Adônis — Enciclopédia Bíblica Online
ADÔNIS
“Adônis” é a forma grega Ἄδωνις (Adōnis), derivada do fenício 𐤀𐤃𐤍 (ʾAdón, “senhor”) — o mesmo étimo do título hebraico אֲדֹנָי (ʾAdonāy, “Senhor”) usado para Deus na Bíblia Hebraica (Burkert 1985, pp. 176–177; Cyrino 2010, p. 97; R. S. P. Beekes, Etymological Dictionary of Greek, Brill, 2009, p. 23; Botterweck & Ringgren 1990, pp. 59–74; West 1997, p. 57). Em siríaco, o nome é atestado como Gauas (Detienne 1977, p. 137). Em dicionários bíblicos, vincula-se ao hebraico “ʾadōn” (cf. nota “H123, ‘lord’”) e à forma acadiana/mesopotâmica Dumuzi/Tammuz.
Origens, difusão e enquadramento cultural
Os gregos consideravam o culto de Adônis de origem siro‑fenícia/levantina, com paralelos diretos na dupla Inanna/Ishtar e Dumuzid/Tammuz da Mesopotâmia; muitos estudiosos entendem a narrativa “Afrodite e Adônis” como versão levantina de um mito mesopotâmico anterior (West 1997, p. 57; Kerényi 1951, p. 67; Cyrino 2010, p. 97). A recepção grega relaciona-se à orientalização do século VIII a.C., quando a Grécia arcaica orbitava a influência neoassíria, o que teria afetado especialmente o culto de Afrodite (Burkert 1998, pp. 1–6, 1–41). Em Chipre, o culto de Adônis gradualmente suplantou o de Ciniras; W. Atallah propôs que o mito helenístico de Adônis resultou da fusão de tradições independentes. No Levante, Adônis foi identificado com Eshmun; no horizonte ugarítico, sucede a Hay‑Tau de Nega e substitui as figuras vegetais Aleyin e Mot. O culto era comum em toda a Fenícia, com apogeu em Biblos e no santuário de Afaca, junto à nascente do Nahr Ibrahim (Rio Adônis), destruído por Constantino; a paisagem do alto desfiladeiro e as águas que “ficavam rubras” todos os anos foram entendidas cultualmente como o sangue do deus, embora o fenômeno derive de partículas de hematita. Em Judá, o culto a Tammuz pode ter sido introduzido no reinado de Manassés (Pryke 2017, p. 193); Ezequiel 8:14 menciona mulheres chorando por Tammuz junto ao portão norte do Templo (Pryke 2017, p. 195; Warner 2016, p. 211). A Vulgata verte “Adonis” para Tammuz/Thammuz (תמוז), deidade síria cujo festival era solsticial (novo mês de julho), com dois movimentos rituais: lamento pela “desaparição” e júbilo pelo “retorno”; autores clássicos o aproximaram também de Osíris (Lucian, De Dea Syra, §7, 19; Selden, De Diis Syris, 2, 31; Creuzer, Symbolik, 4, 3).
![]() |
O Adonis Uffizi, feito de mármore pentélico, século II a.C., atualmente conservado na Galeria Uffizi, Florença, Itália. |
Primeiras referências gregas e integração no mundo helênico
A referência grega mais antiga conservada é de Safo (séc. VII–VI a.C.), em fragmento onde um coro de jovens pergunta a Afrodite como lamentar Adônis; a deusa prescreve bater no peito e rasgar as túnicas (West 1997, pp. 530–531). O culto das Adônias já existia em Lesbos à época de Safo e tornou‑se popular em Atenas em meados do século V a.C. (Cyrino 2010, p. 97; Burkert 1985, pp. 176–177). Walter Burkert questiona se Adônis não teria vindo “desde o princípio” com Afrodite e conclui que, na Grécia, a função especial da lenda foi oferecer, no espaço feminino, um raro canal de expressão emocional desregrada, em contraste com a ordem rígida da pólis e dos festivais femininos oficiais de Deméter (Burkert 1985, p. 177). A correspondência estrutural com Baal é notada (West 1997, p. 57), e Burkert resume traços característicos: lamentos nas portas, incenso nos terraços, “jardins de Adônis” em cacos e cestos expostos ao sol, e clímax de lamentação pelo deus morto (Burkert 1985, p. 177).
Mito: nascimento, disputa Afrodite–Perséfone e morte
Segundo tradições clássicas, Adônis é filho de Ciniras e Mirra (Smyrna), cuja paixão incestuosa foi punida por Afrodite ou incitada por seu orgulho; desmascarada, Mirra é metamorfoseada em árvore de mirra e dá à luz Adônis (Ovídio, Metamorphoses 10.298–355; 10.503; Kerényi 1951, pp. 75–76; Hansen 2004, pp. 289–290). Afrodite encontra o bebê e o confia a Perséfone no mundo inferior (Kerényi 1951, p. 76). Ambas se apaixonam pelo jovem; Zeus decide que Adônis passe um terço do ano com Afrodite, um terço com Perséfone e um terço à sua escolha (Pseudo‑Apollodoro, Bibliotheca 3.14.4); outra versão fixa meio ano com cada uma, por sugestão da musa Calíope (Higino, Astronomica 2.7.4). Fontes como a Antologia Grega (Agathias Scholasticus 5.289), Alcífron (Letters to Courtesans 4.14.1) e Clemente de Alexandria (Exhortations 2.29) atestam o tema do amor partilhado; Luciano, em Dialogues of the Gods, apresenta Afrodite queixa‑se a Selene de ter de dividir Adônis porque Eros teria feito Perséfone apaixonar‑se por ele.
A morte ocorre numa caçada: Adônis é traspassado por um javali e morre nos braços de Afrodite. Em variantes, o animal é enviado por Ares, enciumado (Cyrino 2010, p. 96), por Ártemis (em vingança por Hipólito) ou por Apolo (punindo Afrodite). Onde seu sangue cai, brotam anêmonas; em relato tardio, rosas (Servius, Commentary on Virgil’s Eclogues 10.18; Burkert 1985, p. 177). Uma tradição cipriota, preservada por Servius, narra que, por ordem de Hera, Afrodite incita Adônis a desejar a mortal Erinoma; rejeitado, ele a violenta, foge e é mortalmente ferido por Ares em forma de javali; Afrodite obtém de Zeus a restauração à vida, e Erinoma dá‑lhe um filho, Taleu (Servius, Ecl. 10.18; Fontenrose 1981, p. 171).
Ovídio desenvolve o enredo com detalhes: o ardil da ama, a embriaguez de Ciniras numa festividade de Deméter, a gravidez de Mirra, a descoberta e a perseguição paterna, a metamorfose e o nascimento do menino (Metamorphoses 10.356–430; 10.431–502; 10.503; Kerényi 1951, pp. 75–76).
Culto e festivais: as Adônias e os “jardins de Adônis”
As Adônias eram celebradas anualmente por mulheres, em pleno estio. Plantavam “jardins de Adônis” em cestos, vasos rasos, cacos e tigelas — alface, funcho e grãos de crescimento rápido (trigo, cevada) — e os expunham nos terraços sob o sol; as plantas brotavam e logo murchavam, simbolizando a vida efêmera do deus. Queimava‑se incenso enquanto se aguardava o brotar e o fenecer; seguiam‑se lamentos públicos, com rasgar de vestes e golpes no peito; o ídolo era deitado num esquife e conduzido, com as plantas secas, em procissão até o mar, onde ambos eram lançados (Cyrino 2010, pp. 97–98; Burkert 1985, p. 177; Detienne 1977, p. xii). Em Alexandria, Teócrito descreve uma celebração cortesã sob Arsinoe, esposa de Ptolomeu Filadelfo: Adônis reclinado em leito de prata, púrpura rica, vasos de perfumes, frutos, mel, bolos e cestos com “jardins de Adônis”. Entre os fenícios, descreve‑se música fúnebre com flautas curtas (gíggros/gíggras), danças e prantos. Imagens de cera/terracota eram expostas à porta e nas coberturas das casas. Após a pompa, os “jardins” eram lançados ao mar ou em fontes. Luciano menciona um rito jubiloso aditado aos antigos lamentos para celebrar a “ressurreição e ascensão” de Adônis.
A tradição localiza monumentos e topografias cultuais: em Ghineh, relevo rupestre mostra Adônis, lança em punho, à espreita do animal, enquanto a deusa aparece em atitude de luto; cria‑se que o deus retornava anualmente a esses sítios para ser novamente ferido.
Interpretações religiosas: “deus que morre e ressuscita”?
No fim do século XIX, J. G. Frazer, em The Golden Bough (1ª ed. 1890), tornou Adônis exemplar do arquétipo do “deus que morre e ressuscita” (Ehrman 2012, pp. 222–223; Mettinger 2004, p. 375; Barstad 1984, pp. 149–150; Eddy & Boyd 2007, pp. 140–142). A partir de meados do século XX, críticas propuseram distinguir “deuses que morrem” de “deuses que desaparecem”, argumentando que, quando ocorre retorno, não se trata de morte “real” — e, onde há morte, não há retorno explícito (Smith 1987, pp. 521–527; Mettinger 2004, p. 374). Aplicando esse crivo, Eddy & Boyd sustentam que o terço de Adônis no submundo com Perséfone não constitui morte‑ressurreição e que fontes gregas clássicas não o descrevem explicitamente “ressuscitando” (Eddy & Boyd 2007, p. 143; Burkert 1985, p. 177). Ainda assim, autores tardo‑antigos atestam uma crença ritual nesse sentido: Orígenes, nos Comentários a Ezequiel, observa que “primeiro choram por ele, pois morreu; depois se alegram por ele, porque ‘tendo ressuscitado dentre os mortos’ (apo nekrōn anastanti)”, PG 13:800. Outros estudiosos continuam a citar Adônis/Tammuz como caso de “morrer e retornar”, tomando a descida e a volta do submundo como análogo funcional da morte.
Adônis na tradição clássica, bíblica e lexicográfica
Fontes clássicas principais incluem Apolodoro (Library 3.14.3–4), Higino (Fabulae 58, 248, 251), Ovídio (Metamorphoses 10.476; 10.519–559; 10.708–739) e Teócrito (Idylls 15, 30). Em estudos bíblicos e do Antigo Oriente Próximo, vincula‑se “Adônis” a Dumuzi/Tammuz (cf. Ezequiel 8:14), com notas como a possível alusão em Isaías 17:10 aos “jardins de Adônis” (cf. NEB; DDD, 1–10). Compêndios eruditos (e.g., Smith’s Dict. of Class. Biog. and Mythol., s.v.) e obras antigas de geografia e viagens registram toponímias e práticas (Reland, Palaestina, p. 269; Robinson’s Researches, new ed., 3, 606), além de estudos históricos dedicados ao mito e ao culto: Braun, Selecta Sacra, p. 376 sq.; Fickensecher, Erklär. d. Mythus Adonis (Gotha, 1800); Groddeck, Über das Fest des Adonis, in Antiquar. Versuche (Lemberg, 1800), p. 83 sq.; Moinichen, De Adonide Phoenicum (Hafn., 1702); Maurer, De Adonide ejusque cultu (Erlang., 1782).
Topografia cultual fenícia e tradições locais
Entre Biblos e Baalbek, próximo à nascente do Nahr Ibrahim, situava‑se Aphaca, com santuário a Ashtart; do terraço via‑se o anfiteatro de rochedos e o rio que brota da gruta e despenca em cascatas pelas margens arborizadas, até sumir no abismo onde “o deus pereceu”. Em Ghineh permanece um monumento rupestre com Adônis armado e a deusa em profundo luto. A crença anual do retorno e ferimento do deus explicava o “vermelho” das águas, hoje entendido como efeito físico (hematita). As Adônias eram descritas como as mais belas festas fenícias, imediatamente após a colheita: unções, exposição do corpo, oferendas fúnebres, refeições comunitárias; imagens de cera/terracota em portas e terraços; mulheres em prantos, danças, cantos ao som de flautas curtas (gíggros/gíggras). Sob Arsinoe, em Alexandria, Teócrito descreve luxo oriental: leito de prata, púrpuras, perfumes, frutos, mel, bolos e os pequenos “jardins de Adônis”, depois lançados ao mar ou às fontes; Luciano ainda menciona rito jubiloso de “ressurreição e ascensão”.
Bibliografia
APOLLODORUS. The Library. Translated by Sir James George Frazer. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press; London: William Heinemann Ltd., 1921. 2 v.
BARSTAD, Hans M. The Religious Polemics of Amos: Studies in the Preaching of Am 2, 7B-8; 4,1-13; 5,1-27; 6,4-7; 8,14. Leiden: Brill, 1984.
BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGREN, Helmer. Theological Dictionary of the Old Testament. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1990. v. VI.
BURKERT, Walter. Greek Religion. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1985.
BURKERT, Walter. The Orientalizing Revolution: Near Eastern Influence on Greek Culture in the Early Archaic Age. Cambridge: Harvard University Press, 1998.
CYRINO, Monica S. Aphrodite, Gods and Heroes of the Ancient World. New York; London: Routledge, 2010.
DETIENNE, Marcel. The Gardens of Adonis: Spices in Greek Mythology. Translated by Janet Lloyd. New Jersey: The Humanities Press, 1977.
EDDY, Paul Rhodes; BOYD, Gregory A. The Jesus Legend: A Case for the Historical Reliability of the Synoptic Jesus Tradition. Grand Rapids: Baker Academic, 2007.
EHRMAN, Bart D. Did Jesus Exist?: The Historical Argument for Jesus of Nazareth. New York: HarperCollins, 2012.
FONTENROSE, Joseph Eddy. Orion: The Myth of the Hunter and the Huntress. Berkeley: University of California Press, 1981.
HANSEN, William F. Classical Mythology: A Guide to the Mythical World of the Greeks and Romans. Oxford: Oxford University Press, 2004.
KERÉNYI, Karl. The Gods of the Greeks. London: Thames and Hudson, 1951.
LUCIAN. Dialogues of the Gods. Translated by H. W. Fowler and F. G. Fowler. Oxford: The Clarendon Press, 1905.
METTINGER, Tryggve N. D. The "Dying and Rising God": A Survey of Research from Frazer to the Present Day. In: BATTO, Bernard F.; ROBERTS, Kathryn L. (ed.). David and Zion: Biblical Studies in Honor of J.J.M. Roberts. Winona Lake: Eisenbrauns, 2004.
OVID. Metamorphoses. Translated by A. D. Melville. Oxford: Oxford University Press, 2008.
PRYKE, Louise M. Ishtar. New York; London: Routledge, 2017.
SMITH, Jonathan Z. Dying and Rising Gods. In: ELIADE, Mircea (ed.). The Encyclopedia of Religion. London: Macmillan, 1987. v. IV, p. 521–527.
THE GREEK ANTHOLOGY. Translated by W. R. Paton. London: William Heinemann Ltd., 1916. v. 1.
THIOLLET, Jean-Pierre. Je m'appelle Byblos. Paris: H & D, 2005. p. 71-80.
TRIPP, Edward. Crowell's Handbook of Classical Mythology. Nova York: Thomas Y. Crowell Co., 1970.
WARNER, Marina. Alone of All Her Sex: The Myth and Cult of the Virgin Mary. Oxford: Oxford University Press, 2016.
WEST, M. L. The East Face of Helicon: West Asiatic Elements in Greek Poetry and Myth. Oxford: Clarendon Press, 1997.