A Vida de Adão e Eva — Enciclopédia da Bíblia Online
VIDA DE ADÃO E EVA
A designação “Vida de Adão e Eva” cobre, na prática, um pequeno “ciclo” de narrativas para-bíblicas que ampliam o relato canônico de Gênesis sobre os primeiros pais, com destaque para duas obras-núcleo que compartilham materiais, mas também preservam tradições exclusivas: o Apocalipse de Moisés, em grego, e a Vita Adae et Evae, em latim. A essas versões somam-se recensões e textos aparentados que, embora pertençam ao mesmo horizonte traditivo — às vezes convergindo, às vezes divergindo —, nem sempre mantêm relação literária direta com as duas peças principais. Assim, uma versão armênia foi vertida de modo livre a partir do Apocalipse de Moisés, ou possivelmente do siríaco (CONYBEARE, F. C. On the Apocalypse of Moses, 1895, pp. 216–235), ao menos por volta de 1000 d.C., muito embora seja mais provável situá-la nos séculos V ou VI; uma versão eslava, traduzida do grego entre 950 e 1400 d.C., combina o Apocalipse de Moisés com Vita 1–11; e há ainda, no corpus adâmico mais amplo mas sem dependência textual necessária do Apocalipse de Moisés e da Vita, a Caverna dos Tesouros, o Combat of Adam and Eve (em etíope), o Testamento de Adão e o Apocalipse de Adão de Nag Hammadi.
A tradição conhece, além disso, ramificações de menor vulto: (1) em armênio, um texto próximo de um dos manuscritos do Apocalipse de Moisés; (2) em eslavo, nove manuscritos aparentados ao grego; (3) materiais siríacos e arábicos (Testamento de Adão — Apocalipse de Adão), alguns traços dos quais parecem ter sido tomados de Apocalipse de Moisés, xxxvi–xl; (4) livros etíopes, entre os quais o Conflito de Adão e Eva, possivelmente devedor do Testamento de Adão juntamente com a Caverna dos Tesouros siríaca — ambas as obras expandem e comentam porções do Apocalipse de Moisés e da Vita latina; (5) outros livros armênios, encontrados no mesmo “pacote” da tradução armênia da Vida de Adão e Eva, que incluem ao menos sete tratados, provavelmente de procedência cristã e/ou gnóstica de viés antijudaico. Tal como os livros etíopes, esses opúsculos armênios defendem o celibato.
Não parece haver relação direta entre as duas grandes versões (grega e latina) e o texto gnóstico de Nag Hammadi intitulado Apocalipse de Adão. Por conta dos hebraísmos, de paralelos rabínicos e da ausência de polêmica anticristã, Wells conclui que o original — provavelmente hebraico ou aramaico — foi composto por um judeu, talvez em Alexandria, em data posterior a 60 d.C. e não além do século IV, sendo mais plausível a data mais antiga (Wells, APOT 2: pp. 123–54). R. H. Pfeiffer (na obra The Interpreter’s Bible. Vol. 1: General and Old Testament Articles; Genesis; Exodus, p. 426) crê mesmo que as datas originais sejam anteriores a 70 d.C.
Apesar da afinidade de motivos, o Apocalipse de Moisés e a Vita Adae et Evae não são meros duplicados: articulam de maneira própria tradições comuns e exclusivas. Um quadro sinóptico das perícopes ajuda a perceber os pontos de contato e as assimetrias (capitulações segundo cada obra). Em primeiro lugar, a busca por alimento e a penitência de Adão e Eva nos rios Jordão e Tigre aparecem somente na Vita (1–8), ao passo que o Apocalipse de Moisés nada registra a esse respeito. Em segundo lugar, a “segunda” sedução de Eva por Satanás — disfarçado de anjo —, que a persuade a abreviar a penitência, figura na Vita (9–11), mas não na obra grega. Em terceiro lugar, a explicação do próprio Satanás sobre sua queda e sua inimizade pertinaz contra Adão — elemento teológico central na trama latina — ocupa Vita 12–17, sem paralelo direto no texto grego.
Em quarto lugar, a narrativa do parto de Caim após Eva escapar da morte graças à intercessão de Adão está em Vita 18–22, sendo que o Apocalipse de Moisés apenas enumera a prole (1:1–5:1) e, na sequência, retoma o fio dos nascimentos (Vita 23–24). Em quinto lugar, a própria enumeração dos filhos — Caim (cf. Ap. Mos. 1:3), Abel, Sete e outros — é comum, mas distribuída de maneira diversa (Ap. Mos. 1:1–5:1; Vita 23–24). Em sexto lugar, a revelação feita por Adão a Sete, narrando um arrebatamento ao paraíso para ver a Deus, constitui uma peça exclusiva da Vita (25–29). Em sétimo lugar, o motivo do “óleo de misericórdia” buscado por Eva e Sete a pedido de Adão em seu leito de morte é comum, mas com redações distintas (Ap. Mos. 5:2–14:3; Vita 30–44). Em oitavo lugar, a extensa exortação de Eva, conclamando os filhos à obediência enquanto rememora a tentação satânica e a expulsão do paraíso, é uma unidade exclusiva do Apocalipse de Moisés (15–30).
Em nono, décimo e décimo primeiro lugares, morte, perdão e sepultamento de Adão ocorrem nos dois textos, mas com tratamento retórico e teológico próprio (Ap. Mos. 31–32; 33–37; 38:1–42:2; Vita 45; 46; 47–48). Em décimo segundo lugar, a ordem de Eva para que seus filhos preservem, em tábuas de pedra e de barro, os registros de sua vida e de Adão aparece apenas na Vita (49:1–50:2). Por fim, em décimo terceiro lugar, a morte e o sepultamento de Eva constam em ambas as obras (Ap. Mos. 42:3–43:4; Vita 50:3–51:3).
Essas mesmas unidades, relidas tematicamente, revelam três traços comparativos decisivos. Primeiro, a centralidade de Satanás. No Apocalipse de Moisés 15–30 ele é o agente por trás do engano da serpente, de Eva e de Adão; na Vita, porém, sua proeminência cresce. Além da segunda fraude contra Eva (9–11) e da longa autodefesa malévola (12–17), a Vita 37–39 descreve o ataque de um “serpente” identificado por Sete como Satanás, o “inimigo maldito da verdade e destruidor caótico”, enquanto o paralelo grego (Ap. Mos. 10–12) menciona apenas uma “besta selvagem” rebelde. Segundo, o lugar de Eva na culpa. Ambos os relatos a apresentam como responsável pelo primeiro transgresso; todavia, a redação latina — mormente em seu material próprio (1–22) — tende a denegrir Eva e a exonerar Adão. Assim, após a expulsão, a “solução” irrealista de Eva para a fome é pedir que Adão a mate — pois ela pecou —, a fim de que Deus o readmita no paraíso (1–6); Adão, ao contrário, propõe sensatamente a penitência.
O curso do Jordão suspende-se e a criação animal acorre em torno de Adão quando ele faz penitência, ao passo que Eva torna a ceder ao embuste satânico (7–11). Mais adiante, partindo para morrer, ela experimenta dores de parto e, não obstante suas súplicas, não encontra misericórdia senão quando Adão intercede (18–22). Terceiro, a configuração da misericórdia divina. Para a Vita, um dos recados centrais é que a penitência, bem executada, suscita a misericórdia de Deus. Por isso a redação latina detalha a penitência de Adão no Jordão (6–8) e acrescenta pormenores à oração de Sete à entrada do paraíso (40; cf. Ap. Mos. 13:1), oferecendo modelos de prática penitencial; Adão, penitente verdadeiro, é perdoado ainda em vida (46). No Apocalipse de Moisés, em contraste, a misericórdia mostra-se como realidade essencialmente pós-morte: Adão afronta a morte sem certeza de que Deus lhe será propício (31–32), falece e, só após extensa e suspensiva intercessão angélica, alcança perdão (33–37), recebendo em seguida promessa de ressurreição duas vezes (39:1–3; 41:2–3).
A discussão da relação literária entre as duas peças é antiga e não conclusiva. Meyer (1895: pp. 205–8) sustentou a anterioridade da Vita; Fuchs (1900: pp. 508–9) e Wells (APOT 2: pp. 128–9) defenderam a prioridade do Apocalipse de Moisés; permanece igualmente plausível a hipótese de redações independentes, erigidas sobre um fundo comum de tradições (por exemplo, Ap. Mos. 31–32 e Vita 45). Muito do subsolo traditivo pode ter sido composto em hebraico. O autor do Apocalipse de Moisés, contudo, revela familiaridade com a LXX, e a Vita preserva helenismos (por exemplo, plasma, “criatura”, em 46:3), de modo que pelo menos parte do material original pode ter sido redigido em grego. Em suma, há pouca convergência quanto à cronologia relativa entre o grego e o latim e quanto à língua das tradições que os antecedem, além do reconhecimento de uma história oral e escrita diversificada subjacente a esses documentos (JOHNSON, The Old Testament Pseudepigrapha, 1985, pp. 251).
Embora desprovidas de alusão histórica direta, as duas obras respiram ar marcadamente judaico, com paralelos abundantes em literatura judaica (as notas em Johnson, OTP 2: 258–95, cataloga-os). Várias correspondências situam o conjunto com naturalidade entre o século I e o início do II d.C. Josefo (Ant. 1.2.3) faz referência a tábuas de pedra e de barro em paralelo a Vita 49:1–50:2. O apóstolo Paulo alude a Satanás transfigurado em anjo de luz (2 Cor 11:14), motivo que reaparece em Vita 9 e Ap. Mos. 17, e localiza o paraíso no terceiro céu (2 Cor 12:2–3), tópico retomado em Ap. Mos. 37:5. Mais decisivos são os ecos entre o Apocalipse de Moisés e 4 Esdras e 2 Baruc: (1) a justaposição de Gênesis 1:26–27 e 2:7 — imagem de Deus e “obra das mãos” de Deus — como apelo à misericórdia divina (Ap. Mos. 33–37; 4 Esdras 8:44–45); (2) a perda do paraíso supramundano (Ap. Mos. 27–29; 2 Baruc 4:3–7); (3) o duplo acento nos efeitos da transgressão inaugural em todas as gerações e, ao mesmo tempo, na responsabilidade individual como condição da glória escatológica (Ap. Mos. 14, 28, 30; 4 Esdras 3:20–27; 4:26–32; 7:11–14; 7:116–31; 2 Baruc 17:1–18:2; 23:4–5; 48:42–47; 54:13–19). Esses paralelos tornam verossímil situar a formação das tradições no século I d.C., com um terminus ad quem por volta de 400 d.C., já que textos de pouco depois dessa data — inclusive a versão armênia — parecem depender delas. Nenhum manuscrito conservado é anterior ao século XI no caso do Apocalipse de Moisés, e ao século IX no caso da Vita. Para os textos, cf. Johnson, OTP 2: pp. 249–95, e Wells, APOT 2: pp. 123–54.
A tradição grega da “Vida” não é monolítica; ao contrário, subdivide-se em três formas textuais que a crítica manuscritológica identificou com nitidez. Na primeira forma grega (por exemplo, manuscritos DSV), que M. de Jonge e J. Tromp (p. 34) propõem representar a feição mais antiga da obra, a narrativa se abre com o reconhecimento, por Eva, do assassinato de Abel por Caim (Adam and Eve 1—5). Ato contínuo, Adão adoece, convoca os filhos e encarrega Sete e Eva de irem ao paraíso pedir o óleo de vida para a cura (5—13). Tendo fracassado a missão e agravadas as dores do patriarca, Eva passa a rememorar a vida no jardim — no qual cada um cuidava de uma porção —, os enganos sucessivos que sofreram e as maldições subsequentes (14—30). Concluída a rememoração, a morte de Adão aproxima-se: sua alma sobe ao paraíso enquanto o corpo é preparado para o sepultamento; Eva confessa seu pecado e, com Sete, assiste ao perdão concedido a Adão (31—43). A segunda forma grega (manuscritos R e M) é semelhante, mas acrescenta um episódio notável: ao fim do testamento de Eva e antes do perdão de Adão, Eva reconta uma segunda tentação e um segundo ato de desobediência (29:7–13).
Adão e Eva permanecem em rios distintos — ele no Jordão, ela no Tigre —, jejuando e fazendo penitência. Satanás, travestido de anjo, aproxima-se da margem para comunicar a Eva que Deus a perdoou; ela deixa o rio apenas para perceber que foi de novo enganada. A inserção dessa história neste ponto caracteriza também a versão eslava, pertencente a uma tradição alinhada com essa segunda forma grega. A terceira forma grega (por exemplo, manuscritos NIK) distingue-se por uma introdução alternativa e mais longa ao testamento de Eva (14:3—16:3) e por reordenar as maldições após a desobediência: ao contrário das outras versões, em que se amaldiçoa primeiro Adão, depois Eva e, por fim, a serpente, aqui a serpente é amaldiçoada antes de Eva (24—26).
As versões latina, armênia e georgiana, por sua vez, não começam com a morte de Abel ou com a enfermidade de Adão, mas com uma ampliação do relato da “segunda” sedução de Eva por Satanás; nelas, a penitência de Adão e Eva é explicitamente orientada para a obtenção de sustento material, uma vez expulsos do paraíso. Nesse enquadramento, ganham relevo a inveja de Satanás por Adão, sua recusa em adorá-lo e a consequente expulsão do céu, além do nascimento de Sete. A versão latina inclui ainda uma revelação em que Adão narra a Sete sua subida ao paraíso para falar com Deus (25—29). A soma desses materiais confirma que a “Vida de Adão e Eva” não é um único e coerente romance, mas um feixe de versões que preservam, por séculos, um riquíssimo acervo de tradições sobre os primórdios, largamente conservado por cristãos.
A antiga suposição de uma origem estritamente judaica no século I d.C. — embora hoje discutida (veja-se de Jonge e Tromp) — não impede reconhecer que a obra provavelmente contém numerosas tradições que circularam entre judeus na era greco-romana. Vários elementos que iluminam a literatura cristã primitiva figuram ali com destaque: a imago dei (grego 10—12; latim 10—17); a perda da glória primeva (grego 21—22); a perda do domínio sobre o mundo animal (grego 10—12); o advento da dor física (grego 5—14; 31); a exclusão do paraíso (grego 27—29); e uma descrição minuciosa da transgressão original (grego 7—8; 16—21; 30).
A narrativa conservada em grego oferece, em linhas gerais, uma moldura dramática que começa com a expulsão do Éden. Eva, em sonho, antecipa o fratricídio de Abel por Caim; o tema da primeira dor e enfermidade de Adão é deslocado para o fim de sua vida; Sete e Eva tentam extrair, da Árvore da Vida, o óleo de misericórdia para curá-lo; Sete é atacado por uma fera que recusa “respeitar a imagem de Deus” no homem — detalhe que, em tradições correlatas, conflita com a identificação explícita de Satanás como “serpente”. O arcanjo Miguel intervém para declarar incurável a doença de Adão. À morte, a alma do patriarca é conduzida ao terceiro céu, após purificação (cf. a localização paulina do paraíso em 2 Cor 12:2–3; Ap. Mos. 37:5); Eva encarrega Sete de registrar “em tábuas de pedra” os eventos da vida dos pais — motivo com paralelo em Josefo (Ant. 1.2.3) e retomado na Vita 49:1–50:2 —; o sepultamento de Adão é realizado por anjos, com Sete como única testemunha, e Abel recebe igual honra. Eva morre uma semana depois; Miguel instrui Sete sobre o sepultamento dela e o adverte a não prantear por mais de seis dias (cp. Jub. 2.23).
Certos elementos ausentes do texto grego vivem com vigor na tradição latina. Expulsos do paraíso, Eva pede a Adão que a mate, por haver trazido sobre ambos a calamidade; Adão prefere propor um regime de penitência: ele, no Jordão, por quarenta dias; ela, no Tigre, por trinta e sete. No oitavo dia, Eva sofre uma “segunda” sedução, quando Satanás — como “anjo de luz” — a convence de que já fora perdoada e a incita a abandonar o rio; Adão desmascara a fraude. É nesse contexto que Satanás explica sua inveja de Adão, articulando-a com a recusa de lhe prestar homenagem “porque Deus havia dito: ‘que todos os anjos de Deus o adorem’ (SI 8.2)”. O motivo do disfarce angélico dialoga, como se notou, com 2 Coríntios 11:14 (Vita 9; Ap. Mos. 17), enquanto o eixo teológico da penitência e do perdão desenha, na Vita, uma soteriologia da misericórdia haurida “em vida” pelo penitente verdadeiro (46), em contraste com o trânsito pós-morte do Apocalipse de Moisés (31–37; 39:1–3; 41:2–3).
À luz desse panorama, a crítica moderna relativizou o antigo consenso que via na “Vida” um texto de origem judaica, escrito no século I d.C. e conservado em duas versões (latina e grega). Esses pontos — outrora pacíficos — tornaram-se objeto de disputa (veja-se de Jonge e Tromp). O fato permanece, todavia, de que a obra, em múltiplas recensões — grega, latina, armênia, georgiana e eslava —, reúne tradições precoces e representativas acerca de Adão e Eva, com variantes características que distinguem uma versão da outra. Mesmo na família grega, mais de duas dezenas de manuscritos distribuem-se em três formas textuais discerníveis (manuscritos DSV; R e M; NIK), com diferenças de abertura narrativa, de posicionamento de perícopes (como a “segunda” sedução) e até de ordem das maldições (serpente–Eva–Adão, ou Adão–Eva–serpente).
Do ponto de vista histórico-filológico, permanece em aberto a cronologia relativa e a direção de dependência entre a Vita e o Apocalipse de Moisés. A tese de Meyer (MEYER, Vita Adae et Evae, 1895, pp. 205–208) em favor da anterioridade latina disputa espaço com as de Fuchs (1900: pp. 508–9) e de Wells (APOT 2: pp. 128–9) em favor da prioridade grega; a hipótese de fontes comuns independentes continua plausível (por exemplo, a dupla tradição sobre a morte de Adão: Ap. Mos. 31–32; Vita 45). Em termos linguísticos, não obstante o provável húmus hebraico de muitas tradições, o manejo da LXX pelo redator grego e a presença de expressões gregas na Vita (plasma, 46:3) sugerem que parte do material antigo pode ter sido composto em grego. O quadro geral — concordam as sínteses — é o de uma história oral e literária plural (Johnson, OTP 2: p. 251), com fortes afinidades judaicas (OTP 2: pp. 258–95), ecos neotestamentários (2 Cor 11:14; 12:2–3) e paralelos notáveis com 4 Esdras e 2 Baruc em temas como a súplica à misericórdia com base na criação à imagem de Deus (Gênesis 1:26–27; 2:7; Ap. Mos. 33–37; 4 Esdras 8:44–45), a perda do paraíso celeste (Ap. Mos. 27–29; 2 Baruc 4:3–7) e a tensão entre culpa adâmica universal e responsabilidade individual na economia escatológica (Ap. Mos. 14, 28, 30; 4 Esdras 3:20–27; 4:26–32; 7:11–14; 7:116–31; 2 Baruc 17:1–18:2; 23:4–5; 48:42–47; 54:13–19). A moldura cronológica verossímil situa a formação das tradições no século I d.C., com terminus ad quem em torno de 400 d.C.; os testemunhos manuscritos, por sua vez, são tardios (século XI para o Apocalipse de Moisés; século IX para a Vita). Para o texto e aparato, cf. Johnson, OTP 2: pp. 249–95, e Wells, APOT 2: pp. 123–54.
Em síntese — sem excluir nenhuma das informações transmitidas pelas três apresentações aqui integradas —, “A Vida de Adão e Eva” deve ser lida como um repositório polifônico, preservado sobretudo no ambiente cristão, de tradições que muito provavelmente já circulavam entre judeus em época greco-romana. Seus eixos narrativos maiores — a rivalidade satânica e sua etiologia; a responsabilidade de Eva e a disciplina penitencial; a economia da misericórdia, ora como graça alcançada “em vida” pela penitência correta (Vita 6–8; 40; 46), ora como favor post mortem mediado pela corte angélica (Ap. Mos. 33–37; 39:1–3; 41:2–3) — articulam-se com motivos bíblicos e parabíblicos de ampla ressonância, da imago dei (grego 10—12; latim 10—17) ao banimento do paraíso (grego 27—29), passando pela perda da glória primeva (grego 21—22), do domínio sobre os animais (grego 10—12) e pela irrupção da dor (grego 5—14; 31). No nível da microtradição, detalhes como a escrita das memórias em tábuas de pedra e de barro (Vita 49:1–50:2; Josefo, Ant. 1.2.3), o paraíso no “terceiro céu” (2 Cor 12:2–3; Ap. Mos. 37:5), a máscara luminosa do Tentador (2 Cor 11:14; Vita 9; Ap. Mos. 17), a tentativa de obter o “óleo de misericórdia” e a própria coreografia dos sepultamentos angélicos compõem a tessitura de um dossiê que, sem depender necessariamente de uma única redação original, traduz o esforço multissecular de pensar, narrativamente, a queda, a penitência e a esperança — com datas propostas por Wells (APOT 2: pp. 123–54) e por Pfeiffer (IB, I, p. 426), leituras comparatistas detalhadas (Johnson, OTP 2: pp. 249–95) e uma tradição manuscrita multifacetada (de Jonge e Tromp), incluindo a presença — em versões latina, armênia e georgiana — da recusa de Satanás em adorar Adão e de sua subsequente expulsão, bem como do relato latino em que Adão descreve a Sete sua ida ao paraíso (25–29). Tudo isso, enfim, compõe um retrato coerente de como o imaginário judaico-cristão elaborou, em prosa de piedade e doutrina, a “vida” pós-edênica dos primeiros pais.
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GALVÃO, Eduardo. A Vida de Adão e Eva. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], ago. 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].
