá elementar pode equivaler espiritualmente à entrega a um vício degradante . Autores como o Kli Yakar e o Netivot Olam desenvolvem esta linha: a zônâ encarna qualquer uso do corpo desconectado da santidade, e o “kikkar-leḥem” torna-se símbolo da banalização da vida — quando até o pão, dom cotidiano, é profanado, o homem desce ao nível de quem troca a própria dignidade por um prazer instantâneo.
...e a adúltera persegue a alma preciosa. (Hb.: wĕʾeshet ʾish nefesh yeqārāh tatsûd — “mas a mulher de outro homem caçará a vida preciosa”). O contraste vem com wĕʾeshet ʾish (“mulher de [um] homem”), expressão que indica esposa casada, alguém já vinculada por aliança. O verbo tatsûd, Qal imperfeito 3ª fem. sing. de ṣûd (“caçar, apanhar”), traz campo semântico de caça: ela não apenas se oferece, ela persegue; o alvo é nefesh yeqārāh (“vida/alma preciosa”), em que nefesh é a própria pessoa em sua integralidade, e yeqārāh (“preciosa, valiosa”) mostra que aqui se arrisca algo de valor altíssimo. Sintaticamente, o hemistíquio amplia a advertência: não é só com a prostituta (que barateia), mas ainda mais com a mulher casada que o perigo se intensifica, pois agora não se trata apenas de dinheiro, mas de aliança, honra, vida. Exegesicamente, o versículo distingue, sem relativizar, dois níveis de ruína: a prostituta está ligada à miséria material e moral; a adúltera casada envolve quebra de aliança, violação de vínculos, risco real à própria existência do homem — sua “alma preciosa” entra na mira de uma caça que envolve culpa, vingança, desonra. A sabedoria mostra que ceder ao adultério é colocar a própria vida na condição de presa.
Rashi distingue, aqui, dois níveis de ruína: a zônâ leva o homem à miséria; a ʾešet ʾîš destrói uma “nefeš yeqārâ”, uma alma que antes era preciosa, arrastando-a para a perdição — uma leitura que, em seu comentário a este versículo, culmina na imagem de uma alma que acaba “caçada para o Gehinnom” . Outros exegetas, como o Malbim, aprofundam esta distinção: com a prostituta, o homem vende sua honra externa; com a mulher de outro, ele rasga a própria identidade, pois trai uma aliança sagrada e se torna alguém diferente do que era, de modo que a expressão “alma preciosa” sublinha a gravidade do que se perde — não apenas dinheiro, mas a própria vocação de imagem de Deus, leitura ecoada em compêndios rabínicos que sublinham como este versículo descreve o salto da mera fraqueza para a destruição consciente de si mesmo.
Provérbios 6:27
Porventura o homem toma fogo no seu peito, sem que se queimem as suas vestes? (Hb.: hăyaḥteh ʾîsh ʾesh beḥeqô ûvegādāw lōʾ tissarafnāh — “por acaso tomará um homem fogo no seu seio, e as suas roupas não se queimarão?”). O interrogativo hă- abre uma pergunta retórica de resposta óbvia: “é possível que…?”. O verbo yaḥteh está ligado à ideia de “apanhar, tomar no colo”; ʾesh (“fogo”) é aqui imagem de desejo ardente, força poderosa e perigosa. Beḥeqô (“no seu seio, no peito”), com o substantivo que indica colo ou dobra da roupa junto ao peito, descreve proximidade máxima: não é fogo distante, é fogo abraçado. Vegādāw (“suas vestes”) com sufixo 3ª masc. sing. e o verbo tissarafnāh (forma que indica “queimar-se”) completam o quadro: roupas em contato imediato com o fogo. Sintaticamente, a estrutura é construída para que o absurdo fique claro: tomar fogo no peito ↔ roupas não queimarem, duas metades que não combinam. Exegesicamente, o provérbio aplica-se diretamente ao adultério exposto nos versos anteriores, mas também a qualquer flerte com o pecado que se pretende manter “sob controle”: trazer o fogo da paixão ilícita para perto do peito, imaginar que se pode brincar com ele sem consequências, é tão insensato quanto encher o colo de brasas esperando sair ileso. A sabedoria insiste: o próprio contato é já o começo da destruição.
A literatura rabínica detém-se no verbo raro yeḥtê: Rashi, comentando o versículo em Sefaria, explica que todo “linguajar de ḥatiyyat geḥalîm” tem o sentido de “puxar brasas” para dentro de um recipiente, citando Isaías 30:14 como paralelo; assim, o quadro é o de alguém que, deliberadamente, recolhe o fogo para junto do corpo, não de quem tropeça acidentalmente num carvão . Comentários preservados em mgketer explicitam a nimshal: “agora ele anuncia a punição do adúltero que se prostitui após ela, e o compara a quem junta fogo no próprio peito, pois é impossível que as roupas não se queimem” — o provérbio constrói uma impossibilidade física para ensinar uma impossibilidade moral: não há como aproximar-se tanto de um pecado de tal ordem e permanecer ileso, e os sábios usam esta imagem para insistir que a consequência faz parte da própria natureza do ato, como queimadura que o fogo inevitavelmente deixa na roupa ).
Provérbios 6:28
Andará o homem sobre brasas vivas, sem que seus pés se queimem? (Hb.: ʾim-yehallek ʾîsh ʿal-haggeḥālîm wĕraglāyw lōʾ tikkāwenāh — “se um homem andar sobre brasas, os seus pés não se queimarão?”). O ʾim (“se”) aqui tem valor retórico, equivalente a “por acaso é possível que…?”. O verbo yehallek, Piel ou Qal intensivo de halak (“andar”), sugere não apenas pôr o pé e tirar rápido, mas caminhar, fazer percurso. Geḥālîm (“brasas, carvões em brasa”) são fogo concentrado no chão; andar “sobre” elas (ʿal-haggeḥālîm) implica pisar exatamente onde o calor é mais intenso. Ragl āyw (“seus pés”), dual com sufixo de 3ª masc. sing., são o contato direto; o verbo tikkāwenāh, de raiz kavah (“queimar, ficar em brasa”), descreve a queimadura inevitável. A imagem completa a anterior: fogo no peito, brasas debaixo dos pés; em ambas, a pergunta exclui qualquer neutralidade. Este versículo sela o argumento: não há adultério “sem dano”, proximidade inocente com fogo, “apenas conversa” que permanece estéril; caminhar sobre brasas é uma maneira poética de dizer que a rotina de flertar com o pecado já é, em si, um caminho de queimadura. O texto convida o leitor a abandonar a ilusão de invulnerabilidade — pensar que controle emocional ou habilidade social garantem imunidade — e a reconhecer que o único modo de não se queimar é não abraçar o fogo nem caminhar onde as brasas esperam.
Os comentaristas rabínicos leem este versículo como o segundo movimento do mesmo mashal: se no anterior as roupas — a camada externa — se queimavam, aqui são os próprios pés, o contato direto com o solo, que não podem escapar; em mgketer.org, o comentário resume: “assim é o que vem à mulher do próximo, não ficará inocente todo o que a toca”, costurando explicitamente o paralelismo entre brasas e adultério, entre queimadura física e culpa moral . Rabinos de épocas posteriores, ecoados em compilações modernas, usam essa duplicação de imagens (peito/vestes, pés/brasas) para mostrar que a transgressão sexual corrói tanto a “roupa” — o entorno social, o casamento, a reputação — quanto os “pés” — a própria capacidade de caminhar adiante em santidade; quem escolhe caminhar sobre carvão em brasa está escolhendo, junto com o prazer efêmero, a marca de fogo que o acompanhará.
Provérbios 6:29
Assim é o que se deita com a mulher do seu próximo; nenhum dos que a tocam fica impune. (Hb.: kēn habbāʾ ʾel-ʾēšet rēʿēhû lōʾ yinnāqeh kāl-hannōgēaʿ bāh — “assim é o que entra na mulher do seu próximo; não ficará impune todo o que a toca”). O advérbio-comparativo kēn (“assim”) liga o versículo à metáfora anterior do fogo no peito e das brasas debaixo dos pés: do mesmo modo que é impossível brincar com fogo sem se queimar, assim é com o homem que “entra” (habbāʾ, particípio Qal com artigo, “aquele que vem/entra”) em ʾēšet rēʿēhû (“a mulher de seu próximo”, expressão típica da Torá para a esposa do concidadão). O verbo não diz apenas “deitar-se com”, mas “entrar”, sublinhando a invasão de um espaço que pertence à aliança conjugal. A segunda metade traz lōʾ yinnāqeh (“não será inocentado, não ficará limpo”), Nifal imperfeito de nāqâ, verbo jurídico de absolvição: é linguagem de tribunal, não haverá declaração de inocência. O sujeito é kāl-hannōgēaʿ bāh (“todo aquele que a toca”), com hannōgēaʿ como particípio Qal de nāgaʿ (“tocar, atingir”), verbo que pode ir do simples contato ao envolvimento sexual pleno, reforçando que o perigo começa no “tocar” e não apenas no ato consumado. Sintaticamente, o paralelismo une o “entrar” e o “tocar” sob a mesma sentença: quem ultrapassa a fronteira da aliança do próximo, em qualquer nível, coloca-se automaticamente sob o veredito de culpa. Na leitura exegética, o texto consolida o argumento: o adultério não é apenas pecado “privado” entre dois; é violação da casa do próximo, de sua honra, de seu pacto, e por isso não pode ser social nem divinamente tratado como incidente sem consequência — a própria estrutura da justiça, desenhada por Deus, recusa absolver esse gesto.
Na leitura rabínica, este versículo é amarrado a um tecido muito mais denso do que o simples medo da punição conjugal: em Midrash Mishlei 6:6, o texto coloca lado a lado o provérbio “poderá alguém tomar fogo no seio, sem que se queimem as suas vestes?” com a frase “assim é o que vem à mulher do seu próximo; não ficará inocente todo o que a toca nela”, e conclui que a expressão “lōʾ yinnāqeh” (“não será inocentado”) aqui é a mesma usada em Êxodo 20:7 para o que profana o Nome, criando uma gezerah shavah que equipara, em gravidade, o adultério com a mulher do próximo e o ḥillul ha-šēm, a profanação direta de Deus (Midrash Mishlei 6:6; Êxodo 20:7; cf. a mesma passagem citada em Oséias 14:2–3 com Midrash Mishlei). Essa leitura faz do leito adulterino uma espécie de altar profanado: quem se aproxima “toma fogo no peito”, e o dano não é apenas social, mas teológico. Em comentários que ecoam esse midraxe, expositores posteriores observam a distinção entre o “vir à mulher do próximo” (o ato consumado) e o “tocar nela”, isto é, o círculo de aproximações e intimidades que talvez não culmine em ato, mas já traz culpa, como se o texto desenhasse círculos concêntricos de fogo à volta da transgressão; por isso, a tradição que explica a justaposição, em Números, dos trechos sobre nazireu e sobre a mulher suspeita (sotah), recorre a Provérbios 6:27–29 para dizer que quem vê a ruína moral que um adultério provoca deve “fazer cerca” ao desejo e afastar-se do vinho e de todo caminho que conduz àquela chama (discussão em Daat, “Shemot Rabbah 16”). Dentro dessa moldura, o versículo deixa de ser mero aviso jurídico e torna-se um ícone rabínico de transgressão irreparável: tocar nessa mulher é encostar-se no próprio lugar em que o Nome é desonrado, e por isso “não há inocência” possível, apenas marcas que lembram brasas coladas à carne.
Provérbios 6:30
Não desprezam o ladrão, quando furta para saciar a sua fome. (Hb.: lōʾ yāḇūzû lagganāv kî yignōḇ lĕmalleʾ napšô kî yirʿāḇ — “não desprezam o ladrão, se ele furta para encher a sua alma, quando tem fome”). O verbo yāḇūzû (Qal imperfeito 3ª pl. de bûz, “desprezar, tratar com desdém”) vem precedido de lōʾ, formando uma negação gnômica: em regra, “não se despreza” esse tipo particular de ladrão. Lagganāv (“ao ladrão”) traz o artigo e o dativo, focando no personagem que, mesmo errado, ainda desperta certa compreensão. A conjunção kî introduz a condição: yignōḇ (Qal imperfeito de gānab, “furtar”) aqui não é profissionalização do crime, mas gesto motivado por necessidade extrema, como detalha lĕmalleʾ napšô (“para encher a sua alma”), expressão em que napšô (“sua alma”) é hebraísmo para “a si mesmo”, e kî yirʿāḇ (“quando ele tem fome”) esclarece o cenário. Sintaticamente, a frase abre um quadro concessivo: a sabedoria admite um caso em que o ato é objetivamente errado, mas o sujeito não é tratado com o mesmo desprezo moral que um perverso; há uma atenuação subjetiva, ainda que não haja isenção objetiva. Exegesicamente, o versículo prepara o contraste com o adúltero: o ladrão faminto peca por necessidade, sem malícia elaborada; esse reconhecimento não elimina a culpa (como o versículo seguinte mostrará), mas introduz uma gradação moral. A sabedoria bíblica, assim, evita tanto o relativismo quanto o rigorismo cego: ela distingue entre o roubo por fome e o adultério por luxúria, abrindo espaço para nuance na avaliação do coração.
Na superfície, o texto fala de um ladrão movido pela necessidade fisiológica; mas o midraxe abre essa fome em duas direções: em Midrash Mishlei (edição Buber, sobre Provérbios 6:30), lê-se que “não desprezem o ladrão” pode referir-se ao ʿam haʾāreṣ que “se destrói” no estudo da Torá, isto é, ao ignorante que, tomado por fome de palavra, passa a “roubar” o saber dos mestres, e também ao ladrão ímpio que abandona sua maldade e faz tëshuvá; em ambos os casos, o mandamento é não desprezar aquele que começa a se mover, ainda de modo torpe, em direção ao bem, porque a sua fome é sinal de vida (Midrash Mishlei 6:30 (Buber)). Em outra leitura, preservada numa baraita explicada em Tosefta Kifshutah sobre Bava Kamma 7:13, “o ladrão” é “aquele que se esgueira de trás do companheiro e vai à casa de estudo para ocupar-se com a Torá”: ele rouba tempo dos negócios, talvez também a estima dos outros, mas sua furtividade aponta para uma fome mais funda, descrita, noutra chave, como a fome anunciada por Amós 8:11, “fome de ouvir as palavras do Senhor”. A literatura rabínica, assim, desloca o foco: o provérbio já não é apenas casuística judicial, mas um espelho em que tanto o ladrão literal quanto o “ladrão” de sabedoria são medidos pela fome que os move; o texto pede que, diante dessa fome, mesmo quando o gesto é errado, não se responda com desprezo, mas com um tipo de reverência cautelosa, que espera pelo versículo seguinte, onde a reparação entra em cena.
Provérbios 6:31
E, sendo achado, restitui sete vezes mais; tudo o que a sua casa detém. (Hb.: wĕnimṣāʾ yĕšallēm šiḇʿātāyim ʾet-kāl-hôn bêtô yittēn — “e, se for encontrado, pagará sete vezes; dará todo o bem de sua casa”). O wĕnimṣāʾ (“e [se] for achado”), Nifal com valor condicional, coloca o ladrão sob o olhar da justiça: quando o ato escondido vem à luz. O verbo yĕšallēm (Piel imperfeito de šālam, “restituir, pagar completamente”) sugere compensação intensiva, não pagamento simbólico; šiḇʿātāyim (“sete vezes”) é expressão idiomática de multiplicidade, indicando restituição amplamente superior ao dano. O objeto é ampliado em ʾet-kāl-hôn bêtô yittēn (“ele dará todo o patrimônio de sua casa”), com hôn (“riqueza, bens”) em construto com “sua casa”: tudo que possui pode ser exigido em reparação. Sintaticamente, a sequência “ser encontrado → pagar → até todo o bem da casa” mostra que a compreensão pelo motivo não anula a exigência de justiça: o ato continua tendo consequências materiais pesadas. Exegesicamente, o versículo aprofunda a pedagogia do contraste: mesmo o ladrão faminto, cujo crime desperta menos desprezo, não escapa à lógica da restituição; quanto mais, então, o adúltero, cujo ato nasce não da fome, mas do excesso, da cobiça. A sabedoria mostra que o mundo moral não é dissolvido pela empatia: é possível compreender o faminto e, ainda assim, exigir que pague o preço do que fez.
A tradição rabínica lê esse versículo tanto no eixo jurídico quanto em chave homilética. No nível do direito, comentaristas medievais reunidos em coleções como Mikraot Gedolot ressaltam que “sete vezes” não significa uma fração matemática fixa em cada caso, mas a plenitude da restituição exigida quando a culpa é provada, ecoando a exigência de múltiplos pagamentos em Êxodo 22 e lembrando que, cedo ou tarde, “tudo o que há em sua casa” pode ser consumido pela necessidade de reparar (análise em AlHaTorah sobre Provérbios 6:31). Em paralelo, a mesma baraita mencionada em Tosefta Kifshutah sobre Bava Kamma 7:13 reaplica o versículo ao “ladrão” que se esgueira ao beit midrash: o “pagar sete vezes” se torna imagem de uma resposta desproporcionalmente abundante — aquele que, antes, só roubava migalhas de estudo, acaba, uma vez “descoberto” e acolhido, entregando toda a sua casa, todo o seu ser, à Torá. Nas duas leituras, o sete condensa totalidade: ou toda a casa é hipotecada para reparar um dano material, ou toda a vida é entregue para responder a uma fome espiritual; em ambos os casos, a tradição rabínica insiste em que não há roubo “barato”, nem na esfera econômica nem na espiritual, pois a verdade sempre cobra seu preço inteiro.
Provérbios 6:32
O que comete adultério com uma mulher não tem coração; destrói a sua alma. (Hb.: nōʾēp̄ ʾiššāh ḥăsar-lēḇ mašḥît napšô hûʾ yaʿăśennāh — “quem adultera com uma mulher é carente de coração; destrói a sua própria vida, ele o fará”). O particípio nōʾēp̄ (de nāʾap̄, “cometer adultério”) descreve o adúltero como tipo, não como ato isolado: é “o adulterante”, aquele cuja identidade se cola ao gesto. O complemento ʾiššāh (“uma mulher”) apontava, pela proximidade do contexto, para a esposa de outro, embora a forma permaneça genérica. A expressão ḥăsar-lēḇ (“desprovido de coração”), com ḥăsar (“faltar, carecer”) em construto, não fala de falta de sentimentos, mas de ausência de discernimento interior: “coração”, em Provérbios, é centro de entendimento e vontade, e aqui foi esvaziado. Em seguida, mašḥît napšô (“aquele que arruína a sua própria alma/vida”), com mašḥît como particípio Hifil de šāḥat (“destruir, corromper”), revela a autodestrutividade do pecado: o adúltero é, essencialmente, um sabotador de si mesmo. A frase se conclui com hûʾ yaʿăśennāh (“ele a fará”), reforço pronominal que aponta tanto para o ato quanto para a consequência: é ele mesmo quem opera essa ruína. Sintaticamente, o versículo monta uma série de equivalências: quem adultera = carente de coração = destruidor de si; o sujeito e o objeto da violência coincidem. Exegesicamente, o contraste com o ladrão faminto se acende: este rouba para “encher a alma” de pão; o adúltero, para encher o coração de prazer, esvazia o próprio coração e fere a própria alma. A sabedoria denuncia aqui não um erro de cálculo qualquer, mas uma espécie de suicídio moral.
Na literatura rabínica, essa frase torna-se quase um termo técnico: em Sanhedrin 38a — tal como explicado em Steinsaltz sobre Sanhedrin 38a:17 e resumido em esta folha de estudo — discute-se o versículo de Provérbios 9:4, “quem é simples, volte-se para cá; ao que é ḥăsar-lēḇ (‘falta de coração’) ela disse”, e o texto atribui a Deus a pergunta: “quem enganou o homem para isto?”, respondendo: “a mulher o persuadiu a pecar”; o “falta de coração” de Provérbios 9 é, então, ancorado em Provérbios 6:32: aquele que é seduzido por uma mulher a transgredir é chamado ḥăsar lēḇ, e seu adultério é símbolo do engano primordial. Em coleções posteriores de midraxe, como o Yalkut Shimʿoni sobre Mishlei (citado, por exemplo, em discussões sobre liderança em Hidabroot), o versículo serve de alavanca para criticar qualquer uso da autoridade que se assemelhe ao adultério: assim como o adúltero “goza o corpo da mulher” sem assumir responsabilidade, o líder que usa seu cargo para benefício próprio é chamado de ḥăsar lēḇ, alguém que perdeu o centro moral. O fio é o mesmo: faltar “coração” não é apenas carecer de inteligência, mas ter rompido o eixo interno que liga desejo, responsabilidade e temor de Deus, de modo que o ato sensual se converte num tipo de automutilação da alma.
Provérbios 6:33
Encontrará castigo e vergonha, e o seu opróbrio não será apagado. (Hb.: negaʿ wĕqālôn yimṣāʾ wĕḥerpātô lōʾ timmāḥeh — “ferida e desonra achará, e a sua afronta não será apagada”. Negaʿ (“golpe, chaga, ferida”), substantivo que pode designar tanto uma pancada física quanto marca de praga, abre o versículo com peso concreto: o adultério deixa marcas que doem, visíveis ou invisíveis. Qālôn (“desonra, vergonha”) junta-se a essa ferida com o vav conjuntivo, formando um par de consequências: dano físico/social e humilhação pública. O verbo yimṣāʾ (Qal imperfeito de māṣāʾ, “achar, encontrar”) apresenta essas realidades como encontro inevitável; não é se, mas quando. A segunda metade traz wĕḥerpātô (“e a sua afronta, sua vergonha insultante”), termo ainda mais forte que qālôn, e o veredito lōʾ timmāḥeh (“não será apagada”), Nifal imperfeito de māḥâ (“apagar, deletar”), verbo usado, por exemplo, para apagar nomes ou pecados. O paralelismo reforça o caráter duradouro das consequências: de um lado, ferida e desonra que ele “encontra” na vida; de outro, um estigma que não se apaga facilmente na memória da comunidade. A sabedoria não está negando perdão divino — a teologia bíblica conhece restauração para adúlteros penitentes —, mas sublinhando a dimensão irreversível de muitos efeitos: o casamento ferido, a confiança quebrada, os olhares que mudam, as cicatrizes que permanecem. A frase “não será apagada” soa como aviso para quem trata o adultério como aventura sem rastros.
O hebraico negaʿ sugere tanto uma pancada quanto uma chaga, e a tradição rabínica explora essa ambivalência: o adúltero carrega, ao mesmo tempo, marcas físicas e um estigma social que não se dissolve. Em Midrash Mishlei sobre este trecho, “ferida e vergonha” são lidas como dupla consequência que se estende até o juízo futuro: a ferida é o sofrimento aqui e agora, a vergonha é a memória do pecado que o acompanha ao tribunal celeste, onde, diz o midraxe, não há esquecimento nem apagamento automático; quem comete esse tipo de transgressão não pode contar com a mesma rapidez de perdão que se vê para outras faltas, porque o dano é profundo e atinge alianças múltiplas — o próprio corpo, o cônjuge traído, a família, a comunidade e o Nome que tudo envolve (Midrash Mishlei 6:32–33, em resumo, em Open Commentaries; cf. a análise do termo negaʿ em comentário lexical). O provérbio, sob essa lente, torna-se uma advertência contra a ilusão de que o tempo cura tudo: há feridas que o tempo apenas torna mais visíveis, porque inscrevem o pecado na memória coletiva e, no vocabulário midráshico, permanecem abertas até que a pessoa se volte radicalmente, como quem troca de pele.
Provérbios 6:34
Porque o ciúme é a fúria do homem (Hb.: kî qinʾāh ḥămat-gāḇer — “porque o ciúme é o furor de um homem”). A conjunção kî (“porque”) explica por que o opróbrio permanece e por que as consequências são tão graves: há um terceiro personagem em cena, o marido traído. Qinʾāh (“ciúme, zelo, ardor possessivo”) é substantivo que pode designar tanto o zelo de Deus quanto o ciúme humano; aqui, pelo contexto, trata-se do sentimento do esposo. Ḥămat (“ira, furor, calor”) vem de raiz ligada a calor ardente e combina-se em construto com gāḇer (“homem, varão forte”), formando a expressão “furor de homem”. Sintaticamente, temos uma equação nominal: o ciúme (do marido) não é emoção leve, é a própria forma que assume o furor no coração masculino ferido. O texto reconhece com realismo a psicologia do esposo ofendido: o adultério não só o humilha socialmente, mas fere seu zelo pela aliança, acendendo nele uma mistura de vergonha, raiva, desejo de reparação que pode extravasar em violência. A sabedoria não justifica toda reação, mas adverte o potencial destrutivo dessa fúria, sublinhando que quem entra com leviandade na casa alheia desperta forças que talvez não consiga depois conter.
...e ele não poupa ninguém no dia da vingança. (Hb.: wĕlōʾ yaḥmōl bĕyôm nāqām — “e não poupará no dia da vingança”). O verbo yaḥmōl (Qal imperfeito de ḥāmal, “poupar, ter compaixão”) vem negado por lōʾ: não haverá piedade. Bĕyôm nāqām (“no dia de vingança”) evoca o momento em que o marido traído, ou sua família, agem para reparar a honra ferida, num contexto em que leis e costumes podiam tolerar ou mesmo esperar reação dura. A frase completa a explicação iniciada pelo kî: ciúme → furor → ausência de misericórdia no momento em que a situação eclode. O provérbio pinta um quadro sóbrio: o adúltero não controla as consequências, principalmente as humanas; uma vez exposta a traição, o “dia da vingança” pode vir de forma imprevisível, com ausência de moderação. Ao advertir disso, a sabedoria não recomenda linchamentos, mas mostra ao potencial adúltero que ele está acendendo dinamites afetivas e sociais que podem explodir sobre sua cabeça.
Provérbios 6:35
Ele não aceita a aparência de qualquer expiação (Hb.: lōʾ yiśśāʾ pĕnê kāl-kōper — “ele não levantará o rosto de nenhum resgate”). O pronome implícito continua sendo o marido ofendido. Yiśśāʾ pĕnê (“levantar o rosto”) é expressão idiomática para “aceitar favoravelmente, olhar com agrado”; aqui aparece negada por lōʾ, indicando recusa total. Kāl-kōper (“qualquer resgate/expiação”), com kōper da raiz k-p-r (“cobrir, expiar, pagar resgate”), abrange qualquer tentativa de compensar financeiramente o dano. A estrutura “não aceitar rosto de nenhum kōper” apresenta o quadro jurídico invertido: onde se esperaria que um resgate pudesse aplacar a ira, aqui ele é recusado de antemão. Exegesicamente, o texto ressalta o caráter qualitativo do adultério: não é um prejuízo meramente patrimonial, compensável com dinheiro; é golpe na honra, na confiança, na própria estrutura da aliança matrimonial. O marido não consegue “levantar o rosto”, isto é, abrandar o semblante, simplesmente porque recebeu um valor monetário.
...sim, ele não consente, ainda que multipliques subornos! (Hb.: wĕlōʾ yōʾbeh kî tarbeh šōḥaḏ — “e não estará disposto, ainda que multipliques suborno/presente”). O verbo yōʾbeh (Qal imperfeito de ʾābah, “querer, consentir”) reforça a negativa da disposição interna: não se trata só de recusar formalmente, ele não quer mesmo. A conjunção kî em valor concessivo, seguida de tarbeh (Hifil imperfeito 2ª masc. sing. de rāḇâ, “multiplicar”), projeta a cena em que o adúltero — ou sua família — tenta repetir ofertas, aumentar quantias, insistir em pagamentos. Šōḥaḏ (“suborno, presente para influenciar decisão”) é termo que, em outros contextos, designa aquilo que corrompe o juiz; aqui, mesmo esse tipo de presente é ineficaz. O paralelismo reforça a dupla negação: não aceita resgate, não consente, ainda que tu multipliques dádivas. O provérbio fecha o parágrafo com uma espécie de veredito final: não há “jeitinho” para o adultério. O homem que entra na mulher do próximo não só fere a Deus e a própria alma, como rompe algo que nem todo o ouro do mundo recompõe; o esposo traído, representando aqui a honra ferida, é figura de uma realidade ainda mais funda — certas transgressões não se resolvem por barganha, só por arrependimento profundo e graça imerecida, e mesmo assim, no plano humano, muitas cicatrizes permanecem.
A voz imediata é a do marido que não se deixa comprar: nenhuma soma, nenhuma compensação financeira pode “levantar o rosto” (isto é, mudar o semblante) de quem foi traído; o dano ultrapassa o campo das coisas compráveis. Midrash Mishlei prolonga essa imagem para o tribunal divino: depois de falar do ciúme como furor do homem e do “dia da vingança”, o texto aplica “não aceitará qualquer kōfer (resgate)” ao próprio Deus, sublinhando que há situações em que nem sacrifícios, nem esmolas, nem méritos acumulados funcionam como propina espiritual; diante de certos pecados — e o adultério é escolhido como paradigma —, a única resposta possível é uma tëshuvá tão radical quanto a traição foi profunda (Midrash Mishlei 6:34–35, resumo em Open Commentaries; cf. o uso de kōfer e šōḥaḏ em contextos de suborno em Miqueias 3:11 e Isaías 1:23). A literatura rabínica gosta de frisar que, se até um marido humano é retratado como alguém que não “aceita resgate” nem “quer suborno”, seria blasfemo imaginar que o Juiz de toda a terra possa ser comprado — por sacrifícios vazios, por caridade interessada ou por orações que não nascem de coração quebrantado; por trás da figura do esposo ofendido, o provérbio deixa entrever um Deus que não vende perdão como mercadoria, mas o concede onde há um retorno verdadeiro, que não mascara a ferida, mas a expõe para ser curada.
II. Devocional de Provérbios 6
Provérbios 6 é um tesouro de sabedoria prática e admoestações diretas, que, embora escritas há milênios, ressoam profundamente com os desafios da vida contemporânea. Podemos dividir este capítulo em três blocos principais, cada um oferecendo lições valiosas para diversas esferas da nossa existência.A. Provérbios 6:1-11 (A Armadilha da Insegurança e da Preguiça)
Este segmento inicial do capítulo serve como um alerta duplo: primeiro, sobre os perigos de assumir dívidas alheias ou ser fiador sem cautela (Pv 6:1-5), e segundo, sobre a indolência e a preguiça que levam à pobreza e à ruína (Pv 6:6-11). A sabedoria aqui não é apenas sobre finanças, mas sobre o compromisso com a palavra dada e a diligência no trabalho. O exemplo da formiga (Pv 6:6-8), que trabalha incansavelmente sem supervisão, é um contraste direto com o preguiçoso que adia o trabalho e se entrega ao sono, resultando em pobreza inevitável.
Aplicação: A responsabilidade financeira e a diligência são reflexos da mordomia dos recursos e do tempo que Deus nos confia. Ser fiador impensadamente pode nos levar a quebrar a confiança ou a negligenciar nossas próprias responsabilidades, algo que a Bíblia consistentemente condena (cf. Romanos 13:8). A preguiça, por sua vez, é um impedimento ao serviço a Deus e ao próximo. Como cristãos, somos chamados a trabalhar com afinco (Colossenses 3:23) e a ser previdentes, como a formiga, confiando que Deus abençoará nosso esforço.
Assumir compromissos com sabedoria, evitando dívidas desnecessárias ou fianças irresponsáveis, é um sinal de maturidade. Um filho diligente contribui para o bem-estar da família, e um cidadão trabalhador contribui para a prosperidade da sociedade. A parábola dos talentos em Mateus 25:14-30 elogia a diligência e condena a inatividade.
O exemplo da formiga é um manual para qualquer funcionário. Trabalhar sem necessidade de constante supervisão, ser proativo, planejar e executar suas tarefas com dedicação são qualidades que Provérbios exalta. Um funcionário assim é um recurso valioso para qualquer organização, refletindo um caráter íntegro.
B. Provérbios 6:12-19 (O Caráter Perverso e o Ódio Divino)
Este segmento apresenta uma das passagens mais vívidas e impactantes do capítulo: a descrição do homem inútil e perverso e as sete coisas que o Senhor odeia. O homem perverso é caracterizado pela falsidade, pela linguagem distorcida e pela constante semeadura de discórdia (Pv 6:12-15). A lista das abominações do Senhor (Pv 6:16-19) – que inclui olhos altivos, língua mentirosa, derramamento de sangue inocente, coração que maquina o mal, pés que correm para o mal, falsa testemunha e o que semeia discórdia – revela os fundamentos do caráter que Deus detesta. Essas são as raízes da iniquidade que destroem relacionamentos e a própria sociedade.
Aplicação: Ser um cristão melhor significa buscar um caráter que reflita o de Cristo, que é amor e verdade. Devemos combater em nós mesmos o orgulho (olhos altivos), a mentira (língua mentirosa, falsa testemunha) e qualquer inclinação para o mal ou a discórdia. Tiago 3:16 nos lembra que "onde há inveja e ambição egoísta, aí há confusão e toda sorte de coisas ruins." A Bíblia nos chama a ser pacificadores (Mateus 5:9) e a amar nossos irmãos (1 João 4:7-8), promovendo a união em vez da divisão.
Ensinar nossos filhos a amar a verdade, a serem humildes, a resolver conflitos de forma pacífica e a valorizar a justiça são lições fundamentais baseadas neste texto. Ser um exemplo de integridade em palavras e ações é a melhor forma de educar.
A semente da discórdia é uma das coisas mais destrutivas para o corpo de Cristo. Um membro da igreja melhor se esforça para construir pontes, falar a verdade em amor e promover a unidade, evitando a fofoca e a calúnia que a lista condena. Efésios 4:3 exorta a "manter a unidade do Espírito pelo vínculo da paz".
A lista das sete abominações é um guia para a ética cívica. Um cidadão que evita a mentira, a injustiça, a violência e a discórdia contribui para uma sociedade mais justa e pacífica. Imagine uma sociedade onde a verdade e a justiça prevalecessem sobre a falsidade e a violência – é o ideal proposto por Provérbios.
C. Provérbios 6:20-35 (A Destrutividade do Adultério)
A parte final do capítulo 6 retorna a uma das admoestações mais frequentes de Provérbios: a advertência contra o adultério e a sedução da mulher imoral. O texto começa exaltando a importância de guardar os mandamentos dos pais como uma lâmpada e um guia que protege o indivíduo de tais perigos (Pv 6:20-23). Em seguida, ele descreve a sedução da mulher adúltera e compara o ato de se envolver com ela a brincar com fogo, que inevitavelmente traz destruição (Pv 6:24-29). A infidelidade é apresentada como um crime mais grave que o roubo, pois, enquanto o ladrão pode restituir e talvez ser perdoado, o adúltero destrói a si mesmo, sua reputação e a paz de sua família, enfrentando a fúria implacável do marido traído, que não aceita compensação (Pv 6:30-35).
Aplicação: A pureza sexual e a fidelidade conjugal são pilares da vida cristã. Jesus elevou o padrão, ensinando que mesmo a cobiça no coração é pecado (Mateus 5:28). Para um cristão melhor, esta passagem é um lembrete vívido da seriedade do pecado sexual e suas consequências devastadoras não apenas para si mesmo, mas para a família, a comunidade e a relação com Deus. Devemos fugir da tentação e honrar o casamento, que é uma instituição divina (Hebreus 13:4).
Honrar os pais também significa seguir seus conselhos e ensinamentos sobre moralidade e pureza. Um filho que internaliza esses valores estará mais apto a resistir às tentações e a fazer escolhas que protejam seu futuro e sua família.
Este bloco oferece um imperativo claro para educar os filhos sobre os perigos da imoralidade sexual. Isso implica conversas abertas, o estabelecimento de limites claros e, acima de tudo, o exemplo de uma vida de fidelidade e pureza dentro do casamento. Ensinar sobre as consequências do adultério, como a vergonha e a desonra sem perdão, é vital.
A estabilidade familiar e a fidelidade são fundamentais para a saúde de uma sociedade. O adultério, ao quebrar laços e gerar discórdia e violência (como a fúria do marido ciumento), mina os alicerces da comunidade. Um cidadão que preza pela fidelidade contribui para a estabilidade e a confiança nas relações humanas.
Provérbios 6, em sua crueza e sabedoria direta, nos chama a uma vida de responsabilidade, diligência, integridade e pureza. Suas lições são atemporais, oferecendo um guia prático para uma vida que agrada a Deus e promove o bem-estar em todas as nossas esferas de relacionamento.
III. A Septuaginta e o Texto Hebraico
O texto hebraico de Provérbios 6:1–5 desenha uma cena econômico-jurídica bem concreta. O pai fala ao filho: “meu filho, se te fizeste fiador para o teu próximo, se apertaste a tua palma por um estranho” (bənî ’im ‘āravtā lə-rē‘ekā, tāqa‘tā la-zār kappêkā). O verbo ‘āravtā (“fizeste-te fiador”) e o gesto de “bater mãos” (tāqa‘tā) descrevem o ato formal de assumir responsabilidade pela dívida alheia, gesto bem conhecido no Antigo Oriente como selar um compromisso de crédito. O paralelismo “teu próximo” / “estranho” indica que o beneficiário é alguém próximo, mas o credor é uma figura externa, de outro círculo social. Em seguida, o versículo 2 insiste que essa situação se cria pelos próprios lábios do devedor solidário: “foste enlaçado pelas palavras da tua boca, foste apanhado pelas palavras da tua boca” (noqashtā be-’imrê fîkā, nilkaḏtā be-’imrê fîkā). O hebraico acumula dois verbos de captura e repete “palavras da tua boca” para martelar a ideia de que o laço é auto-imposto: é a palavra que te ata. A partir do versículo 3, vêm os imperativos: “faz, pois, isto, filho meu, e livra-te, pois vieste à palma do teu próximo; vai, humilha-te, e importuna o teu próximo” (‘ăsê zō’t ’ēp̄ō’ bənî wə-hinnāṣēl, kî bā’tā be-kap̄ rē‘ekā; lēḵ hitrap̄ēs û-rəhab rē‘ekā). Os dois verbos raros, hitrap̄ēs e rəhab, são o ponto mais obscuro do hebraico: a maioria dos intérpretes entende o primeiro como “prostrar-te, humilhar-te” diante do credor, e o segundo como “instar, pressionar energicamente” o amigo para sair do enrosco. Os versículos 4 e 5 intensificam o drama com imagens de urgência e caça: “não dês sono aos teus olhos, nem torpor às tuas pálpebras; livra-te como gazela da mão e como ave da mão do passarinheiro” (’al tittēn šēnā lə-‘ênêkā û-tenûmā la-‘ap‘appêkā; hinnāṣēl ki-ṣəḇî mi-yād wə-kə-ṣippōr mi-yad yāqōš). A “mão” aqui é a mão do credor-caçador; o fiador é caça viva presa na mão de outro.
O texto grego da LXX segue a mesma linha narrativa, mas com uma interpretação muito marcada. Em 6:1 lemos: “filho, se te fizeres fiador do teu amigo, entregarás a tua mão a um inimigo” (huie, ean engyēsē son philon, paradōseis sēn cheira echthrō). Em vez de “próximo” / “estranho”, a LXX fala de “amigo” (philos) e “inimigo” (echthros). O tradutor percebe o contraste hebraico entre o beneficiário próximo e o credor de fora, mas radicaliza: o “estranho” torna-se “inimigo”, e o gesto de bater mãos se torna uma verdadeira “entrega” da mão. Em 6:2, ele explicita o mecanismo que o hebraico deixava mais implícito: “porque forte armadilha para o homem são os seus próprios lábios, e ele é apanhado pelos lábios da sua própria boca” (pagis gar ischyra andri ta idia cheilē, kai halisketai cheilesin idiou stomatos). Onde o hebraico dizia apenas “enlaçado” e “apanhado” pelas palavras, o grego nomeia o objeto: “armadilha”, e identifica explicitamente a armadilha com os “próprios lábios” do homem.
No versículo 3, o grego mostra bem como o tradutor está lendo os dois verbos difíceis do hebraico. A LXX traz: “faz, filho, o que eu te ordeno e salva-te, pois vieste às mãos de homens maus por causa do teu amigo; não desanimes, mas estimula também o teu amigo, por quem te fizeste fiador” (poiei, huie, ha egō soi entellomai, kai sōzou; hēkeis gar eis cheiras kakōn dia son philon; isthi mē eklyomenos, paroxune de kai ton philon sou hon enegyēsō). Em vez de “vieres à palma do teu próximo”, o tradutor entende que o fiador caiu “nas mãos de homens maus”, pluralizando e moralizando a figura do credor como um grupo de “maus” (kakoi). O conselho hebraico “vai, humilha-te, e importuna o teu próximo” é interpretado em duas linhas diferentes: primeiro, “não desanimes” (isthi mē eklyomenos), depois, “estimula o teu amigo” (paroxune de kai ton philon sou). Wolters observa que a lição manuscrita isthi mē egluomenos / eklyomenos (“não fiques desfalecido”) muito provavelmente é uma corrupção interna de ithi (“vai”), que reproduziria mais diretamente o imperativo hebraico lēḵ (“vai”). Ele nota que a correção para ithi já aparece na edição de Grabe e foi adotada por Rahlfs, e que o paralelo com o imperativo “vai” em 6:6 reforça essa reconstrução. Assim, a crítica textual da LXX confirma que o tradutor provavelmente procurou conservar o impulso do hebraico: o movimento urgente de ir ao encontro do credor para resolver o laço, mesmo que a tradição manuscrita posterior tenha deslizado para um “não desanimes” mais psicológico (WOLTERS, Proverbs: A Commentary Based on Paroimiai in Codex Vaticanus, 2020, p. 147–148).
O segundo verbo obscuro de 6:3, rəhab rē‘ekā, é interpretado por paroxune de kai ton philon sou na LXX. Wolters insiste que paroxynō em LXX normalmente significa “provocar” em sentido negativo, mas aqui (e em Provérbios 27:17) aparece no seu sentido primário positivo de “estimular”, “espicaçar”, “incitar” alguém, como quem cutuca o amigo para que se mexa. Essa leitura encaixa bem na lógica hebraica de “importunar” o amigo até ser solto da obrigação; traduções que preferem “importunar” ou “desafiar” perdem essa nuance de impulso para a ação em benefício da própria libertação, que o grego deixa mais nítida (WOLTERS, 2020, p. 148). O verbo enegyēsō é identificado por Wolters como um aoristo irregular de engyāō (“tornar-se fiador”), atestado em alguns autores gregos; copistas posteriores tentaram “corrigir” para enenggyēsō como se houvesse um verbo enenggyāō não atestado, mostrando que o tradutor trabalha com um vocabulário técnico de fiança que não era trivial nem para os próprios escribas gregos. Esse detalhe filológico reforça que a LXX lê Provérbios 6:1–5 como uma instrução jurídica muito específica, e não apenas como uma metáfora espiritual vaga.
Nos versículos 4 e 5, hebraico e grego convergem quase literalmente, mas com uma pequena inflexão que ajuda a visualizar a imagem. O hebraico diz: “não dês sono aos teus olhos, nem torpor às tuas pálpebras; livra-te como gazela da mão e como ave da mão do passarinheiro”. A LXX repete: “não dês sono aos teus olhos, nem sonolência às tuas pálpebras; para que sejas salvo como gazela fora do laço e como ave fora da armadilha” (mē hypnō dōis tous ophthalmous sou, mēde nystagmon tois blepharois sou; hina sōthēs hōsper dorkas ek pharas kai hōsper orneon ek pagidos). O tradutor substitui a “mão” pela “armadilha”, explicando a metáfora hebraica: a “mão” do passarinheiro é a rede, o laço. Ao mesmo tempo, a partícula hina sōthēs (“para que sejas salvo”) torna explícito o propósito que no hebraico está implícito na forma imperativa de hinnāṣēl.
Em termos de convergência, os dois textos estão em plena sintonia quanto à estrutura fundamental: há uma protase condicional (“se te fizeste fiador”), um comentário sobre o enlaçamento pelos próprios lábios e uma série de imperativos urgentes que conclamam o filho a agir imediatamente para sair da situação. O hebraico é mais compacto e alusivo, deixando muito nas mãos da tradição jurídica do ouvinte; o grego, ao traduzir, faz escolhas interpretativas que esclarecem essa prática. Quando ele troca “estranho” por “inimigo”, não está negando a base hebraica, mas explicitando o juízo do sábio: assumir dívida alheia diante de um credor externo é, na prática, pôr-se nas mãos de alguém que pode agir como inimigo. Quando ele fala em “homens maus” em vez de “palma do teu próximo”, agrega uma leitura ética da figura do credor, tornando ainda mais nítida a loucura de arriscar a própria liberdade nessa rede de relações econômicas.
As divergências, por sua vez, mostram a mão do tradutor e a recepção antiga desse provérbio. O hebraico mantém o “próximo” como figura ambígua, ao mesmo tempo irmão de aliança e protagonista da negociação; já o grego o separa em “amigo” (quem recebe o benefício da fiança) e “inimigo” ou “maus” (quem empresta), intensificando a assimetria moral. Isso torna o cenário mais dramático: por causa da lealdade para com o amigo, o filho entrou numa relação de sujeição com um adversário perigoso. Em 6:2, o hebraico repete “palavras da tua boca” quase de forma martelada; o grego desloca o peso da sentença para o conceito “forte armadilha”, em que “os próprios lábios” são a armadilha em si. A imagem é mais pedagógica, quase como se o tradutor pensasse em um aluno que precisa visualizar a boca como “armadilha” para nunca prometer levianamente. Em 6:3, a LXX toma uma posição clara nos pontos exegéticos difíceis: o hebraico “vai, humilha-te, e importuna o teu próximo” podia ser entendido de formas diferentes; o grego, sobretudo quando reconstruímos ithi (“vai”) no lugar de isthi (“sê”), mostra que o tradutor entende essa dupla ação como um movimento ativo de ir ao encontro do problema e pressionar o amigo a resolver a situação. A leitura de paroxynō como “estimular” o amigo reorienta o foco: não é humilhar-se passivamente, mas agir de modo humilde e vigoroso ao mesmo tempo, até a dívida ser resolvida.
É precisamente nesses pontos que a LXX ajuda a clarificar o hebraico, sem deixar de introduzir sua própria teologia da prudência. Ao usar o verbo técnico engyēsē para “tornar-se fiador”, ela confirma que se trata de responsabilidade legal por dívida, e não de uma mera “simpatia” pelo outro. Ao escolher termos como pagis ischyra (“armadilha forte”) e ao associar a “mão” à “armadilha” explícita, ela torna visível o perigo oculto por trás de um gesto aparentemente generoso. Ao reconstruirmos, com Wolters, o provável ithi (“vai”) onde os manuscritos transmitem isthi (“sê”), percebemos que o tradutor buscava seguir de perto o comando hebraico lēḵ, deixando a tradição manuscrita posterior responsável pelas confusões entre os imperativos de eimi (“ser”) e eimi (“ir”). E, ao ler rəhab rē‘ekā como “estimula o teu amigo” por meio de paroxynō, ele reforça o aspecto relacional: o fiador não é apenas vítima; também tem o dever de confrontar o amigo devedor, porque sua própria vida está em jogo.
Sobre o fundo do hebraico, a LXX funciona, assim, como um comentário antigo em forma de tradução: intensifica o risco, moraliza o credor, explicita a armadilha da palavra e desenha, com verbos técnicos e imagens de caça, o caminho para escapar de uma cadeia de crédito que, se não for quebrada a tempo, transforma o fiador em presa.
A. A cena comum: preguiçoso, formiga e abelha entre o hebraico e o grego
O hebraico de Provérbios 6:6–11 constrói uma pequena parábola do preguiçoso em duas cenas: primeiro, o convite a contemplar a formiga, depois a descrição do “pouco sono” que acaba abrindo a porta à pobreza. A sequência hebraica é clara: lēḵ ʾel-nĕmālāh ʿāṣēl, rəʾeh dĕrāḵêhā waḥăkām — “vai à formiga, preguiçoso, contempla os seus caminhos e torna-te sábio”); em seguida, a ausência de chefes (“ʾăšer ʾēn-lāh qāṣîn šōṭēr ûmōšēl”), a preparação do pão no verão e a colheita no tempo certo, e por fim o crescendo irônico: “um pouco de sono… um pouco de cruzar os braços… e a tua pobreza virá como um salteador, e tua carência como um homem armado” (ûḇāʾ kimhallēḵ rēʾšekā ûmaḥsōrĕḵā kĕʾîš māgēn).
A versão grega (LXX) mantém essa estrutura básica, mas a expande e a interpreta. O convite torna-se: “ithi pros ton myrmēka, ō oknērē, kai zēlōson idōn tas hodous autou kai genou ekeinou sophōteros” — “vai ao formigueiro, ó preguiçoso, e, vendo os caminhos dele, emula-os e torna-te mais sábio do que ele”. Logo depois, o tradutor acrescenta um longo parêntese sobre a abelha, inexistente no hebraico, e fecha o quadro com uma imagem mais desenvolvida da chegada da pobreza, que “se aproxima como mau caminhante” e na sequência é contraposta a uma colheita abundante caso o leitor se torne diligente. É aqui que o comentário de Wolters se torna decisivo para mostrar, verso a verso, onde o grego apenas reflete o hebraico e onde ele efetivamente expande e clarifica o sentido (WOLTERS, Proverbs: A Commentary Based on Paroimiai in Codex Vaticanus, 2020, p. 148–151).
B. “Vai” ou “sê com” a formiga? (6:6–7)
O hebraico começa com um imperativo de movimento: lēḵ (“vai”), que supõe deslocamento e observação ativa. A LXX lê ithi pros ton myrmēka — “vai ao formigueiro”, de novo com um verbo de ir, mas Wolters mostra que o códice Vaticano B, em sua primeira mão, trazia “isthi pros ton myrmēka” (“sê junto da formiga”) (WOLTERS, 2020, p. 148). Ele observa que esse “isthi” é provavelmente uma assimilação interna ao grego influenciada pelo “ἴσθι μὴ ἐγλυόμενος” de 6:3, não um reflexo autêntico do Antigo Grego: mais tarde, um corretor de B ajustou para “ἴθι”, alinhando novamente o texto com o hebraico “לֵךְ”.
Wolters discute se o tradutor poderia ter escrito “ἴσθι” pensando no verbo εἶμι (“ir”) em vez de εἰμί (“ser”), como sugere a questão de Rahlfs: “scripsitne interpres ισθι, non discernens εἶμι et εἰμί?”; ele rejeita essa hipótese por falta de paralelos seguros da forma “ἴσθι” como imperativo de εἶμι em outros contextos e lembra que a construção εἰμί + πρός + acusativo é bem atestada, como em “ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν” (ho logos ēn pros ton theon) em João 1:1 (WOLTERS, 2020, p. 149). Nesse nível, o grego abre duas possibilidades: ler “seja com a formiga” como uma espécie de convite a conviver e aprender por convivência, ou restaurar “vai” como movimento físico. Wolters considera “ἴθι” o texto mais antigo e coerente com o MT, mas o fato de “ἴσθι” funcionar bem sintaticamente embute uma nuance hermenêutica preciosa: não apenas “vai olhar”, mas “fica com ela”, permanece o suficiente para que o hábito laborioso dessa criatura se torne escola de sabedoria.
Na sequência, a LXX desenvolve o predicado hebraico “rəʾeh dĕrāḵêhā waḥăkām” (“vê os seus caminhos e torna-te sábio”) com o imperativo “zēlōson idōn tas hodous autou” ( — “emula, vendo, os seus caminhos”). Wolters insiste que “hodous” é objeto tanto de “zēlōson” quanto de “idōn”, e não um uso absoluto de “zēlōson”, como sugerem alguns léxicos (WOLTERS, 2020, p. 149). Por isso ele rejeita a tradução de NETS (“observe com zelo”) e defende o sentido “emular”, confirmado também por Fox: o grego explicita o que o hebraico deixa implicado, a saber, que contemplar os caminhos da formiga não é apenas contemplação contemplativa, mas contemplação imitativa. Isso enriquece a semântica do hebraico: a sabedoria aqui não é mera gnose; é imitação de um padrão de ação.
No v. 7, o hebraico insiste que a formiga trabalha “sem ter chefe, comissário ou governante” (ʾăšer ʾēn-lāh qāṣîn šōṭēr ûmōšēl), sublinhando a ausência de estrutura hierárquica de comando. A LXX reescreve: “ekeinō gar geōrgiou mē hyparchontos, mēde ton anankazonta echōn, mēde hypo despotēn ōn”. Em vez de “chefe e inspetor”, o foco desloca-se para a ausência de propriedade agrícola (“sem ter campo”) e de qualquer figura que a constranja (“nem tendo alguém que a force, nem estando sob um senhor”). Wolters nota que a sequência grega é um anacoluto: o tradutor continua a frase como se o membro anterior tivesse sido “ἐκεῖνος γὰρ γεώργιον μὴ ἔχων” (nominativo) e não “ἐκείνῳ γὰρ γεωργίου μὴ ὑπάρχοντος” (dativo + genitivo) e alerta contra explicá-la como “atração inversa” de pronome relativo, pois não há relativo algum no contexto (WOLTERS, 2020, p. 149). Do ponto de vista do sentido, porém, o anacoluto não atrapalha: a formiga permanece paradigma de ação sem coerção, e o grego explicita a dimensão de liberdade interna que o hebraico só sugere com a ausência de autoridades formais.
C. A colheita da formiga e a ampliação com a abelha (6:8 e 6:8a–c)
O hebraico afirma que a formiga “prepara seu pão no verão e ajunta seu alimento na colheita” (tāḵîn baqqayiṣ laḥmāh; ʾāgĕrā baqqāṣîr maʾăḵālāh). A LXX oferece: “hetoimazetai therous tēn trophēn, pollēn te en tō amētō poieitai tēn parathesin”. Wolters detém-se nesse “pollēn... tēn parathesin” (WOLTERS, 2020, p. 149–150). O verbo no médio, seguido de um substantivo verbal (“parathesin”), funciona como perífrase para o verbo simples: “ποιεῖται τὴν παράθεσιν” equivale a “parathesin”, “põe de lado”, “armazena”, como mostram paralelos em 6:8a, 26:6 e 29:13. Em termos de exegese, isso esclarece o hebraico ʾāgĕrā (“ajunta, estoca”): o grego não perdeu a ideia de armazenamento; ao contrário, reforça-a com um termo técnico de “depósito” (παράθεσις).
Wolters observa ainda que “pollēn” está em posição predicativa, o que levou NETS a traduzir “torna abundante a sua provisão”, como se o foco fosse a abundância do efeito mais do que o volume do estoque. Ele argumenta, porém, que em grego posterior polýs às vezes aparece em posição predicativa mantendo função atributiva (como em “ὁ ὄχλος πολύς” em João 12:9.12, paralelo a “ὁ πολὺς ὄχλος” em Marcos 12:37) e conclui que aqui a ideia mais natural é “um grande depósito” (WOLTERS, 2020, p. 150). Essa análise faz o grego expandir o hebraico: não apenas “ajuntar”, mas ajuntar “muito”, com um eco de fartura que o texto massorético não marca explicitamente.
Em seguida, a LXX introduz um bloco sem paralelo hebraico, o elogio da abelha (6:8a–c): “ἢ πορεύθητι πρὸς τὴν μέλισσαν…”, convidando o leitor a ir também a esse outro pequeno paradigma de labor. Wolters enfatiza duas singularidades: trata-se de uma das raras avaliações positivas da abelha na Bíblia, pois em outros textos (Deuteronômio 1:44; Salmos 118:12; Isaías 7:18) ela aparece como figura ameaçadora, e é uma adição extensa, sem nenhuma correspondência na tradição hebraica (WOLTERS, 2020, p. 150). Ele discute a hipótese de Gerleman de que esse trecho dependeria de Aristóteles (Historia animalium 622b; 627a), onde as abelhas são chamadas de “ἐργάτις”, e mostra, com apoio de van der Louw, que essa conexão direta é improvável: em Aristóteles, a seção sobre a abelha vem logo após a da aranha (não da formiga), e o adjetivo “ἐργάτις” qualifica um tipo de abelha menor, não a espécie como um todo (WOLTERS, 2020, p. 150). Além disso, a justaposição de formigas e abelhas como animais laboriosos é um topos difundido na literatura grega, o que torna desnecessária a hipótese de empréstimo pontual.
Em vez de buscar uma fonte filosófica única, Wolters vê aqui a criatividade sapiencial do tradutor grego ampliando a parábola original. Ele menciona que van der Louw sugeriu uma reminiscência de um título faraônico (“ele do junco e da abelha”), mas considera essa sugestão ainda mais especulativa do que o suposto eco aristotélico, concordando com Fox que o texto de Provérbios não atribui à abelha qualquer traço régio (WOLTERS, 2020, p. 150–151). No mínimo, o grego oferece um segundo espelho ao preguiçoso: se a formiga mostra a organização silenciosa, a abelha expõe uma economia simbólica em que reis e plebeus se alimentam dos “trabalhos” dela.
Nos detalhes lexicais do elogio da abelha, Wolters explora o uso de “tēn te ergasian hōs semnēn poieitai” (“faz do seu trabalho algo respeitável”), observando de novo a construção com ποιέω + substantivo verbal (WOLTERS, 2020, p. 150). “ἐργασία” pode significar “trabalho” no sentido de atividade ou ofício, e “σεμνός” em Provérbios, tanto aqui quanto em 8:6 e 15:26, designa o que inspira respeito, o nobre, não “santo” em sentido cultual. Wolters rejeita a leitura de Foerster que carregaria o termo de tonalidade religiosa. Num ambiente cultural em que o labor manual muitas vezes era depreciado, a afirmação de que a ergasía da abelha é “semnḗ” é teologicamente aguda: o trabalho humilde pode ser coisa digna de honra.
Em “hēs tous ponous basileis kai idiōtai pros hygieian prospherontai”, Wolters mostra que “πόνοι” não são “esforços” abstratos, mas os produtos do trabalho, aquilo que reis e plebeus “consomem” (“prospherontai”) em função da saúde (WOLTERS, 2020, p. 151). Ele recusa traduções mais neutras como “usam”, insistindo no valor alimentar e medicinal do mel. Nota também a variação ortográfica entre “πρὸς ὑγίαν” e a forma corrigida “ὑγίειαν”, lembrando que a forma “ὑγεῖα” se torna padrão a partir do século II a.C. No final, o aoristo gnômico “proēchthē” (“foi promovida”) sugere que, por ter “honrado a sabedoria” em seu modo de trabalhar, a abelha foi ela mesma elevada em honra, numa espécie de reciprocidade moral: o que honra a Sabedoria é por ela honrado (WOLTERS, 2020, p. 151).
Tudo isso não altera diretamente o sentido do hebraico, mas o extrapola na mesma direção: o MT já convida a aprender do instinto criatural da formiga; o grego dobra o espelho com a abelha e explicita que a sabedoria econômica e o reconhecimento social (reis e plebeus que se alimentam do trabalho alheio) são parte do quadro pedagógico. Nesse ponto, a LXX não “corrige” o hebraico, mas o prolonga em meditação sapiente.
C. O retrato corporal da preguiça (6:9–10)
Os vv. 9–10 em hebraico interpelam frontalmente o preguiçoso: “ʿad-mātay ʿāṣēl tiškāḇ, mātay tāqûm miššĕnatēḵā” ( “até quando, preguiçoso, ficarás deitado? Quando te levantarás do teu sono?”) e a tríade irônica “um pouco de sono, um pouco de dormitar, um pouco de cruzar as mãos para deitar-se” (məʿaṭ šēnôt, məʿaṭ tĕnûmôt, məʿaṭ ḥibbûq yāḏayim liškāḇ). A LXX traduz com sensibilidade corporal acentuada: “heōs tinos, oknērē, katakeisai? pote de ex hypnou egerthēsē?” seguido de “oligon men hypnois, oligon de kathēsai, mikron de nystazeis, oligon de enankalizē chersi stēthē”.
Wolters destaca o verbo “κατάκεισαι” (katakeisai), cujo campo semântico inclui “jazer doente, ficar de cama” segundo LSJ, e remete a Provérbios 23:34 (WOLTERS, 2020, p. 151). Isso colore o preguiçoso com uma tonalidade quase patológica: não é só alguém que “dorme demais”, mas alguém que faz da cama sua morada natural, como um enfermo voluntário. O hebraico só indica “deitar-se”, mas o grego sugere uma condição crônica, dando mais corpo ao retrato moral.
No v. 10, a tríplice “pouca coisa” do hebraico é reproduzida com quatro pequenos gestos: dormir, ficar sentado, cochilar e, finalmente, “abraçar o peito com os braços” — “ἐναγκαλίζῃ χερσὶ στήθη” (enankalizē chersi stēthē). Wolters explica que “στήθη” no plural designa o “peito” em sentido singular, e que “χείρ” aqui significa “braço”; a imagem é de alguém com os braços cruzados sobre o peito, talvez na posição típica de dormir, talvez na posição de quem faz do próprio corpo uma espécie de casulo de inércia (WOLTERS, 2020, p. 151). Ele menciona que há uma nota em BG interpretando a expressão como um idiomatismo para “sem fazer qualquer trabalho”, mas considera isso improvável, preferindo a leitura concreta; o mesmo sintagma reaparece em 24:33, reforçando o tom proverbial.
Nessa parte, o grego ajuda a tornar visível aquilo que o hebraico já dizia, mas em traços mais rápidos: a preguiça não é apenas falta de decisão pontual, é um hábito corporal, um modo de habitar o espaço. O leitor é convocado a ver o preguiçoso quase como uma estátua em repouso, abraçado a si mesmo, e a sentir a tensão entre esse fechamento ensimesmado e a mobilidade diligente da formiga e da abelha.
D. A chegada da pobreza: viajante, corredor e colheita (6:11)
Por fim, o v. 11 hebraico descreve o resultado inevitável dessa vida amortecida: “ûḇāʾ kimhallēḵ rēʾšekā ûmaḥsōrĕḵā kĕʾîš māgēn” (“e virá a tua pobreza como um que anda vagando, e a tua necessidade como um homem armado”). O hebraico combina a ideia de um andarilho que se aproxima, sem avisar, com a de um guerreiro equipado: a falta começa furtiva, mas quando chega tem o peso de um ataque militar.
A LXX desenvolve essa imagem num duplo quadro e ainda acrescenta uma contrapartida positiva. Primeiro, “eit’ emparaginetai soi hōsper kakos hodoiporos hē penia kai hē endeia hōsper agathos dromeus”. Wolters observa que “emparaginetai” é um verbo composto raríssimo: não apenas é o único exemplo na LXX de Provérbios, mas, segundo seu levantamento, também não aparece em outros textos conhecidos, o que o leva a falar em possível cunhagem ad hoc do tradutor (WOLTERS, 2020, p. 151). A maior parte das traduções o entende como “vir sobre”, “sobrevir”, “chegar”, e é nessa linha que ele propõe “a pobreza te sobrevém”, como equivalente grego para o hebraico ûḇāʾ (“virá”). Ele critica a proposta de van der Louw (“de repente fica ao teu lado”), que introduz um advérbio (“de repente”) inexistente no grego e insinua que a pobreza, de algum modo, “apoia” a pessoa — algo estranho ao contexto.
Em seguida, Wolters discute a metáfora dupla “ὥσπερ κακὸς ὁδοιπόρος … ὥσπερ ἀγαθὸς δρομεύς”. Há uma tentação natural de ler “κακὸς ὁδοιπόρος” como “bandido de estrada” (e alguns léxicos modernos sugerem isso), mas ele lembra que não há apoio lexicográfico sólido para tal leitura: “ὁδοιπόρος” designa simplesmente “viajante, caminhante”, ligado ao verbo “ὁδοιπορέω”, equivalente a βαδίζω (“caminhar”) (WOLTERS, 2020, p. 151). A oposição parece antes contrastar o “mau caminhante” (talvez lento, cansado, errático) com o “bom corredor”, mas Wolters admite que o ponto preciso desse contraste permanece obscuro, sobretudo porque “πενία” e “ἔνδεια” são conceitos praticamente sinônimos. Em relação ao hebraico, o grego desloca a imagem: em vez de “vagabundo + homem armado”, temos “mau caminhante + bom corredor”. A ideia de inevitabilidade e de ameaça continua presente, mas o aspecto militar desaparece; em compensação, acentua-se a dinamização da miséria como algo que se aproxima no tempo — ora lenta, ora veloz.
A LXX acrescenta um membro não presente no MT: “ean de aoknos ēs, hēxei hōsper pēgē ho amētos sou, hē de endeia hōsper kakos dromeus apautomolēsei” (“mas, se fores diligente, a tua colheita virá como uma fonte e a carência desertará como mau corredor”). Aqui o tradutor transforma o provérbio numa estrutura condicional completa: as mesmas imagens de movimento que descreviam a vinda da pobreza são reaproveitadas para pintar o afastamento da penúria quando o leitor se torna “não preguiçoso” (ἄοκνος).
Wolters fixa-se no sintagma “ὁ ἀμητός σου” (ho amētos sou — “a tua colheita”) e mostra que, em LXX Provérbios, “ἄμητος/ἀμητός” normalmente significa “tempo de colheita”, mas aqui, pela primeira vez, indica claramente a colheita em si, o produto (WOLTERS, 2020, p. 152). Ele nota ainda que este é o único lugar em que Rahlfs acentua a palavra como oxítona (“ἀμητός”) em vez de proparoxítona (“ἄμητος”), refletindo uma antiga discussão gramatical que distinguia duas formas: uma substantiva e outra adjetival. Em termos exegéticos, o grego oferece uma contraface do juízo: a mesma dinâmica temporal que pode trazer a miséria como “caminhante” e “corredor” pode, pela diligência, fazer borbulhar a colheita como uma fonte e fazer a carência “desertar” (o verbo “ἀπαυτομολέω”, de onde “apóstata”, sugere abandono voluntário). Essa parte final é uma expansão teológica que não está no hebraico, mas que harmoniza com o pensamento de Provérbios como um todo: a pobreza não é destino cego, há possibilidade de reversão pela sabedoria prática.
No conjunto, Provérbios 6:6–11 em hebraico e em grego convergem na imagem central: a criação, na figura da formiga (e, na LXX, também da abelha), é uma escola de sabedoria para o preguiçoso. O hebraico enuncia de forma concisa o convite, o exemplo e o desfecho; o grego, como se desenhasse a mesma cena com traços mais nítidos, explicita verbos (“emular” em vez de apenas “ver”), nomeia com mais precisão o armazenamento, dramatiza o corpo do preguiçoso e reconfigura a chegada da pobreza em metáforas de movimento, além de acrescentar uma promessa condicional de reversão. A leitura de Wolters mostra que muitas dessas diferenças não são simples “traições” ao texto massorético, mas antes movimentos interpretativos internos ao grego, às vezes corrigidos pela crítica moderna (como no caso de “ἴθι/ἴσθι”), às vezes aceitáveis como variações legítimas de um mesmo provérbio, que deixam ver, por trás da economia do hebraico, a longa paciência de um tradutor que, ao contemplar a formiga e a abelha, também ele procurou “emular” os caminhos da sabedoria (WOLTERS, 2020, p. 148–152).
E. O homem de belial como incendiário da cidade: Provérbios 6:12–15 entre o hebraico e a LXX
Em Provérbios 6:12–15, o texto hebraico desenha o retrato do “homem de belial” como um foco ambulante de distorção moral, enquanto a LXX verte essa figura para a linguagem da insensatez e da ilegalidade, aproximando-a do vocabulário político-jurídico grego. O hebraico fala de um ’ādām beliyyaʿal, ’îš ’āwen, hōlēḵ ʿiqqĕšût peh (“um homem de belial, um homem de iniquidade, que anda na perversidade da boca”), amarrando a identidade do sujeito ao seu discurso torto, como se a pessoa fosse uma boca que caminha. A LXX, porém, traduz esse verso como anēr aphron kai paranomos poreuetai hodous ouk agathas (“um homem insensato e fora da lei percorre caminhos que não são bons”), deslocando o foco da boca para o caminho: a perversão discursiva vira uma trilha de vida inteira. A convergência é clara: em ambos, trata-se de alguém estruturalmente desviado. A diferença está no “campo semântico”: o hebraico concentra o diagnóstico no peh (“boca”), enquanto o grego expande para as hodoi ouk agathai (“caminhos não bons”), o que abre a porta para ler esse personagem não apenas como mentiroso, mas como alguém cuja prática social inteira é viciada. Em termos de teologia da sabedoria, a LXX faz o leitor grego sentir que esse “belial” não é apenas moralmente mau, mas também um perigo para a ordem da pólis, um paranomos (“transgressor da lei”), algo que o hebraico pressupõe mas não lexicaliza de modo tão explícito.
No versículo 13, o hebraico descreve o código corporal desse sujeito: qōrēṣ beʿênāyw, mōlēl beraglāw, mōrē beʾeṣbeʿōtāw (“pisca com os olhos, faz gestos com os pés, aponta com os dedos”). É uma coreografia de conspiração silenciosa, onde o corpo inteiro vira linguagem cifrada a serviço da intriga. A LXX condensa e ao mesmo tempo explicita isso: ho d’ autos enneuei ophthalmō, sēmainei de podi, didaskei de enneumasin daktylōn (“este mesmo faz sinal com o olho, indica com o pé e ensina com acenos dos dedos”). Wolters chama atenção para a expressão enneuei ophthalmō (“faz sinal com o olho”), que também aparece em Provérbios 10:10 e, em ambos os contextos, tem conotação negativa; ele nota que é tentador traduzir “pisca” (como fazem Brenton, NETS, BAP, van der Louw, SD, King), mas lembra que o verbo grego específico para “piscar” é epillizō, de modo que enneuō descreve mais genericamente o ato de sinalizar com o olhar (WOLTERS, Proverbs. A Commentary Based on Paroimiai in Codex Vaticanus, 2020, p. 152). Essa observação é preciosa: em vez de um mero “olhar malicioso”, a LXX enfatiza a dimensão comunicativa do gesto — ele não só pisca, ele “codifica” mensagens. Quando a tradução diz ainda que o homem “ensina (didaskei) com acenos dos dedos”, ela intensifica algo que o hebraico sugere mas não nomeia: esse sujeito é pedagogo do mal, catequista de códigos gestuais; a maldade dele não é apenas prática, é didática. Aqui, o grego ilumina o hebraico ao sublinhar a intencionalidade instrucional desses gestos: não são tiques nervosos, mas um idioma secreto, cuidadosamente transmitido.
O versículo 14 aprofunda o retrato interior. O hebraico descreve o coração como oficina permanente de distorções: tahpukkōt belibbō, ḥōrēš rāʿ beḵāl ʿēt, midyānîm yešallēaḥ (“perversidades há em seu coração, ele lavra o mal em todo tempo, envia contendas”). A metáfora é agrícola: o coração é um campo que é arado para o mal, e o resultado são “contendas” que ele “dispara” na comunidade. A LXX verte isso como diestrammenē kardia tektainetai kaka en panti kairō; ho toioutos tarachas synistēsin polei (“um coração distorcido fabrica males em toda ocasião; um tal homem provoca tumultos numa cidade”). Wolters observa que o texto de B pode ser lido como diestrammenē kardia tektainetai (“seu coração distorcido planeja”), leitura adotada por Thomson, Brenton e Giguet, enquanto a edição de Rahlfs imprime diestrammenē de kardia (com de e dativo), resultando na tradução “ele planeja com um coração perverso”, seguida por BAP, NETS, SD e Moro (WOLTERS, 2020, p. 152). Ele nota ainda que, na margem de B, aparece a forma kataseuazei, provavelmente da mão do próprio copista, o que sugere conhecimento de uma variante kataskeuazei (“constrói”) em lugar de tektainetai (“engendra, maquina”); curiosamente, essa nota marginal nem sequer é registrada no aparato de Rahlfs (WOLTERS, 2020, p. 152). Além disso, Wolters sustenta que a expressão en panti kairō (“em toda ocasião”, “a cada oportunidade”) deve ser ligada ao primeiro membro da frase, isto é, ao ato de maquinar o mal, e não ao segundo colon, como fizeram alguns tradutores antigos, porque isso harmoniza exatamente com o hebraico beḵāl ʿēt (“em todo tempo”) (WOLTERS, 2020, p. 152). A convergência aqui é muito fina: ambos os textos descrevem um coração que vive em regime de tempo integral conspiratório. A diferença está na ampliação grega da esfera de impacto: onde o hebraico diz que ele “envia contendas” (midyānîm yešallēaḥ), o grego explicita que ele “estabelece tumultos na cidade” (tarachas synistēsin polei). A LXX torna a imagem urbana e política: o mal interior derrama-se em forma de desordem pública, quase como se esse “homem de belial” fosse um agente de desagregação cívica, um sabotador do tecido urbano.
No versículo 15, o golpe final cai com a rapidez de um raio. O hebraico afirma: lāḵēn pitʾōm yābōʾ ʾêdō, peṭaʿ yiššābēr wəʾên marpēʾ (“por isso, de repente virá a sua ruína; num instante será quebrado e não haverá cura”). O vocábulo ʾêd (“desastre, calamidade”) já carrega o peso de uma tragédia irreversível, e a sequência wəʾên marpēʾ (“e não há cura”) fecha a cena com um silêncio duro: não há remédio, não há reconstrução. A LXX acompanha de perto, mas com colorido próprio: dia touto exapinēs erchetai hē apōleia autou, diakopē kai syntribē aniatos (“por isso, de súbito vem a sua destruição, uma cisão e uma quebra incurável”). Wolters registra que, em B, um corretor posterior acrescentou um de após dia touto, uma tentativa mínima de suavizar o fluxo da frase, sem alterar substancialmente o sentido (WOLTERS, 2020, p. 152). A convergência é quase ponto a ponto: súbito (pitʾōm / exapinēs), ruína absoluta (ʾêd / apōleia), quebra irreparável (yiššābēr… wəʾên marpēʾ / diakopē kai syntribē aniatos). A diferença está no acento imagético: enquanto o hebraico contrapõe “quebrar” e “curar”, em termos mais próximos da linguagem médica e de restauração, o grego acumula termos de desintegração física (diakopē, “cisão”, e syntribē, “esmagamento”), criando a impressão de um vaso que não apenas racha, mas é despedaçado em fragmentos que já não se juntam.
Quando se lê o bloco 6:12–15 em conjunto, a convergência entre hebraico e grego é estrutural: ambos constroem um mini-retrato do “homem inútil/perverso” como alguém cuja boca, corpo, coração e entorno social estão alinhados na mesma direção de deformação, conduzindo a uma queda súbita e definitiva. O hebraico privilegia o vocabulário da “perversidade” e da “contenda” — ʿiqqĕšût peh (“perversidade de boca”), tahpukkōt (“distorções”) e midyānîm (“contendas”) —, enquanto a LXX verte esse campo semântico para um conjunto grego de termos que evocam insensatez (aphron), ilegalidade (paranomos), fabrico deliberado de males (tektainetai kaka) e caos urbano (tarachas synistēsin polei). Ao fazer isso, ela não trai o hebraico, mas o recontextualiza para o horizonte mental de leitores helenizados: o mesmo personagem que, no texto massorético, é “homem de belial” que semeia brigas, torna-se, na versão grega, algo muito próximo de um inimigo da cidade, um pequeno incendiário da ordem civil, cuja ruína vem com a inevitabilidade de um veredito tardio, porém inapelável. Wolters, ao destrinchar nuances como a escolha de enneuō em vez de epillizō e o jogo entre tektainetai e a variante marginal kataskeuazei, ajuda a perceber como esse retrato é cuidadosamente lapidado dentro do próprio grego da LXX, e como o tradutor, longe de ser apenas mecânico, age como intérprete que, versículo a versículo, faz o hebraico falar na cadência moral e política do mundo mediterrâneo grego (WOLTERS, 2020, p. 152).
F. As coisas que o Senhor odeia (Provérbios 6:16–19)
Em hebraico, a seção abre com a fórmula numérica: “שֵׁשׁ הֵנָּה שָׂנֵא יְהוָה וְשֶׁבַע תּוֹעֲבוֹת נַפְשׁוֹ” – šēš hênnā śānē YHWH weševaʿ toʿăvôt nafšô (“Seis coisas há que o Senhor odeia, e sete são abominação para a sua alma”). Em vez desse paralelismo numérico solene, o grego traz uma frase contínua: “ὅτι χαίρει πᾶσιν, οἷς μισεῖ ὁ θεός, συντρίβεται δὲ δι᾽ ἀκαθαρσίαν ψυχῆς” – hoti chairei pasin, hois misei ho theos, syntribetai de di’ akatharsian psychēs (“porque ele se alegra com tudo o que Deus odeia, e é esmagado por causa da impureza de sua alma”). A forma hebraica destaca a completude da lista (“seis… sete”), como um candelabro de faltas acesas diante de YHWH; já o grego personaliza: fala de um “ele” que se deleita justamente naquilo que Deus detesta, e cuja alma se parte sob o peso dessa impureza interior. Wolters nota ainda que o texto de B lê “ὁ θεός” (ho theos, “Deus”), enquanto Rahlfs imprime “ὁ κύριος” (ho kyrios, “Senhor”), sendo a forma com “Deus” uma particularidade de Vaticano B em contraste com a padronização litúrgica posterior das edições (WOLTERS, Proverbs: A Commentary Based on Paroimiai in Codex Vaticanus, 2020, p. 152). A convergência é clara: ambas as tradições unem ódio divino e abominação interior; a diferença é de foco – o hebraico escande a lista com a fórmula numérica; o grego move o foco para a psicologia de quem se compraz no que Deus abomina, deixando a lista que vem a seguir como um desenrolar dessa alma contaminada.
Nos versículos 17–18, o hebraico dispõe os pecados em paralelo sintético: “עֵינַיִם רָמוֹת” – ʿênayim rāmôt (“olhos altivos”), “לְשׁוֹן שָׁקֶר” – lašôn šāqer (“língua mentirosa”), “וְיָדַיִם שֹׁפְכוֹת דָּם נָקִי” – wĕyādayim šōpĕḵôt dām nāqî (“mãos que derramam sangue inocente”), depois “לֵב חֹרֵשׁ מַחְשְׁבוֹת אָוֶן” – lēv ḥōrēš maḥšĕvôt ʾāwen (“coração que maquína planos de iniquidade”) e “רַגְלַיִם מְמַהֲרוֹת לָרוּץ לָרָעָה” – raglāyim mĕmaharôt lārûṣ lārāʿāh (“pés que se apressam a correr para o mal”). A LXX traduz, mas também redesenha levemente a cena: “ὀφθαλμὸς ὑβριστοῦ, γλῶσσα ἄδικος, χεῖρες ἐκχέουσαι αἷμα δικαίου / καὶ καρδία τεταινομένη λογισμοὺς κακούς καὶ πόδες ἐπισπεύδοντες κακοποιεῖν” – ophthalmos hybristou, glōssa adikos, cheires ekcheousai haima dikaiou / kai kardia tetainomenē logismous kakous kai podes epispeudontes kakopoiein (Provérbios 6:17–18 LXX). A passagem de “olhos altivos” para “ὀφθαλμὸς ὑβριστοῦ” (ophthalmos hybristou, “olho de arrogante”) concentra o pecado num tipo de pessoa, o hybristēs, o soberbo violento tão carregado na ética grega, em vez de apenas num órgão corporal elevado (WOLTERS, 2020, p. 152–153). A “língua mentirosa” torna-se “γλῶσσα ἄδικος” (glōssa adikos, “língua injusta”), aproximando mentira e injustiça como uma só realidade forense. As “mãos que derramam sangue inocente” são vertidas por “χεῖρες ἐκχέουσαι αἷμα δικαίου” (cheires ekcheousai haima dikaiou, “mãos que derramam sangue de justo”), deslocando “inocente” para o vocabulário jurídico de “justo”, sem alteração substancial de sentido. O “coração que lavra pensamentos de maldade” torna-se “καρδία τεταινομένη λογισμοὺς κακούς” (kardia tetainomenē logismous kakous, “coração esticado em raciocínios maus”), imagem belíssima: o coração como arco retesado, tenso na direção de projetos perversos. E os “pés que se apressam a correr para o mal” aparecem como “πόδες ἐπισπεύδοντες κακοποιεῖν” (podes epispeudontes kakopoiein, “pés apressando-se a praticar o mal”), em perfeito paralelismo com o hebraico, apenas com o verbo “fazer o mal” explicitado.
Gramaticalmente, Wolters chama atenção para um detalhe decisivo: em grego, os elementos de 6:17–18 aparecem como uma cadeia de substantivos no nominativo – “ὀφθαλμὸς… γλῶσσα… χεῖρες… καρδία… πόδες” – “simplesmente encadeados sem formar uma frase” (WOLTERS, 2020, p. 152–153). Muitos manuscritos tentam curar essa “anomalia” acrescentando ao fim do v. 18 um verbo futuro passivo, “ἐξολοθρευθήσονται” (exolothreuthēsontai, “serão totalmente destruídos”), leitura atestada também na Syrohexapla e na versão armênia, e refletida em soluções como a de Brenton, que insere um “are hateful to God” para fechar o período. Segundo Wolters, porém, a melhor leitura é aceitar a cadeia de nominativos como estando em aposição a “tudo o que Deus odeia” e à “impureza de sua alma” do v. 16; em termos estritos, esperaríamos acusativos, mas o nominativo após casos oblíquos é um fenômeno conhecido na própria LXX, com paralelos discutidos por BDF (§136[1]) e SSG (§72da) (WOLTERS, 2020, p. 153). Aqui o grego não apenas preserva o conteúdo do hebraico, como o torna quase icônico: os pecados ficam pairando em forma de lista nominal, como rótulos colados diretamente sobre aquilo que Deus detesta, sem necessidade de verbo.
No v. 19, a convergência de conteúdo é particularmente densa. O hebraico traz “יָפִיחַ כְּזָבִים עֵד שָׁקֶר” – yāfîaḥ kĕzābîm ʿēd šāqer (“aquele que sopra mentiras é testemunha falsa”) e “וּמְשַׁלֵּחַ מְדָנִים בֵּין אַחִים” – ûmešallēaḥ mĕdānîm bēn ʾaḥîm (“e o que envia contendas entre irmãos”) . A LXX verte a primeira hemístique por “ἐκκαίει ψεύδη μάρτυς ἄδικος” – ekkāiei pseude martýs adikos (“uma testemunha injusta faz as mentiras arderem”) e a segunda por “καὶ ἐπιπέμπει κρίσεις ἀνὰ μέσον ἀδελφῶν” – kai epipempei kriseis ana meson adelphōn (“e envia disputas no meio de irmãos”). Wolters observa que o verbo ἐκκαίει (ekkāiei, “faz arder”) é, à primeira vista, estranho: esperar-se-ia um “dizer” ou “proferir” para acompanhar “mentiras”. Entretanto, o mesmo verbo aparece em outros pontos de Provérbios – 14:5, 14:25 e 19:9 – sempre com as mentiras de uma testemunha como objeto, correspondendo ao hifil de חוּף – ḥûp̄ (“soprar, atiçar”), que em textos como Ezequiel 21:36 assume claramente o sentido de “abanar ao fogo”, “atiçar chamas” (WOLTERS, 2020, p. 153; cf. HALOT s.v. ḥûp̄). Em vez de reduzir ἐκκαίει a “tornar ativo” ou “intensificar”, como propõe Muraoka, ou de traduzi-lo como se o sujeito implícito fosse “ele, como falsa testemunha, acende mentiras”, como faz van der Louw, Wolters insiste – com bom motivo – em manter “μάρτυς ἄδικος” (martys adikos, “testemunha injusta”) como sujeito: é a testemunha que faz as mentiras queimarem, isto é, causarem dano pungente, como fogo que corrói reputações (WOLTERS, 2020, p. 153). Aqui o grego não está apenas traduzindo o hebraico; ele cristaliza a metáfora do sopro que incendeia, reforçando a dimensão performativa e destrutiva da mentira judiciária.
Quanto ao segundo membro, “καὶ ἐπιπέμπει κρίσεις ἀνὰ μέσον ἀδελφῶν” retoma de perto o hebraico “וּמְשַׁלֵּחַ מְדָנִים בֵּין אַחִים”, mas com uma escolha terminológica interessante. O verbo מְשַׁלֵּחַ – mešallēaḥ (“enviar, soltar”) encontra em ἐπιπέμπει (epipempei, “manda, despacha”) um equivalente bastante natural. O núcleo está em κρίσεις – kriseis, que pode significar “julgamentos”, “processos” ou “disputas”. Wolters mostra, contra a alegação de van der Louw de que o sentido “disputa” seria raríssimo, que esse uso é bem atestado em passagens como Provérbios 15:18a, 23:29, 28:2 e 30:33, além de literatura clássica, o que é confirmado por LSJ (II,3), GE e Muraoka (MGELS s.v. 10) (WOLTERS, 2020, p. 153). Assim, traduzir κρίσεις aqui por “contendas” ou “disputas” é preferível a “julgamentos” (King) ou “ações judiciais”, sentido fraco e pouco documentado. A antiga tradição latina já captara isso ao verter “seminat discordias”, ecoado por traduções modernas que falam em “semear discórdias”. Em termos de convergência, então, o grego está alinhadíssimo ao hebraico: tanto mĕdānîm (“contendas”) quanto kriseis (“disputas”) desenham a figura de alguém que não apenas mente em tribunal, mas que “manda” conflitos circularem entre irmãos, como mensageiros de inimizade.
Se no hebraico a lista de Provérbios 6:16–19 é uma arquitetura de sete horrores “diante da alma” de YHWH, no grego ela se transforma num retrato quase dramático: um homem que se alegra com tudo o que Deus detesta, cuja alma se quebra (syntribetai) por sua própria impureza, e que se manifesta por um “olho de arrogante”, por uma “língua injusta”, por mãos ensanguentadas, por um coração retesado em cálculos malignos, por pés que correm para o mal, por uma testemunha injusta que acende mentiras como fagulhas, e por um semeador de disputas que lança processos e contendas entre irmãos (WOLTERS, 2020, p. 152–153). O texto grego, ao mesmo tempo fiel e criativo, ajuda a iluminar o hebraico em três frentes principais: ao introduzir a figura do hybristēs como dono do “olho” altivo; ao desenvolver a metáfora do “sopro” de mentiras como fogo que queima; e ao ler as “contendas” como “κρίσεις” enviadas entre irmãos, enfatizando o caráter quase judicial, mas profundamente relacional, da discórdia. A lista, em ambas as línguas, torna-se assim um espelho de sete feridas que começam no coração e terminam em um povo rasgado por dentro.
G. A instrução que se acende como lâmpada (Provérbios 6:20–23)
O quadro hebraico de Provérbios 6:20–23 é claro e coeso: o pai e a mãe são duas vozes convergentes, cujo ensino deve ser amarrado ao interior e levado no corpo como ornamento. O hebraico diz: bĕnî, nĕṣōr miṣwat ʾāvîkha weʾal-tittōš tôrāt ʾimmekha (“meu filho, guarda o mandamento de teu pai e não abandones a instrução de tua mãe”); em seguida, manda “atar” (qāšĕrēm) essas palavras ao coração e “pendurá-las” no pescoço, para que acompanhem o discípulo ao andar, ao deitar e ao despertar, pois “o mandamento é lâmpada, e a instrução, luz, e as repreensões da disciplina são caminho de vida” (kî nēr miṣwāh wĕtôrāh ʾôr wĕderekh ḥayyîm tokĕḥōt mûsār). A Septuaginta segue de muito perto essa arquitetura, mas veste o quadro com léxico grego que aproxima a cena tanto da linguagem da lei quanto da pedagogia moral: huie, phylasse nomous patros sou kai mē apōsē thesmous mētros sou (“filho, guarda as leis de teu pai e não rejeites as ordens de tua mãe”), terminando com hoti lychnos entolē nomou kai phōs hodos zōēs, kai elegchos kai paideia (“porque mandamento da lei é lâmpada, e luz é caminho de vida, e [há] repreensão e disciplina”). A convergência é nítida: mandamento / lei (miṣwāh – entolē nomou), instrução / ensino (tôrāh – nomoi e thesmoi), lâmpada / luz, caminho de vida, repreensão / disciplina; mas o grego explicita que esse universo não é apenas doméstico, é um “nomos”, um regime normativo de sabedoria.
No versículo 20, a diferença mais visível está na escolha dos termos gregos: o hebraico fala de um único miṣwāh (“mandamento”) e de uma tôrāh (“instrução”, “ensino”) no singular, enquanto a LXX pluraliza “mandamentos” (nomoi) e usa thesmoi (“estatutos”, “decretos”) para a “torá da mãe”. Essa pluralização aproxima o verso da conotação de um corpo de normas, quase um pequeno “código” familiar, e o emprego de thesmos ecoa a linguagem do direito e da ordem estabelecida no grego clássico. Em termos de sentido, porém, não há divergência: ambos os textos descrevem um duplo eixo de autoridade (pai/mãe) e apresentam o lar como o primeiro “santuário” da sabedoria. A escolha de nomos e thesmos, contudo, ajuda a ver como o tradutor grego lê tôrāh – não apenas como instrução ocasional, mas como ordenamento contínuo de vida, antecipando o abraço posterior entre “sabedoria” e “lei” que tanta discussão suscita na pesquisa sobre Provérbios.
No versículo 21, o hebraico usa duas imagens densas: “ata-os ao teu coração continuamente” (qāšĕrēm ʿal-libbekhā tāmīd) e “amarra-os ao teu pescoço” (ʿanqēm ʿal-gargerōtekhā). A LXX reproduz essas duas linhas, mas com um toque técnico característico do tradutor de Provérbios: aphapsai de autous epi sē psychē dia pantos kai enkloiōsai epi sō trachēlō (“prende-os à tua alma o tempo todo e coloca-os como colar ao teu pescoço”). Wolters observa que o verbo enkloiōsai é um neologismo virtual, formado a partir de kloios (“colar, argola, coleira”), e não aparece em mais nenhum outro lugar segundo a pesquisa no TLG; trata-se, provavelmente, de uma cunhagem ad hoc do tradutor para expressar a ideia de “colar/colarinho” espiritual. (WOLTERS, Proverbs: A Commentary Based on Paroimiai in Codex Vaticanus, 2020, p. 154). Esse detalhe grego intensifica a metáfora já presente no hebraico (comparável a Provérbios 1:9), sugerindo que a instrução parental é um ornamento visível, quase um sinal público de pertença, e ao mesmo tempo um “jugo leve” que envolve a garganta. Wolters chama a atenção ainda para o fato de que o termo kloios pode designar tanto uma coleira de cão quanto um colar precioso, de modo que a figura oscila entre disciplina e ornamento, sem necessariamente escolher um dos polos. (WOLTERS, 2020, p. 154).
No versículo 22, as duas tradições se aproximam como espelhos, mas o grego torna mais viva a personificação. O hebraico declara: “ao caminhares, ela te guiará (tanche), ao deitares, ela te guardará (tishmor ʿalekha), e ao despertares, ela falará contigo (hî tesiaḥekha).” Aqui, hî (“ela”) retoma o conjunto mandamento/torá como uma figura feminina – antecipando a Senhora Sabedoria que domina os capítulos 8–9. A LXX verte: hēnika an peripateis, epagou autēn, kai meta sou estō; hōs d’ an katheudēs, phylassetō se, hina egeiromenō syllalē soi (“quando caminhares, leva-a contigo, e esteja ela contigo; e quando dormires, que ela te guarde, para que, ao despertares, converse contigo”). Wolters discute minuciosamente o pronome autēn: os substantivos femininos mais próximos no texto são psychē (“alma”) e mētēr (“mãe”), mas nenhum deles faz pleno sentido como antecedente direto; propostas de Jaeger e van der Louw de tomar autēn como antecipação de entolē no versículo seguinte implicariam uma construção sem paralelos claros em que o pronome vem antes do seu referente explícito. (WOLTERS, 2020, p. 154).
A solução que acorlher neste caso é: autēn não aponta para um substantivo isolado, mas para a Sabedoria como figura já pressuposta pelo contexto contínuo de Provérbios, exatamente como em 4:6 e 4:22, em que o pronome feminino retoma essa personagem implícita. Assim, a LXX não só preserva a personificação hebraica, como a reforça: “leva-a contigo”, “esteja ela contigo”, “que ela te guarde”, “que ela converse contigo” fazem da torá paterno-materna uma companheira viva, andando ao lado, velando o sono, dialogando ao despertar. O hebraico já sugeria isso, mas o encadeamento de verbos gregos torna a cena quase dramática, como se o discípulo tivesse ao seu lado uma figura materna de sabedoria que caminha, vela e fala. Nessa passagem, o grego não altera o sentido, mas torna mais nítida a dimensão de “amizade” com a Sabedoria que habita o caminho.
O versículo 23 é um ponto em que a sintaxe grega abre duas leituras possíveis, ambas enraizadas no hebraico. O texto massorético afirma: “porque mandamento é lâmpada (nēr), e instrução (tôrāh) é luz (ʾôr), e repreensões da disciplina são caminho de vida (derekh ḥayyîm).” A LXX traz: hoti lychnos entolē nomou kai phōs hodos zōēs, kai elegchos kai paideia. Em códice B, as palavras kai phōs hodos zōēs kai elegchos são tomadas como início do segundo membro, com um corretor apagando o segundo kai, o que permite entender: “porque mandamento da lei é lâmpada, e luz é caminho de vida e repreensão” – ou, como traduz Wolters, “e a sua luz é caminho de vida e admoestação”. (WOLTERS, 2020, p. 154). Já Rahlfs reparte o verso de outra maneira, imprimindo kai phōs / kai hodos zōēs elegchos, de modo que “lâmpada” e “luz” se coordenam diretamente: “porque mandamento da lei é lâmpada e luz, e caminho de vida é correção”. Em ambos os casos, porém, a correspondência com o hebraico é transparente: nēr → lychnos, ʾôr → phōs, tokĕḥōt mûsār (“repreensões da disciplina”) → elegchos kai paideia (“repreensão e educação”).
Do ponto de vista semântico, o grego ajuda a explicitar o que muitas vezes o leitor moderno não percebe no hebraico. Ao traduzir tokĕḥōt por elegchos (“repreensão”, “refutação”) e mûsār por paideia (“educação disciplinadora”), a LXX insere o versículo numa rede grega densa, a mesma de textos platônicos e helenísticos em que paideia é formação integral, e elegchos é o exame que corrige o erro. O caminho de vida é, em hebraico, traçado pelas “repreensões” emitidas pela disciplina; em grego, esse caminho passa pela experiência escolar da correção, da argumentação que desmascara o engano. O leitor grego é levado a ouvir o livro de Provérbios como uma espécie de pequena escola filosófica doméstica, e não apenas como provérbios soltos. Assim, o versículo 23 mantém perfeita convergência com o hebraico quanto ao conteúdo, mas o vocabulário grego ilumina a função pedagógica da “lâmpada”: ela não é só consolo; é também correção, exame, treino.
Em conjunto, então, Provérbios 6:20–23 mostra uma harmonia profunda entre o texto hebraico e sua versão grega, com diferenças que mais afinam o foco do que o desviam. O hebraico insiste na promessa de que o mandamento familiar é lâmpada que arde no escuro e caminho de vida traçado por correções; a LXX, ao falar de nomoi e thesmoi, de um colar inventado pela palavra (enkloiōsai), de uma Sabedoria feminina que caminha, guarda e conversa, e de uma paideia que é ao mesmo tempo luz e repreensão, desenha com linhas gregas a mesma cena: uma casa em que a Palavra paterno-materna se torna ornamento, companheira e claridade, até que o discípulo, ao despertar, encontre no próprio ensino a voz que lhe fala.
H. Entre o furto reparável e o adultério irreconciliável
Em Provérbios 6:30–35, o texto hebraico e o grego da LXX constroem um contraste progressivo entre o ladrão faminto e o adúltero insensato: o primeiro ainda pode “comprar de volta” a sua situação; o segundo compra, ao contrário, a própria ruína. O hebraico descreve o ladrão que furta “para encher a sua nefesh faminta” (lemallēʾ nafšô kî yirʿāv, “para satisfazer a própria vida quando tem fome”, Provérbios 6:30), e afirma que, se for encontrado, “pagará sete vezes, dará todos os bens da sua casa” (wenimtāʾ yešallēm šiḇʿātayim ʾet kol-hôn bêtô yittēn, Provérbios 6:31). A LXX mantém essa estrutura, mas desloca levemente o foco: “não é de admirar se alguém for apanhado furtando, pois furta para encher a sua alma com fome” (ouk thaumaston ean halō tis kleptōn, kleptei gar hina emplēsē tēn psychēn peinōn). O verbo “não desprezarão” do hebraico é substituído por “não é espantoso”: a ênfase não está mais na reação social (não desprezar o ladrão), mas na inteligibilidade da sua conduta — é compreensível que um faminto recorra ao furto. Quando o texto grego passa ao veredito, ele acompanha o hebraico no “sete vezes pagará”, porém acrescenta um traço teológico-retórico que o hebraico apenas sugere: “se for apanhado, pagará sete vezes, e, dando todos os seus bens, livrará a si mesmo” (ean de halō, apoteise heptaplasia kai panta ta hyparchonta autou dous rysētai heauton, Provérbios 6:31). A expressão “livrará a si mesmo” torna explícito o que no hebraico está implícito: a restituição funciona como um tipo de resgate, um preço de redenção social. A LXX, portanto, converge com o texto massorético no conteúdo jurídico (há pena de restituição agravada), mas clarifica o efeito: o ladrão tem ainda um caminho de retorno, um “resgate” possível.
Quando o foco passa do ladrão ao adúltero, a convergência estrutural é novamente clara, mas com nuanças importantes. O hebraico caracteriza o adúltero como alguém “sem coração” (nōʾēf ʾiššâ ḥasar-lēv, “o que adultera com mulher é carente de coração”, Provérbios 6:32) e afirma que ele “destrói a própria alma” (mašḥît nafšô hûʾ yaʿăśennāh). A LXX mantém o paralelismo entre mente e auto-ruína, mas explicita aquilo que o hebraico formula de modo metafórico: “o adúltero, por falta de entendimento, obtém destruição para a sua alma” (ho de moichos di’ endeian phrenōn apōleian tē psychē autou peripoieitai). Ao verter ḥasar-lēv como endeia phrenōn (“deficiência de mente”), a LXX interpreta “falta de coração” como déficit cognitivo-moral, não apenas como insensibilidade afetiva; isso ajuda a esclarecer que o texto sapiencial fala de estupidez ética, não de mera fragilidade sentimental. Em seguida, tanto o hebraico quanto a LXX afirmam que o adúltero colherá feridas e desonra: o hebraico fala em “ferida e vergonha” cujo “opróbrio não será apagado” (negaʿ weqālôn yimṣāʾ weḥerpātô lōʾ timmāḥeh, Provérbios 6:33), e o grego em “dores e desonras” que ele “suporta”, com um opróbrio que “não será apagado para sempre” (odynas te kai atimias hypopherei, to de oneidos autou ouk exaleiphthēsetai eis ton aiōna). A expressão grega intensifica levemente o aspecto existencial (“suporta dores”) e introduz o advérbio “para sempre”, mas permanece fiel à ideia central: o adultério gera uma marca social e espiritual que não se deixa simplesmente “resetar” com compensações.
É precisamente aqui que o comentário de Wolters sobre 6:34 ilumina a relação entre hebraico e grego. No texto massorético, lê-se que “ciúme é a fúria do marido, e ele não poupará no dia da vingança” (kî-qinʾāh ḥămat-gāḇer wĕlōʾ yaḥmōl beyôm nāqām, Provérbios 6:34): a combinação de qinʾāh (“ciúme zeloso”) com ḥēmâ (“furor”) constrói a figura de um esposo abrasado de ira vingativa. A LXX verte: “porque o thymos do marido dela está cheio de zelo; ele não poupará no dia do julgamento” (mestos gar zēlou thymos andros autēs; ou pheisetai en hēmera kriseōs). Wolters observa que, embora o substantivo hebraico correspondente a thymos costume ser traduzido por “ira”, a frase grega, tal como está construída, usa thymos para designar aquilo que “está cheio de zelo” no homem; por isso, a tradução adequada não é “ira” (como preferem Vetus Latina, Thomson, NETS, van der Louw, King), mas “coração” ou “espírito”, pois se trata do centro vital interior completamente saturado de ciúme (WOLTERS, Proverbs, p. 156). Ao registrar essa nuance, o comentarista recorre ao léxico de Liddell–Scott–Jones e mostra que thymos pode designar, em diversos contextos gregos, precisamente esse núcleo interior da pessoa, e não apenas explosões de cólera. O grego, portanto, não suaviza o quadro, mas desloca ligeiramente o foco: não é apenas uma fúria episódica; é o próprio “espírito” do marido que se encontra dominado pelo zelo possessivo, intensificando a percepção de perigo para o adúltero.
O desfecho em 6:35 radicaliza, na LXX, a impossibilidade de “resgate”, em contraste com a situação do ladrão faminto. O hebraico declara que o marido ultrajado “não aceitará o rosto de nenhum resgate” (lōʾ yiśśāʾ pənê kol-kōper) e “não se contentará, ainda que multipliques os presentes” (wĕlōʾ yōʾbeh kî tarbeh-šōḥad, Provérbios 6:35): a linguagem jurídica de kōper (“resgate”, “indenização”) e šōḥad (“suborno”, “presente compensatório”) mostra que, ao contrário do caso do ladrão, aqui não há negociação possível. A LXX mantém o cenário, mas o verte com uma precisão semântica que Wolters explora: “ele não trocará a sua inimizade por nenhum resgate, nem será reconciliado por muitos dons” (ouk antallaxetai oudenos lytrou tēn echthran, oude mē dialythē pollōn dōrōn). O primeiro verbo, antallassō, traduz de modo claro a ideia de “trocar” a inimizade por um preço de resgate; já o segundo, dialyō no passivo, é decisivo para a nuance: segundo o comentário, o passivo de dialyō adquiriu o sentido técnico de “ser desfeito de uma querela”, isto é, “ser reconciliado”, de modo que, em contextos normais, o genitivo que o acompanha indicaria a “contenda” da qual se é liberado (WOLTERS, Proverbs, p. 156). Aqui, porém, como nota Wolters seguindo a análise de van der Louw, o genitivo pollōn dōrōn não é o genitivo da contenda, mas um genitivo de preço: os “muitos dons” são o valor oferecido para “comprar” a reconciliação. O resultado é uma formulação densa: o marido lesado não apenas recusa trocar sua hostilidade por qualquer resgate, como também “não será reconciliado ao preço de muitos presentes”. O grego torna explícito o que o hebraico dizia de forma mais próxima da metáfora forense: nem kōper nem šōḥad têm eficácia numa ferida desse tipo.
O efeito global da comparação, portanto, é construir dois regimes distintos de culpa. O ladrão faminto, no início do quadro, pode “resgatar-se” — ainda que ao custo de sete vezes o valor e de todos os bens da sua casa, a LXX explicita que ele “salva a si mesmo” pagando o preço. Essa possibilidade de retorno é inteiramente suprimida no caso do adúltero: a LXX reforça que a falta nasce de uma insuficiência radical de entendimento (endeia phrenōn), que o acompanha com dores e opróbrio que não se apagam, que deixa o “espírito” do marido saturado de zelo e que o torna refratário a qualquer resgate, mesmo quando os presentes se multiplicam. Hebraico e grego convergem na arquitetura ética: furtar por fome é crime reparável; adulterar é investir na própria perdição. Mas o grego, com a precisão dos seus verbos (apoteinō, peripoieomai, antallassō, dialyomai), com a leitura de thymos como centro pessoal e com a explicitação do “preço” da reconciliação, acaba oferecendo um vocabulário conceitual muito fino para compreender o que o hebraico já afirma de modo contundente: há culpas que se podem restituir, e há culpas que, mesmo cercadas de presentes, permanecem como inimizade intransigente.
I. A LXX e o Novo Testamento
Sim, em Provérbios 6 na LXX há um pequeno “laboratório” de vocábulos que depois se tornam densos no grego do Novo Testamento. Não é que o capítulo “invente” termos técnicos, mas ele trabalha, em conjunto com o restante da LXX, o mesmo campo semântico que o NT vai concentrar em núcleos teológicos específicos. Vou destacar alguns pontos em que essa ponte é bem clara, sem falar de palavras triviais como patēr (“pai”) ou gynē (“mulher”), mas de vocábulos que acabam ganhando peso soteriológico, ético ou escatológico.
Logo no final do capítulo, Provérbios 6:35 traz a frase “ouk antallaxetai oudenos lytrou tēn echthran, oude mē dialythē pollōn dōrōn” (“não trocará por nenhum resgate a sua inimizade, nem se apaziguará com muitos presentes”). Aqui “lytron” (“resgate, preço de libertação”), ainda está no campo jurídico-civil: compensação para aplacar a ira de um marido traído. No NT, porém, o mesmo termo é carregado para o centro da cristologia: “dounai tēn psychēn autou lytron anti pollōn” em Marcos 10:45 e Mateus 20:28, onde lytron passa a designar a morte de Cristo como resgate vicário. Léxicos como Thayer/Strong notam justamente esse duplo uso: comum na LXX como compensação ou pagamento, e no NT como preço redentor dado “em lugar de muitos”. A imagem do marido que não aceita “nenhum resgate” em Provérbios funciona quase como negativo fotográfico: há uma culpa que, no horizonte da sabedoria, é humanamente irredimível; o NT, sobre a mesma palavra, anunciará um resgate que vem de fora da economia humana.
Na mesma unidade sobre o adultério, Provérbios 6:25 adverte: “mē se nikēsē kallous epithymia” (“não te vença o desejo pela beleza”). O termo é “epithymia” (“desejo, cobiça, concupiscência”). Em si, a palavra é comum em grego; o que se torna teologicamente intenso é a maneira como a LXX, e aqui Provérbios 6, associa epithymia à sedução destrutiva e à perda de si mesmo. No NT, esse fio é puxado e adensado: Tiago 1:14–15 descreve a epithymia concebendo e dando à luz o pecado e, por fim, a morte; Paulo fala da “epithymia tēs sarkos” como força que milita contra o Espírito (Gálatas 5:16–24). Léxicos como o da Blue Letter Bible mostram justamente esse arco: da simples ideia de “desejar” até a carga de “desejo desordenado, especialmente sexual” que permeia as listas de vícios paulinas. Em Provérbios 6, o verbo “nikan” (nikaō, “vencer”) colado a epithymia antecipa, de forma quase dramática, essa visão da concupiscência como força que subjuga.
Poucos versículos antes, Provérbios 6:16 fala do homem que “chairei pasin hois misei ho kyrios, syntribetai de di’ akatharsian psychēs” (“alegra-se com tudo o que o Senhor odeia, e é esmagado pela impureza da alma”). O substantivo é “akatharsia” (“impureza, sujeira, imundície”). No grego comum, pode significar sujeira física; na LXX e, em especial, em contextos morais como este, o termo já aponta para uma impureza interior, ligada à disposição da psychē. Léxicos do NT sublinham que em Paulo “akatharsia” torna-se quase um termo técnico para imoralidade sexual e corrupção moral, sobretudo em Romanos 1:24, Gálatas 5:19 e 1 Tessalonicenses 4:7. Em Provérbios 6, portanto, temos um micro-retrato dessa akatharsia como estado que “esmaga” o sujeito, antecipando a ideia paulina de impureza não apenas ritual, mas existencial, que degrada a pessoa inteira.
Na mesma seção, o tradutor grego fala da “gynaikos hypandrou” e da “diabolēs glōssēs allotrias” (Provérbios 6:24), isto é, da “mulher casada” e da “calúnia da língua estranha”, usando “diabolē”, diabolē (“slander, acusação maldosa”), cognato de “diabolos”. Estudos sobre a figura da “mulher estranha” em Provérbios 1–9 notam que essa escolha de termo enfatiza o caráter acusatório e destruidor da fala sedutora, uma espécie de “difamação” da verdade que desvia o jovem do caminho da vida. No NT, a forma substantivada diabolos torna-se título técnico para o Satanás acusador, “o caluniador por excelência”. Não se pode provar que o uso de diabolē em Provérbios 6 tenha influenciado diretamente essa tecnicização, mas é plausível ver aqui o mesmo campo semântico de acusação enganosa que, na teologia posterior, se concentra na figura do “diabo”.
Um outro feixe importante está em Provérbios 6:23: “hoti lychnos entolē nomou kai phōs, kai hodos zōēs elenchos kai paideia” (“pois lâmpada é o mandamento da Lei, e luz, e caminho de vida o repreender e a disciplina”). Aqui convergem “entolē” (entolē, “mandamento”), “nomos” (nomos, “lei”), “hodos zōēs” (hodos zōēs, “caminho de vida”), “elenchos” (elenchos, “reprovação, correção”) e “paideia” (paideia, “disciplina formadora”). Um léxico como o da BLB para paideia liga diretamente Provérbios 6:23 à definição usada em 2 Timóteo 3:16, onde a Escritura é útil “pros paideian tēn en dikaiosynē”, para uma “disciplina na justiça”. A mesma combinação de “repreensão” e “disciplina” como caminho de vida em Provérbios 6 fornece um pano de fundo sapienciai para a compreensão cristã da Escritura como instrumento pedagógico que ilumina o caminho da justiça. Aqui o vocabulário não é raro, mas o arranjo “lychnos… phōs… hodos zōēs… paideia” desenha a constelação que o NT retomará quando fala de Cristo como “luz”, da “lei” escrita no coração e da caminhada segundo o Espírito.
No campo escatológico, duas expressões de Provérbios 6 acabam ressoando fortemente no NT. Em Provérbios 6:15, lemos: “dia touto exapinēs erchetai hē apōleia autou, diakopē kai syntribē aniatos” (“por isso, de repente vem sobre ele a destruição, corte e quebrantamento incurável”). A palavra “apōleia” (“perdição, ruína”), é depois usada no NT tanto para o destino eterno dos que se perdem (por exemplo, Filipenses 3:19, 2 Tessalonicenses 2:3) quanto para a ruína de falsos mestres e daquilo que é consumido pelo juízo. Léxicos ressaltam esse duplo uso: ruína temporal e condenação final. Poucos versículos adiante, Provérbios 6:34 fala do marido traído cujo “thymos… ou pheisetai en hēmera kriseōs” (“não poupará no dia de juízo”). A expressão “en hēmera kriseōs”, en hēmera kriseōs (“no dia de julgamento”), aparece depois quase literalmente nos evangelhos, por exemplo em Mateus 10:15; 11:22. Em Provérbios, é ainda um “dia de acerto de contas” intra-histórico, ligado à honra ferida do marido; no NT, o mesmo sintagma se torna rótulo da cena escatológica em que Deus julga todas as obras.
Finalmente, há o campo da sexualidade e da infidelidade, onde Provérbios 6:26 menciona “timē gar pornēs hosē kai henos artou, gynē de andrōn timias psychas agreuei” (“pois o preço de uma prostituta é apenas um pão; mas a mulher casada caça vidas preciosas”). O termo “pornē”, pornē (“prostituta”), e o campo derivado “porneia”, porneia (“imoralidade sexual”), tornam-se no NT um dos eixos principais da ética cristã, tanto literal quanto metaforicamente (1 Coríntios 6; Apocalipse 17). Léxicos de porneia/pornē mostram a densidade dessa linguagem, que já na LXX de Provérbios é usada para desenhar não só um comportamento externo, mas um poder que “caça almas preciosas”. Essa imagem de sedução que devora a vida inteira estrutura depois a metáfora da “grande prostituta” escatológica.
Então, respondendo de forma direta: em Provérbios 6, você encontra vários vocábulos que o NT herdará como peças de um vocabulário teológico denso — lytron para resgate, epithymia para o desejo que escraviza, akatharsia para a impureza moral, paideia/elenchos para a disciplina formadora, apōleia e “hēmera kriseōs” para a ruína e o dia de juízo, pornē/porneia para a infidelidade destrutiva. A contribuição não é exclusiva deste capítulo, mas Provérbios 6 já costura esses termos em cenas concretas de sedução, disciplina e juízo que o NT, séculos depois, vai concentrar em torno da cruz, da santificação e do julgamento final.
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