Apocalipse 10 — Comentário Literário da Bíblia

 Apocalipse 10 — Comentário Literário da Bíblia



Apocalipse 10
Assim como o sexto selo foi seguido pelo ato divino do “selamento” dos santos, a sexta trombeta será seguida de uma cena semelhante que retrata a proteção espiritual de Deus ao seu povo (a “medição do santuário” [v. comentário do cap. 11 adiante]). O interlúdio entre a sexta e sétima trombetas começa com a aparição dramática de um anjo, que comissiona João nos mesmos termos do comissionamento do profeta Ezequiel.

10.1 — No capítulo 10, o anjo apresenta algumas características inconfundíveis da divindade. A primeira delas é que ele está “vestido de uma nuvem”. No AT, só Deus percorre os céus ou vem à terra sobre uma nuvem. Em Êxodo 19.9-19, a descida de Deus no Sinai “numa nuvem espessa” e “em fogo” é anunciada por “trovões” e pelo “soar de trombeta”. Isso reflete o padrão de Apocalipse 10, em que se ouvem “trovões” e uma “trombeta”, em 10.3,4,7 (Filo [Decálogo 44] faz uma paráfrase de Êxodo 19.18: “... a descida de uma nuvem que, como um pilar erguido, estava com os pés plantados na terra”). Durante as peregrinações de Israel no deserto, Deus habitava entre eles na forma de uma “coluna de nuvem” e de uma “coluna de fogo” (Êx 13.20-22; 14.24; Nm 14.14; Ne 9.12,19; cf. Êx 40.38; Nm 9.15,16; 14.14; Dt 1.33; 4.11; 5.22; SI 78.14; 105.39; Is 4.5; Ez 1.4). Às vezes, a habitação de Deus entre o povo é retratada apenas numa “coluna de nuvem” (Êx 14.19; 33.9,10; 34.5; Nm 12.5; Dt 31.15; SI 99.7). Mesmo quando se faz referência somente à “nuvem” em conexão com o advento de um ser celestial, esse ser é sempre Deus (Êx 14.20; 16.10; 19.9,16; 24.15,16,18; 40.34- 37; Lv 16.2; Nm 9.17-22; 10.11,12,34; 11.25; 12.10; 16.42; 2Sm 22.12; lRs 8.10,11; 2Cr 5.13,14; SI 18.11,12; 68.4; 97.2; 104.3; Is 19.1; Jr 4.13; Ez 1.28; 10.3,4; Dn 7.13; Na 1.3; TM 17.5 pars.). A única exceção possível pode ser Daniel 7.13, em que “alguém parecido com filho de homem vinha nas nuvens do céu” para receber autoridade do Ancião de Dias. No entanto, uma vez que as nuvens em toda parte estão relacionadas com a presença de Deus, o “filho de homem” provavelmente deva ser visto como uma figura divina que representa Israel (assim entende a mais tradicional interpretação de Daniel 7.13: a antiga LXX [versus Teodócio] traz: “e quando [não ‘até que’] o Ancião de Dias chegou”). Desse modo, o anjo de 10.1 provavelmente corresponde ao “anjo de Yahweh” do AT, que é identificado como o próprio Yahweh (e.g., Gn 16.10; 22.11-18; 24.7; 31.11-13; Êx 3.2-12; 14.19; Jz 2.1; 6.22; 13.20-22; cf. Zc 3.1-3 com Jd 9; v. tb. Dn 3.25; At 7.30,35,38). Isso é confirmado por outras duas alusões a Daniel 7.13, no capítulo 1, em que aquele que “vem com as nuvens” (1.7) é identificado também como “semelhante a filho de homem” (ARA) (1.13) a quem são concedidos os atributos do divino Ancião de Dias, uma representação do “filho de homem” segundo o vocabulário já citado da antiga LXX. Uma vez que a figura do “filho de homem” em Apocalipse 1 é Jesus, ele também deve ser identificado como o “anjo do Senhor” em 10.1. A cena em que um anjo do Senhor aparece para comissionar um profeta reflete o mesmo padrão repetido no AT (e.g., Êx 3.2-12; Jz 6.22; 2Rs 1.3-15; lCr 21.18). Outra indicação de que o anjo de 10.1 é um ser divino é a informação de que “por cima de sua cabeça estava um arco-íris”.

Muito próximo desse quadro está Ezequiel 1.26-28, em que a “glória do Senhor ” tem o aspecto de um arco-íris. A única outra referência ao “arco-íris” (íris) no NT é Apocalipse 4.3: “Ao redor do trono [divino] havia um arco-íris”. Consequentemente, o arco-íris de 4.3 é aplicado de forma intencional ao ser celeste de 10.1. A descrição do anjo, no capítulo 10, corresponde ao ser celestial da visão de Daniel 10—12. Essa observação é importante porque o ser de Daniel 10 é descrito como alguém “à semelhança de filho de homem” (Dn 10.16 0 [cf. 10.6,18 LXX; 10.18 TM]), o que substancia ainda mais a ligação da visão do “filho de homem” do capítulo 1 e a descrição do anjo aqui, especialmente em vista do fato de que a visão do capítulo 1 também se apoia, em parte, em Daniel 10 (v. comentário de 1.13-16,17). Observe também a pequena mudança de vocabulário entre a expressão de 1.15 e aqui (o ser celestial em Dn 10.6 TM/LXX também tem os “pés como o brilho de bronze polido”). Em Apocalipse 10.1, os pés do ser celestial são como “colunas de fogo”, em vez de bronze refinado em fornalha. A razão da mudança é evocar a presença do Senhor com Israel no deserto, em que ele aparece como uma “coluna de nuvem” e uma “coluna de fogo” para proteger e guiar o povo.

10.3, 4 — Uma vez que é indiscutível a alusão a Amós 3.7 em 10.7, é provável que a referência ao rugido de um leão, em 10.3, seja uma alusão a Amós 3.8: “O leão rugiu, quem não temerá? O S e n h o r Deus falou, quem não profetizará?” (Bauckham 1993a, p. 259). Isso ressalta o aspecto divino do orador angélico de 10.3 (a voz de Deus é também comparada ao rugido do leão em Is 31.4; Os 11.10). O trovão é sinal de juízo no AT e em Apocalipse (cf. Êx 9.23-34 [5x]; 19.16,19; ISm 7.10; 12.17; Sl 29.3; 77.17,18; 81.7; Is 29.6; Ap 4.5; 6.1). Os sete trovões podem estar baseados no salmo 29, em que os trovões do castigo de Deus são “a voz do Senhor”, expressão repetida sete vezes no salmo (v. Kiddle &; Ross 1940, p. 169; Wilcock 1975, p. 101; Sweet 1979, p. 178; v. tb. Feuillet [1964, p. 219], que lista outros autores favoráveis a essa ideia). A ordem de “selar” os sete trovões, em 10.4b, reflete o que foi ordenado a Daniel pelo anjo, o qual é o modelo para o anjo aqui e em 10.5,6 (Dn 12.4,7,9 0 ; observe a ocorrência de sphragizõ [“selar”] em Daniel e em Apocalipse; v. tb. Dn 8.26). Muitos comentaristas veem aqui uma revogação dos juízos que teriam sido executados se Deus não tivesse “abreviado o tempo”. Isso se encaixa com o fato de que João não só deve “selar” a parte da visão/audição, mas está proibido até mesmo de anotar as palavras. Já em Daniel “selar” não se refere ao cancelamento de atos futuros, mas à obscuridade de sua concretização.

10.5,6 — A descrição do anjo e o registro de seu juramento a Deus é uma alusão direta a Daniel 12.7, texto que é um desenvolvimento de Deuteronômio 32.40, que também pode estar em segundo plano no texto de Apocalipse. Em Deuteronômio, Deus jura que julgará os ímpios. Deus também faz juramentos em outras passagens do AT (v. Gn 22.16; Êx 32.13; Is 45.23; Jr 49.13; Ez 20.5; Am 6.8; cf. Hb 6.13; v. Chilton 1987, p. 264). O conteúdo do juramento aqui segue a parentética menção à obra criadora de Deus. O juramento continua a seguir o modelo de Daniel 12.7, embora a ideia tenha sido um pouco modificada. Em Daniel 12.7, o juramento é “que isso seria para um tempo, tempos e metade de um tempo”, enquanto o juramento de Apocalipse 10.6 diz “que não haveria mais demora”. A frase de Apocalipse exprime a ideia de que existe um tempo predeterminado, em que, no futuro, os propósitos de Deus para a história serão conclu­ídos (v. Barr 1962, p. 76). A expressão pode ser traduzida por “não haverá mais atraso” (ichronizõ tem o significado de atrasar em Hc 2.3 LXX, em que o cumprimento da visão profética “não vai atrasar”, quando chegar o tempo determinado para sua execução; assim Mt 24.48; 25.5; Hb 10.37). O argumento é que quando Deus decidir pôr fim a história, não haverá atraso na execução.

10.7 — Daniel 12.7 diz ainda que, após o “tempo, tempos e metade de um tempo”, o plano profético de Deus estaria cumprido. A ocorrência de etelesthé (“cumprido”) aqui em 10.7 manifesta a influência contínua de Daniel 12.7 (cf. syntelesthêsetai [“serão cumpridas”], em Dn 12.7 LXX). João vê a profecia de Daniel sobre o “tempo, tempos e metade de um tempo” cumprida na era da igreja culminando no Juízo Final (v. comentário de 11.2; 12.6; 13.5 adiante). A expressão “o mistério de Deus” é mais bem entendida como genitivo de origem ou como genitivo subjetivo, uma vez que é Deus quem revela o mistério em Daniel. O texto de Amós 3.7 é combinado com a ideia do mistério de Daniel, e isso vem a ser outra confirmação do genitivo de origem ou genitivo subjetivo: Amós diz que Deus não fará coisa alguma “sem a revelar aos seus servos, os profetas” (a mesma combinação de Daniel e Amós aparece em lQpHab 7.4-5 [v. Beale 1984, p. 35-7]). O contexto mais amplo de Amós 3.4-8 contém a tripla menção a Deus rugindo como leão (1.2; 3.4,8 [cf. Ap 10.3]) e a uma trombeta tocando (3.6 [cf. Ap 10.7]), tudo como forma de predizer o juízo, como em Apocalipse 10 (assim Farrer 1964, p. 124). O termo mystêrion (“mistério”) foi escolhido por remeter a Daniel. No AT grego, é usado em conexão com os últimos dias apenas em Daniel, que se refere à interpretação da profecia do final dos tempos como um mistério que prescinde de revelação para ser entendido (assim Dn 2.19,27-30,47; cf. 4.60) . Em outras partes do NT, indica muitas vezes o início de um cumprimento evidente, mas inesperado (do ponto de vista do AT) (v. Beale 1999b, p. 215-72, que inclui a discussão sobre o elemento não esperado de Ap 10).

10.9,10 — A ordem de comer o rolo sem dúvida remete a Ezequiel 2.8—3.3. O profeta Ezequiel foi chamado para advertir Israel da iminente ruína, caso o povo não se arrependesse da incredulidade e da idolatria (3.17-21; 5— 14). Ele deve pregar de modo que o povo saiba “que um profeta esteve no meio dele”, mas também é avisado: “Israel não aceitará ouvir-te [...] porque toda a casa de Israel é obstinada e rebelde” (2.2-8; 3.4-11). Portanto, sua mensagem é basicamente de juízo, o qual é enfatizado pelo aspecto do rolo, que “estava escrito por dentro e por fora; e nele estavam escritos lamentos, prantos e ais” (2.10). Contudo, um remanescente crerá e se arrependerá (3.20; 9.4-6; 14.21-23). O ato de comer o rolo significa a identificação do profeta com sua mensagem. O doce sabor do rolo faz alusão ao atributo de sustentação da vida pela palavra de Deus que permite ao profeta realizar sua tarefa (e.g., Dt 8.3) e ao efeito positivo e animador das palavras divinas na instrução e orientação aos que se submetem a elas (e.g., SI 19.7-11; 119.97-104; Pv 16.21- 24; 24.13,14). Embora a tarefa de Ezequiel seja solene, ele tem prazer na mensagem dolorosa, porque é a vontade de Deus, que é boa e santa. No entanto, ele não desfruta desse prazer por muito tempo, uma vez que está concentrado no propósito geral de sua convocação para anunciar o juízo. Ezequiel não diz que o rolo lhe foi amargo no estômago, porém menciona os “lamentos, prantos e ais” do rolo (2.10), que depois de comido (cf. 3.3a) provocou no profeta uma reação de “amargor” (3.14).

O amargor provém de sua dor pela iminente destruição de Israel ou de sua ira pela recusa de Israel em se arrepender. Paralelos notáveis são encontrados em Jeremias 6.10b,11a e especialmente em 15.16,17: “Quando as tuas palavras foram encontradas, eu as comi; e elas eram para mim o regozijo e a alegria do meu coração [...], pois me encheste de indignação”. No contexto, a alegria e a ira das palavras de Deus comidas por Jeremias dizem respeito, respectivamente, ao bem-estar do próprio profeta e ao julgamento dos inimigos (a LXX, em vez da “indignação” de Jeremias, traz a palavra pikria [“amargor”], que é a forma nominal do verbo utilizado em Ap 10.9,10). Assim como os antigos profetas, João pregará uma mensagem que é doce para quem observa a palavra de Deus, mas carrega juízo amargo para quem a recusa.

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