Estudo sobre Lucas 1

Lucas 1


I. PREFÁCIO (1.1-4)
O terceiro evangelho começa com uma saudação introdutória formal, equilibrada na forma e clássica na linguagem, a um certo Teófílo. E composta de uma sentença contínua com seis orações principais, e as primeiras três estão em simetria com o segundo grupo de três: Muitos já se dedicaram (v. la) com Eu mesmo investiguei (v. 3a); elaborar um relato (v. lb) com decidi escrever-te um relato ordenado (v. 3b); conforme nos foram transmitidos (v. 2) com para que tenhas certeza (v. 4).

Os quatro versículos estão em forte contraste com o restante do evangelho, cujo grego tem um forte toque semítico. Nesse restante, ele depende de suas fontes, todas semíticas em origem; no prefácio, ele não usa fontes, mas, provavelmente, um modelo literário; esses prefácios são encontrados com frequência na literatura grega, especialmente na historiografia.

1:2 desde o começo (“desde sua origem”, ARA): anõthen, que em grego muitas vezes significa “de cima”, é claramente usado aqui no sentido temporal, ó excelentíssimo Teófilo: A identidade de Teófilo é desconhecida; ele pode ter sido (a) um indivíduo com esse nome; (b) um oficial público a quem Lucas se dirigiu com um pseudônimo; (c) uma figura simplesmente simbólica, “Amado por Deus” (“Precioso para Deus”). Esta última é a mais improvável das possibilidades. A designação excelentíssimo Teófilo sugere um oficial de elevada posição ou um dos equestres na hierarquia romana; corresponde ao nosso “Vossa Excelência”.

O conteúdo dessa dedicatória epistolar dá uma pista do propósito de Lucas ao escrever esse evangelho. Teófilo tem um conhecimento geral da fé, mas Lucas quer que ele tenha também um relato ordenado, um conhecimento sistemático, e um relato escrito agora que os dias das testemunhas oculares está passando. Lucas afirma que ele mesmo tem um conhecimento sólido dos eventos; que nos aspectos em que seu conhecimento era limitado ele fez uma cuidadosa investigação e que o que ele está escrevendo vai servir como corretivo de algumas tradições correntes. A sua afirmação é moderada, mas, como Plummer (ICC, p. 2) destaca, isso é evidência de sua honestidade. “Um falsificador teria afirmado ser testemunha ocular e não teria pedido desculpas por escrever”.

II. ASCENDÊNCIA E INFÂNCIA (1.5—2.52)
Somente Mateus e Lucas entre os quatro evangelhos registram a infância do nosso Senhor. Marcos e João o apresentam no início do seu ministério público; João prefacia sua história com a proclamação da divindade eterna e da preexistência de Jesus. Lucas, por exemplo, coloca o nascimento de Jesus e os eventos que o precedem em paralelo com o de João Batista; Mateus não faz menção de João até que a sua missão comece (3.1). As experiências e declarações de Maria também são apresentadas em detalhes consideráveis em Lucas, enquanto José é o principal foco de interesse desse ponto de vista em Mateus.

Contudo, talvez a maior diferença entre os dois seja que, como N. B. Stonehouse destaca (The Witness of Luke to Christ, 1951, p. 48ss), enquanto Mateus associa a história aos profetas do AT, “a mensagem da revelação relatada por Lucas é uma mensagem profética contemporânea”. Para anunciar a vinda do Messias, a voz da profecia, silenciosa durante tanto tempo, fala novamente. Stonehouse alista nada menos de 11 declarações proféticas: (a) anunciação do nascimento de João, 1.13-17,19,20; (b) anunciação do nascimento de Jesus, 1.28-35; (c) a saudação de Isabel a Maria, 1.42-45; (d) a resposta de Maria, o Magnificai, 1.46-55; (e) a profecia de Zacarias, 1.68-75; (f) a proclamação do anjo aos pastores, 2.10,11; (g) o louvor das hostes celestiais, 2.14; (h) o oráculo de Simeão de que ele não morreria antes de ver o Cristo do Senhor, 2.26; (i) a profecia de Simeão (Nunc dimittis), 2.2935; (j) a profecia de Ana (relatada, mas não registrada), 2.38; (1) a declaração do nosso Senhor: eu devia estar na casa de meu Pai, 2.49.

O nascimento de João Batista é anunciado (1.5-25)

Zacarias, um idoso sacerdote, está ministrando no templo quando é interrompido pela aparição do anjo Gabriel trazendo a notícia de que sua mulher, a também idosa Isabel, vai lhe dar um filho. Esse filho será um profeta de acordo com a tradição do AT; além disso, ele será o precursor do Messias. Zacarias fica tão abismado que não pode acreditar na notícia; em virtude de sua incredulidade, fica mudo até que se cumpra a promessa.

1:5. No tempo de Herodes: Uma indicação de data. Herodes (“o Grande”) governou a Palestina e parte da Transjordânia como rei dos judeus de 37 a 4 a.C. Zacarias [...] Isabeh Nada sabemos dos pais de João, a não ser o que Lucas nos conta. Ambos eram de linhagem araônica; Zacarias pertencia ao grupo sacerdotal de Abias. Essas divisões datavam da divisão que Davi fizera das famílias araôni-cas em 24 grupos, e os descendentes de Abias formavam o oitavo grupo (lCr 24.10). Cada divisão cumpria o seu turno num rodízio duas vezes por ano, e cada período durava uma semana.

Numa época ímpia, o casal vivia uma vida de piedade exemplar; no entanto, tinha-lhes sido negada a bênção sem a qual os judeus piedosos eram considerados como estando sob a desaprovação de Deus — eles não tinham filhos (v. Lv 20.20,21; Jr 22.30).

1:9. Ele foi escolhido por sorteio [...] oferecer incenso: O privilégio de oferecer incenso era concedido ao sacerdote apenas uma vez na vida (cf. A. Edersheim, The Temple: Its Ministry and Service, 1874, p. 129); isso era designado, como toda atividade sacerdotal, por sorteio. Zacarias, sem dúvida, ficou duplamente comovido: a um dado sinal, tinha de oferecer o incenso; quando a fumaça começava a subir, todo o grupo de adoradores se prostrava em oração pessoal. Agora ele se tornou consciente da presença do anjo à direita do altar do incenso (v. 11), i.e., no lugar de autoridade. Era Gabriel, que é, além de Miguel, o único anjo denominado por nome na Bíblia (cf. Dn 8.16; 9.21).

1:13-17. A mensagem do anjo: (a) A oração de Zacarias foi ouvida e será atendida. O texto não nos diz se ele tinha orado por um filho; essa esperança talvez já tivesse sido abandonada havia tempo. A sua oração, provavelmente, era mais geral, pela “consolação de Israel” (em cujo cumprimento, se ele só tivesse sabido, seu filho teria um papel preparatório). O nome da criança deve ser João. “Javé tem sido bondoso”, (b) O filho prometido será grande aos olhos do Senhor; e será um perpétuo nazireu, separado para o serviço do Senhor, (c) Além disso, ele será cheio do Espírito Santo. Em Lucas, à parte das histórias do nascimento (João, 1.15; Maria, 1.35; Isabel, 1.41; Zacarias, 1.67; Simeão, 2.25,26), somente o nosso Senhor é descrito dessa forma (4.1). (d) Ele vai chamar os homens ao arrependimento, como anunciado em Ml 4.5,6. O Messias não é mencionado, de modo que a função de João como precursor é sugerida, e não explícita.

O nascimento de Jesus é anunciado (1.26-38)
Seis meses depois, Gabriel visita Maria, uma jovem camponesa de Nazaré, de casamento contratado, mas ainda não casada com José, um artesão descendente de Davi. Ela, diz o anjo, vai conceber um filho; ele será o tão esperado Messias. À sua pergunta perplexa, Gabriel responde que a concepção será causada pela ação sobrenatural do Espírito Santo. Maria expressa a sua aceitação dessa missão divina. As anunciações a Zacarias e Maria são bem semelhantes. Gabriel saúda ambos (1.19,26), ambos ficam perturbados (1.12,29) e encorajados pelas palavras Não tenha medo e a promessa de um filho (1.13,30). Ambos fazem perguntas (1.18.34) e recebem respostas (1.19.34,35), mas, enquanto Zacarias hesita, Maria crê.

1:26. Nazaré “está situada em lugar elevado numa encosta íngreme nas colinas da Galileia. Do seu topo acima da vila, pode-se ver ao sul toda a planície de Esdrelom, a oeste o monte Carmelo na costa do Mediterrâneo, a leste o monte Tabor, que está bem próximo, e ao norte o monte Hermom com o pico coberto de neve (SI 89.12)” (J. Finegan, Lightfrom the Ancient Past, 1959, p. 298).

1:28-37. A mensagem do anjo: O Filho de Maria seria infinitamente maior do que João. (a) O seu nome seria Jesus, “Javé é salvação” (v. 31). (b) Ele seria grande (v. 32), um título que, isolado, é geralmente reservado para o próprio Deus. (c) Como herdeiro do trono de Davi, ele vai reinar sobre o povo de Deus (v. 33). (d) O seu reino será eterno (v. 33). (Cf. ISm 7.16; Dn 2.44; 7.14 etc.)

1:34, 35. Observação acerca do nascimento virginal. A validade da tradição do nascimento virginal é muitas vezes questionada, principalmente de acordo com três linhas de ataque:

(a) Textual. Alega-se que as referências do NT são interpolações posteriores não encontradas no texto original.

(b) Histórica. Nega-se que a crença era defendida em termos gerais na igreja primitiva, mesmo que Mateus e Lucas de fato a ensinavam.

(c) Filosófica e científica. Esse evento é tido como contrário às leis da natureza e, portanto, impossível.
O tópico é devidamente analisado na maioria dos comentários. Geldenhuys trata dele brevemente de um ponto de vista conservador (p. 107ss). Balmforth (p. 111-8) apresenta uma exposição meticulosa e imparcial das evidências. Um tratamento mais amplo se encontra em J. G. Machen, The Virgin Birth of Christ (Nova York, 1932).

Não pode haver dúvida de que o nascimento virginal é uma das doutrinas cardeais da teologia cristã, e essas objeções são totalmente refutáveis.

a) Textual. Este não é o lugar para estudo linguístico detalhado, mas se pode dizer que afirmações de que o texto é deteriorado não podem ser fundamentadas em fragmentos de evidência. E significativo que um estudioso como o dr. Vincent Taylor, que não é nenhum conservador nesse assunto, diga que tentar eliminar dificuldades por meio de emendas textuais gera mais problemas do que soluções (v. Balmforth, p. 112-3).

b) Histórica. Enquanto é verdade que os outros autores do NT não mencionam o nascimento virginal, nem Marcos nem Paulo tinham razão para mencioná-lo. Então, como A. E. J. Rawlinson destaca (Christ in the Gospels, 1944, p. 23), as diferenças consideráveis entre Mateus e Lucas sugerem que essa crença “deve remontar a um período anterior àquele em que as tradições por trás dessas duas narrativas divergiam”. Em terceiro lugar, tem-se sugerido que a ideia foi tomada por empréstimo da mitologia pagã. Lendas de nascimento virginal de fato existiam na Antiguidade, mas o forte tom judaico dos relatos do NT descarta a probabilidade desse empréstimo.

c) Filosófica e científica. A nossa atitude em relação à possibilidade científica de tal evento vai depender de nossa visão geral da revelação, do NT e de milagre. Se cremos na divindade de Cristo e nos milagres das Escrituras, sem dúvida vamos concordar com James Denney (Studies in Theology, 1910, p. 64): “Jesus veio de Deus, todos os apóstolos declaram, num sentido que nenhum outro veio. Não segue então que, como dois de nossos evangelistas declaram, ele veio de uma maneira que nenhum outro veio?”.

A visita de Maria a Isabel (1.39-56)

Assim que ela ouve que a velha parenta está grávida, Maria vai ficar na casa dela por três meses. Isabel saúda a mãe do meu Senhor (v. 43) com clara percepção espiritual e sem ciúme algum — um traço que prefigura o seu filho (Jo 3.30). Maria responde com o hino de louvor tão conhecido e amado na devoção cristã como o Magnificat.

Primeiro, um aspecto textual; alguns comentaristas dão valor considerável à variante “Isabel disse” no lugar de disse Maria no v. 46, leitura citada no rodapé de algumas versões (e.g., NEB). As razões para apoiá-la são principalmente subjetivas; a maioria das versões nem ao menos a mencionam no rodapé. E encontrada apenas em algumas autoridades latinas antigas.

O Magnificat está em forma de um belo poema lírico, declamado por uma jovem camponesa judia, cujo pano de fundo são os escritos do AT, que fornecem as expressões que ela usa. A fonte principal de que ela se beneficia é o cântico de Ana (ISm 2.1-10), ao qual o seu cântico corresponde no esboço geral, como também em diversos detalhes, embora haja ecos de outros trechos do AT, como a declaração de Lia (Gn 30.13; cf. v. 48) e alguns salmos. O hino se divide em quatro estrofes:

(a) v. 46-48. Maria louva a Deus por sua bondade para com ela.
(b) v. 49,50. E para com todos os que o temem.
(c) v. 51-53. Ele socorre e defende os oprimidos contra os opressores.
(d) v. 54,55. Nos versículos finais, o cântico conclui em pacífica tranquilidade.

“Essa bela lírica”, diz Plummer (p. 30), “não é uma resposta a Isabel, nem é palavra dirigida a Deus. E, antes, uma meditação; uma expressão de emoções e experiências pessoais”. E lírica no tom não somente porque é o que Wordsworth declarou que toda poesia lírica é — “o transbordamento espontâneo de sentimentos fortíssimos” —, mas também porque Maria conhecia profundamente o AT e sabia muitas partes de cor, especialmente as líricas. Sua linguagem havia se tornado o meio natural do seu louvor.

Suas emoções haviam sido evocadas antes de tudo porque o incrível tinha se tornado realidade; ela seria a mãe do Messias, uma honra que mulheres judias almejavam, mas raramente alguém ousava esperar por isso. Maria não conseguia apresentar razão alguma por que ela havia sido escolhida como recipiente de tal honra, mas é exatamente a honra que a faz jubilar: e o meu espírito se alegra em Deus, meu salvador, pois atentou para a humildade da sua serva (v. 47,48).

Essa grande misericórdia concedida a ela é a manifestação do poder e da santidade de Deus não somente a ela, mas a sua misericórdia estende-se aos que o temem, de geração em geração (v. 50). Os dias dos opressores estão contados: dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração. Derrubou governantes dos seus tronos (v. 51,52). Isso se aplica especialmente ao seu povo Israel; o que ele prometeu a Maria, em resumo, é o padrão do seu propósito para o seu povo. “Talvez Lucas esteja [...] considerando Maria o porta-voz de Israel; por meio dela, o povo escolhido apresenta ações de graças [...] Deus olhou para a humilhação de Maria (que é Sião), e agora ela é exaltada” (Browning, p. 41-2). Independentemente da nossa concordância ou não com essa forma de tipologia, está claro que Maria viu na sua experiência a seriedade do cumprimento das promessas de Deus também para com os seus, cuja terra estava sendo ocupada por dominadores estrangeiros, e que gemiam da mesma forma sob o peso colocado sobre eles por líderes religiosos com o peso da sua tradição. Por escura que a situação parecesse, a grande Luz estava prestes a aparecer para trazer libertação para Abraão e seus descendentes para sempre (v. 55).

O nascimento e circuncisão de João (1.57-80)

O bebê de Isabel nasce logo depois da partida de Maria. Uma semana depois, ele é circuncidado em meio à alegria de vizinhos e parentes. Isabel anuncia que o seu nome será João; o pai, dando sinais de consentimento, recebe novamente a capacidade da fala. O interesse local é intenso (v. 65,66), e Zacarias expressa o seu cântico, o Benedictus (v. 67-79).

1:60, 63. “Ele será chamado João"-. O nome era comum nos dias do NT; os vizinhos se surpreenderam porque esses piedosos pais haviam escolhido um nome que era desconhecido na família de Zacarias.

1:67-69. O cântico de Zacarias. A declaração desse homem idoso inspirada espontaneamente, como a de Maria, está repleta da linguagem das Escrituras, sem dúvida o reflexo de sua longa meditação silenciosa acerca das palavras de Gabriel no templo meses antes. E uma coletânea de muitas ideias do AT, mas, enquanto o Magnificai “exala um espírito régio [...] o Benedictus tem um tom sacerdotal” (Geldenhuys, p. 92). Muitas das citações do AT vêm naturalmente dos salmos, embora haja também ecos dos profetas: v. 69, linhagem do seu servo Davi-, o v. 76 lembra a profecia do arauto em Ml 4.5,6; os v. 78,79 evocam o retrato profético (Is 9.2; Ml 4.2) da hora mais escura antes da aurora messiânica.

Os últimos dois versículos do Benedictus, aliás, preparam o cenário para o advento do Messias no capítulo seguinte, assim como os últimos versículos de Malaquias preparam o cenário para a vinda dele registrada em Mateus.

1:80. e viveu no deserto. Uma vida ascética para João já é predita no v. 15. Há sugestões de que ele tenha tido ligação com a comunidade de Gunrã dos rolos do mar Morto, mas isso é pura conjectura (v. Leaney, St. Luke, p. 91; v. tb. F. F. Bruce, Second Thougfits on the Dead Sea Scrolls, 1956, p. 128-9).

O nascimento de Jesus Cristo (2.1-7)

Uma ordem imperial de que todos os cidadãos deveriam se apresentar em sua própria cidade natal para o recenseamento traz Maria e José de Nazaré para Belém. O bebê de Maria está para nascer e, na verdade, nasce exatamente em Belém. A impossibilidade de encontrarem acomodação resulta no fato de que um cocho serve de berço para o bebê.