Eclesiastes 2: Significado, Teologia e Exegese

Eclesiastes 2

Eclesiastes 2 continua a investigação filosófica existencial proposta no capítulo anterior, mas agora se concentra diretamente na experiência prática de vida do Qohelet — o "Pregador". A estrutura do capítulo segue um movimento introspectivo em três grandes experimentos existenciais: (1) o prazer (vv. 1–11), (2) a sabedoria comparada à loucura (vv. 12–17), e (3) o trabalho (vv. 18–23), culminando numa conclusão momentânea (vv. 24–26) que aponta para a soberania divina como resposta provisória ao dilema da existência.

Estilisticamente, o capítulo mantém o uso de um hebraico sapiencial direto, reflexivo, marcado por paralelismos e construções gramaticais que revelam a voz de um narrador experiente. Há um uso repetitivo do pronome de primeira pessoa singular (ʾăni) e do perfeito consecutivo (waw-conversivo) para narrar ações passadas contínuas, como em āmartî (“eu disse”, v. 1), naṭaʿtî (“plantei”, v. 4), ʿāśîtî (“fiz”, v. 4), o que dá ao texto uma cadência autobiográfica e confessional. O uso repetido de verbos no qal perfeito (como ra’îtî, “vi”) marca a conclusão reflexiva de cada bloco, enquanto a expressão heḇel (“vaidade”, “vapor”, v. 1, 11, 15, 17, 19, 21, 23, 26) permanece a palavra-chave do livro — sendo mencionada sete vezes somente neste capítulo — e define o tom sombrio e desiludido da jornada existencial.

Outros termos centrais são: śĕḥōq (“riso”, v. 2), representando o prazer superficial; ḥokmāh (“sabedoria”, v. 13), símbolo da razão e da reflexão; ʿāmāl (“trabalho/labor”, vv. 10, 11, 18, 19, 20, 21, 22), conceito fundamental que será explorado ao longo de todo o livro; ʿiṯtōn (“aflição”, v. 23), palavra rara que intensifica o sofrimento psicológico.

O versículo que melhor encapsula a tese do capítulo — seu versículo-chave — é o versículo 11: “Considerei todas as obras que as minhas mãos fizeram, como também o trabalho que eu, trabalhando, tinha feito; e eis que tudo era vaidade (heḇel) e correr atrás do vento (rĕʿût rūaḥ), e nenhum proveito havia debaixo do sol (ʿēn yitrôn taḥaṯ haššāmeš).”

Esse versículo funciona como uma síntese dos três grandes temas tratados no capítulo — prazer, sabedoria e trabalho — e ecoa a frustração de quem tenta extrair sentido da existência sem referência ao eterno.

Teologicamente, Eclesiastes 2 dialoga profundamente com a doutrina cristã do pecado e da redenção. A frustração de Qohelet com o prazer, a sabedoria e o trabalho ecoa o diagnóstico paulino de Romanos 8:20: “a criação foi sujeita à vaidade (mataiotēti)... não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou”. Paulo parece ecoar a linguagem do Qohelet ao usar o termo grego mataiotēs, que é justamente a palavra que a Septuaginta emprega para traduzir heḇel. Assim, a tensão existencial do capítulo 2 encontra resposta não no próprio esforço humano, mas na intervenção graciosa de Deus: “Tudo é vosso... seja o mundo, seja a vida, seja a morte... vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1 Coríntios 3:22–23). A frustração de Eclesiastes antecipa, portanto, a revelação de que o homem só encontra sentido em Cristo.

No Antigo Testamento, a experiência amarga do “trabalho que é dado aos filhos dos homens” (cf. v. 23) remete à maldição de Gênesis 3:17–19, onde o labor humano é marcado pelo suor, dor e frustração — o que explica a constatação do autor: “até à noite o seu coração não descansa” (v. 23). A busca por prazer lembra também os caminhos de Salomão, descritos em 1 Reis 11, e sua decadência espiritual provocada por excesso e idolatria — intertextualidade fundamental para o pano de fundo do capítulo.

A lição geral de Eclesiastes 2 é clara: toda tentativa de encontrar sentido em realizações humanas — seja no hedonismo, no racionalismo ou no produtivismo — termina em frustração quando desconectada de Deus. A estrutura circular do capítulo — que termina com uma nota de alívio ao mencionar que o “homem não pode desfrutar sem Deus” (v. 25) — antecipa a tese final do livro: “Teme a Deus e guarda os seus mandamentos, porque isto é o dever de todo homem” (12:13). O capítulo é, portanto, uma denúncia poderosa contra a autossuficiência e uma convocação à transcendência: o sentido da vida não se encontra nos frutos do homem, mas no dom de Deus.

📝 Resumo de Eclesiastes 2:

A Busca por Significado na Experiência Humana

Eclesiastes 2 apresenta a jornada do Pregador em sua busca por significado e satisfação na vida, explorando diversas experiências humanas. Ele inicia sua investigação dedicando-se ao prazer e à alegria (Ec 2:1-3). O Pregador decide testar a vida através da alegria, do vinho e da insensatez, pensando que talvez assim encontraria o bem para os filhos dos homens. No entanto, ele conclui rapidamente que isso também é vaidade. Ele busca ver o que é bom para os homens fazerem debaixo do céu durante os poucos dias de suas vidas.

Em seguida, o foco se volta para as grandes obras e conquistas (Ec 2:4-11). O Pregador empreende projetos grandiosos: constrói casas, planta vinhas, faz jardins e pomares, cria açudes para irrigação, adquire servos e servas, possui grandes rebanhos, acumula prata e ouro, e desfruta de cantores e concubinas. Ele se torna maior do que todos os que o precederam em Jerusalém. Apesar de toda essa riqueza e poder, ele reflete sobre o trabalho de suas mãos e conclui que tudo é vaidade e correr atrás do vento, sem proveito debaixo do sol. Ele percebe que não há vantagem em ter todas essas coisas, pois no final, tudo se desfaz.

A reflexão do Pregador prossegue, contrastando a sabedoria com a estultícia (Ec 2:12-17). Ele observa que a sabedoria é mais proveitosa que a estultícia, assim como a luz é melhor que as trevas. O sábio tem olhos no rosto, mas o tolo anda nas trevas. No entanto, ele também percebe que o mesmo destino alcança a ambos: a morte. Isso o leva a uma profunda frustração, pois tanto o sábio quanto o tolo serão esquecidos. Ele chega à conclusão de que odeia a vida, pois todo o trabalho feito debaixo do sol lhe parece aflitivo e inútil.

Ainda mais desanimador é o pensamento sobre o fruto do trabalho e a herança (Ec 2:18-23). O Pregador se atormenta com a ideia de deixar todo o seu trabalho para alguém que virá depois dele, sem saber se esse será sábio ou tolo. Isso gera um sentimento de desespero e frustração, pois toda a sua labuta e sabedoria não garantem que seus sucessores farão bom uso de sua herança. Ele reconhece que, para o homem, é comum ter dores, aflições e noites sem repouso. O trabalho se torna um fardo, e a herança, uma preocupação.

Finalmente, o Pregador apresenta sua conclusão sobre a vida e o propósito (Ec 2:24-26). Ele afirma que não há nada melhor para o homem do que comer, beber e desfrutar do bem em seu trabalho, pois isso vem da mão de Deus. Ele reconhece que a capacidade de desfrutar da vida é um dom divino. Para o homem que Lhe agrada, Deus dá sabedoria, conhecimento e alegria, enquanto ao pecador Ele dá o trabalho de ajuntar e amontoar para depois dar ao que agrada a Deus. No entanto, o Pregador reitera que isso também é vaidade e correr atrás do vento. Ele sugere que a verdadeira satisfação não está nas posses ou nas conquistas, mas sim na perspectiva de que tudo é um presente de Deus.

📖 Comentário de Eclesiastes 2

Eclesiastes 2:1 afirma: “Disse eu no meu coração: vem agora, eu te provarei com alegria; portanto goza o prazer; mas eis que também isso era vaidade.” Esta declaração inaugura a segunda fase da investigação existencial do Qoheleth, marcada por um experimento deliberado de entrega ao prazer como meio de encontrar sentido à vida. O versículo é introspectivo — “disse eu no meu coração” — expressão que aparece repetidamente em Eclesiastes (cf. 1:16; 2:15; 3:17) e indica não apenas reflexão subjetiva, mas um exame filosófico interno da realidade humana. Aqui o autor decide conscientemente conduzir sua alma (libbî) por um caminho de alegria (śimḥāh), testando se o prazer pode oferecer respostas mais satisfatórias do que a sabedoria havia proporcionado em sua análise anterior (1:13–18).

O termo hebraico usado para “alegria”, śimḥāh, é semanticamente ambíguo: pode indicar tanto uma alegria profunda e justa quanto uma mera euforia passageira. O contexto aqui aponta para a segunda possibilidade — um hedonismo exploratório que abarca risos, festas, bebidas e prazeres sensoriais. O paralelismo literário com o que se segue (v. 2: “do riso disse: é loucura”) confirma que se trata de uma crítica à superficialidade do contentamento desvinculado do temor de Deus. Trata-se de uma alegria desvinculada da aliança, da Torah e da esperança escatológica.

A expressão “goza o prazer” traduz o imperativo hebraico ûrĕʾeh ṭôḇ, que literalmente significa “vê o bem” ou “desfruta do bem”. Essa expressão reaparece em Eclesiastes 3:13 e 5:18, em contextos onde o “bem” é apresentado como um dom divino limitado, mas legítimo, no contexto de um mundo caído. Aqui, porém, sua primeira aparição é ironicamente frustrada: a experiência hedonista conduz apenas à conclusão amarga — “isso também era vaidade” (heḇel). O vocábulo heḇel — literalmente “vapor”, “sopro” — representa a metáfora dominante em todo o livro, sugerindo algo transitório, ilusório, incapaz de ser apreendido ou retido. No Novo Testamento, Tiago 4:14 retoma essa imagem ao dizer: “A vossa vida é como um vapor que aparece por um pouco e depois se desvanece.”

O argumento de Eclesiastes 2:1 reflete um ponto de tensão teológica profundo. Não se trata de um ascetismo moralista, mas de uma constatação empírica: os prazeres, mesmo quando legítimos e refinados, não sustentam o peso da existência. Romanos 1:21 descreve o mesmo movimento descendente: “tornaram-se fúteis em seus pensamentos, e o seu coração insensato se obscureceu”, ao rejeitarem a glória do Criador e buscarem satisfação em criaturas. Há uma ressonância entre o projeto hedonista do Qoheleth e a crítica paulina ao humanismo secularizado.

Este versículo, portanto, marca o início de um experimento com o prazer, mas desde o início já antecipa seu fracasso. O tom irônico de “eu te provarei com alegria” parece carregar a semente da decepção, como quem sabe de antemão que o teste não será bem-sucedido. Essa declaração é um convite autoimposto a uma imersão profunda nos deleites terrenos. O Pregador não apenas se permite desfrutar, mas se propõe a “provar” a alegria, a testá-la em sua plenitude, como um cientista que busca uma verdade através da experimentação. A palavra hebraica para “vaidade”, hevel, permeia Eclesiastes e é a chave para a compreensão aqui.

Ela significa fôlego, vapor, algo sem substância, transitório, que se desvanece rapidamente. Ao afirmar que “também isso era vaidade”, o Pregador antecipa o desfecho de seus experimentos com o prazer, concluindo imediatamente a futilidade dessa busca isolada de um propósito maior. Ele sublinha a ironia de que aquilo que promete a máxima satisfação se revela tão efêmero quanto o ar que respiramos. A partir daqui, o livro não condena o prazer em si, mas o prazer como finalidade. É uma crítica ontológica, não moral: o prazer, divorciado da eternidade, é vaidade. Como Cristo mesmo declarou em Lucas 12:19–20, diante do homem que dizia “come, bebe, regala-te”: “Louco, esta noite te pedirão a tua alma.” O Qoheleth antecipa essa denúncia, desmascarando a ilusão de que os prazeres da vida podem oferecer redenção.

No contexto do Antigo Testamento, essa exploração do prazer como fonte de sentido contrasta nitidamente com a sabedoria prática encontrada no livro de Provérbios. Enquanto Provérbios frequentemente associa a alegria e a prosperidade à obediência e ao temor do Senhor (como em Provérbios 10:22, onde “a bênção do Senhor enriquece, e ele não acrescenta dores”), Eclesiastes 2:1 mostra o experimento do prazer sem uma referência explícita à vontade divina como base. O Pregador busca o prazer em si mesmo, testando sua capacidade inerente de sustentar a alma. Essa busca terrena se alinha, de certa forma, à profunda crise existencial explorada no livro de Jó, onde a dor e a perda levam a questionamentos sobre o sentido da vida, assim como a busca de Eclesiastes questiona o sentido da vida na abundância. Em contraste, os Salmos frequentemente celebram a alegria como um dom de Deus e um fruto da comunhão com Ele (como em Salmo 16:11: “Na tua presença há plenitude de alegria; à tua direita, delícias perpetuamente”), reafirmando que a verdadeira e duradoura alegria está enraizada no Criador, não nas experiências efêmeras.

A conclusão do Pregador em Eclesiastes 2:1 sobre a vaidade do prazer encontra ecos poderosos no Novo Testamento, validando a perspectiva de que a satisfação duradoura não está nas coisas deste mundo. Jesus, em seus ensinamentos, consistentemente advertiu contra a ilusão da segurança e da felicidade baseadas em bens materiais. Em Mateus 6:19-21, Ele exorta a não ajuntar tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem corroem e os ladrões roubam, mas sim a ajuntar tesouros no céu. Essa distinção entre o efêmero e o eterno captura a essência do “hevel” de Eclesiastes. A parábola do Rico Insensato em Lucas 12:15-21 é uma ilustração vívida da futilidade da busca por prazer e segurança na acumulação de riquezas; o homem que se gloriava em seus bens e planejava uma vida de deleite é chamado de “insensato” por Deus, pois sua vida lhe seria tirada na mesma noite, e tudo o que acumulou seria em vão.

O apóstolo Paulo, por sua vez, complementa essa perspectiva ao contrastar a sabedoria e as prioridades mundanas com a realidade espiritual. Em 1 Timóteo 6:6-10, ele adverte que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”, e que aqueles que se lançam a essa busca “caiem em tentação, e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína”. Essa “ruína” e “perdição” são a face mais sombria da “vaidade” de Eclesiastes. Paulo, em Filipenses 4:11-13, oferece o contraponto final à busca do Pregador, revelando que a verdadeira satisfação (“contentamento”) não depende das circunstâncias ou da abundância de prazeres, mas de uma força que vem de Cristo. A vida, como um “vapor que aparece por um pouco, e logo se desvanece”, conforme descrito em Tiago 4:13-14, serve como um lembrete neo-testamentário da brevidade da existência e da consequente futilidade das buscas terrenas sem um propósito eterno.

Assim, Eclesiastes 2:1, em sua concisa declaração sobre a vaidade da alegria e do prazer, estabelece um fundamento para a crítica bíblica à autossuficiência e à busca por satisfação puramente terrena. Ele atua como um espelho que reflete as limitações de uma vida “debaixo do sol”, preparando o coração para a única e verdadeira fonte de sentido e alegria duradoura, que é encontrada não nos prazeres e nas posses, mas na sabedoria que vem de Deus e na relação com Ele.

Eclesiastes 2:2 declara: “Do riso disse: é loucura; e da alegria: de que serve esta?”. A jornada experimental do Pregador em busca de sentido continua neste segundo versículo, que segue sua decisão de testar o prazer e a alegria como fontes de satisfação. Este versículo representa o primeiro juízo explícito emitido por Qoheleth a respeito dos frutos iniciais de sua investigação pelo prazer. Após haver decidido “provar a alegria” (v. 1), o autor não apenas descreve os elementos desta experiência, mas já começa a julgá-los, desmascarando-os como ilusórios e fúteis. O termo “riso” (śeḥōq) está aqui ligado ao tipo de euforia superficial, comum nas festas e ambientes de entretenimento, e aparece contraposto ao discurso da sabedoria em Provérbios 14:13: “Mesmo no riso pode haver tristeza, e a alegria pode terminar em dor.”

Este riso, muitas vezes associado à espontaneidade e à leveza da vida, é subitamente desqualificado como “loucura” ou “doidice”. Essa não é uma condenação do riso em si, mas do riso ou da alegria como um fim em si mesmos, desprovidos de um propósito ou significado mais profundo. A alegria, quando buscada de forma hedonista, sem base em algo substancial ou duradouro, é questionada em sua própria utilidade: “Para que serve esta?”. A resposta implícita é que não serve para nada que vá além do momento efêmero, não preenche o vazio existencial, e não oferece um sentido perene à vida. É a percepção da vacuidade do prazer quando este se torna o único objetivo.

Essa visão cética do riso e da alegria tem raízes e paralelos no próprio Antigo Testamento. Embora a alegria seja um tema recorrente na Escritura, frequentemente associada à bênção divina e à comunhão com Deus (como nos Salmos, onde se canta sobre a alegria na presença do Senhor, por exemplo, Salmo 126:2: “Então a nossa boca se encheu de riso, e a nossa língua de cânticos”), Eclesiastes 2:2 introduz uma nuance importante: a alegria que não tem sua fonte em Deus ou em um propósito maior pode ser superficial e até mesmo enganosa. Provérbios também aborda a diferença entre o riso insensato e a verdadeira alegria. Provérbios 14:13 adverte que “até no riso o coração pode estar triste, e o fim da alegria pode ser a tristeza”, ecoando a percepção do Pregador de que o riso superficial esconde um vazio. Há uma distinção entre a alegria genuína que vem da sabedoria e do temor a Deus e o riso leviano que caracteriza o tolo. Em Eclesiastes 7:2-6, o próprio Pregador elabora que “melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete”, e que “a tristeza é melhor do que o riso”, pois “o coração dos sábios está na casa do luto, mas o coração dos tolos, na casa da alegria”. Isso sublinha a superficialidade do riso não temperado pela realidade da vida.

O verbo “disse” reforça a estrutura de diálogo interior do pregador com sua própria alma, presente ao longo do capítulo. Ele não está apenas descrevendo eventos, mas tecendo um julgamento racional e moral. O substantivo “loucura” traduz o hebraico hōlelāh, termo que pode significar tanto insensatez quanto desequilíbrio, e é usado várias vezes em Eclesiastes (cf. 1:17; 2:12; 7:25). Trata-se de um tipo de comportamento que, embora possa parecer “normal” ou mesmo desejável aos olhos do mundo, é, no final das contas, vazio e contraproducente. Qoheleth descreve o riso como um surto insensato — não por seu tom, mas por sua ineficácia diante da realidade última da existência.

A segunda sentença do versículo (“e da alegria: de que serve esta?”) usa a palavra śimḥāh novamente, como no v. 1, porém agora de modo claramente crítico. A expressão “de que serve?” traduz o hebraico māh zōʾṯ ʿōśeh, literalmente “o que isto faz?”, isto é, “qual é o seu efeito prático?” — indicando o caráter estéril da experiência. Esta interrogação, com forma retórica, revela a desilusão crescente do autor: mesmo a alegria, em si mesma boa, quando tomada como finalidade, não produz mudança real na condição humana.

O versículo opera, portanto, como uma crítica filosófica e teológica à tentativa de lidar com o absurdo da existência por meio do entretenimento. No Novo Testamento, os ensinamentos de Jesus e dos apóstolos frequentemente confrontam a busca por prazeres mundanos que Eclesiastes 2:2 denuncia como fúteis. A admoestação de Jesus em Lucas 6:25 “Ai de vós, os que agora rides! Porque lamentareis e chorareis” serve como um severo eco à conclusão do Pregador. Jesus inverte a expectativa terrena: aqueles que vivem apenas para o riso e a alegria passageira sem se preocupar com as realidades espirituais e a justiça, enfrentarão tristeza duradoura. O versículo também ecoa o conceito joanino da verdadeira alegria: João 16:22 diz que “a vossa alegria ninguém poderá tirar”, sugerindo que há uma simḥāh que transcende o mundo caído — uma que não é “loucura”, mas dom do Espírito. Paulo, em Gálatas 5:22, lista a “alegria” como um fruto do Espírito, distinguindo-a da mera busca hedonista. A alegria cristã não é uma emoção passageira baseada em circunstâncias favoráveis, mas uma virtude cultivada pela presença divina, uma alegria que pode coexistir com o sofrimento, como se vê em Tiago 1:2 (“Meus irmãos, tende por motivo de grande alegria o passardes por várias provações”). Isso contrasta diretamente com a futilidade da alegria sem propósito que o Pregador descreve. Finalmente, a visão de 1 João 2:15-17 adverte: “Não ameis o mundo nem o que no mundo há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele”, e lista “a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” como coisas que não vêm do Pai, mas do mundo. Estas “concupiscências” representam precisamente o tipo de busca por prazer e alegria que Eclesiastes 2:2 considera vaidade, pois são transitórias e não levam à vida verdadeira e eterna.

Em suma, Eclesiastes 2:2 é um lamento inicial sobre a incapacidade do riso e da alegria desvinculados de um propósito maior de fornecerem satisfação duradoura. O Pregador, através de sua experiência, desmistifica a crença de que o prazer em si é a chave para a vida. Essa percepção antiga é validada e aprofundada nas Escrituras posteriores, que consistentemente apontam para uma alegria e um propósito transcendentes, enraizados na relação com Deus e na vivência de Sua vontade, em oposição à busca vã por felicidade nos divertimentos e efemeridades do mundo.

Eclesiastes 2:3 diz: “Propus no meu coração dar-me ao vinho, conduzindo, porém, o meu coração com sabedoria, e entregar-me à loucura, até ver o que seria melhor que os filhos dos homens fizessem debaixo do céu, durante os poucos dias da sua vida.” Este versículo inaugura um novo estágio no experimento existencial de Qoheleth, no qual ele testa os limites da vida hedonista, não de forma insensata ou meramente impulsiva, mas com uma espécie de método filosófico e introspectivo. O hebraico inicia com tarti bilbbî limšōk bayyayin, literalmente “examinei no meu coração atrair-me pelo vinho”, onde limšōk denota “puxar”, “atrair”, e implica um movimento consciente, voluntário — não uma entrega total à embriaguez, mas uma aproximação reflexiva.

O Pregador revela a metodologia de seu experimento: ele busca saciar os desejos da carne, especificamente através do vinho e, por extensão, dos prazeres sensoriais e excessos. Contudo, e aqui reside um elemento crucial de sua abordagem, ele o faz “conduzindo-me, contudo, com sabedoria”. Isso não significa que ele aprova a embriaguez ou a insensatez desenfreada; antes, ele se propõe a mergulhar nos prazeres, mas com uma mente analítica e observadora, buscando discernir se a estultícia, ou a loucura mundana, poderia de alguma forma revelar o que é verdadeiramente “bom” para a humanidade em sua breve existência. O que se vê aqui não é a decadência irracional do bêbado, mas o experimento de um homem que deseja entender se o prazer físico e sensorial — simbolizado pelo vinho — poderia, com a companhia da sabedoria (uḇelibbî nōhēg baḥokmāh), conduzir a alguma descoberta legítima sobre a condição humana. O verbo nōhēg é usado para indicar o “conduzir” de animais ou veículos, dando a entender que o coração (a sede da razão no hebraico bíblico) ainda tinha as rédeas do experimento. A expressão “me apoderar da estultícia” sugere uma exploração deliberada, quase um estudo antropológico da insensatez, para ver se há alguma verdade ou satisfação oculta nela. Seu objetivo final permanece o mesmo: descobrir a verdadeira natureza do “bem” para os seres humanos “debaixo do céu” – uma vida vivida sem uma perspectiva transcendente.

Esse método usado pelo autor de Eclesiastes ressoa muito bem a evolução do pensamento filosófico grego, que tem suas orígens nos misticismo de Pitágoras, e especialmente no culto a Baco. O renomado filósofo Bertrand Russel, em sua trilogia História da Filosofia Ocidental, vol. 1, comenta:

“Na embriaguez, seja ela física ou espiritual, ele recupera a intensidade emotiva que a prudência havia destruído; a seus olhos, o mundo se torna cheio de deleites e beleza, e sua imaginação é subitamente libertada da prisão das preocupações cotidianas. O ritual báquico produzia o chamado “entusiasmo”, o que etimologicamente significa o ingresso do deus no adorador, que então acreditava ser um só com a divindade.

Muito do que há de mais sublime nas obras humanas envolve certo elemento de embriaguez, certa abolição da prudência por meio da paixão. Sem o elemento báquico, a vida seria desinteressante; com ele, é perigosa. A oposição entre prudência e paixão constitui conflito que perpassa a história. Não se trata, porém, de um conflito no qual devemos nos alinhar por inteiro a um dos lados.” (p. 39)

“Entre os filósofos gregos, assim como entre os filósofos de épocas posteriores, havia aqueles que eram sobretudo científicos e aqueles que eram sobretudo religiosos; estes últimos deviam muito, direta ou indiretamente, à religião de Baco. Isso se aplica de modo especial a Platão e, por meio dele, àqueles desdobramentos que acabaram incorporados à teologia cristã.” (p. 40)

“Originalmente, o culto de Dionísio era selvagem e, em certos aspectos, repulsivo. Não foi nesta forma que ele influenciou os filósofos, e sim na forma espiritualizada atribuída a Orfeu, que era asceta e substituiu a embriaguez física pela mental.” (ibid.)

“Os órficos constituíam uma seita ascética; o vinho, para eles, era tão somente um símbolo, a exemplo do que seria no sacramento cristão. A embriaguez que buscavam era a embriaguez do “entusiasmo”, da união com o deus. Desse modo, acreditavam adquirir um conhecimento místico que não poderia ser obtido por meios ordinários. Esse elemento místico adentrou a filosofia grega por meio de Pitágoras, que reformou o orfismo do mesmo modo como Orfeu reformara a religião de Dionísio. A partir de Pitágoras, os elementos órficos passaram à filosofia de Platão e, de Platão, à maior parte da filosofia que teve algum grau de religiosidade.” (p. 42)

Assim, a correlação metodológica filosófica dos gregos começa com sua relação com a religião dita pagã, onde se buscava o estado espitêmico por meio da embriaguez. Isso, a postiori, foi refinado pela racionalização pelos pré-socráticos, que extraíram a objetivo da embriaguez (ou seja, contemplar o que o sobreidade não completa), e substituição pela razão pura.

A relação com o vinho e o prazer é um tema recorrente em todo o Antigo Testamento, embora com nuances distintas. Enquanto alguns textos, como Salmos 104:15, reconhecem o vinho como uma dádiva de Deus “que alegra o coração do homem”, e Provérbios 31:6-7 sugere vinho para os que perecem ou amargurados na alma, há também advertências severas contra o seu abuso e a embriaguez. Provérbios 20:1 declara: “O vinho é escarnecedor, e a bebida forte alvoroçadora; e todo aquele que neles errar nunca será sábio”. O Pregador, ao “conduzir-se com sabedoria” mesmo ao experimentar o vinho e a estultícia, pode estar tentando evitar as armadilhas da embriaguez enquanto ainda explora seus efeitos sobre a alma, mas o texto sugere que, ao final, essa busca se revelará infrutífera. Sua tentativa de conciliar sabedoria com a experimentação da loucura (e.g., “apoderar-me da estultícia”) ecoa a complexidade da sabedoria em Jó, que, apesar de seus discursos, revela-se insuficiente para compreender plenamente os desígnios divinos sem a revelação direta de Deus.

Qoheleth não se abandona ao delírio do vinho, mas se coloca intencionalmente entre a sabedoria e a “loucura” (siklût), palavra derivada de sāḵāl, termo para “tolice” ou “insensatez grosseira”. Ele deseja experimentar até que ponto o prazer desgovernado pode ensinar alguma lição, mas sem se desviar da consciência. Aqui a “loucura” não é apenas um estado clínico, mas uma representação de estilos de vida fúteis e vaidosos, como aparece em Provérbios 9:13-18, onde a mulher insensata (ʾiššāh kesilût) atrai os incautos à morte.

A busca por satisfação nos prazeres e na estultícia é veementemente abordada no Novo Testamento. Jesus, em seus ensinamentos, consistentemente prioriza o reino de Deus sobre os prazeres e as preocupações mundanas. A admoestação em Mateus 6:33 (“Buscai, pois, em primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas”) contrasta diretamente com a metodologia do Pregador de buscar o prazer e a estultícia para encontrar o “bem” na vida. Os apóstolos também ecoam essa perspectiva. Paulo, em Romanos 13:13-14, exorta os crentes a andarem honestamente, “não em glutonarias e bebedeiras, não em desonestidade e dissoluções, não em contendas e inveja; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não tenhais cuidado da carne em suas concupiscências”.

Essa passagem é uma refutação direta à busca do Pregador por agradar à carne com vinho e à estultícia, apontando para Cristo como a única fonte de verdadeira satisfação e libertação das concupiscências. A superficialidade e o perigo do prazer mundano são igualmente destacados em Efésios 5:18, onde Paulo adverte contra a embriaguez com vinho, em contraste com ser “cheio do Espírito”. Essa passagem não apenas condena o excesso, mas oferece uma alternativa divina e espiritualmente gratificante para a busca humana por plenitude, algo que o Pregador ainda não encontrou em sua exploração “debaixo do sol”.

A expressão ad eʾreh mah tôv libnê haʾādām — “até que eu visse o que é bom para os filhos dos homens” — revela o objetivo da experiência: discernir, empiricamente, o tôv (“bom”, “proveitoso”) da vida humana. Trata-se do mesmo vocábulo usado em Gênesis 1 para descrever o julgamento divino sobre a criação (“E viu Deus que era bom”), e sua aparição aqui indica que o Pregador busca, em última análise, uma ética do prazer com valor ontológico — algo que possa ser considerado “bom” não apenas circunstancialmente, mas essencialmente.

No entanto, ele o faz “debaixo do céu” (taḥat haššāmayim), isto é, dentro da esfera limitada da experiência humana terrena, sem a revelação vertical. Este é um ponto teológico decisivo: sem a intervenção de Deus, até mesmo a sabedoria se transforma em um instrumento de vaidade.

A LXX verte este versículo com a expressão κρατῆσαι ἐν ἀφροσύνῃ (“dominar na tolice”) que demonstra que Qoheleth pretende experimentar a insensatez, mas mantê-la sob controle, como um cientista observa uma reação sem se envolver nela.

Cristologicamente, há aqui um contraste fundamental: enquanto Qoheleth tenta experimentar a alegria carnal sem perder a razão, Cristo oferece o vinho novo do Reino (cf. João 2:1–11) como símbolo de uma alegria plena e transformadora, que não vem do experimento humano, mas do dom divino. Ao contrário de Qoheleth, que busca o tôv na experiência sensorial, Jesus afirma: “Eu sou o bom pastor” (ho poimēn ho kalos, ὁ ποιμὴν ὁ καλός — João 10:11), identificando-se como a própria fonte do tôv que transcende a vaidade sob o sol.

Em suma, Eclesiastes 2:3 narra a tentativa do Pregador de investigar se a satisfação da carne e a experimentação da loucura poderiam, paradoxalmente, revelar o sentido da vida humana. Essa busca, conduzida com uma curiosidade quase científica, mas ainda fundamentalmente terrena, é um ponto de partida para sua conclusão inevitável de que nada “debaixo do sol” pode oferecer uma alegria duradoura ou um propósito final. A experiência do Pregador ressoa com as advertências e ensinamentos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, que, embora reconheçam o prazer como parte da vida, o subordinam a um propósito maior e à busca por Deus, a única fonte de verdadeira sabedoria e satisfação que transcende a efemeridade da existência humana.

Eclesiastes 2:4 afirma: “Empreendi grandes obras: edifiquei para mim casas; plantei para mim vinhas.” O versículo inicia a descrição do primeiro grande experimento de Qoheleth após o hedonismo moderado: agora ele se volta à realização de grandes projetos arquitetônicos e agrícolas como tentativa de alcançar sentido e permanência. A ênfase no pronome pessoal “para mim” () repetido tanto em “casas” (bātîm) quanto em “vinhas” (kĕrāmîm) sugere o centro egocêntrico da empreitada — ele não constrói para a glória de Deus, nem para o bem comum, mas para seu próprio prazer e identidade.

O verbo gādal, “empreender grandes obras”, transmite a ideia de magnificência, e remete imediatamente à figura de Salomão, que, segundo 1 Reis 7:1-12, levou 13 anos para construir sua casa e que, no capítulo anterior, já havia sido evocado em Eclesiastes 1:12–16 como paradigma do homem que teve acesso a todos os recursos. A construção de casas evoca não apenas a grandeza real, mas a tentativa de imortalidade por meio de monumentos (cf. Gênesis 11:4, “edifiquemos para nós uma cidade e uma torre… para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra”).

No Antigo Testamento, a construção e o acúmulo de riquezas são temas ambivalentes. Enquanto grandes obras como o Templo de Salomão ou as cidades-armazéns de José no Egito são vistos como empreendimentos divinamente inspirados ou necessários, a Escritura também adverte contra a idolatria da riqueza e a confiança nas posses. Provérbios frequentemente elogia o trabalho árduo e a diligência que levam à prosperidade (por exemplo, Provérbios 10:4: “A mão diligente enriquece”), mas simultaneamente adverte contra a confiança na riqueza (Provérbios 11:28: “Quem confia nas suas riquezas cairá”). O próprio rei Salomão, a quem o Pregador é tradicionalmente associado, foi conhecido por suas grandiosas construções (1 Reis 7 e 9), e Eclesiastes 2:4-8 parece refletir diretamente suas experiências, servindo como uma reflexão retrospectiva sobre se toda essa magnificência trouxe verdadeira satisfação. A história da construção da Torre de Babel em Gênesis 11:4 – onde os homens buscam “edificar uma cidade e uma torre cujo cume chegue até os céus, e façamo-nos um nome” – oferece um paralelo intrigante com a ambição do Pregador de empreender “grandes obras” para si mesmo. Ambos os projetos, ainda que em escalas e intenções diferentes, compartilham a motivação de buscar glória e segurança em realizações humanas.

O v. 3 marca a transição do Pregador para a esfera da realização material e dos grandes empreendimentos. Ele não se contenta com projetos modestos; quando usa a expressão “empreendi grandes obras” isso denota um esforço monumental, uma escala ambiciosa de construção e criação. Edificar casas não se refere a moradias comuns, mas a construções grandiosas que serviriam como símbolos de status e poder, talvez palácios ou propriedades extensas. O ato de plantar vinhas, além de ser uma fonte de prazer (vinho) e riqueza, também representa um investimento a longo prazo, uma manifestação de controle sobre a natureza e um legado para o futuro. O plantio de vinhas, por sua vez, carrega forte simbolismo bíblico. A vinha é frequentemente associada à bênção divina (cf. Isaías 5:1–7; Salmos 80:8–16), mas aqui ela aparece como símbolo de autocontemplação e posse. Não é por acaso que, na sequência imediata, o versículo 5 ampliará essa imagem para jardins e pomares, configurando uma tentativa de recriação de um Éden autônomo, sem Deus. Esta “autonomia edênica” é a essência do projeto do Pregador: criar um mundo de prazer e permanência que dispense o Criador.

Intertextualmente, este versículo evoca Gênesis 2:8 (“Plantou o Senhor Deus um jardim no Éden”), mas aqui é o homem que planta e constrói, tomando para si o papel divino. Este gesto é teologicamente emblemático de todo o projeto debaixo do sol (taḥat haššāmayim), que substitui a obediência por construção, e a esperança por ocupação. Como nos lembra o Salmo 127:1, “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam”.

Por fim, a LXX verte este versículo como: ἐμεγάλυνα τὰ ἔργα μου· ᾠκοδόμησα ἐμαυτῷ οἰκίας, ἐφύτευσα ἐμαυτῷ ἀμπελῶνας, preservando a duplicação possessiva do “para mim” e destacando a vaidade da auto-exaltação egocêntrica. É o retrato de um homem que buscou eternidade nas obras de suas mãos, mas cujo esforço revela, em última análise, a limitação humana diante do tempo e da morte. O Pregador busca no acúmulo de posses e na grandiosidade de suas construções uma resposta à pergunta fundamental sobre o que é verdadeiramente bom na vida, esperando que a realização material possa preencher o vazio que sabedoria e prazer não preencheram.

O Novo Testamento retoma essa crítica à autoconstrução em diversas passagens. Em Lucas 12:18–20, Jesus narra a parábola do homem rico que diz: “Derrubarei os meus celeiros e edificarei outros maiores” — linguagem que ecoa claramente Eclesiastes 2:4 —, e Deus lhe responde: “Louco, esta noite te pedirão a tua alma.” A perspectiva neotestamentária sobre a realização material e a busca por riquezas é ainda mais incisiva, reiterando e expandindo a conclusão do Pregador sobre a vaidade dessas buscas. Jesus, em seus ensinamentos, constantemente desvia o foco dos seus seguidores das posses terrenas para os valores eternos. Em Mateus 6:19-21, ao exortar seus discípulos a não ajuntarem tesouros na terra, Ele ecoa a efemeridade das construções e vinhas do Pregador, que inevitavelmente serão sujeitas à deterioração ou ao esquecimento. Também em Hebreus 11:10, fala-se de Abraão que “esperava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador”. Em contraste com o Pregador que planta e constrói para si, o fiel aguarda aquilo que é feito por Deus.

O apóstolo Paulo, em suas epístolas, também adverte sobre a natureza ilusória da riqueza. Em 1 Timóteo 6:17-19, ele instrui os ricos a não confiarem na “instabilidade das riquezas”, mas em Deus, e a serem ricos em boas obras, de modo a “acumularem para si mesmos um bom fundamento para o futuro”, contrastando a segurança falsa dos bens materiais com a segurança real dos investimentos no Reino de Deus. Isso complementa a visão do Pregador ao oferecer uma alternativa para o propósito de vida que vai além da construção e do acúmulo para si. Tiago 4:13-16 também critica aqueles que planejam acumular riquezas e empreender negócios sem reconhecer a soberania de Deus sobre a vida, lembrando que a vida é um vapor. Essa exortação sublinha a futilidade da ambição materialista do Pregador, que, embora conduzida em uma escala grandiosa, ainda opera “debaixo do céu”, ou seja, sem uma perspectiva do plano divino.

Em suma, Eclesiastes 2:4 ilustra a progressão da busca do Pregador por sentido, passando da sabedoria e do prazer para as grandes realizações materiais. Sua construção de casas e plantação de vinhas, embora impressionantes em escala, são feitas para seu próprio benefício, e a conclusão implícita que virá (e já foi antecipada em 2:1) é que também isso é vaidade. Este versículo, em seu isolamento, prenuncia a conclusão de que nem mesmo as maiores obras humanas podem preencher o vazio existencial. As Escrituras posteriores, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, ecoam essa advertência, direcionando a humanidade para uma fonte de propósito e segurança que transcende o tangível e o transitório.

Eclesiastes 2:5 prossegue a descrição do projeto real de Qoheleth: “Fiz para mim jardins e pomares, e plantei neles árvores frutíferas de toda espécie.” Este versículo amplia a imagem do empreendimento régio iniciado no v. 4, aprofundando ainda mais a tentativa de reproduzir um ambiente paradisíaco com seus próprios recursos. O vocabulário evoca Gênesis com clareza intencional, sugerindo que Qoheleth está reconstruindo um Éden secularizado, no qual Deus está ausente mas o prazer visual, agrícola e estético permanece como objetivo. A construção de jardins e pomares exuberantes não é meramente para sustento, mas para o deleite estético e sensual, uma manifestação de riqueza, poder e capacidade de moldar o ambiente ao seu bel-prazer. Plantar “todo tipo de árvores frutíferas” sugere uma vasta diversidade e opulência, um paraíso particular construído por suas próprias mãos. Novamente, a repetição da preposição “para mim” sublinha a natureza egocêntrica de sua busca: todas essas maravilhas naturais são criadas para sua própria satisfação pessoal, na esperança de que a posse e a desfrute de tais belezas e abundâncias possam, finalmente, preencher o vazio existencial e responder à sua pergunta sobre o que é verdadeiramente “bom” na vida.

As palavras usadas — gannôt (“jardins”) e pardēsîm (“pomares” ou “parques”) — são carregadas de significado. O vocábulo gannâ é a mesma raiz de gan-ʿēden, o “jardim do Éden” em Gênesis 2:8. Já pardēs (do persa pairi-daeza, de onde deriva “paraíso”) aparece raramente no Antigo Testamento (cf. Ne 2:8; Ct 4:13), sempre relacionado a áreas ajardinadas de luxo real. Qoheleth, portanto, utiliza termos que deliberadamente evocam imagens de abundância, fertilidade e domínio régio sobre a criação.

O verbo nāṭaʿtî (“plantei”) é o mesmo usado em Gênesis 2:8 para descrever a ação divina: “Plantou o Senhor Deus um jardim no Éden”. Essa ressonância literária sugere que o Pregador está assumindo para si o papel de um demiurgo autônomo, reproduzindo artificialmente, pela força de seu poder e riqueza, um mundo onde o prazer natural e a fertilidade são organizados conforme seu desejo. O problema está no pronome: tudo é lî — “para mim”. A criação não é partilhada, não é dom, mas projeto. Não há transcendente, apenas auto-possessão.

As “árvores frutíferas de toda espécie” (ʿēṣ kol pĕrî) são outra reminiscência de Gênesis 1:11–12 e 2:9. No Éden, Deus planta árvores agradáveis e boas para alimento, e dentre elas está “a árvore da vida no meio do jardim”. Aqui, porém, todas as árvores estão ao dispor do rei, mas nenhuma delas é a árvore da vida. Este detalhe é central: Qoheleth constrói um paraíso sem eternidade. Ele cria um ambiente de prazer sensorial sem comunhão com o Criador, e, portanto, sem acesso ao fruto da vida (cf. Ap 22:2). A LXX traduz: ἐποίησα ἐμαυτῷ παραδείσους καὶ φυτείας, καὶ ἐφύτευσα ἐν αὐτοῖς παντὸς γένους ξύλον καρποφόρον, usando o termo παράδεισος (parádeisos), de onde vem nosso “paraíso”. Isso torna a alusão ao Éden ainda mais evidente em grego do que no hebraico. É um mundo exuberante, fértil, mas fechado em si mesmo — uma reprodução estética do Éden, porém sem a presença de Deus caminhando ao entardecer (Gn 3:8).

A imagem de jardins e pomares tem um profundo simbolismo no Antigo Testamento, frequentemente associada à bênção divina e à prosperidade. A criação de pomares e vinhas era um sinal de prosperidade e paz em Israel (como em Miqueias 4:4: “Cada um se assentará debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira, e não haverá quem os amedronte”). No entanto, o relato de Eclesiastes 2:5 difere significativamente: enquanto os jardins bíblicos originais são presentes de Deus ou símbolos de Sua bênção, o Pregador os “faz para si”, como um empreendimento de autossuficiência. Isso ecoa a ostentação e o acúmulo de riquezas associados ao rei Salomão, a quem o Pregador é tradicionalmente vinculado, cujos jardins eram lendários (Josefo, Antiguidades Judaicas, VIII.7.3), mas que, em última instância, não trouxeram plena satisfação. A advertência em Provérbios 27:24 de que “as riquezas não duram para sempre” sugere a futilidade de depositar a esperança na beleza e na produção desses empreendimentos materiais.

No Novo Testamento, Jesus promete ao ladrão penitente: “Hoje estarás comigo no paraíso” (paradeisō, Λουκᾶς 23:43), indicando que o verdadeiro jardim é aquele onde Deus habita com o homem. O paraíso construído por Qoheleth é um simulacro vazio, belo e inútil. Sua frustração será evidente no v. 11. Ele planta, mas não colhe vida. No Novo Testamento, a ênfase é drasticamente deslocada dos jardins e pomares terrenos para as “plantas” e frutos espirituais, bem como para a brevidade da vida que os desfruta. Jesus, em suas parábolas, frequentemente usa a metáfora da semeadura e da colheita, mas para ilustrar princípios do Reino de Deus, não o valor intrínseco da posse da terra. A parábola do semeador em Mateus 13:3-9 fala da semente (a Palavra) e da terra (os corações), desviando o foco da fertilidade da terra em si para a capacidade de produzir fruto espiritual.

O apóstolo Paulo, em Gálatas 5:22-23, descreve o “fruto do Espírito” (amor, alegria, paz, etc.) como a verdadeira colheita de uma vida em Cristo, em contraste com os frutos materiais e os prazeres que o Pregador acumula. Essa é uma inversão completa dos valores: a verdadeira “abundância” não está na posse de pomares e jardins físicos, mas na plenitude interior que vem da obediência a Deus. A efemeridade da vida, que transforma os maiores projetos humanos em pó, é lembrada em Tiago 1:10-11, que compara a glória do rico à flor da erva que seca, mostrando que seus caminhos e suas obras (como os jardins e pomares) perecerão, enquanto o Reino de Deus é eterno. A própria ideia do “jardim” é transmutada no Novo Testamento para a expectativa de um “novo céu e nova terra” e a “árvore da vida” no Apocalipse 22:1-2, sugerindo que o Éden perdido e a verdadeira beleza só são plenamente restaurados na dimensão escatológica e não nas construções humanas.

Portanto, Eclesiastes 2:5 é um testemunho da busca do Pregador pela satisfação através da criação de beleza e abundância material. Ele constrói para si um paraíso terrestre, na esperança de que o controle, o luxo e a estética possam preencher o vazio. No entanto, a preposição “para mim” e o contexto mais amplo de Eclesiastes sugerem que mesmo essas grandiosas realizações se revelarão “vaidade”. As Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, oferecem uma crítica sutil ou direta a essa autossuficiência, redirecionando a busca humana do material e do temporal para o espiritual, o eterno e a verdadeira fonte de plenitude que reside em Deus e em Seus propósitos.

Eclesiastes 2:6 continua a descrição dos empreendimentos de Qoheleth: “Fiz para mim açudes, para regar com eles o bosque em que reverdeciam as árvores.” Este versículo retoma e aprofunda a linguagem de Gênesis usada no v. 5, com uma nuance hidrológica que evoca diretamente o sistema de irrigação do Éden e os feitos monumentais de reis do Antigo Oriente Próximo. A ênfase na autossuficiência (“fiz para mim”) permanece central, e o tom do versículo é de um homem que tenta domesticar o mundo natural em função do prazer humano, afastando-se do Criador como fonte do verdadeiro jardim da vida.

Este versículo ilustra a grandiosidade e a complexidade dos projetos do Pregador. A construção de “açudes de água” não era uma tarefa simples na antiguidade; exigia vastos recursos, engenharia e mão de obra, sendo um sinal de imensa riqueza e poder. O propósito desses açudes era “regar com eles o bosque em que vicejavam as árvores”, indicando a criação e manutenção de uma floresta particular ou um parque ornamentado, talvez até uma reserva florestal própria. Essa floresta, que “vicejava” (prosperava exuberantemente), era um testemunho de seu controle sobre a natureza e sua capacidade de sustentar um ambiente luxuoso e produtivo. Mais uma vez a expressão egocêntrica “para mim”, ressaltando que esses feitos monumentais eram para seu próprio usufruto e glória, um investimento pessoal na busca por um propósito e satisfação que, até então, a sabedoria, o prazer e as construções básicas não haviam proporcionado.

O verbo ʿâśîtî (“fiz”) repete o padrão de ações empreendidas por Qoheleth em toda esta seção (cf. vv. 4–6). O substantivo bərēkôt, traduzido como “açudes” ou “reservatórios”, tem a mesma raiz de berēkâ, indicando uma bacia ou tanque de água, muitas vezes artificial. Essa palavra aparece em 2 Reis 18:17 e Isaías 36:2, referindo-se a uma “piscina” ou reservatório de água. Trata-se de um sistema hidráulico cuidadosamente planejado para irrigar jardins, típico de grandes palácios e impérios antigos.

A frase “para regar com eles o bosque” traz o verbo lĕhašqôt, do verbo šāqâ, que significa “dar de beber, irrigar”. Este verbo aparece em Gênesis 2:6: “subia da terra um vapor que regava toda a face da terra”, descrevendo o mecanismo que umedecia o jardim do Éden. A Septuaginta traduz o v. 6: ἐποίησα ἐμαυτῷ συλλογὰς ὑδάτων τοῦ ποτίζειν ἐξ αὐτῶν τὸν παράδεισον ἀναβλαστάνοντα δένδρα, usando o termo παράδεισος (“paraíso”) novamente, e o verbo ἀναβλαστάνω (“germinar, florescer”), ligado à ideia de um renascimento vegetal. A ênfase em ὑδάτων (“águas”) alude à abundância, mas também à tentativa de domar as forças naturais — tarefa que, nas Escrituras, pertence a Deus (cf. Jó 38:8–11; Sl 65:9–10). A conexão é teologicamente significativa: assim como o Éden era regado por uma nascente divina, o jardim de Qoheleth é alimentado por obras humanas. A diferença não é apenas de origem, mas de propósito: no Éden, a água sustenta a vida em comunhão com Deus; no jardim de Qoheleth, a água serve para perpetuar uma estética de prazer sensorial voltada para o eu.

No Antigo Testamento, a água e a capacidade de irrigar a terra são símbolos poderosos de prosperidade, bênção divina e vida. Terras bem regadas eram um sinal da bênção de Deus, em contraste com a aridez do deserto. Em Gênesis 13:10, o vale do Jordão antes da destruição de Sodoma é descrito como “regado por toda parte, como o jardim do SENHOR”, uma imagem de abundância paradisíaca.

Intertextualmente, a imagem dos açudes e da irrigação pode ser contrastada com Jeremias 2:13, onde o Senhor acusa Israel: “Porque o meu povo cometeu dois males: a mim me deixaram, fonte de águas vivas, e cavaram para si cisternas, cisternas rotas que não retêm as águas.” A promessa de prosperidade para Israel incluía o acesso abundante à água (cf. Deuteronômio 8:7). O paralelo é claro. Qoheleth, ao construir suas fontes, cisternas e bosques regados, está simbolicamente cavando cisternas rotas — tentando encontrar na criação, sem o Criador, uma fonte de vida que, inevitavelmente, escoará pelo chão da vaidade.

A construção de açudes ou reservatórios para a irrigação de jardins e vinhas era uma prática comum entre os reis antigos para exibir riqueza e poder, como evidenciado pelas famosas piscinas de Salomão perto de Belém, que supostamente irrigavam seus jardins. No entanto, o ato do Pregador de fazer para ele mesmo esses açudes sublinha sua confiança na engenhosidade e recursos humanos, e não na provisão divina, o que, no contexto de Eclesiastes, prenuncia a conclusão de que tais empreendimentos autossuficientes são, em última instância, “vaidade”.

O substantivo yaʿar, traduzido como “bosque” ou “floresta”, aparece também em textos como Isaías 32:15 e Jeremias 5:6. É notável que não se trata exatamente de um jardim ordenado como o de Gênesis, mas de um bosque, algo mais selvagem, exuberante, denso. A tentativa de irrigar e controlar esse bosque, para fazê-lo “reverdecer” — māṣmîaḥ (מַצְמִ֫יחַ, do verbo ṣāmaḥ, צָמַח, “brotar, germinar”) — aponta para um projeto artificial de fecundidade: um Éden reconstruído, não com a bênção de Deus, mas com o engenho do homem.

No Novo Testamento, Jesus retoma essa imagem em João 4:13–14, ao declarar à samaritana: “Quem beber desta água tornará a ter sede; mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede.” O jardim irrigado de Eclesiastes 2:6 é um contraponto ao jardim regado por Cristo: um é fruto da engenharia humana e conduz à frustração (cf. v. 11); o outro brota da graça e conduz à vida eterna. Nos escritos neotestamentários, a água, embora ainda um elemento vital, adquire um significado predominantemente espiritual, distanciando-se ainda mais da ideia de que sua acumulação material possa trazer a verdadeira satisfação. Jesus Cristo se apresenta como a fonte da “água viva”. Em João 4:13-14, Ele diz à mulher samaritana: “Qualquer que beber desta água tornará a ter sede, mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna.” Essa declaração estabelece um contraste direto com a busca do Pregador por açudes de água física para satisfazer seus desejos terrenos. A “água” que o Pregador acumula (seus açudes) é temporária e não sacia a sede mais profunda da alma, enquanto a água que Jesus oferece é eterna e satisfaz plenamente.

O apóstolo Paulo, por sua vez, frequentemente adverte contra o apego aos prazeres e ambições deste mundo. Em Colossenses 3:1-2, ele exorta: “Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está, assentado à destra de Deus. Pensai nas coisas que são de cima e não nas que são da terra”. As “grandes obras” e o controle sobre os recursos naturais que o Pregador descreve em Eclesiastes 2:6 são claramente “coisas que são da terra”, e Paulo argumenta que fixar o coração nelas desvia o foco do que é verdadeiramente duradouro e satisfatório. O livro de Apocalipse conclui a narrativa bíblica com a promessa de um “rio da água da vida, claro como cristal, que procedia do trono de Deus e do Cordeiro” (Apocalipse 22:1), oferecendo uma visão escatológica da verdadeira e eterna abundância que somente Deus pode proporcionar, em contraste com os açudes e bosques feitos pelo homem.

Assim, Eclesiastes 2:6 detalha a extensão das ambições do Pregador na busca por plenitude através da criação e controle da natureza, manifestada na construção de açudes e na manutenção de florestas exuberantes. Esse empreendimento, embora impressionante em sua escala, é mais uma faceta de sua busca autossuficiente e terrena. As Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, por sua vez, redirecionam a atenção do homem de suas próprias fontes de água e abundância material para a verdadeira “água viva” e a fonte de toda a vida e prosperidade que reside em Deus, revelando que os maiores feitos humanos são insuficientes para saciar a sede da alma por significado e eternidade.

Eclesiastes 2:7 continua a narrativa das realizações de Qoheleth: “Adquiri servos e servas, e tive servos nascidos em casa; também tive grandes possessões de gado e rebanhos, mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém.” O versículo reforça a construção do autoengrandecimento do Pregador, ampliando o escopo da sua busca por sentido com a posse de pessoas e animais — elementos associados à riqueza, autoridade e poder régio no Antigo Oriente Próximo.

A primeira expressão, qānîṯî ʿăḇāḏîm wəšāp̄āḥôṯ, “adquiri servos e servas”, utiliza o verbo qānâ, que significa literalmente “comprar, adquirir, possuir”. É o mesmo verbo usado em Gênesis 4:1 (“Adquiri um varão com o auxílio do Senhor”), implicando domínio e propriedade. Em Eclesiastes, o verbo tem tom de autoafirmação acumulativa. A posse de servos e servas era símbolo de status elevado e organização administrativa sofisticada, como se vê nas listas régias de 1 Reis 4:27–28. O uso do feminino plural šāp̄āḥôṯ sugere não apenas empregadas domésticas, mas também concubinas ou mulheres ao serviço da corte (cf. Gn 30:3; Jz 19:19).

A frase seguinte, wəḇênê ḇayiṯ hāyû lî, literalmente “e filhos da casa houve para mim”, refere-se a servos nascidos na casa, escravos nascidos no domínio do senhor, o que indica estabilidade econômica e herança de poder. Em Gênesis 15:3, Abraão se refere a Eliezer como “filho da casa”, isto é, um servo leal nascido em sua casa e digno de herança. Aqui, a expressão ressalta o prestígio contínuo e consolidado do autor, que não apenas adquiriu servos, mas os gerou como dinastia doméstica.

Segue-se gām miqnêh bāqār wəṣōʾn hāyāh lî harbêh, “também tive grande possessão de bois e ovelhas”, remetendo à linguagem usada para os patriarcas como Abraão, Isaque e Jacó, cujas riquezas eram medidas em rebanhos (cf. Gn 13:2; 26:14). O vocábulo miqnêh vem da mesma raiz qānâ (קָנָה), e designa posse de gado, reforçando o tema da aquisição por mérito e esforço. Essa ênfase sugere novamente um paralelo com Salomão, que, segundo 1 Reis 4:23, recebia diariamente provisões e sacrifícios oriundos de um rebanho vasto e sistemático.

A declaração final — hārbêh mikol-šehāyû lefanay bîrûšālayim, “mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém” — reafirma a ideia de incomparável grandeza. Essa fórmula é usada frequentemente para marcar o ápice de realizações humanas (cf. 1 Reis 3:12; 10:23). A referência explícita a Jerusalém não apenas localiza historicamente o narrador, mas estabelece um paralelo com Salomão, cuja riqueza, poder e sabedoria foram únicos em sua geração.

Em suas escolha cuidadosa lexical, o autor ilustra a faceta do Pregador como um grande proprietário de terras e um empregador de vasta escala. A aquisição de “servos e servas” (escravos ou servos permanentes) e a posse de “servos nascidos em casa” (indicando uma força de trabalho hereditária e, portanto, uma riqueza geracional) demonstra um controle sobre a mão de obra que era um sinal de imensa riqueza e poder na antiguidade. A menção de possuir “gado e rebanhos, mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém”, enfatiza a magnitude de sua fortuna e sua posição como o maior criador de animais de sua época e região. O foco aqui não é apenas a riqueza em si, mas o status, a influência e a capacidade de autossuficiência que a posse de tantos recursos e pessoas conferia. O Pregador busca na grandiosidade de sua propriedade e no domínio sobre outros e sobre a produção animal a resposta à sua questão sobre o “bem” na vida, esperando que a vastidão de seus bens traga satisfação duradoura.

No Antigo Testamento, a posse de servos e grandes rebanhos é frequentemente um sinal de bênção e prosperidade concedida por Deus. Patriarcas como Abraão, Isaque e Jacó eram abençoados com muitos servos e rebanhos (Gênesis 13:2: “Abrão era muito rico em gado, em prata e em ouro”; Gênesis 30:43: “Assim, o homem se tornou muito, muito rico, e teve muitos rebanhos, e servas, e servos...”). No entanto, a Escritura também adverte contra a confiança excessiva na riqueza e a exploração. A Lei Mosaica estabelecia regulamentos para o tratamento de servos (Êxodo 21), e os profetas condenavam aqueles que oprimiam os pobres e acumulavam bens injustamente (Amós 2:6-7). O Pregador, ao afirmar que possuía “mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém”, faz uma clara alusão ao rei Salomão, cuja riqueza e sabedoria eram incomparáveis (1 Reis 10:23: “Assim o rei Salomão excedeu a todos os reis da terra tanto em riquezas como em sabedoria”). A experiência do Pregador, que parece imitar a de Salomão, levanta a questão se essa riqueza sem precedentes realmente trouxe a plenitude que se esperava dela.

Do ponto de vista teológico, Eclesiastes 2:7, assim como os anteriores, mostra a construção de um mundo fechado em si mesmo — um Éden particular, fundado sobre aquisição, domínio e multiplicação de bens. No entanto, a ausência de qualquer menção a Deus revela que este microcosmo de riqueza é uma tentativa de criar plenitude sem o Criador. Essa é, na verdade, a idolatria do “eu” — o projeto de obter significado através da posse. Isaías 5:8 adverte contra os que “ajuntam casa a casa, campo a campo, até que não haja mais lugar”, revelando a futilidade de um acúmulo que isola o homem de Deus e do próximo.

No Novo Testamento, a perspectiva sobre a posse de riquezas e o domínio sobre bens é ainda mais radicalmente transformada, enfatizando a transitoriedade da vida e o perigo do apego material. Jesus ensinou consistentemente que a verdadeira riqueza não está em bens terrestres, mas em tesouros celestiais (Mateus 6:19-21). A história do jovem rico em Mateus 19:21-24 ilustra a dificuldade para aqueles que possuem grandes riquezas de entrar no Reino de Deus, pois sua confiança está em suas posses e não no Senhor. A vastidão do gado e dos rebanhos do Pregador, embora impressionante, seria vista sob a luz da exortação de Jesus a não se preocupar com as provisões materiais, pois o Pai celestial cuida até dos lírios do campo e dos pássaros do céu (Mateus 6:26-30). Do mesmo modo, Jesus em Lucas 12:15 adverte: “A vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui.” Qoheleth se torna, nesse ponto, uma figura que antecipa a parábola do rico insensato (Lc 12:16–21): acumulou tudo, mas ignorou a eternidade.

O apóstolo Tiago, em sua epístola, adverte severamente os ricos que acumulam tesouros na terra, cujo “ouro e prata se enferrujaram” e servem como “testemunho contra vós” (Tiago 5:1-3). Ele lembra que “os vossos dias de deleites” (como os do Pregador) levaram a um “coração engordado” para o dia da matança. Essa passagem ecoa o lamento do Pregador sobre a vaidade, mas com uma condenação mais explícita da injustiça e da falta de propósito espiritual na acumulação. Paulo, em 1 Coríntios 4:7, pergunta: “Que tens tu que não tenhas recebido?”. Essa pergunta retórica serve para lembrar que todas as posses, incluindo servos e rebanhos, são dádivas de Deus e não devem ser fonte de orgulho ou de uma busca egocêntrica por significado. A liberdade em Cristo é frequentemente contrastada com a escravidão aos bens materiais e às preocupações mundanas, como a de ter muitos servos e rebanhos, que se torna uma carga em vez de uma bênção sem um propósito divino maior.

Dessa forma, Eclesiastes 2:7 descreve a culminação da busca do Pregador por sentido através da riqueza e do poder manifestados na posse de vasta mão de obra e inumeráveis rebanhos. Essa riqueza sem precedentes é acumulada “para mim”, refletindo uma tentativa de encontrar propósito na autossuficiência e no status. No entanto, o versículo se encaixa na narrativa de Eclesiastes como mais uma prova de que a mera acumulação material, por mais grandiosa que seja, é, em última instância, “vaidade”. As Escrituras subsequentes, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, reforçam essa verdade, direcionando a humanidade para uma valorização de bens espirituais e de uma vida alinhada à vontade de Deus, onde a verdadeira riqueza e o propósito duradouro são encontrados em uma relação com o Criador, e não na posse de tesouros terrenos.

Eclesiastes 2:8 segue desenvolvendo o catálogo das conquistas do Pregador com uma ampliação ainda mais simbólica de suas aquisições: “Amontoei também para mim prata e ouro, e os tesouros dos reis e das províncias; consegui cantores e cantoras, e as delícias dos filhos dos homens: concubinas em grande número.” Este versículo representa o auge do hedonismo régio, fundado na estética, no prazer e na acumulação de riquezas em escala imperial.

A frase inicial, qibbăṣtî lî kaśep̄ wəzāhāḇ, “amontoei para mim prata e ouro”, começa com o verbo qāḇaṣ, que transmite a ideia de ajuntar ou reunir em grande quantidade. A escolha de “para mim” () reforça o egocentrismo da narrativa: o acúmulo não visa ao bem comum, mas à autoafirmação. Em 1 Reis 10:21–27, lemos que “nada havia de prata nos dias de Salomão; pois a prata por nada se fazia estimar”, ressaltando a opulência inigualável da monarquia. Aqui, no entanto, essa riqueza é mencionada sem celebração, como uma etapa num projeto maior — e fútil — de encontrar sentido.

O termo seguinte, ûsǝgullāṯ mǝlākîm wǝhamᵊdōṯ hammᵊdīnôṯ, “e os tesouros dos reis e das províncias”, inclui o substantivo sǝgullāh, normalmente traduzido como “tesouro peculiar” ou “posse preciosa”. Curiosamente, esse mesmo termo é usado em Êxodo 19:5, quando Deus chama Israel de sua “propriedade peculiar” — sǝgullāṯî — se o povo guardar a aliança. Qoheleth, porém, inverte a lógica teológica: ele se apropria para si do que, nas Escrituras, pertence a Deus. O texto sugere que ele tornou-se uma espécie de “antideus”, um homem que procura fazer de si mesmo o beneficiário de todas as dádivas — mesmo aquelas destinadas a um povo em aliança.

A próxima expressão, ʿāśîtî lī šārîm wəšārōṯ, “consegui para mim cantores e cantoras”, aponta para os prazeres da arte e da música, itens luxuosos nas cortes antigas, acessíveis somente aos muito ricos e poderosos. No Salmo 137:3, os babilônios pedem aos judeus exilados: “Cantai-nos uma das canções de Sião”, o que evidencia que cantores e cantoras estavam entre os tesouros cativos dos impérios. O verbo ʿāśîtî, “fiz, consegui”, é o mesmo usado por Deus na criação (cf. Gn 1:31), reiterando a tentativa de Qoheleth de reconstruir um mundo à sua imagem.

O versículo assim marca o ápice da acumulação material e da busca por deleites sensoriais do Pregador. A menção de ajuntar “prata e ouro” de forma massiva, inclusive “tesouros de reis e de províncias”, indica uma riqueza inimaginável, fruto talvez de conquistas, comércio vasto ou tributos. Ele não se contenta com o ordinário; busca o extraordinário, aquilo que até mesmo reis e províncias guardam como tesouros. O trecho mais controverso aparece no final do versículo: wəʿănugōṯ bənê hāʾāḏām, que a maioria das versões traduz como “as delícias dos filhos dos homens”. A palavra ʿănugōṯ, plural feminino, é de difícil tradução. Algumas tradições, como a Septuaginta (καὶ ἐπικοπὰς καὶ ἐπιμελείας τῶν ἀνθρώπων), obscurecem o termo. Mas a maioria dos intérpretes reconhece aqui uma alusão velada a prazeres sexuais, especialmente pela expressão que segue: šidâ wəšidôt, que não aparece em nenhum outro lugar da Bíblia Hebraica. A maioria dos estudiosos entende essa locução como “concubinas” ou “mulheres do harém”, à semelhança de 1 Reis 11:3, onde se diz que Salomão tinha “setecentas esposas e trezentas concubinas”. A ambiguidade do termo pode indicar um eufemismo poético para um harém numeroso, evocando o prazer físico como forma extrema de hedonismo.

Na LXX, a última parte é traduzida como: καὶ ἐπιθυμίας υἱῶν τῶν ἀνθρώπων, ποτήρια καὶ ποτηρίδας, “os desejos dos filhos dos homens: taças e taçazinhas”, uma leitura interpretativa que desvia o foco do prazer sexual para objetos de luxo e banquetes. A ambiguidade mostra que mesmo os tradutores antigos tinham dificuldade de interpretar o que seria o clímax dos prazeres humanos buscados por Qoheleth.

Todas essas expressões mostram paralelamente à acumulação de riquezas, e ele se entrega aos prazeres estéticos e auditivos, adquirindo “cantores e cantoras” para entretenimento, e “as delícias dos filhos dos homens”, uma expressão que, como vimos, abrange uma vasta gama de prazeres e luxos femininos, como concubinas, assim como “instrumentos de música de toda a espécie”. Novamente, a preposição “para mim” é crucial novamente, reforçando que todas essas aquisições são para sua própria satisfação pessoal, uma tentativa de preencher o vazio existencial através da posse e da experiência sensorial máxima, na esperança de que essa abundância traga a resposta sobre o que é verdadeiramente “bom” na vida.

Teologicamente, o versículo sugere um projeto existencial no qual o ser humano busca substituir a transcendência por uma sucessão de deleites imanentes. No entanto, por mais que Qoheleth transforme o mundo em um espelho de si mesmo, acumulando tudo o que é belo, sonoro e desejável, ele o faz “para si mesmo” (), termo repetido ao longo do texto.

No Novo Testamento, a acumulação de riquezas e a busca por prazeres sensoriais são vistas com grande desconfiança, contrastando fortemente com os valores do Reino de Deus. Jesus, em seus ensinamentos, não apenas adverte contra a riqueza, mas mostra seu perigo para a salvação. Em Mateus 6:24, Ele afirma que “ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar a um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom [riqueza]”. A vasta acumulação de ouro e prata do Pregador seria vista por Jesus como uma servidão a Mamom, desviando o coração de Deus.

O apóstolo Paulo, em suas epístolas, oferece uma crítica ainda mais direta aos prazeres sensoriais excessivos e à idolatria da riqueza. Tal egoísmo expresso em Eclesiastes 2:7 é uma forma de idolatria do prazer, que Paulo descreve em Filipenses 3:19 como a atitude daqueles cujo “deus é o ventre”. Em 1 Timóteo 6:9-10, ele adverte que “os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína. Porque o amor do dinheiro é a raiz de todos os males”. A busca do Pregador por “cantores e cantoras” e “as delícias dos filhos dos homens” poderia ser enquadrada como essas “concupiscências loucas e nocivas” que, em vez de trazerem paz, levam à perdição. O apóstolo Tiago, em Tiago 4:1-3, denuncia a origem das guerras e contendas entre os homens como sendo as “concupiscências” que guerreiam em seus membros, mostrando que a busca egoísta por prazeres e posses leva à insatisfação e ao conflito. Em contraste com a música terrena e as delícias buscadas pelo Pregador, o livro de Apocalipse apresenta a música celestial dos santos adorando a Deus (Apocalipse 5:9-10), sublinhando que a verdadeira e eterna alegria provém da adoração e da comunhão com o Criador, não da acumulação de bens e entretenimentos terrenos.

O contraste é agudo do comportamen do Pregador se encontra no ensinamento de Cristo, que diz: “Negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8:34). O acúmulo de Qoheleth termina em frustração porque, como Jesus adverte, “quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á”. Em vez de construir sentido pela posse, a fé cristã ensina que a verdadeira alegria é fruto do dom — e não da aquisição.

Em resumo, Eclesiastes 2:8 descreve a apoteose da busca do Pregador por sentido na acumulação de riquezas e nos prazeres mais refinados e ostentosos. Ele ajunta ouro, prata e desfruta de entretenimento de elite, tudo “para mim”, na esperança de que essa abundância traga a resposta final à sua busca existencial. Contudo, esse versículo é mais uma peça na evidência que levará à sua inevitável conclusão sobre a “vaidade” de tais empreendimentos. As Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, embora reconheçam a existência dessas riquezas e prazeres, consistentemente as subordinam à soberania de Deus, advertindo contra a confiança nelas e o perigo de desviar o coração do Criador, que é a única fonte de verdadeira e duradoura plenitude.

Eclesiastes 2:9 nos diz: “E engrandeci-me, e aumentei mais do que todos os que houve antes de mim em Jerusalém; perseverou também comigo a minha sabedoria.” O versículo inicia com a afirmação do Pregador: “E engrandeci-me”, do verbo gadalti (de gādal, “tornar-se grande”, “ser elevado”), uma expressão frequentemente associada à realeza e à exaltação pessoal. Essa grandiosidade é não apenas política, mas simbólica: um acúmulo de poder, riqueza e experiência. O texto enfatiza que tal engrandecimento superou o de todos os que vieram antes em Jerusalém, sugerindo aqui uma referência a Salomão como paradigma, embora a intenção final do autor, como se verá adiante, seja minar exatamente a confiança em tais feitos.

O trecho “perseverou também comigo a minha sabedoria” apresenta uma tensão central do livro: mesmo no auge da riqueza e poder, o Pregador preserva a consciência reflexiva, o lev hokmah — “o coração de sabedoria”. Ele não se deixou levar por completo pela embriaguez do sucesso. Aqui, a palavra ḥokmāti (“minha sabedoria”) sugere não apenas uma habilidade intelectual, mas uma consciência aguda da transitoriedade de tudo o que estava experimentando. Isso significa que, durante toda essa busca e experimentação com o prazer e a riqueza, ele não perdeu sua capacidade de discernimento e análise. Ele não se tornou um tolo embriagado ou cegado pela riqueza, mas manteve sua perspectiva crítica. Essa sabedoria permitiu-lhe observar e avaliar de forma lúcida a futilidade de suas conquistas, preparando o terreno para a conclusão de que, apesar de toda essa grandeza, a verdadeira satisfação ainda estava ausente. Esta sabedoria não é apenas técnica ou administrativa, mas profundamente existencial: mesmo no auge, o autor continua julgando os frutos de sua grandeza à luz da morte e da efemeridade.

O versículo é, assim, o clímax da série de experimentos do Pregador com os prazeres, as grandes obras e a acumulação de bens, iniciada em Eclesiastes 2:1. A frase “Engrandeci-me e sobrepujei a todos os que houve antes de mim em Jerusalém” é uma declaração de triunfo sem precedentes em termos de riqueza, poder e influência. Ele não apenas alcançou, mas superou todos os seus antecessores em Jerusalém, uma clara alusão à figura de Salomão, cuja riqueza e sabedoria eram lendárias e inigualáveis (1 Reis 10:23: “Assim o rei Salomão excedeu a todos os reis da terra tanto em riquezas como em sabedoria”). O Pregador descreve-se como o epítome do sucesso terreno, alcançando o pináculo da realização material e do desfrute.

No Antigo Testamento, a figura do rei Salomão é o principal paralelo para a descrição do Pregador em Eclesiastes 2:9. A riqueza, o poder e a sabedoria de Salomão são celebrados em 1 Reis 3:12-13, onde Deus lhe concede sabedoria e também riquezas e glória como ninguém antes dele. As grandes obras e os vastos recursos que o Pregador descreve nos versículos anteriores (casas, vinhas, jardins, açudes, servos, gado, ouro, cantores) são espelhados na descrição bíblica de Salomão. No entanto, a narrativa bíblica de Salomão também serve como um alerta. Apesar de toda a sua sabedoria e riqueza, 1 Reis 11:4 revela que “já velho, suas mulheres lhe perverteram o coração, e ele seguiu outros deuses”, mostrando que a sabedoria e a riqueza não garantem a fidelidade a Deus e, por si sós, não levam à plenitude espiritual. O livro de Provérbios, atribuído em grande parte a Salomão, também adverte sobre o perigo da riqueza quando não é usada com temor a Deus, ecoando a eventual desilusão do Pregador.

Essa ambivalência entre engrandecimento e lucidez está em forte consonância com Deuteronômio 17:17–20, que adverte que o rei não deve multiplicar para si cavalos, ouro ou mulheres, “para que o seu coração não se eleve”. A narrativa do Pregador, embora pareça exaltar sua glória, carrega uma crítica implícita: o coração que se exalta está fadado à frustração. A sabedoria, nesse caso, não impediu a busca pelo excesso, mas tornou ainda mais dolorosa a percepção de sua futilidade.

No Novo Testamento, a declaração de grandiosidade do Pregador e sua conclusão implícita de vazio são contrastadas e superadas pelos ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, que consistentemente desvalorizam a glória e a riqueza terrenas em favor dos tesouros celestiais e da humildade. Jesus, em Mateus 6:29, ao falar dos lírios do campo, declara que “nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles”. Essa afirmação, feita por Aquele que não possuía onde reclinar a cabeça (Mateus 8:20), desmistifica a própria grandiosidade salomônica que o Pregador alcançou, mostrando que a verdadeira glória e beleza vêm de Deus e não das posses humanas.

A tensão entre o modo de vida do filósofo judeu aparece de forma aguda em contraste com Filipenses 3:7–8, onde Paulo afirma: “Mas o que para mim era ganho reputei-o perda por Cristo... por quem sofri a perda de todas essas coisas, e as considero como esterco, para que possa ganhar a Cristo.” Há aqui uma inversão cristológica da busca do Pregador: enquanto em Eclesiastes a grandeza culmina em frustração, em Paulo a perda culmina em ganho eterno. Essa radical reavaliação de valores é um contraste direto com a glória e a riqueza que o Pregador acumulou. A “sabedoria” que permaneceu com o Pregador, embora valiosa para a análise terrena, é colocada em perspectiva pela “sabedoria de Deus” que Paulo proclama em 1 Coríntios 1:25-31, que é vista como loucura pelos olhos do mundo, mas que salva e dá verdadeira glória. Finalmente, a ênfase do Pregador em “engrandecer-me” é confrontada pela exortação de Tiago 4:10: “Humilhai-vos na presença do Senhor, e ele vos exaltará”, mostrando que a exaltação verdadeira e duradoura não vem da autossuficiência e da acumulação, mas da humildade e da submissão a Deus.

Outro paralelo é encontrado em Mateus 4:8–10, quando Satanás oferece a Jesus “todos os reinos do mundo e a glória deles”. O que o Pregador alcançou por suas mãos foi o que o Filho de Deus rejeitou para obedecer ao Pai. A grandeza autoconstruída é um eco do projeto de Babel (cf. Gênesis 11:4: “Façamos para nós um nome”), contraposta ao caminho da cruz, onde Jesus “humilhou-se a si mesmo” (Filipenses 2:8).

Em síntese, Eclesiastes 2:9 é a afirmação do Pregador sobre ter atingido o zênite da prosperidade e do poder terreno, mantendo sua capacidade de discernimento. Esse versículo serve como o ponto culminante de sua experimentação com a riqueza e os prazeres, que, apesar de sua vastidão, ainda não revelaram o sentido último da vida. As Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, oferecem um contraponto a essa grandiosidade humana, quer seja na narrativa da queda de Salomão, quer na redefinição radical de “glória” e “riqueza” pelos ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, que apontam para uma sabedoria e uma glória transcendentes que só podem ser encontradas em Deus.

Eclesiastes 2:10 nos ensina: “E tudo quanto desejaram os meus olhos, não lho neguei; nem privei o meu coração de alegria alguma, pois o meu coração se alegrou por todo o meu trabalho; e esta foi a minha porção de todo o meu trabalho.” Este versículo representa o ápice da busca hedonista do Pregador. A expressão inicial — “tudo quanto desejaram os meus olhos” — é uma declaração culminante da entrega total do Pregador aos prazeres e às ambições materiais. A afirmação “tudo quanto desejaram os meus olhos, não lhes neguei” é um testemunho de uma vida sem restrições, onde cada anseio e luxo foi satisfeito. Ele não se privou de nada, mergulhando na experiência hedonista ao máximo . Em hebraico, a ideia do olhar como porta do desejo é recorrente: cf. Gênesis 3:6, quando Eva viu que a árvore “era agradável aos olhos”, ou também em Números 15:39, onde Israel é advertido a não seguir “após o vosso coração e após os vossos olhos”. O Pregador aqui não se limitou: entregou-se inteiramente ao prazer.

A segunda linha reforça a mesma ideia: “não privei o meu coração de alegria alguma”. O verbo manaʿti (de manaʿ, “reter”, “impedir”) sublinha a ausência de restrição e reforça essa entrega completa, indicando que ele desfrutou cada momento, cada aquisição, cada deleite. Contudo, em meio a essa autossatisfação, ele reconhece que seu “coração se alegrou por todo o meu trabalho”. Isso não significa que a alegria era plena ou duradoura, mas que havia uma satisfação momentânea, um senso de recompensa e de conquista derivado de seus próprios esforços e da capacidade de desfrutar os frutos de seu labor. A parte final, “e este foi o meu quinhão de todo o meu trabalho”, é crucial. Ela reflete a conclusão do Pregador de que a alegria obtida através de seu trabalho e dos prazeres terrenos é a única “recompensa” que ele encontrou em sua busca “debaixo do sol”, antes de perceber sua futilidade derradeira. É uma aceitação melancólica de um benefício limitado e transitório.

Essa linguagem deliberada lembra as exortações dos salmos a alegrar-se no Senhor (Salmo 37:4), mas o objeto aqui é distinto: a alegria procurada está nos bens, nas obras e nos prazeres da vida. No entanto, o texto imediatamente revela que o coração se alegrou “por todo o meu trabalho”. O termo ʿamal (trabalho, labuta) aparece com frequência em Eclesiastes como marca da fadiga existencial do ser humano. A alegria, portanto, não surge da posse final, mas do processo — da atividade em si.

Ainda assim, essa alegria é chamada de ḥēleq, “porção”, “lote”, ou seja, aquilo que coube ao Pregador. Esta palavra-chave aparece repetidamente no livro (cf. 2:21; 3:22; 5:18) e carrega consigo uma ironia profunda: apesar de toda busca, a única porção que se pode de fato aproveitar é o momento presente do trabalho e do prazer sensível. Trata-se de uma afirmação quase estoica, mas profundamente marcada pela transitoriedade: o homem pode desfrutar, mas nada pode reter.

No Antigo Testamento, a ideia de desfrutar o fruto do trabalho é, por vezes, apresentada como uma bênção de Deus, mas sempre dentro de um contexto de temor e obediência. Eclesiastes 5:19 (também do Pregador) diz: “E a todo o homem a quem Deus deu riquezas e bens e lhe deu poder para delas comer, e tomar a sua porção, e gozar do seu trabalho, isso é dom de Deus”. Isso contrasta com o tom de 2:10, onde o foco está no “meu quinhão”, no que ele mesmo buscou e desfrutou por sua própria conta. O rei Salomão, a quem o Pregador é frequentemente associado, foi o exemplo máximo de alguém que teve acesso irrestrito a tudo o que seus olhos desejaram (1 Reis 10). Sua vida, repleta de sabedoria, riqueza e prazeres, culminou em uma reflexão que antecipa o desabafo do Pregador. A Lei Mosaica em Deuteronômio 28:47 adverte contra a falta de serviço ao Senhor “com alegria e bom coração, por causa da abundância de tudo”, sugerindo que o desfrute dos bens deveria vir acompanhado da adoração, algo que o Pregador aqui não menciona explicitamente.

No Novo Testamento, a ênfase é drasticamente deslocada do “quinhão” terreno para a herança eterna e a busca pelo contentamento em Deus, e não nas circunstâncias ou bens. Jesus, em Lucas 12:15, adverte: “A vida de um homem não consiste na abundância dos bens que possui”, refutando a ideia de que a satisfação irrestrita dos desejos traria sentido. Ele desafia seus seguidores a valorizar tesouros celestiais, que não se corrompem (Mateus 6:19-21), em clara oposição à busca por tudo o que os olhos desejam aqui na terra. Essa tensão é ilustrada na parábola do rico insensato aqui mencionada que em sua totalidade encontra-se em Lucas 12:16–21. O homem que diz a si mesmo: “Tens em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe e regala-te”, ouve a resposta de Deus: “Louco, esta noite te pedirão a tua alma”. A alegria fundamentada no trabalho e no gozo imediato é, como em Eclesiastes, efêmera diante do juízo divino.

Em outro sentido, esse versículo aponta para o paradoxo que será resolvido somente na cruz: a vida que se esgota em si mesma, ainda que cercada de prazeres, é limitada por sua mortalidade. Mas o evangelho propõe uma inversão: “Aquele que perder a sua vida por minha causa, esse a salvará” (Lucas 9:24). Enquanto o Pregador busca o máximo da vida para encontrar sentido e não acha, o discípulo de Cristo entrega tudo e encontra a verdadeira porção — não no trabalho, mas na graça.

Assim, Eclesiastes 2:10 serve como a confissão final do Pregador sobre a totalidade de sua imersão nos prazeres e nas realizações materiais. Ele não se negou a nada, e encontrou uma alegria limitada no fruto de seu trabalho. No entanto, a sutil melancolia da frase “e este foi o meu quinhão” sugere que essa “recompensa” estava aquém de sua busca por um significado duradouro. A “porção” obtida é real, mas limitada; é alegria, mas transitória; é prazer, mas não redenção. O coração humano, mesmo quando não privado de nada, descobre que ainda assim não possui tudo. As Escrituras subsequentes, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, ecoam e aprofundam essa percepção, apontando consistentemente para uma alegria e uma satisfação que transcendem as posses e os prazeres terrenos, encontradas apenas em uma vida de temor a Deus e de serviço ao Seu Reino.

Eclesiastes 2:11 afirma: “Considerei, depois, todas as obras que as minhas mãos fizeram, como também o trabalho que eu, trabalhando, havia feito; e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nenhum proveito havia debaixo do sol.” Este versículo é a conclusão pessoal de Salomão após o experimento descrito nos versículos anteriores. Ele retrocede para avaliar — o verbo panîti (“voltei-me para considerar”) — e reflete com lucidez sobre os frutos do seu labor. A análise não é teórica, mas empírica: ele viu, experimentou e agora julga com realismo os resultados de uma vida de conquista, prazeres e produção.

A palavra “vaidade” aqui traduz hevel, que literalmente significa “vapor” ou “névoa”. É um dos termos mais recorrentes do livro e transmite a ideia de transitoriedade, ilusão ou insubstancialidade. Não se trata apenas de inutilidade moral, mas de futilidade ontológica — aquilo que não se sustenta, que se dissipa. A imagem é intensificada pela expressão “correr atrás do vento” (rĕʿut rūaḥ), metáfora poética de um esforço frustrado, uma tentativa de agarrar o que não pode ser retido, semelhante a Jeremias 2:5: “andaram após a vaidade, e se tornaram vãos”.

O versículo termina com a constatação: “nenhum proveito havia debaixo do sol.” O termo yitrôn (proveito, lucro) já foi usado anteriormente (1:3) e reaparece aqui como marcador temático. Na linguagem comercial, yitrôn designa o saldo positivo ao fim de uma transação — mas Salomão declara que, após todo o esforço, o saldo existencial é zero. O trabalho, os prazeres, os empreendimentos grandiosos, tudo parece se dissolver no absurdo da morte, da injustiça e do esquecimento.

Assim, a construção frasal deste versículo é o clímax da série de experimentos que o Pregador descreveu desde o início do capítulo. Ele realiza uma retrospectiva, uma avaliação final e lúcida de tudo o que conquistou e desfrutou. Como já analisamos, quando ele diz “olhei, pois, para todas as obras que as minhas mãos haviam feito e para o trabalho que eu, trabalhando, tinha feito”, isso enfatiza a magnitude de seu esforço e a extensão de suas realizações, que incluíram sabedoria, prazer, grandes construções, abundância material, servos, gado, ouro, música e todo tipo de luxo. A conclusão é devastadora: “e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito”. A adição de “aflição de espírito” (ou “correr atrás do vento”) denota uma busca inútil, um esforço exaustivo que não produz nada de substancial ou satisfatório, apenas cansaço e frustração. A frase final, “e que proveito nenhum havia debaixo do sol”, é a sentença definitiva. Significa que, do ponto de vista puramente terreno, sem uma perspectiva transcendente, não há ganho, lucro ou benefício duradouro que possa justificar todo o esforço ou preencher o vazio existencial. É a constatação amarga de que a vida, quando vivida apenas para si e para o que se encontra “debaixo do sol”, é inerentemente sem sentido último.

Como já falamos diversas vezes, no AT a experiência do Pregador ressoa com a vida do Rei Salomão, a quem ele é tradicionalmente associado ao livro. Salomão, em toda a sua sabedoria e glória, teve acesso e realizou tudo o que o Pregador descreve. Sua vasta riqueza e suas grandes obras são detalhadas em 1 Reis 10-11. No entanto, a narrativa bíblica de Salomão não termina em glória plena; 1 Reis 11:4 revela que “já velho, suas mulheres lhe perverteram o coração”, levando-o à idolatria e à desobediência a Deus, o que resultou em divisões em seu reino. A vida de Salomão, com seu ápice de glória seguido por um declínio espiritual, serve como um poderoso exemplo da “vaidade” que Eclesiastes 2:11 proclama. Mesmo a sabedoria e a riqueza, os maiores dons terrenos, não puderam impedir o vazio espiritual ou a eventual tristeza quando desvinculadas da fidelidade a Deus. A lição de Jó, outro livro sapiencial, também ecoa essa conclusão. Após ter tudo e perder tudo, Jó finalmente encontra a verdadeira sabedoria não em suas posses ou em sua própria compreensão, mas na humildade diante da soberania incompreensível de Deus (Jó 42:5-6), revelando que o “proveito” verdadeiro não é terreno.

No Novo Testamento, a conclusão do Pregador sobre a vaidade das obras e do trabalho feito para si “debaixo do sol” é central para os ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, que consistentemente redirecionam a humanidade para valores eternos e para o Reino de Deus. Jesus, em Mateus 16:26, faz uma pergunta retórica que resume a essência de Eclesiastes 2:11: “Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma?”. Essa declaração, feita por Aquele que não tinha onde reclinar a cabeça (Mateus 8:20), sublinha a futilidade de todas as obras e do trabalho do Pregador se o resultado final é a perda da alma e a ausência de um propósito espiritual duradouro.

Essa declaração de Eclesiastes 2:11 sobre a futilidade antecipa uma teologia que encontrará resposta posterior na revelação de Cristo. O Novo Testamento confronta esse vazio com a promessa de um labor com sentido eterno: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes... sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (1 Coríntios 15:58). Em Cristo, aquilo que é hevel fora dele se torna yitrôn nEle. O que antes era um esforço para tentar extrair sentido da vida, agora se transforma em serviço a um Deus que dá sentido à própria existência.

O versículo também ecoa o lamento do salmista em Salmo 127:1 — “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam” — e denuncia o mesmo espírito que Jesus critica na parábola do rico insensato (Lucas 12:19–20), que acumulou muitos bens, apenas para descobrir que sua alma seria exigida naquela mesma noite. Salomão olha para tudo o que construiu e percebe que o vazio persiste: nada perdura, nada satisfaz, nada livra da morte ou garante memória eterna.

Eclesiastes 2:11, assim, encerra uma poderosa confissão: tudo o que o homem pode realizar por si mesmo, mesmo em sua forma mais bela e grandiosa, está condenado à impermanência se for feito “debaixo do sol” — isto é, sem referência a Deus. O versículo não é apenas o desabafo de um frustrado, mas o prenúncio de uma teologia da esperança que só se realiza plenamente acima do sol, quando Deus mesmo se faz nossa herança e porção.

Em síntese, Eclesiastes 2:11 é o ponto de inflexão na narrativa do Pregador, onde ele pronuncia o veredito final sobre sua exaustiva experimentação com os prazeres e as realizações mundanas. A conclusão de que “tudo era vaidade e aflição de espírito, e que proveito nenhum havia debaixo do sol” é um lamento profundo sobre a incapacidade das conquistas terrenas de preencherem o vazio existencial. As Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, validam e aprofundam essa percepção, apontando consistentemente para uma realidade transcendente onde o verdadeiro “proveito”, a alegria duradoura e o propósito final são encontrados não nas obras das mãos humanas, mas na soberania, na sabedoria e no amor de Deus.

Eclesiastes 2:12 afirma: “Então voltei-me para considerar a sabedoria, a loucura e a insensatez; porque que fará o homem que vier depois do rei? O mesmo que outros já fizeram.” O Pregador, após avaliar os frutos dos prazeres e do trabalho, agora se volta (upanîtî) novamente para refletir sobre três categorias contrastantes: ḥokhmāh (sabedoria), holelōṯ (loucura desenfreada) e siklûṯ (insensatez moral). A sabedoria, já explorada no capítulo anterior (cf. 1:13–18), é agora contrastada não apenas com a ignorância, mas com formas de vida fúteis e imprudentes.

O uso do verbo raʾîtî (“considerei, observei”) indica um exame contemplativo, experiente. Ele olha para a vida com os olhos de alguém que já percorreu os dois caminhos: o do sábio e o do insensato. O propósito agora é avaliar se há “proveito” real em ser sábio — não em termos de competência intelectual, mas em sua eficácia diante das grandes limitações da existência humana, especialmente a morte (v. 16).

A pergunta retórica que segue — “Porque que fará o homem que vier depois do rei?” — revela a frustração com a sucessão humana e a limitação de toda conquista. A expressão pode ser entendida como: “O que mais pode alguém fazer além do que eu já fiz?” ou “Aquele que vier depois de mim apenas repetirá os mesmos erros e tentativas”. Trata-se de um lamento existencial quanto à repetição e futilidade da história humana. O Pregador, que se identifica com o rei por excelência (cf. 1:1, 12), já explorou todos os caminhos possíveis, e os que vierem depois inevitavelmente apenas recapitularão seus experimentos infrutíferos.

Os trechos mencionados acima nesse versículo marcam uma transição crucial na linha de raciocínio do Pregador. Tendo esgotado as possibilidades de encontrar sentido na abundância material e nos prazeres, ele volta sua atenção para uma análise comparativa da sabedoria, da loucura e da estultícia. A menção de “passei a considerar” indica uma reavaliação, um retorno a um estudo mais aprofundado dessas categorias, que ele já havia abordado de alguma forma (como a sabedoria que permaneceu com ele em 2:9). A segunda parte do versículo, “Pois que faria o homem que seguisse ao rei, senão aquilo que já foi feito?”, é um questionamento retórico e um tanto melancólico. O “rei” aqui é o próprio Pregador, que se coloca como o paradigma daquele que experimentou tudo o que a vida tem a oferecer “debaixo do sol”. A pergunta sugere que, uma vez que ele já explorou todas as avenidas de prazer e realização, não há nada de novo ou fundamentalmente diferente a ser descoberto por qualquer outra pessoa que viesse depois dele. É um reconhecimento da finitude da experiência humana e da repetição cíclica das buscas e frustrações. Não há nada verdadeiramente novo ou capaz de trazer um sentido transcendente nas buscas terrenas.

No Antigo Testamento, a dicotomia entre sabedoria e loucura é um tema central em todo o livro de Provérbios. Provérbios frequentemente contrasta o caminho do sábio, que teme ao Senhor e busca o conhecimento, com o caminho do tolo, que despreza a instrução e se deleita na insensatez (por exemplo, Provérbios 1:7: “O temor do Senhor é o princípio do conhecimento; os loucos desprezam a sabedoria e a instrução”). No entanto, enquanto Provérbios se concentra em guiar para a sabedoria prática e ética, Eclesiastes 2:12 leva a análise a um nível mais existencial: mesmo a sabedoria, quando vista apenas “debaixo do sol”, tem seus limites na capacidade de fornecer um significado último. O questionamento sobre o que “já foi feito” ecoa o lamento do Pregador em Eclesiastes 1:9: “O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol.” Essa citação ressalta a natureza cíclica e repetitiva da existência humana e a futilidade de tentar encontrar novidade ou propósito duradouro em algo que já foi experimentado inúmeras vezes. O mundo segue um ciclo enfadonho e infrutífero, onde mesmo a sabedoria, isolada de Deus, não escapa à circularidade da vaidade. Ainda que o sábio compreenda mais e viva de maneira mais lúcida, essa lucidez não redime nem transforma a realidade.

À luz do Novo Testamento, essa pergunta retórica — “o que fará o homem depois do rei?” — encontra eco na afirmação cristológica de que, após todos os reis e sábios da terra, veio o verdadeiro Rei, o único que não apenas investigou a vida, mas trouxe sentido à existência: Jesus Cristo. Hebreus 1:1–2 declara que “havendo Deus falado... pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho”. A sabedoria verdadeira não está mais no esforço humano, mas na encarnação da Palavra, em quem “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos” (Colossenses 2:3). Para o Novo Testamento, a distinção entre sabedoria humana e sabedoria divina ganha uma dimensão crucial, que aprofunda a percepção do Pregador sobre as limitações da sabedoria “debaixo do sol”. Jesus Cristo, ao falar da necessidade de nascer de novo (João 3:3-7) e da importância de buscar o Reino de Deus (Mateus 6:33), sugere que a verdadeira novidade e o verdadeiro “proveito” não vêm da repetição do que “já foi feito” na esfera terrena, mas de uma transformação espiritual.

O apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 1:18-25, aborda diretamente a “sabedoria, a loucura e a estultícia” mencionadas pelo Pregador, mas sob uma ótica radicalmente diferente. Ele declara que “a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” e que “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para confundir as sábias”. A sabedoria que o Pregador “considera” em 2:12, embora superior à loucura terrena, ainda é limitada pela perspectiva humana. Paulo, no entanto, aponta para uma “sabedoria de Deus” revelada em Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, mas que é o poder e a sabedoria de Deus para os que são chamados. Essa sabedoria transcende o que “já foi feito” debaixo do sol, oferecendo uma novidade radical e um propósito eterno. A pergunta retórica de Eclesiastes 2:12 sobre o que mais pode ser feito por alguém que segue ao rei é respondida implicitamente no Novo Testamento pela introdução de um “novo caminho” (Hebreus 10:20), a “nova criação” em Cristo (2 Coríntios 5:17) e a possibilidade de uma vida em união com o Filho de Deus, que não está limitada pelas repetições fúteis da existência terrena.

Eclesiastes 2:12, portanto, marca o retorno do Pregador à reflexão sobre a sabedoria, a loucura e a estultícia, mas com uma percepção sombria de que, no âmbito terreno, tudo é uma repetição do que “já foi feito”, sem novidade ou proveito duradouro. Esse questionamento melancólico serve como um prelúdio para suas conclusões sobre a futilidade da sabedoria humana em encontrar um sentido último. As Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, embora reconheçam a importância da sabedoria, apontam para a necessidade de uma sabedoria que transcende o que é meramente “debaixo do sol”, uma sabedoria e um propósito que só podem ser encontrados em Deus e na novidade de vida que Ele oferece.

Eclesiastes 2:13 prossegue com a reflexão anterior e afirma: “Então vi que a sabedoria é mais proveitosa do que a estultícia, tanto quanto a luz é mais proveitosa do que as trevas.” O Pregador faz aqui uma concessão importante dentro de sua teologia da frustração: embora toda busca humana por sentido debaixo do sol leve ao desengano, ainda assim há uma superioridade prática da sabedoria (ḥokhmāh) sobre a insensatez (siklûṯ). A palavra hebraica traduzida por “vi” é raʾîtî, mesma usada em Eclesiastes 1:14 e 2:12, e reforça a ideia de observação empírica, como se o autor estivesse testando e registrando os resultados de seus experimentos de vida.

O termo “proveitosa” vem de yitrôn, palavra-chave do livro, que aparece já em 1:3 — “Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho…?” Aqui, o yitrôn não é absoluto, mas relativo: há uma vantagem real na sabedoria, não porque ela resolva o problema do sentido último da vida, mas porque, no plano existencial imediato, ela funciona melhor. É o reconhecimento de que, mesmo em um mundo sujeito à vaidade, o discernimento é preferível à tolice.

A comparação “tanto quanto a luz é mais proveitosa do que as trevas” reforça essa superioridade em termos de clareza, direção e segurança. A luz, ao longo das Escrituras, simboliza conhecimento, justiça e presença divina (cf. Salmos 119:105 — “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra…”). Já as trevas evocam ignorância, perigo e afastamento de Deus (cf. Isaías 5:20). Assim, o sábio, mesmo em um mundo marcado pela futilidade, caminha com mais lucidez, evita certas armadilhas, e experimenta menos autodestruição.

Este versículo marca uma conclusão parcial, mas importante, no raciocínio do Pregador. Apesar de sua busca por sentido através de prazeres e grandes obras ter se revelado em última instância “vaidade”, e apesar de reconhecer a futilidade cíclica da vida terrena, ele não descarta a sabedoria por completo. Pelo contrário, ele reitera uma verdade fundamental: a sabedoria é intrinsecamente superior à loucura e à estultícia. A comparação utilizada é poderosa e universalmente compreendida: “quanto a luz é mais excelente do que as trevas”. Assim como a luz permite ver, discernir, e navegar com segurança, a sabedoria oferece clareza, entendimento e a capacidade de tomar decisões melhores, enquanto a loucura e a estultícia são comparadas às trevas, que causam tropeços, confusão e perigo. O Pregador, mesmo em seu ceticismo existencial, não cede à irracionalidade; ele mantém a distinção racional entre o comportamento sensato e o insensato, reconhecendo o valor prático e inerente da sabedoria na condução da vida. Porém, como veremos no v. 14, essa vantagem tem seus limites. A sabedoria é preferível à insensatez, assim como a luz às trevas — mas nem por isso ela escapa do destino comum da morte.

No Antigo Testamento, a dicotomia entre luz e trevas, e entre sabedoria e loucura, é um tema central e recorrente. O livro de Provérbios, em particular, é um vasto manual que exalta a sabedoria e adverte contra a insensatez. Provérbios 4:18-19, por exemplo, declara: “Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito. O caminho dos ímpios é como a escuridão; nem sabem em que tropeçam.” Esta passagem ecoa diretamente a comparação do Pregador em Eclesiastes 2:13. A própria criação, em Gênesis 1:3-4, inicia-se com a separação da luz e das trevas, estabelecendo um princípio fundamental de ordem e distinção. Em Jó 28:12-28, o livro de Jó busca a “sabedoria” e questiona de onde ela vem, concluindo que “o temor do Senhor é a sabedoria, e apartar-se do mal é a inteligência”. Essa sabedoria, ainda que não resolva o vazio último do Pregador, é a luz que guia o homem em sua conduta e discernimento moral.

No Novo Testamento, a metáfora da luz e das trevas, e a superioridade da sabedoria divina sobre a loucura humana, são elevadas a um patamar espiritual e teológico. Jesus Cristo se apresenta a si mesmo como a “luz do mundo” em João 8:12: “Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida.” Essa declaração não apenas reafirma a superioridade da luz sobre as trevas, como em Eclesiastes 2:13, mas identifica a fonte dessa luz e sabedoria em uma pessoa divina. A “sabedoria” que o Pregador reconhece como superior à estultícia é, no Novo Testamento, plenamente revelada em Cristo, que se tornou para nós “sabedoria de Deus” (1 Coríntios 1:30).

O apóstolo Paulo, em suas epístolas, frequentemente contrasta a vida nas trevas do pecado com a vida na luz da fé e da verdade. Em Efésios 5:8, ele exorta: “Porque noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; andai como filhos da luz”. Essa exortação eleva o discernimento do Pregador (a sabedoria é melhor que a loucura) a uma dimensão de transformação moral e espiritual, onde a “luz” não é apenas uma metáfora para o conhecimento, mas para a própria presença de Deus que ilumina e guia a conduta. Em Tiago 3:13-17, a sabedoria é novamente diferenciada: há uma sabedoria “terrena, animal e diabólica”, e uma sabedoria que “vem do alto”, que é “primeiramente pura, depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade e sem hipocrisia”. Essa sabedoria “do alto” é a verdadeira luz que transcende a mera superioridade prática que o Pregador ainda está buscando.

O versículo 13 estabelece, então, um ponto de tensão: a sabedoria é melhor, mas não suficiente. Ela representa o melhor que o homem pode alcançar com suas próprias forças — porém, mesmo esse “melhor” não é salvador. A luz natural da razão e do discernimento humano pode iluminar a jornada, mas não dissipa a escuridão da morte nem preenche o vazio da existência. Só a luz do Evangelho, como Paulo afirma em 2 Coríntios 4:6, pode fazê-lo: “Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, é quem brilhou em nossos corações…”

Entendemos então que Eclesiastes 2:13 é a afirmação do Pregador de que, mesmo em sua jornada de desilusão com as coisas terrenas, ele ainda reconhece a superioridade inegável da sabedoria sobre a loucura, usando a metáfora da luz e das trevas. Este versículo mantém um valor prático e racional, mas não resolve o problema do sentido último. As Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, ecoam essa distinção fundamental, mas vão além, identificando a verdadeira Sabedoria e a Luz como sendo divinas, culminando em Cristo como a personificação dessa Sabedoria e a fonte da verdadeira luz que ilumina a vida e lhe confere sentido e propósito duradouros, algo que transcende o mero “debaixo do sol”.

Eclesiastes 2:14 declara: “Os olhos do sábio estão na sua cabeça, mas o tolo anda em trevas; contudo entendi também que o mesmo lhes sucede a ambos.” Esse versículo aprofunda o contraste do versículo anterior, usando uma imagem vívida para expressar a diferença prática entre o sábio e o tolo: o primeiro vê com clareza porque seus olhos estão na cabeça — expressão idiomática que denota prudência, consciência, capacidade de avaliar e antecipar as consequências — enquanto o tolo “anda em trevas” (baḥōšekh), ou seja, age impulsivamente, sem discernimento, tropeçando ao longo da vida.

O hebraico ʿênê haḥākām bəroʾshō (“os olhos do sábio estão na sua cabeça”) transmite a ideia de que o sábio enxerga a realidade ao seu redor e age com senso de direção. Já o tolo é descrito com o verbo meḥašekh implícito, como alguém que vive às cegas. Isso está em perfeita harmonia com a teologia da sabedoria dos Provérbios, onde o tolo é aquele que despreza o conhecimento e rejeita o temor do Senhor (cf. Provérbios 1:7). Jesus retoma essa imagem ao falar dos fariseus como “guias cegos” (Mateus 15:14), que levam outros cegos à perdição.

Contudo, a segunda parte do versículo quebra qualquer triunfalismo intelectualista: “entendi também que o mesmo lhes sucede a ambos.” A palavra hebraica usada aqui é yikrēh, de qārāʾ, que significa “acontecer”, “cair sobre” — indicando um evento inevitável e externo, que não depende da sabedoria ou da tolice. Trata-se da morte. Kohelet reconhece que, apesar de toda a vantagem da sabedoria, ela não livra o ser humano de seu destino comum com o tolo: ambos morrem.

No Antigo Testamento, a distinção entre sábios e loucos é um pilar da literatura sapiencial, especialmente em Provérbios. Provérbios 1:32-33, por exemplo, contrasta o sossego dos que ouvem a sabedoria com a destruição dos insensatos. A ideia de que o sábio tem “os olhos na sua cabeça” ecoa a valorização da visão e do entendimento como essenciais para a vida. No entanto, a observação do Pregador de que “a mesma coisa lhes acontece a ambos” é um eco do lamento em Salmo 49:10: “Pois ele vê que morrem os sábios, e igualmente perecem os loucos e os brutos, e deixam a outros os seus bens”. Essa percepção da universalidade da morte é uma característica sombria que desafia a aparente justiça e recompensa da sabedoria na vida terrena. O livro de Jó também lida com a aparente injustiça do sofrimento que atinge tanto o justo quanto o ímpio, questionando as noções simplistas de retribuição e preparando o terreno para a compreensão de que há mistérios que transcendem a sabedoria humana e o que é visível “debaixo do sol”.

Este é o ponto onde a teologia sapiencial de Eclesiastes desafia a tradição de Provérbios. Enquanto Provérbios parece ensinar que o sábio prospera e o tolo sofre (cf. Provérbios 3:35; 10:14), Eclesiastes introduz a perspectiva do “fim” como niveladora radical: mesmo o mais lúcido e virtuoso dos homens termina como o mais insensato. Isso conduz a uma teologia da limitação humana, que reconhece que a sabedoria tem valor, mas não poder salvífico.

No Novo Testamento, esse dilema é resolvido não pela sabedoria humana, mas pela “sabedoria de Deus” revelada na cruz (1 Coríntios 1:18–25). Paulo afirma que “o mundo não conheceu a Deus por sua sabedoria” (1 Coríntios 1:21), e que tanto os sábios quanto os tolos, tanto gregos quanto judeus, estão igualmente necessitados de redenção. O que “sucede a ambos” é vencido somente pela ressurreição de Cristo, que desfaz o poder nivelador da morte e introduz a verdadeira sabedoria que vem do alto (Tiago 3:17), capaz de dar sentido eterno à existência. Nesse sentido, no Novo Testamento, a realidade da morte é igualmente reconhecida, mas é fundamentalmente transformada pela revelação da ressurreição e da vida eterna. Jesus Cristo, embora reconhecendo a inevitabilidade da morte física para todos, oferece uma esperança que transcende o nivelamento do sábio e do louco que o Pregador observa. Em João 11:25-26, Jesus declara: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim nunca morrerá”. Essa promessa aborda diretamente a consternação do Pregador. A “mesma coisa” (a morte física) pode acontecer a ambos, mas o destino final não é o mesmo para aquele que está em Cristo.

O apóstolo Paulo elabora sobre essa diferença radical. Em 1 Coríntios 15:20-22, ele afirma: “Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem. Porque assim como a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Pois, assim como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados.” Isso diretamente refuta a ideia de que “a mesma coisa lhes acontece a ambos” no sentido de um destino final sem distinção. A distinção da fé em Cristo oferece uma esperança que transcende a mortalidade. Em Romanos 6:23, Paulo afirma que “o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”. Embora a morte seja o fim comum para todos os humanos (a “mesma coisa” que o Pregador vê), a vida eterna é o destino distinto oferecido àqueles que creem, desfazendo a igualdade sombria que o Pregador observou. Assim, o reconhecimento de Eclesiastes não conduz ao niilismo, mas prepara o terreno para o anseio por uma luz maior que não seja vencida pelas trevas: a luz do Evangelho e a esperança da ressurreição.

Em síntese, Eclesiastes 2:14 é uma reflexão melancólica sobre a futilidade final da sabedoria, quando o destino comum da morte nivela a distinção entre o sábio e o tolo. Embora o Pregador elogie a perspicácia da sabedoria, ele se depara com a dura realidade de que, “debaixo do sol”, o fim é o mesmo para todos. As Escrituras subsequentes, como um todo integrado, reconhecem essa universalidade da morte, mas o Novo Testamento, em particular, oferece a esperança da ressurreição em Cristo, que transcende a igualdade da mortalidade e proporciona um destino final distinto e glorioso para aqueles que creem, desfazendo a desesperança da conclusão do Pregador e revelando a verdadeira e eterna “vantagem” da fé em Deus.

Eclesiastes 2:15 afirma: “Então eu disse no meu coração: como acontece ao tolo, assim também me sucederá a mim; por que, pois, busquei eu então mais sabedoria? E disse no meu coração que também isso é vaidade.” Este versículo expressa uma profunda crise existencial do Pregador, um colapso do ideal sapiencial clássico, ao perceber que a sabedoria, embora superior na prática (v. 13–14), é incapaz de alterar o destino final do ser humano: a morte. O Pregador, em tom introspectivo, admite que sua busca pela sabedoria se depara com o mesmo fim do tolo, e isso mina o valor da sabedoria como resposta última ao enigma da existência.

A frase “então eu disse no meu coração” (āmartî bĕlibbî) marca mais uma vez a interioridade dramática de Eclesiastes. O livro é um diário espiritual e filosófico onde o autor pensa em voz alta, diante da limitação humana. A constatação “como acontece ao tolo, assim também me sucederá a mim” (kĕmiqrēh hannāḇāl gam-ʾăni yiqrēnî) emprega novamente o vocábulo miqrēh, que designa um acontecimento fortuito, uma fatalidade — aqui, mais uma vez, a morte inevitável. O paralelismo entre o sábio e o tolo não é apenas no destino, mas na completa impotência humana diante dele.

A pergunta retórica “por que, pois, busquei eu então mais sabedoria?” revela o dilema angustiante: se a sabedoria não pode preservar da morte, nem garantir lembrança ou legado (cf. vv. 16–18), qual sua real utilidade? Trata-se da frustração de um ideal que dominou o pensamento sapiencial israelita e do Antigo Oriente Próximo: de que o justo e o sábio serão recompensados com longevidade e honra (cf. Provérbios 3:16; 4:8–9). Essa frustração ecoa a tensão já sentida pelo salmista em Salmo 73:3–13, quando inveja a prosperidade dos ímpios e quase tropeça na fé: “Na verdade, inutilmente conservei puro o coração”.

A sentença final “também isso é vaidade” (gam-zeh hebel) retoma o termo-chave de todo o livro: hebel, literalmente “vapor”, “fumaça”, símbolo de algo transitório, efêmero, inconsistente. O Pregador não está dizendo que a sabedoria é má, mas que ela é insuficiente como fundamento último da vida. Sua decepção não é com o valor intrínseco da sabedoria, mas com sua impotência diante do ciclo maior que rege a existência humana debaixo do sol.

Este versículo expressa a profunda frustração e real desilusão do Pregador. Após todo o seu esforço em adquirir sabedoria e discernimento – uma busca que ele mesmo reconheceu como superior à loucura em 2:13 – ele se depara com a cruel realidade de que o resultado final, a morte, é o mesmo para ele, o sábio, e para o mais insensato dos homens. A pergunta retórica que analimos, “por que, pois, busquei eu então mais sabedoria?” é um lamento existencial. Se a sabedoria não confere uma vantagem fundamental e duradoura sobre a loucura em face da mortalidade, qual é o seu valor supremo? Essa percepção o leva novamente à conclusão recorrente de Eclesiastes: “Então, disse no meu coração que também isso era vaidade.” A sabedoria, por mais que ilumine a vida e evite armadilhas terrenas, não consegue superar a inevitabilidade da morte, e, portanto, em seu contexto “debaixo do sol”, também se revela hevel – fútil e sem proveito eterno.

No Antigo Testamento, a perplexidade do Pregador sobre a falta de distinção final entre justos e ímpios, ou sábios e tolos, é um tema que ecoa em outras obras sapienciais. O Salmo 73:1-14, por exemplo, expressa a angústia do salmista ao ver a prosperidade dos ímpios e a aparente falta de propósito para a justiça, refletindo a mesma inquietação do Pregador sobre a falta de uma vantagem clara para o sábio. O lamento em Salmo 49:10-11 já afirmava que “morrem os sábios, e igualmente perecem os loucos e os brutos, e deixam a outros os seus bens”, uma constatação que se alinha perfeitamente à quebra de expectativa do Pregador. Mesmo em Provérbios, que consistentemente exalta a sabedoria e suas recompensas, há nuances que sugerem a limitação da sabedoria humana diante dos desígnios de Deus, como em Provérbios 16:9 (“O coração do homem planeja o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos”), o que pode levar a um entendimento de que a própria sabedoria, se não for submetida a Deus, não pode garantir um resultado final distinto na eternidade.

No Novo Testamento, Paulo desenvolve esse mesmo raciocínio em Filipenses 3:7–8, quando afirma que todas as suas conquistas e sabedoria acumuladas como fariseu “reputou como perda” por causa de Cristo. O verdadeiro ganho, diz ele, está no “conhecê-lo e o poder da sua ressurreição” (v. 10). Em outras partes, a “vaidade” da sabedoria humana em face da morte é abordada diretamente e redimensionada pela centralidade de Cristo e da vida eterna. Jesus Cristo, embora elogie a sabedoria para a vida prática (como em Mateus 10:16, “Sede prudentes como as serpentes e símplices como as pombas”), oferece uma sabedoria superior que transcende a mortalidade. Em João 14:6, Jesus se apresenta como “o caminho, a verdade e a vida”, implicando que a verdadeira “vantagem” e a resposta à pergunta “por que, então, me fiz mais sábio?” não estão na sabedoria meramente terrena, mas em segui-Lo.

O apóstolo Paulo é quem mais vigorosamente confronta a sabedoria humana e suas limitações. Em 1 Coríntios 1:18-25, ele declara que “a palavra da cruz é loucura para os que perecem, mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus”. Essa afirmação diretamente desmantela a angústia do Pregador. A sabedoria terrena, por mais elevada que seja, não pode salvar ou conferir uma vantagem eterna. O que salva é a “loucura” da cruz de Cristo, que confunde a sabedoria do mundo. Em 1 Coríntios 3:19, Paulo é ainda mais direto: “Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus”. Assim, a sabedoria que o Pregador adquire e pela qual se pergunta em 2:15 é revelada como insuficiente e, em última instância, uma forma de “vaidade” quando comparada com a sabedoria e o plano salvífico de Deus. A esperança da ressurreição, central para o Novo Testamento, oferece a única resposta definitiva à constatação do Pregador de que “a mesma coisa lhes acontece a ambos”. Em 1 Coríntios 15, Paulo detalha a realidade da ressurreição, garantindo que o destino final dos que creem em Cristo é radicalmente diferente daquele dos que perecem, proporcionando a “vantagem” eterna que a sabedoria “debaixo do sol” nunca pôde oferecer.

O autor de Eclesiastes, com sua honestidade brutal, prepara o caminho para essa revelação: ele arranca da alma humana toda falsa confiança na razão, na virtude ou no mérito, e nos conduz à conclusão de que, se não houver uma resposta que transcenda a morte, todo esforço é, de fato, vaidade. Assim, o versículo 15 é um dos pontos altos da crise espiritual do livro, e sua grandeza está em não ocultar o abismo — porque é somente reconhecendo o abismo que o homem começa a clamar por redenção. Em síntese, Eclesiastes 2:15 é um lamento pungente do Pregador sobre a aparente futilidade da sabedoria diante da universalidade da morte. As Escrituras, em suas concordância textual, reconhecem a inevitabilidade da morte, mas o Novo Testamento, em particular, oferece a resolução para a angústia do Pregador através da sabedoria e do poder de Deus revelados em Cristo, que proporciona a vida eterna e um destino final distinto para aqueles que creem, conferindo o “proveito” e o sentido que a sabedoria e racionalidae humanas “debaixo do sol” nunca puderam.

Eclesiastes 2:16 declara: “Porque do sábio, assim como do tolo, nem haverá lembrança eterna; visto que nos dias futuros tudo será esquecido. E como morre o sábio? Como o tolo!” Neste versículo, o Pregador (Qohelet) aprofunda sua reflexão angustiada iniciada no versículo anterior. O que está em jogo aqui é o colapso definitivo da confiança na memória humana como forma de perpetuar o sentido da existência. O fracasso da sabedoria está não apenas na sua incapacidade de evitar a morte, mas também na sua ineficácia em garantir um legado duradouro.

A primeira cláusula — “Porque do sábio, assim como do tolo, nem haverá lembrança eterna” — usa a expressão ʾên zikkārôn leḥākām ʿim hannāḇāl lĕʿôlām, onde zikkārôn (“lembrança, memorial”) é termo central em diversas passagens bíblicas que ligam memória à aliança (cf. Êxodo 3:15; Salmo 135:13). Porém, aqui, o Pregador afirma o colapso dessa memória no plano humano. Tanto o sábio quanto o tolo cairão no esquecimento — hakol nishkaḥ — o tempo apaga tudo, e a memória dos homens, mesmo dos grandes, se dissipa como névoa. Trata-se de um profundo golpe contra o ideal sapiencial tradicional, que associava sabedoria com honra duradoura (cf. Provérbios 10:7: “A memória do justo é abençoada, mas o nome dos ímpios apodrecerá”).

A segunda parte do versículo acentua o escândalo dessa realidade: “E como morre o sábio? Como o tolo!” (wĕʾêk yāmût haḥākām ʿim hannāḇāl!). A forma exclamativa expressa espanto e frustração. O Pregador observa o mesmo fim trágico para ambos: a morte igualadora. Essa constatação não é uma simples queixa sobre a mortalidade, mas uma denúncia contra qualquer tentativa de escapar da insignificância por meio da excelência humana — seja moral, seja intelectual. O verbo yāmût (“morrerá”) une todos os seres humanos em um destino irrevogável.

Em termos gerais, o versículo aqui adiciona uma camada ainda mais dolorosa à desilusão do Pregador, que é a igualdade da morte, já observada em 2:14-15, mas que é agora complementada pela igualdade do esquecimento. A “memória” tanto do sábio quanto do tolo “não durará para sempre”. O que quer que se tenha feito, quão sábio ou tolo se tenha sido, “passados alguns dias, tudo se esquecerá”. Essa é uma queixa profunda sobre a brevidade da fama e a inevitabilidade do esquecimento. O desejo humano de deixar um legado, de ser lembrado, é esmagado pela realidade de que, eventualmente, até mesmo os mais brilhantes e influentes são varridos da memória coletiva. A repetição final, um lamento quase exasperado, “Ah! Morre o sábio, como o tolo!”, enfatiza a crueldade dessa verdade “debaixo do sol”, onde não há distinção duradoura ou proveito real para a vida vivida com sabedoria, se o destino é o mesmo fim e o mesmo esquecimento.

Esse lamento de Eclesiastes ecoa em diversas passagens do Antigo Testamento. Para o AT , a preocupação com o legado e a memória é evidente, especialmente na genealogia e nas narrativas de grandes feitos. O Salmo 49:10–12 observa com ironia: “O sábio morre, e o tolo e o ignorante perecem igualmente... Como ovelhas são postos na sepultura.” O salmista, como o Pregador, observa que a tentativa humana de criar um legado duradouro é vã. O próprio livro de Provérbios, embora enfatize a virtude e a sabedoria, também contém admoestações sobre a transitoriedade da vida. O lamento do Pregador em 2:16 é uma confissão da limitação de todo o esforço humano, mesmo o mais sábio, em garantir uma permanência que a natureza mortal nega. Também em Jó 21:23–26, a igualdade no fim é ressaltada: “Um morre em pleno vigor... outro em amargura de alma... juntos jazem no pó.” O que está em jogo aqui não é apenas a certeza da morte, mas a ausência de distinção significativa no destino humano “debaixo do sol”.

No Novo Testamento, essa mesma crítica ao valor último da sabedoria humana é assumida e redirecionada à luz da cruz, e a inevitabilidade da morte e do esquecimento terreno é plenamente reconhecida, mas é radicalmente transformada pela promessa da vida eterna e da memória de Deus . Jesus Cristo, embora não negue a morte física e o esquecimento humano, oferece uma perspectiva que transcende essa preocupação do Pregador. Em Mateus 10:32, Jesus promete: “Portanto, qualquer que me confessar diante dos homens, eu o confessarei também diante de meu Pai, que está nos céus.” O apóstolo Paulo elabora sobre a natureza passageira desta vida e a glória que está por vir. Em 1 Coríntios 15:53-54, ele fala da transformação de “isto que é mortal” para “o que é imortal”, e da vitória sobre a morte. Essa ressurreição e a vida com Cristo oferecem uma “memória” e uma existência que o sábio e o tolo, em suas buscas terrenas, nunca poderiam alcançar.

A preocupação do Pregador com a falta de permanência das obras humanas é diretamente abordada em 1 Coríntios 3:12-15, onde Paulo descreve o julgamento das obras: “Se a obra de alguém se queimar, sofrerá detrimento; mas o tal será salvo, todavia como pelo fogo.” As “obras” que o Pregador realizou, mesmo com sabedoria, são passageiras. No entanto, para aqueles cujas obras são feitas para o Senhor, há uma recompensa que transcende a memória humana e a mortalidade. Em Hebreus 11, a “galeria da fé”, são listados homens e mulheres que, embora mortos há muito tempo, são lembrados por sua fé, não por suas riquezas ou sabedoria terrena, indicando que há uma memória duradoura (a de Deus) que transcende a humana. A memória que importa não é a humana e efêmera, mas a divina e eterna. Isso oferece uma resposta direta ao desespero do Pregador sobre o esquecimento.

Em 1 Coríntios 1:19–21, Paulo escreve: “Destruirei a sabedoria dos sábios... o mundo, pela sua sabedoria, não conheceu a Deus.” Aqui, a falência da sabedoria humana se torna oportunidade para que a sabedoria de Deus se manifeste em Cristo crucificado — loucura para os homens, mas poder de Deus para a salvação. E mais ainda: Apocalipse 14:13 afirma que “bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor... as suas obras os seguirão.” Essa é a resposta que transcende Eclesiastes: a ressurreição e a memória divina — pois embora o mundo se esqueça, Deus não.

Assim, Eclesiastes 2:16 é um golpe definitivo na autoconfiança do homem que deseja deixar um nome para si (cf. Gênesis 11:4). Qohelet desmascara o anseio por imortalidade através da fama ou das realizações intelectuais. Só a eternidade de Deus — e não a memória dos homens — pode dar sentido à existência. Nesse sentido, Eclesiastes é preparação para o Evangelho, ao mostrar o vazio de tudo que se constrói à parte de Deus.

Eclesiastes 2:17 afirma: “Pelo que aborreci a vida, porque a obra que se faz debaixo do sol me pareceu penosa; tudo é vaidade e correr atrás do vento.” Com este versículo, Qohelet atinge o clímax emocional de sua frustração existencial. O verbo usado — śānē’tî ʾet-haḥayyîm (“aborreci a vida”) — revela não apenas desencanto, mas uma rejeição profunda do viver enquanto experiência dotada de propósito. A vida, tal como é vivida “debaixo do sol”, parece-lhe insuportável. Não se trata de um desejo de morrer, mas de uma constatação amarga de que viver, se não for à luz de algo além do ciclo da vaidade, é um fardo e não um dom.

O motivo dessa aversão está na cláusula seguinte: “porque a obra que se faz debaixo do sol me pareceu penosa.” A expressão maʿăśêh hannaʿăśeh taḥat haššemeš (“a obra que se faz debaixo do sol”) retoma o vocabulário do versículo 11, conectando todas as atividades humanas com a futilidade que já havia sido diagnosticada. A palavra raʿāh (“penosa, má, aflitiva”) descreve o resultado dessas obras como algo que não só decepciona, mas agride a alma daquele que busca sentido. O termo hebraico aqui aponta para um juízo moral-existencial: há algo fundamentalmente torto ou desordenado em tudo o que se realiza sem Deus como referência.

A sentença final — “tudo é vaidade e correr atrás do vento” — repete o refrão trágico do livro: hakkol hebel ûrĕ‘ût rūaḥ. A palavra hebel (“vaidade”) evoca a ideia de um vapor que se dissipa, uma aparência enganosa de substância. E rĕ‘ût rūaḥ — literalmente, “aflição de espírito” ou “pastorear o vento” — reforça a ideia de um esforço inútil, como tentar segurar o ar com as mãos. O uso reiterado dessas expressões em Eclesiastes (cf. 1:14; 2:11; 4:4) não é casual, mas intencionalmente doutrinário: o autor quer demonstrar que tudo o que é feito fora da perspectiva divina está fadado à frustração.

Este versículo expressa a profunda e amarga conclusão do Pregador sobre a existência humana, pelo menos da perspectiva puramente terrena. A afirmação que analisamos acima, “assim aborreci a vida” é um lamento sombrio, revelando um profundo desespero e desgosto. Não é um ódio à vida em si, mas uma aversão à sua natureza fútil e repetitiva quando vivida sem um propósito transcendente. A razão desse aborrecimento é clara: “porque a obra que se faz debaixo do sol me era penosa”.

“Obra” aqui refere-se não apenas ao trabalho manual, mas a todo o esforço, toda a labuta, todas as conquistas e buscas que ele empreendeu. Tudo isso se mostrou uma “penosidade”, um fardo pesado, um esforço sem recompensa duradoura. A repetição final da sua conclusão mais frequente, “sim, tudo era vaidade e aflição de espírito”, sela o veredito. O hevel (futilidade, vapor) e o “correr atrás do vento” (aflição de espírito) são a realidade inescapável de uma vida que busca sentido apenas nos seus próprios termos e nas suas próprias conquistas. A vida em si, com suas demandas e aspirações, é vista como um esforço esgotante que culmina em vazio.

No Antigo Testamento, a experiência do Pregador ressoa com a angústia de outras figuras que enfrentaram o desespero e a futilidade. O profeta Jeremias, por exemplo, em meio às suas aflições, por vezes expressou um desespero semelhante em relação à sua própria existência e ao seu trabalho (Jeremias 20:14-18: “Maldito o dia em que nasci... para que vim eu a este mundo, para ver trabalhos e tristezas, e para que os meus dias se consumam em vergonha?”). O livro de Jó é uma exploração profunda da penosidade da vida e do sofrimento, levando Jó a lamentar sua própria existência (Jó 3:20-21: “Por que se dá luz ao miserável, e vida aos amargurados de espírito; que esperam a morte, e ela não vem...?”). Esses lamentos, embora nascidos de diferentes contextos, compartilham a percepção da vida como um fardo, um trabalho penoso sem a clareza de um propósito divino.

O Novo Testamento não ignora essa angústia. Em Romanos 8:20–22, Paulo descreve a criação como sujeita à vaidade (mataiotēti, uma possível eco de hevel), gemendo como em dores de parto. No entanto, o apóstolo aponta para uma redenção futura, quando a criação será liberta da corrupção. O apóstolo Paulo frequentemente aborda a “aflição” e a “penosidade” da vida cristã, mas as redefine à luz da esperança e da glória futura.

Especificamente em Romanos 8:18, ele afirma: “Porque para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para comparar com a glória que em nós há de ser revelada.” Isso é uma inversão completa da conclusão do Pregador; as aflições não levam à vaidade, mas preparam para uma glória eterna. Paulo também fala da “angústia do espírito” que resulta da vida segundo a carne, em contraste com a vida no Espírito que traz vida e paz (Romanos 8:6-8), oferecendo uma solução para a “aflição de espírito” que o Pregador não encontrou.

Em 2 Coríntios 4:17, ele declara que “a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui excelente”, transformando a “penosidade” em um meio para um fim glorioso, uma perspectiva totalmente ausente em Eclesiastes 2:17. Assim, no Novo Testamento, a “penosidade” da vida e a “aflição de espírito” que o Pregador experimenta são plenamente reconhecidas, mas a resposta a essa realidade é radicalmente diferente e encontra seu fundamento em Jesus Cristo. O próprio Jesus, ao convidar nos em Mateus 11:28-30, também nos dá o antídoto para esse desencanto existencial: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve”, oferecendo assim um contraponto direto à “penosidade” da obra debaixo do sol. A vida sem Ele é um fardo, mas com Ele, há descanso e um fardo leve. A mesma vaidade que angustia Qohelet, em Paulo e nos discípulos de Jesus que ouviram o “vinde a mim” se torna palco do anseio tanto presente como escatológico. O problema não é a vida em si, mas a vida “debaixo do sol”, ou seja, sob a perspectiva horizontal, desprovida de transcendência.

Concluímos que Eclesiastes 2:17 é um versículo de extrema honestidade existencial. Ele não é o fim do caminho, mas uma estação no percurso espiritual de quem tenta viver com seriedade diante de uma realidade marcada pela transitoriedade e pela injustiça. Sua força não está em sua desesperança, mas em sua recusa a aceitar consolos baratos. Ele abre espaço para que a revelação da graça, posterior, mostre que há vida verdadeira — mas somente “acima do sol”, isto é, em Deus.

Eclesiastes 2:18 declara: “Também eu aborreci todo o meu trabalho, em que me afadiguei debaixo do sol, visto que o deixaria ao homem que viesse depois de mim.” Neste versículo, Qohelet aprofunda a frustração iniciada no versículo anterior, agora voltando-se especificamente para a sua obra — ʿămālî (“meu trabalho”), termo que carrega conotações de esforço árduo, cansaço e investimento de vida. O verbo śānē’tî (“aborreci”) é repetido aqui, intensificando o tom de repulsa, e revela que a amargura de Qohelet não está apenas no ato de viver, mas no acúmulo de realizações que deveriam, supostamente, dar sentido à existência.

O centro do dilema reside na inevitabilidade da herança: “visto que o deixaria ao homem que viesse depois de mim.” Essa cláusula — ʾăniḥennû lāʾādām šeyihyeh ʾaḥărāy — denuncia o desamparo humano diante do tempo e da morte. Não importa quão grandiosa tenha sido a obra de um homem: ela inevitavelmente será entregue a outro, cuja competência ou retidão moral são desconhecidas. Este “homem que virá depois” permanece uma figura ameaçadora, pois Qohelet não pode prever se ele continuará ou destruirá aquilo que foi construído com tanto custo.

Aqui o autor expressa o amargo desgosto não apenas pela vida, mas especificamente pelo seu trabalho. Ele “aborreceu” o fruto de seus próprios esforços e labor. A razão é clara e profundamente enraizada em sua perspectiva “debaixo do sol”: a certeza de que todo o “proveito”, toda a riqueza e todas as obras que ele acumulou e realizou, seriam inevitavelmente deixadas para outro, para “o homem que viesse depois de mim”. Essa é uma queixa sobre a efemeridade da posse e a transferência inevitável de bens e legados. A ideia de que seu sucessor poderia ser alguém desconhecido, talvez um tolo (como ele explorará em 2:19), intensifica sua frustração, pois todo o seu esforço, sabedoria e diligência seriam em vão, servindo apenas para beneficiar alguém que talvez não valorizasse nem soubesse usar o que ele construiu. A labuta e o acúmulo de uma vida inteira perdem o sentido quando o fruto é simplesmente entregue a um destino incerto e, para o Pregador, indiferente.

Esse sentimento reflete a profunda insegurança da tradição sapiencial quanto à posteridade. Em Provérbios 13:22, afirma-se que “o homem bom deixa herança aos filhos de seus filhos”, mas Eclesiastes desafia essa confiança, revelando que nem mesmo a herança é segura quando o mundo está sujeito à vaidade. Ainda mais, a ideia de legar algo é despojada de sua dignidade natural e transformada em mais um motivo de angústia.

No Antigo Testamento, a preocupação com a herança e o legado é uma característica proeminente, mas a incerteza de quem herdaria e como se comportaria era uma fonte de apreensão. Essa angústia ecoa em Salmos 49:10-11, onde se lamenta que, mesmo os sábios e ricos, deixam suas posses a outros e seus nomes acabam esquecidos. Esse lamento é um paralelo direto à angústia do Pregador em Eclesiastes 2:18, ambos refletindo a fragilidade da posse e a inevitabilidade da transferência. O próprio Rei Salomão, a quem o Pregador é frequentemente associado, enfrentou a realidade de que seu vasto reino seria dividido e entregue a seus servos após sua morte (1 Reis 11:11-13). Essa experiência pessoal de Salomão pode ter sido a base para a queixa do Pregador sobre ter que deixar tudo para “o homem que viesse depois de mim”.

No Novo Testamento isso é amplamente abordado. Como mencionamos já várias vezes nesses comentário, Jesus retoma esse tema na parábola do rico insensato (Lucas 12:16–21), em que um homem ajunta bens para si, ignorando a transitoriedade da vida. Quando Deus lhe diz: “Louco! Esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será?” — isso é uma clara reminiscência do dilema de Qohelet. A parábola conclui: “Assim é aquele que ajunta tesouros para si mesmo e não é rico para com Deus.” Essa passagem é um eco direto e uma resposta à queixa do Pregador em Eclesiastes 2:18; o “proveito” do trabalho terreno, quando não alinhado com um propósito divino, é de fato entregue a um destino incerto e se revela sem valor eterno. O próprio Senhor ironiza essa autoconfiança acumuladora, mostrando que acumular para si mesmo e não ser rico para com Deus é tolice.

O apóstolo Paulo, em suas epístolas, também adverte contra a confiança nos bens materiais e a ânsia por acumular, reforçando a mensagem de Eclesiastes 2:18, mas oferecendo uma alternativa. Em 1 Timóteo 6:7, ele declara: “Porque nada trouxemos para este mundo e manifesto é que nada podemos levar dele.” Essa afirmação básica ressoa com a constatação do Pregador de que tudo será deixado para trás. Paulo, então, direciona os crentes a investirem em obras que tenham valor eterno, em vez de se preocuparem com a herança terrena (1 Timóteo 6:18-19: “Que façam o bem, enriqueçam em boas obras, sejam liberais e comunicáveis; que entesourem para si mesmos um bom fundamento para o futuro, para que possam alcançar a vida eterna”). A “aflição de espírito” do Pregador em Eclesiastes 2:18, derivada da perda do proveito de seu trabalho, é substituída no Novo Testamento pela alegria de acumular tesouros que não podem ser roubados ou corroídos pela traça, e que não serão deixados para um sucessor incerto, mas sim desfrutados na eternidade com Deus.

Em suma, Eclesiastes 2:18 evidencia o colapso da teologia da retribuição tradicional: nem o labor diligente é garantia de permanência, nem o legado assegura consolo. O problema não é a herança em si, mas a impossibilidade de controlar o que será feito com ela. A vaidade que domina o mundo “debaixo do sol” transforma o trabalho, que seria fonte de dignidade, em causa de desgosto, justamente porque ele será entregue a mãos incertas. Este versículo, assim, lança o leitor em direção à única solução possível: encontrar sentido não no resultado do trabalho, mas em um referencial eterno que transcenda a finitude.

Eclesiastes 2:19 afirma: “E quem sabe se será sábio ou tolo o que se assenhoreará de todo o meu trabalho em que me esforcei e usei sabedoria debaixo do sol? Também isso é vaidade.” Este versículo expande o dilema do v. 18, ao introduzir a incerteza moral e intelectual daquele que herdará o fruto do esforço do Pregador. A interrogação retórica — ûmî yôdēaʿ hâyihyeh ḥākām ʾim kesîl? (“e quem sabe se será sábio ou tolo?”) — evidencia a limitação da sabedoria humana frente ao futuro, revelando que nem mesmo a sabedoria mais diligente é capaz de garantir continuidade ou valor duradouro ao que foi feito.

O uso de ḥākām (“sábio”) e kesîl (“tolo”) remete ao binômio clássico da literatura sapiencial, especialmente presente em Provérbios, onde a vida é representada como um caminho com dois destinos morais possíveis. Contudo, em Eclesiastes, essa distinção é subvertida: não é o caráter do próprio sábio que está em jogo, mas o caráter imprevisível de seu sucessor, sobre quem ele não tem qualquer poder. A incerteza quanto à natureza moral do herdeiro anula qualquer sensação de segurança que a sabedoria possa proporcionar. Por mais racional e prudente que tenha sido a construção de sua obra, o Pregador sabe que ela pode ser rapidamente entregue à insensatez de outro.

A frase “se assenhoreará de todo o meu trabalho em que me esforcei e usei sabedoria” carrega uma ironia pungente: yimšōl, “dominará”, sugere que a autoridade e a posse serão totalmente transferidas ao outro, enquanto o sábio original — aquele que ʿāmalti bô (“me esforcei nele”) e que ḥokmāh ʿāmaltî tacht haššemesh (“com sabedoria me esforcei debaixo do sol”) — não poderá sequer decidir o destino daquilo que construiu com tanta inteligência. A linguagem reforça a ideia de que toda realização humana, mesmo a mais sapiente, está sob a sombra da transitoriedade e do acaso.

O diagnóstico final — “também isso é vaidade” — traduzido de gam zeh hāvel, reafirma a frustração que permeia o discurso do Pregador. A palavra hāvel (vaidade) aqui não se refere apenas ao vazio ou futilidade, mas ao caráter enigmático, efêmero e frustrante da vida. Qohelet observa que, mesmo sob a aparência de sucesso, toda obra está sempre sob ameaça do esquecimento, do erro alheio, da injustiça e do desperdício.

Este versículo adiciona uma camada de amargura à desilusão do Pregador. Não apenas ele deve deixar para trás o fruto de todo o seu vasto trabalho, mas ele não tem controle sobre a natureza de quem herdará. A pergunta retórica “E quem sabe se será sábio ou louco aquele que virá depois de mim?” revela sua profunda ansiedade. Ele, que “se houve prudentemente debaixo do sol” (ou seja, agiu com sabedoria e discernimento em suas conquistas), pode ter seu legado administrado por alguém que não possui essas qualidades. Um sucessor tolo poderia dissipar, arruinar ou simplesmente não valorizar tudo o que ele construiu com tanto esforço e perspicácia. Essa falta de controle sobre o destino de sua própria obra e a possibilidade de que ela caia nas mãos de um insensato torna todo o seu trabalho ainda mais “vaidade”, um esforço sem propósito duradouro ou garantia de continuidade digna. É a culminação de sua percepção sobre a futilidade dos legados terrenos.

No Antigo Testamento, a questão da sucessão e da sabedoria dos herdeiros era uma preocupação real para os monarcas e patriarcas. O próprio Rei Salomão, a quem o Pregador é frequentemente associado, experimentou essa angústia em sua própria vida. Embora tenha sido o mais sábio dos reis, seu filho e sucessor, Roboão, era tolo e arrogante, resultando na divisão do reino de Israel (1 Reis 12:8-16). A experiência de Salomão serve como um exemplo vívido da frustração expressa pelo Pregador em Eclesiastes 2:19: a preocupação de deixar o fruto do trabalho para um tolo que o destruirá. O livro de Provérbios, embora elogie a herança deixada para os filhos (Provérbios 13:22: “O homem de bem deixa herança para os filhos de seus filhos”), também adverte que um filho tolo é amargura para seus pais (Provérbios 17:25), o que acentua a inquietação do Pregador sobre a natureza de seu sucessor.

No Novo Testamento, a preocupação do Pregador com o destino de seus bens e legados é abordada de uma perspectiva que desvaloriza a posse material em favor de valores eternos e do propósito divino. A parábola do Rico Insensato em Lucas 12:16-21, que já ressoou em versículos anteriores, é novamente pertinente. O homem tolo que acumula tesouros para si é confrontado com a pergunta: “E o que tens preparado, para quem será?” Essa parábola não apenas demonstra a inutilidade de acumular para si, mas também a incerteza de quem herdará e como usará esses bens, confirmando a “vaidade” da preocupação do Pregador.

O apóstolo Paulo, em suas epístolas, oferece uma alternativa radical à angústia de Eclesiastes 2:19. Ele ensina que o foco do crente deve ser em construir um legado espiritual, não material, e em trabalhar para o Senhor, onde o “proveito” não está sujeito à incerteza dos herdeiros terrenos. Em 1 Coríntios 3:12-15, Paulo fala de obras que são construídas sobre o fundamento de Cristo: algumas serão como ouro, prata e pedras preciosas (que resistem ao fogo), outras como madeira, feno e palha (que são queimadas). A preocupação do Pregador com a sabedoria do sucessor é substituída pela certeza de que o trabalho feito para Cristo terá um valor eterno, independentemente de quem o “herde” na terra ou como seja percebido. Em Mateus 6:19-20, Jesus exorta seus seguidores a “não ajuntem tesouros na terra... mas ajuntem tesouros no céu”, onde não há incerteza sobre quem os desfrutará ou se serão dissipados, pois estão seguros com Deus. O Novo Testamento oferece uma “herança imperecível, incontaminável e imarcescível, guardada nos céus” (1 Pedro 1:4), que transcende completamente a preocupação do Pregador com a sucessão terrena.

Eclesiastes 2:19 expressa a profunda frustração do Pregador com a inevitabilidade de deixar todo o seu trabalho e legado para um sucessor cuja sabedoria ou loucura ele não pode controlar, tornando tudo “vaidade”. Essa queixa é um testamento à futilidade da busca por um propósito duradouro apenas em realizações terrenas. As Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, reconhecem a fragilidade da posse e da herança terrena, mas o Novo Testamento, em particular, oferece a resolução para a angústia do Pregador ao redirecionar a atenção do crente para a construção de um legado espiritual e para o investimento em tesouros celestiais, que são eternos, seguros e não estão sujeitos à incerteza da sucessão humana.

Eclesiastes 2:20 prossegue com um lamento existencial que se intensifica: “Então me voltei para desesperar-me de todo o trabalho em que me afadigara debaixo do sol.” A expressão inicial wĕsabbōtî ʾănî (“então me voltei eu”) transmite um movimento de introspecção radical, como se o Pregador mergulhasse ainda mais fundo na própria perplexidade. Não se trata de uma mera mudança de opinião, mas de um retorno interior, quase de um colapso emocional, que culmina na palavra-chave do versículo: lĕyaʾāʾēš — “desesperar-me”.

Esse verbo hebraico, yaʾaš, carrega consigo a conotação de desistência, de abandono da esperança, e é raríssimo no Antigo Testamento. Ele aparece, por exemplo, em Jó 6:26, onde Jó se queixa de que suas palavras são tratadas como vento por seus amigos, mesmo quando brotam do desespero (lĕyaʾāʾēš). A escolha dessa palavra mostra que o Pregador já não está apenas frustrado ou decepcionado, mas atingido por uma forma de esgotamento existencial, em que até o desejo de continuar buscando sentido começa a se apagar. Essa linguagem de colapso interno marca o ponto mais baixo de sua reflexão até então.

A razão para tal desespero, mais uma vez, está ligada à inutilidade percebida do trabalho — ʿămāl šĕʿāmaltî tāḥat haššemesh (“o trabalho em que me afadigara debaixo do sol”). Esta fórmula reaparece em várias partes do livro (cf. 1:3, 2:11, 3:9), reforçando a ideia de um mundo fechado, onde todos os esforços humanos são circunscritos ao plano terrestre e não escapam à transitoriedade. A repetição dessa expressão indica que o Pregador vê seu labor como parte de um ciclo mecânico e fadado à frustração, um circuito fechado onde não há transcendência.

Este versículo é a culminação da angústia do Pregador. A frase “eu me virei” denota uma mudança de perspectiva, um momento de profunda introspecção após ter esgotado todas as avenidas de busca por sentido “debaixo do sol”. Ele volta-se de suas obras e prazeres para a sua própria alma, e o resultado é devastador: “e entreguei o meu coração ao desespero”. Não é apenas tristeza ou frustração, mas um abandono completo à desesperança. A razão desse desespero é a percepção de que todo o seu “trabalho em que trabalhei debaixo do sol” – todos os seus esforços, suas grandes obras, sua sabedoria, sua acumulação de bens – foi, em última análise, fútil. A compreensão de que tudo o que ele construiu e alcançou seria deixado para trás e poderia ser dissipado por um tolo (como visto em 2:18-19) leva-o a uma profunda crise existencial, onde o próprio ato de trabalhar e de buscar é visto como uma fonte de desespero.

No Antigo Testamento, o desespero e a entrega à angústia são temas que aparecem em diversas passagens, embora geralmente como um estágio que precede um apelo a Deus ou uma redescoberta da fé. O profeta Jonas, em sua profunda tristeza por ver Nínive salva e sua própria reputação de profeta ameaçada, expressou um desejo de morrer (Jonas 4:3: “peço-te, ó Senhor, tira-me a vida, porque melhor me é morrer do que viver”). A experiência de Jó, que perdeu tudo e se viu em extrema aflição, levou-o a lamentar seu nascimento e a desejar a morte (Jó 3), refletindo um desespero que se assemelha ao do Pregador. O rei Davi também conheceu o desespero em momentos de perseguição e pecado, mas seus lamentos nos Salmos frequentemente culminam em esperança e confiança em Deus (por exemplo, Salmo 42:5: “Por que estás abatida, ó minha alma? E por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei pela salvação da sua face”). O Pregador, neste ponto de Eclesiastes, não oferece essa esperança, permanecendo ancorado em sua perspectiva “debaixo do sol”, onde não há alívio para a futilidade.

É importante notar que, até aqui, Deus é raramente mencionado neste segundo capítulo. A ausência divina intensifica a sensação de desamparo: a sabedoria que não tem como objetivo a glória de Deus, mas apenas resultados terrenos, é incapaz de satisfazer ou sustentar a alma. Esse lamento ecoa nos salmos de lamento (cf. Salmo 39:6: “Na verdade, todo homem, por mais firme que esteja, é pura vaidade”), mas ali há sempre um retorno à esperança em Deus — algo que em Eclesiastes só começa a emergir mais adiante (cf. 2:24–26).

No Novo Testamento, o desespero por causa do trabalho e da vida terrena é reconhecido, mas é contrariado pela promessa de propósito e significado encontrados em Cristo. Jesus, em João 16:33, diz: “No mundo tereis aflição, mas tende bom ânimo; eu venci o mundo.” Essa promessa é uma resposta direta à entrega do Pregador ao desespero por causa das obras e da aflição “debaixo do sol”. A “vitória” de Jesus oferece um caminho para superar o desespero, que o Pregador, em sua busca puramente terrena, não consegue vislumbrar.

Esse mesmo dilema é tratado em passagens como Romanos 8:20, onde Paulo afirma que “a criação foi sujeita à vaidade (mataiotēti)”, não por sua própria vontade, “mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança”. Ou seja, o Novo Testamento reconhece o mesmo mundo frustrado e marcado pela futilidade que Eclesiastes descreve, mas o faz apontando para uma esperança escatológica: “na esperança de que também a própria criação será liberta do cativeiro da corrupção” (Rm 8:21). O apóstolo Paulo, que conheceu muitas tribulações e trabalhos intensos (2 Coríntios 11:23-27), nunca se entregou ao desespero pelo fruto de seu labor. Pelo contrário, ele encontrava alegria em seu trabalho e via seus sofrimentos como parte do propósito de Deus.

Em 2 Coríntios 4:16-18, Paulo afirma: “Por isso, não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui excelente; não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas.” Essa passagem é um antídoto direto ao desespero do Pregador. A transitoriedade da obra “debaixo do sol” é reconhecida, mas o foco é desviado para o que é eterno. Para Paulo, a “aflição de espírito” e a “penosidade” da obra não levam ao desespero, mas à glória. A vida em Cristo dá propósito ao trabalho e à existência, mesmo diante da certeza da morte e da incerteza do legado terreno. O trabalho feito para Deus tem valor eterno e não é sujeito ao desespero do Pregador.

Eclesiastes 2:20 nos confronta com a crise daquele que trabalhou com sabedoria e esforço, mas que, ao encarar a inevitabilidade da morte e da incerteza do futuro, se volta para o desespero. O versículo é o reflexo de uma alma que perdeu a conexão entre o presente e a eternidade, e que, ao se encontrar apenas “debaixo do sol”, vê o trabalho como um fardo sem propósito. É apenas quando o olhar se eleva “acima do sol” que essa desesperança começa a ser vencida.

Eclesiastes 2:21 afirma: “Porque, embora o homem trabalhe com sabedoria, com ciência e com destreza, deixará o seu legado a quem não trabalhou por isso; também isso é vaidade e grande mal.” Esse versículo amplia a frustração anterior, introduzindo uma observação aguda e amarga: o fruto de um esforço diligente pode facilmente cair nas mãos de alguém que não participou de sua construção. A sequência de termos usados para qualificar o labor do homem — bĕḥokmāh ūḇədaʿaṯ ūḇəkišrōn (“com sabedoria, com ciência e com destreza”) — descreve uma excelência quase ideal na obra humana. Não se trata de um trabalho qualquer, mas de uma vida dedicada à competência, à inteligência e à perícia.

O termo kišrōn (destreza ou habilidade) é relativamente raro no Antigo Testamento e aparece também em Eclesiastes 4:4, ligado ao sucesso proveniente do esforço diligente. Esse acúmulo de virtudes no trabalhador ressalta o absurdo do que vem em seguida: todo esse labor qualificado é deixado como herança a um terceiro — literalmente, leʾādām šĕlōʾ ʿāmal bō (“a um homem que não se afadigou por ele”). Não há garantia de que o herdeiro valorizará, manterá ou usará com sabedoria aquilo que recebeu. Pelo contrário, o subentendido do texto é que ele pode ser tolo ou desleixado (cf. v. 19).

Esse versículo toca em um dilema existencial que atravessa culturas: a impotência humana diante do futuro. Por mais que se trabalhe com retidão e competência, não há como controlar o destino do legado. Esse sentimento de impotência é classificado como heḇel (“vaidade”) e ainda mais intensamente como rāʿāh rabbāh — “grande mal”. A expressão rāʿāh rabbāh aparece também em Eclesiastes 6:2, em um contexto semelhante, indicando algo não apenas frustrante, mas moralmente perturbador e existencialmente angustiante. É como se o Pregador dissesse: “Não é apenas fútil; é profundamente injusto.”

Este versículo aprofunda a angústia do Pregador ao descrever a injustiça percebida no sistema “debaixo do sol”. Ele contrasta o trabalhador diligente e qualificado com o herdeiro que não fez nada para merecer. O “homem cujo trabalho é feito com sabedoria, e com conhecimento, e com destreza” representa o próprio Pregador, ou qualquer indivíduo que empregou inteligência, perícia e habilidade em suas realizações (como ele descreveu sua própria sabedoria em 2:9 e suas grandes obras em 2:4-8). No entanto, o fruto de todo esse esforço qualificado, ele “o deixará como quinhão” para “outro, que nele não trabalhou”. Essa é a essência da injustiça terrena para o Pregador: o mérito não é recompensado com a permanência do benefício. Essa realidade não apenas é “vaidade” (futilidade, vazio), mas também um “grande mal”. A expressão “grande mal” (ou grande infortúnio/injustiça) é uma das condenações mais fortes do Pregador para as contradições da vida, enfatizando a frustração moral que surge quando o trabalho e a virtude não garantem a recompensa duradoura.

Para o Antigo Testamento, a justiça e a retribuição pelo trabalho são temas importantes, mas também há um reconhecimento da imprevisibilidade da vida e da sucessão. A Lei Mosaica valorizava o trabalho e a herança dentro das famílias (Deuteronômio 21:15-17), mas o Pregador aqui se lamenta não da sucessão em si, mas da injustiça que vê nela quando o herdeiro não merece o fruto do trabalho alheio. O livro de Provérbios, embora prometa que “a mão diligente enriquece” (Provérbios 10:4), também adverte sobre a vaidade das riquezas para o tolo (Provérbios 21:20), e lamenta que “o ímpio ajunta, e o justo o gozará” (Provérbios 13:22), ecoando a queixa do Pregador sobre a injustiça da transferência de riqueza para quem não a mereceu. O Salmo 39:6 reflete uma preocupação semelhante: “Certamente, todo homem anda como uma sombra, e em vão se inquieta; amontoa riquezas e não sabe quem as ajuntará.” Essa é uma clara precursora do lamento do Pregador sobre a vaidade de seu trabalho.

No Novo Testamento, a percepção do Pregador sobre a injustiça da herança e a “vaidade” do trabalho terreno é confirmada, mas é oferecida uma nova perspectiva que transcende essa frustração. Jesus, na parábola dos talentos em Mateus 25:14-30, elogia os servos que trabalharam diligentemente e multiplicaram os bens que lhes foram confiados, contrastando-os com o servo preguiçoso. Embora a parábola não se centre na herança póstuma, ela enfatiza a responsabilidade sobre o que é confiado e a importância de um “bom trabalho” que produz frutos. No entanto, Jesus também adverte sobre a ilusão de segurança na riqueza terrena na parábola do Rico Insensato (Lucas 12:16-21), que, como já vimos, culmina na futilidade da acumulação, pois o rico não sabe “para quem será” o fruto de seu trabalho. Isso valida a percepção do Pregador sobre a vaidade da posse.

O apóstolo Paulo, em suas epístolas, oferece a principal resposta à angústia do Pregador em Eclesiastes 2:21. Ele reconhece a “vaidade” da vida “debaixo do sol”, mas redireciona o foco para o trabalho feito para o Senhor. Em 1 Coríntios 15:58, Paulo exorta: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão.” Essa é a antítese direta do “grande mal” e da “vaidade” do Pregador. O trabalho feito no Senhor tem proveito, não é vão, e não está sujeito à frustração de ser deixado para um herdeiro tolo ou à erosão do tempo. Paulo também compara as obras humanas ao fogo que prova sua qualidade (1 Coríntios 3:12-15); as obras feitas com “sabedoria e conhecimento e destreza” que têm valor eterno permanecerão, enquanto as sem fundamento divino serão queimadas, independentemente de quem as herde. A questão da “justiça” é resolvida na perspectiva da graça divina, onde a herança e o “proveito” não são ganhos pelo mérito humano, mas dados por Deus através de Cristo, uma herança “imperecível, incontaminável e imarcescível, guardada nos céus” (1 Pedro 1:4), que nenhum tolo pode dissipar.

Paulo também ensina em 1 Timóteo 6:7 que “nada trouxemos para este mundo, e manifesto é que nada podemos levar dele”, o que valida a percepção do Pregador sobre a inevitabilidade de deixar tudo para trás. No entanto, ele direciona os ricos a “fazerem o bem, a serem ricos em boas obras, liberais e prontos a repartir” para que “entesourem para si mesmos um bom fundamento para o futuro, a fim de se apoderarem da verdadeira vida” (1 Timóteo 6:18-19).

Desta forma, Eclesiastes 2:21 desnuda o caráter efêmero e vulnerável do legado humano, mesmo quando fruto da mais nobre sabedoria. O versículo condena não o trabalho em si, mas a ilusão de que ele, por si só, pode garantir permanência ou justiça. A “vaidade” aqui é uma crítica à falsa segurança depositada no mérito pessoal, desafiando o leitor a considerar que o verdadeiro valor do trabalho só pode ser sustentado quando ancorado em algo — ou Alguém — além do ciclo da morte e do esquecimento.

Eclesiastes 2:22 continua: “Pois que mais tem o homem de todo o seu trabalho, e da fadiga do seu coração, em que ele anda trabalhando debaixo do sol?” Este versículo apresenta uma pergunta retórica que retoma a linha de pensamento das seções anteriores, consolidando a crise do Qohelet diante da aparente futilidade do trabalho humano. O uso da partícula (“pois” ou “porque”) indica uma conclusão que se segue logicamente do que foi exposto no versículo 21: o sábio pode trabalhar com sabedoria, conhecimento e perícia, mas nada disso garante que o fruto de seu labor permanecerá com ele ou será aproveitado com justiça. A pergunta “que mais tem o homem” (meh-hāʾādām) é uma forma de exprimir a frustração com a ausência de ganho duradouro, uma ideia recorrente e estruturante no livro (cf. 1:3; 3:9; 5:15).

A expressão beḵol-ʿāmālô (“de todo o seu trabalho”) abrange não apenas o esforço físico, mas também o projeto de vida, o engajamento existencial do ser humano. A esse termo soma-se ḥešq libbô — literalmente, “o desejo do seu coração” ou “a paixão do seu interior” — o que revela que o labor humano é inseparável de suas emoções e aspirações mais profundas. Não se trata de mera rotina ou atividade externa, mas de um empenho total do ser (lev sendo centro volitivo e afetivo). Por fim, a última cláusula še-hûʾ ʿāmēl taḥat haššāmeš (“em que ele anda trabalhando debaixo do sol”) reforça o caráter contínuo e exaustivo desse esforço, situado no espaço limitado e frustrante da existência terrena, marcada pela mortalidade, injustiça e impermanência.

Em termos gerais, o versículo é uma pergunta retórica que resume a profunda crise existencial do Pregador. “Que tem o homem?” é uma questão sobre o “proveito”, o “ganho”, a recompensa final de toda a sua labuta. Ele se refere a “todo o seu trabalho” (seus esforços e conquistas materiais, intelectuais e de prazer) e à “aflição do seu coração” (a angústia mental, a dor emocional, a frustração de sua busca). Ao final, o Pregador questiona: qual é o verdadeiro benefício ou legado que o homem realmente possui ou leva consigo de tudo isso, considerando que tudo é feito “debaixo do sol” – ou seja, na esfera terrena, sem uma perspectiva transcendente? A implicação é que, do ponto de vista terreno, a resposta é: nada de substancial ou duradouro. O “ganho” que ele esperava de sua vida de intenso trabalho e busca de prazer se dissolve em nada diante da inevitabilidade da morte e da perda do controle sobre o que deixou.

No Antigo Testamento, a ideia de “ganho” ou “proveito” (yithron em hebraico, uma palavra-chave em Eclesiastes) é central para a avaliação da vida. O livro de Jó explora intensamente a questão do proveito e da justiça divina, quando Jó questiona o valor de sua retidão em face do sofrimento (Jó 9:22: “Tanto faz, ele destrói o íntegro e o perverso”). Essa é uma forma de perguntar “que tem o homem?” em face da injustiça aparente da vida. O Salmo 49, já citado, também aborda a futilidade da riqueza e do esforço humano diante da morte, especialmente em Salmo 49:16-17: “Não te inquietes quando alguém se enriquece, quando aumenta a glória de sua casa; porque, ao morrer, nada levará consigo; nem a sua glória descerá após ele.” Essa é a mesma conclusão sombria que o Pregador alcança em Eclesiastes 2:22, a de que o homem, no final, não tem nada de todo o seu trabalho terreno.

No Novo Testamento, a pergunta do Pregador “que tem o homem de todo o seu trabalho?” é respondida de forma enfática, redirecionando o foco para o que realmente importa e o que pode ser levado além da vida terrena. Jesus Cristo, em Mateus 16:26, faz a pergunta retórica fundamental que serve como a resposta definitiva ao lamento do Pregador: “Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma?”. Essa declaração estabelece que o “proveito” terreno, por maior que seja, não tem valor comparado ao valor da alma e da vida eterna. A “aflição do coração” do Pregador é resolvida pela promessa de descanso em Cristo (Mateus 11:28-30).

O apóstolo Paulo, em suas epístolas, expande essa perspectiva. Em Filipenses 3:7-8, ele resume o seu próprio “proveito” terreno como sendo “perda” e “esterco” em comparação com “a excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor”. Ele contrasta os esforços humanos vazios com o verdadeiro “ganho” que está em Cristo. Em 1 Timóteo 6:7, Paulo afirma categoricamente: “Porque nada trouxemos para este mundo e manifesto é que nada podemos levar dele.” Isso diretamente ecoa a conclusão implícita de Eclesiastes 2:22: o homem nada tem de seu trabalho terreno no final. No entanto, Paulo continua exortando a uma vida de piedade com contentamento (1 Timóteo 6:6) e a “entesourar para si mesmos um bom fundamento para o futuro, para que possam alcançar a vida eterna” (1 Timóteo 6:19). Esse “bom fundamento” é o verdadeiro “proveito” que o Pregador procurava e não encontrava “debaixo do sol”. A “obra do Senhor” é aquela que não é vã (1 Coríntios 15:58), ao contrário do trabalho que o Pregador descreve como “debaixo do sol”, que leva à aflição.

Em síntese, Eclesiastes 2:22 é uma pergunta carregada de angústia e desilusão, questionando o verdadeiro “proveito” do trabalho e da aflição da vida quando tudo é feito “debaixo do sol”. A implicação é que, para o Pregador, não há ganho duradouro. As Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, reconhecem a transitoriedade das posses e do esforço humano, mas o Novo Testamento, em particular, oferece a resposta à pergunta do Pregador. A verdadeira “vantagem” e o “proveito” não são encontrados nas conquistas terrenas, mas na vida eterna em Cristo, na acumulação de tesouros celestiais e no trabalho feito para o Senhor, que confere um sentido e um legado que transcendem as limitações da existência “debaixo do sol”.

Eclesiastes 2:23 prossegue: “Porque todos os seus dias são dores, e a sua ocupação é aflição; até de noite não descansa o seu coração. Também isso é vaidade.” O versículo 23 amplia e conclui a angústia do anterior, aprofundando o retrato existencial do ser humano que busca sentido em seu próprio labor. A declaração “todos os seus dias são dores” traduz kî kol-yāmāw mak’ôvîm, onde mak’ôvîm (do radical k-ʾ-v) significa literalmente “dores físicas” ou “sofrimentos persistentes”, termo que aparece também em Isaías 53:3–4: “homem de dores (ʾîš mak’ôvîm) e que sabe o que é padecer”. O uso aqui aponta para um sofrimento contínuo, não pontual. O labor humano, portanto, é retratado como fonte de dor constante, não apenas um esforço físico, mas também uma angústia interior e perene.

A expressão seguinte, “sua ocupação é aflição”, traduz o hebraico ʿinyanô kaʿas, sendo ʿinyān o mesmo termo usado anteriormente em 1:13 para descrever o “exercício” (ou “tarefa penosa”) imposto ao homem. Já kaʿas carrega o sentido de “irritação”, “indignação”, “ansiedade amarga” — o mesmo vocábulo que aparece em 7:3: “melhor é a mágoa (kaʿas) do que o riso”. A imagem que se constrói é de um ser humano que se vê prisioneiro de um ritmo de vida onde o trabalho é marcado por dor física, fadiga emocional e inquietação existencial.

O clímax trágico do versículo está na linha “até de noite não descansa o seu coração” — gam bal-lāylā’ lō’-šākab libbô — indicando que o sofrimento não cessa nem mesmo no descanso esperado da noite. O verbo šākab (literalmente “deitar-se”) é aqui negado (lō’), e o sujeito é o lêv (o “coração”, entendido como centro da mente, vontade e emoção no pensamento hebraico). Assim, não apenas o corpo trabalha durante o dia, mas também o coração labuta à noite, em contínua ruminação, ansiedade e desassossego.

Este versículo pinta um quadro sombrio da vida humana, focando na dimensão da experiência pessoal daquele que trabalha. O Pregador afirma que “todos os seus dias são dores” – uma generalização que expressa a natureza aflitiva e penosa da existência quando desprovida de um propósito transcendente. A “sua ocupação” (seu trabalho, seus empreendimentos, sua busca por sentido) é caracterizada como “desgosto”, ou seja, frustração, pesar e aborrecimento. A angústia é tão profunda que se estende até o período de descanso: “até de noite o seu coração não descansa”. A mente não encontra paz, os pensamentos perturbadores persistem, e a preocupação e a futilidade da vida roubam o sono. A conclusão final, “Também isso é vaidade”, reitera o veredito do Pregador. A dor, o desgosto e a insônia que acompanham o trabalho “debaixo do sol” são mais evidências da natureza vã e sem proveito último da vida terrena.

No Antigo Testamento, a ideia de que a vida é marcada por dores e trabalho penoso é uma consequência direta da Queda em Gênesis 3:17-19. Após o pecado, Deus amaldiçoa a terra, dizendo a Adão: “Maldita é a terra por tua causa; com fadiga comerás dela todos os dias da tua vida... Com o suor do teu rosto comerás o pão, até que te tornes à terra”. Essa passagem ecoa a “dor” e a “ocupação” do Pregador que são sinônimo de “desgosto”. O livro de Jó também explora a aflição e a insônia resultantes do sofrimento humano (Jó 7:3-4: “Assim, me foram dados meses de vaidade, e noites de trabalho se me designaram. Deitando-me, digo: Quando me levantarei? Mas a noite se prolonga, e farto-me de inquietações até ao amanhecer.”). O lamento do Pregador em Eclesiastes 2:23 encontra paralelos nas experiências de personagens bíblicos que enfrentaram a dureza da vida sem uma perspectiva clara da redenção.

Essa realidade espelha a maldição do trabalho após a Queda, conforme Gênesis 3:17–19, em que o solo se torna ingrato e o trabalho, penoso: “com dor comerás dela todos os dias da tua vida... com o suor do teu rosto”. A inquietação que assola o coração humano à noite também encontra eco no Salmo 6:6: “de noite inundo o meu leito de lágrimas”.

A última sentença — “também isso é vaidade” — sela a reflexão com o refrão temático do livro: gam-zeh hāvel. A partícula gam (“também”) sinaliza que, mesmo a dedicação total, que consome dia e noite, resulta em hāvel — vapor, fumaça, transitório e sem substância. É a conclusão inevitável de toda tentativa de encontrar propósito absoluto dentro do circuito fechado da existência terrena. A denúncia não é contra o trabalho em si, mas contra a expectativa de que o labor humano, por si só, possa satisfazer o anseio por sentido. Eclesiastes levanta aqui uma questão escatológica: se nem o dia nem a noite trazem descanso ao coração humano, onde então habita o repouso verdadeiro, senão em Deus? (cf. Hebreus 4:9: “Resta ainda um repouso para o povo de Deus”).

O apóstolo Paulo, embora tenha enfrentado inúmeras dores e aflições em seu ministério (2 Coríntios 11:23-27), não se entrega ao desespero nem considera sua “ocupação” um “desgosto” sem sentido. Pelo contrário, ele vê suas aflições como “leves e momentâneas” em comparação com a “eterna e excelente glória” que produzem (2 Coríntios 4:17). Ele adquire um “descanso” no Senhor que transcende as circunstâncias. A “paz de Deus, que excede todo o entendimento”, é algo que “guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus” (Filipenses 4:7), oferecendo a solução para o coração que não descansa. A ausência de descanso noturno do Pregador é contrastada com o “descanso sabático” prometido aos filhos de Deus em Hebreus 4:9-11, que representa a cessação das obras humanas e a entrada no descanso de Deus, onde a labuta terrena não é mais uma fonte de desgosto, mas de propósito em Cristo.

Não resta dúvida de que Eclesiastes 2:23 é um lamento sombrio sobre a natureza aflitiva e desgostosa da vida humana, onde até o descanso é roubado pela preocupação e pela futilidade do trabalho “debaixo do sol”, culminando na conclusão de “vaidade”. A Bíblia reconhece a dor e a fadiga da existência caída, mas o Novo Testamento, em particular, oferece a resposta à angústia do Pregador. Em Jesus Cristo, o fardo da vida é aliviado, o trabalho ganha um propósito eterno, e o coração encontra o verdadeiro descanso e a paz que transcendem as aflições terrenas, transformando a “vaidade” em um caminho para a glória.

Eclesiastes 2:24 continua: “Nada há melhor para o homem do que comer, beber e fazer que a sua alma goze do bem do seu trabalho. Também isso eu vi que vem da mão de Deus.” Este versículo marca uma virada decisiva no discurso do Pregador, introduzindo pela primeira vez no livro uma saída, ainda que modesta, ao pessimismo anterior. Após a longa sequência de vaidade e frustração, o autor propõe que há algo positivo na experiência humana — o desfrutar do fruto do próprio trabalho — e, mais ainda, que isso é um dom divino.

A expressão inicial ên-ṭôv bâ-ādām (“nada há de bom para o homem”) é construída sobre uma negação enfática, indicando que, dentro do limite da existência “debaixo do sol”, não se pode esperar algo mais elevado, profundo ou estável do que isso: comer (le’ĕkōl), beber (lišĕtôt) e gozar (wehēr’â) do bem resultante do trabalho. O verbo rʾh, usado aqui no hiphil (wehēr’â), significa literalmente “fazer ver”, mas nesse contexto exprime a ideia de “permitir experimentar”, “proporcionar prazer”, como em Eclesiastes 3:13: “que o homem se alegre no seu trabalho; isso é dom de Deus”.

Essa valorização do prazer simples não deve ser confundida com hedonismo ou escapismo. O Pregador não está propondo que se fuja da dor ou da vaidade por meio da busca frenética por prazer, como tentou anteriormente (cf. 2:1–10), mas sim que se reconheça que o próprio ato de comer, beber e alegrar-se no cotidiano — quando visto como presente vindo “da mão de Deus” (mi-yad hāʾĕlōhîm) — possui dignidade e sentido. Essa linguagem da “mão de Deus” enfatiza que o que confere valor à experiência comum não é sua substância em si, mas sua origem transcendente. Ou seja, não é o prazer em si que tem sentido, mas o prazer como dom concedido por Deus.

Em suma, o versículo marca uma mudança de tom significativa na narrativa do Pregador. Após a exaustiva lista de vaidades e o desespero decorrente, ele chega a uma aparente resignação ou a uma nova compreensão da vida terrena. A afirmação “Não há nada melhor para o homem” sugere que, diante da inevitabilidade da morte e da futilidade do legado, o melhor que se pode fazer é desfrutar dos prazeres simples e tangíveis da vida: “comer e beber”. Mais do que isso, ele enfatiza “fazer com que sua alma goze do bem de seu trabalho”. Isso não é um hedonismo desenfreado, mas o desfrute do que é justo e merecido, o fruto do próprio esforço. É uma aceitação de que a verdadeira satisfação, na ausência de um propósito transcendente duradouro, reside em encontrar alegria nas coisas cotidianas e no resultado tangível do próprio labor.

A parte mais notável do versículo, no entanto, é a percepção crucial: “Também percebi que isso vem da mão de Deus.” Essa é uma revelação fundamental. O Pregador, que tem analisado tudo “debaixo do sol”, começa a vislumbrar que até mesmo a capacidade de desfrutar os prazeres simples da vida e o fruto do trabalho é uma dádiva divina, e não meramente o resultado de sua própria busca ou habilidade. Essa nova perspectiva prepara o terreno para um dos principais temas do livro: os chamados “textos da alegria” (cf. 3:12–13; 5:18–20; 8:15; 9:7–10). Esses trechos não anulam a vaidade da existência, mas reconhecem que há pequenas luzes no meio da névoa, lampejos de graça que devem ser recebidos com gratidão.

No Antigo Testamento, a ideia de desfrutar o fruto do trabalho e de comer e beber com alegria é apresentada em outras passagens como uma bênção de Deus, o que valida a percepção do Pregador em 2:24. Em Eclesiastes 5:18-19, o próprio Pregador reitera essa sabedoria prática, afirmando que “eis aqui o que eu achei bom e formoso: comer e beber e gozar do bem de todo o seu trabalho, em que trabalhou debaixo do sol, durante os poucos dias da sua vida que Deus lhe deu... e a todo o homem a quem Deus deu riquezas e bens e lhe deu poder para delas comer, e tomar a sua porção, e gozar do seu trabalho, isso é dom de Deus”.

Essa é uma das “conclusões” recorrentes de Eclesiastes, sugerindo que, embora a vida seja hevel, Deus permite momentos de alegria e desfrute. O Salmo 128:2 declara: “Pois comerás do trabalho de tuas mãos; feliz serás, e tudo te irá bem.” Isso reforça a ideia de que o desfrute do próprio trabalho é uma bênção. A Lei Mosaica e as festas de Israel também enfatizavam o desfrute com alegria das bênçãos de Deus, incluindo o vinho e a comida, como em Deuteronômio 12:7: “E ali comereis perante o Senhor, vosso Deus, e vos alegrareis em tudo em que puserdes a vossa mão, vós e as vossas casas, os quais o Senhor, vosso Deus, vos abençoar.”

No Novo Testamento, a capacidade de desfrutar a vida e o fruto do trabalho é confirmada como uma dádiva de Deus, mas é elevada a uma dimensão espiritual que transcende a mera aceitação das limitações terrenas. Jesus, em João 10:10, afirma: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.” Essa “vida em abundância” não se refere apenas à eternidade, mas também a uma vida de propósito e desfrute que o Pregador só vislumbra parcialmente. A celebração e o desfrute dos bens são aceitáveis quando feitos com gratidão a Deus.

O apóstolo Paulo, em suas epístolas, ecoa a ideia de que o desfrute moderado e a gratidão são a resposta à futilidade. Em 1 Timóteo 4:3-5, ele combate a doutrina de que é preciso abster-se de certos alimentos, afirmando que “todo alimento é bom, e nada deve ser rejeitado, se for recebido com ações de graças; porque pela palavra de Deus e pela oração é santificado”. Isso valida a capacidade de “comer e beber” e desfrutar do trabalho como algo bom, quando reconhecido como vindo de Deus e recebido com gratidão.

A exortação de Paulo em Filipenses 4:11-13 sobre aprender a contentar-se em qualquer situação (quer com abundância, quer com necessidade) mostra que a alegria não está na quantidade de posses, mas na capacidade de encontrar contentamento e força em Cristo, o que permite o verdadeiro desfrute do que se tem, seja muito ou pouco. Para Paulo, o “fazer o bem” e o “trabalho” são importantes, mas devem ser feitos “no Senhor” (1 Coríntios 15:58), para que tenham valor eterno e tragam a verdadeira alegria e não a “vaidade” da qual o Pregador estava se lamentando.

O v. 24, portanto, não revoga a tensão existencial descrita nos versículos anteriores, mas introduz um contraponto: há uma alegria possível dentro dos limites da vida sob o sol, desde que o coração reconheça a origem divina dessa alegria. Trata-se de um chamado à gratidão e à humildade diante do pouco que se pode controlar, e ao mesmo tempo um convite à fé — de que, mesmo no absurdo da existência, Deus ainda age, ainda dá, e ainda convida o homem a desfrutar da vida como presente, e não como conquista.

Eclesiastes 2:25 reflete: “Pois quem pode comer, ou quem pode gozar, sem que isto venha dele?” Este versículo funciona como uma justificativa teológica para a afirmação anterior, aprofundando a ideia de que a capacidade de desfrutar da vida não é mérito humano, mas concessão divina. A construção retórica da pergunta (“quem pode comer... sem que isso venha dele?”) visa provocar reflexão e destacar a dependência total do homem em relação a Deus, não apenas para o sustento físico, mas também para a capacidade subjetiva de desfrutar o que possui.

A formulação hebraica gira em torno de kî mî yōʾkāl ûmî yeḥûš ḥûṣ mimmēnnû — literalmente, “Pois quem pode comer e quem pode experimentar [alegria], exceto a partir dele?” A forma yeḥûš, do verbo ḥûš, é rara e seu significado é debatido, mas a melhor leitura, conforme o contexto e os paralelos, é “sentir prazer”, “desfrutar”, “saborear com alegria”. A Septuaginta e a Vulgata refletem essa leitura. A ênfase não está apenas no ato externo (comer), mas na experiência interna de satisfação e contentamento — e essa, diz o Pregador, vem unicamente de Deus. O foco no pronome final mimmēnnû (“dele” ou “à parte dele”) mostra que a vida, mesmo quando cercada de bens materiais, torna-se vazia se dissociada de Deus.

Este versículo como um todo é uma pergunta retórica que funciona como uma afirmação poderosa da soberania divina sobre a capacidade humana de desfrutar a vida. A interrogação “Pois quem pode comer, ou quem pode gozar, sem ele?” aponta para a convicção do Pregador de que a habilidade de desfrutar os bens e o fruto do trabalho não é inerente ao homem, nem simplesmente o resultado de sua própria vontade ou posse. Mesmo após ter acumulado todas as riquezas e prazeres imagináveis, ele conclui que a satisfação verdadeira, o desfrute genuíno dessas coisas, é um dom que só pode ser concedido por Deus. Sem a permissão ou a bênção divina, toda a abundância material e todo o esforço se tornam vazios, como ele já havia experimentado e lamentado ao longo do capítulo 2. É uma reafirmação de que a alegria e o contentamento, mesmo nas coisas mais básicas da vida, são dádivas do Criador e não podem ser forçados ou obtidos por meios puramente humanos.

No Antigo Testamento, a dependência de Deus para a provisão e o desfrute da vida é um tema constante. A própria existência e a capacidade de sustento são vistas como dádivas divinas. Em Deuteronômio 8:17-18, Deus adverte Israel a não dizer “A minha força e a fortaleza da minha mão me adquiriram estas riquezas”, mas a se lembrar do Senhor, “que é ele o que te dá força para adquirires riquezas”. Essa passagem ecoa a verdade de Eclesiastes 2:25: o poder para desfrutar, assim como o poder para adquirir, vem de Deus. O Salmo 104:27-28 descreve a dependência de todas as criaturas de Deus para seu alimento e provisão: “Todos esperam de ti que lhes dês o sustento a seu tempo. Tu lho dás, e eles o recolhem; abres a tua mão, e eles se fartam de bens.” Isso se aplica não apenas à provisão, mas também à capacidade de desfrutá-la. A narrativa do maná no deserto (Êxodo 16) é outro exemplo da total dependência de Israel da provisão diária de Deus.

No Novo Testamento, a dependência de Deus para a vida e para o desfrute é ainda mais aprofundada, com Jesus e os apóstolos enfatizando que a verdadeira satisfação vem de uma relação com o Criador. Jesus, em Mateus 4:4, afirma: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.” Essa declaração, feita em resposta à tentação no deserto, eleva a dependência de Deus para além do alimento físico, incluindo a provisão espiritual e a própria essência da vida. Isso implica que, sem Deus, o “comer e beber” não pode trazer verdadeira satisfação.

O apóstolo Paulo, em Atos 17:28, declara a todos os homens que “nele [Deus] vivemos, e nos movemos, e existimos”, o que corrobora a ideia de que cada aspecto da existência, incluindo a capacidade de desfrutar, é derivado de Deus. Em 1 Timóteo 6:17, Paulo instrui os ricos a “não confiarem na instabilidade das riquezas, mas em Deus, que abundantemente nos dá todas as coisas para delas desfrutarmos”. Esta passagem é um paralelo direto e uma confirmação de Eclesiastes 2:25, pois Paulo esclarece que Deus é quem “nos dá todas as coisas para delas desfrutarmos”. A verdadeira capacidade de gozar da vida não está na posse em si, mas na benção de Deus que permite o desfrute. A gratidão, como ensinado em Colossenses 3:17 (“E tudo quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei tudo em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai”), é a resposta adequada a essa dádiva divina, transformando o ato de comer e beber em um ato de louvor e reconhecimento da soberania de Deus. Isso ressoa com o ensino de Tiago 1:17: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes”, e com João 3:27: “O homem não pode receber coisa alguma, se do céu não lhe for dada.” Sem a presença ativa e graciosa de Deus, até mesmo o banquete mais farto torna-se insípido.

O Pregador, portanto, não abandona sua crítica à vaidade da vida, mas começa a delinear uma alternativa: há sentido no mundo, desde que se reconheça a fonte do prazer como sendo divina. A verdadeira alegria não está no que o homem possui, mas em receber com gratidão e contentamento aquilo que Deus concede, como dom e não como direito. Assim, Eclesiastes 2:25 reforça que o caminho da fé não nega a realidade, mas redimensiona a existência a partir da presença de Deus — a única fonte legítima do prazer que permanece.

Eclesiastes 2:26 continua: “Porque ao homem que lhe agrada, Deus dá sabedoria, conhecimento e alegria; mas ao pecador dá o trabalho de ajuntar e amontoar, para o dar àquele que agrada a Deus. Também isto é vaidade e correr atrás do vento.” Este versículo conclui a seção com uma visão teológica densa e ao mesmo tempo surpreendente. Pela primeira vez no capítulo, Deus aparece como agente ativo que distribui recompensas de acordo com seu favor. A sentença começa com kî lēʾādām šerṭōv lefānāyw — “porque ao homem que é bom diante dele [de Deus]”, ou “que lhe agrada”. Aqui, a ênfase recai na relação ética com Deus. O verbo ṭāb (“ser bom”) no contexto hebraico não se refere apenas à moralidade externa, mas a uma disposição correta diante de Deus, que se expressa na reverência e na humildade (cf. Miqueias 6:8; Salmo 112:1).

A tríade de dons dados por Deus — “sabedoria” (ḥokhmāh), “conhecimento” (daʿat) e “alegria” (śimhāh) — contrasta radicalmente com a herança de frustração deixada ao “pecador” (laḥōṭēʾ). Enquanto o justo recebe capacidades internas para viver bem e em paz, o ímpio se torna um mero instrumento de acumulação que, ironicamente, acaba beneficiando quem agrada a Deus. A ideia aqui é profundamente subversiva: o trabalho do pecador é, em última instância, fútil, pois ele serve involuntariamente aos propósitos divinos. Isso ecoa temas encontrados em Provérbios 13:22 (“...as riquezas do pecador são depositadas para o justo”) e também na lógica escatológica de Lucas 12:20–21, quando Deus chama de tolo o homem rico que acumula para si, mas não é rico para com Deus.

A conclusão “também isto é vaidade e correr atrás do vento” (gam zeh hāḇel ûreʿût rūaḥ) volta a tematizar o leitmotiv do livro. Ainda que haja uma retribuição divina justa, essa distribuição permanece oculta e inesperada no curso da história. Assim, a mensagem de Eclesiastes não se reduz a um cinismo fatalista, mas a um realismo espiritual: o mundo é cheio de enigmas morais, mas Deus está ativo, ainda que de forma paradoxal e, muitas vezes, invisível.

Este versículo apresenta uma distinção crucial na forma como Deus distribui Seus dons e como Ele opera na vida dos homens. O Pregador afirma que “ao homem que é bom diante dele” (ou seja, àquele que agrada a Deus, que vive em retidão ou obediência) Deus concede três bênçãos interligadas: “sabedoria, e conhecimento, e alegria”. Essa é a tríade ideal da vida abençoada por Deus, um contraste direto com a “vaidade” e “aflição de espírito” que ele lamentou anteriormente. A sabedoria e o conhecimento capacitam o homem a viver bem e entender os caminhos de Deus, e a alegria é o resultado da capacidade de desfrutar verdadeiramente a vida e o fruto do trabalho, como Deus o permite.

Em contrapartida, “mas ao pecador dá trabalho, para que ajunte e amontoe, a fim de o dar àquele que é bom diante de Deus”. Aqui, o Pregador observa a justiça providencial de Deus em ação. O pecador é condenado a uma vida de “trabalho” árduo e penoso, não para seu próprio desfrute pleno, mas para “ajuntar e amontoar” riquezas e bens que, em última instância, serão transferidos para “aquele que é bom diante de Deus”. Essa é uma forma de justiça divina onde os bens acumulados pelos ímpios servem, eventualmente, para beneficiar os justos. Essa realidade, no entanto, é novamente avaliada pelo Pregador como “Também isso é vaidade e aflição de espírito.” Embora haja uma justiça divina percebida, a dor e a futilidade da acumulação de riquezas por parte do pecador (que não desfruta plenamente e ainda as perde) são vistas como um aspecto melancólico da vida “debaixo do sol”, reiterando a natureza insatisfatória dos esforços puramente terrenos.

No Antigo Testamento, a ideia de que Deus recompensa os justos e pune os ímpios, muitas vezes transferindo a riqueza dos segundos para os primeiros, é um tema recorrente. Provérbios 13:22 afirma: “O homem bom deixa herança aos filhos de seus filhos, mas a riqueza do pecador é reservada para o justo.” Essa passagem é um paralelo direto e uma confirmação da observação do Pregador em Eclesiastes 2:26. A busca por sabedoria e conhecimento é exaltada em Provérbios 2:6: “Porque o Senhor dá a sabedoria; da sua boca vem o conhecimento e o entendimento.” A alegria também é vista como uma bênção divina para os que temem a Deus (Salmo 16:11). No entanto, o “trabalho” como punição ou para a acumulação vã do pecador remete à maldição de Gênesis 3:17-19 e à constante advertência contra a injustiça e a opressão.

No Novo Testamento, a distinção entre a bênção para os justos e a condenação para os ímpios é aprofundada, e a providência divina sobre a riqueza é ressignificada à luz do Reino de Deus. Jesus, em Mateus 6:33, exorta: “Mas buscai primeiro o Reino de Deus, e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas.” “Essas coisas” (sabedoria, conhecimento, alegria, provisão) são prometidas àqueles que buscam a Deus e Sua justiça, o que se alinha com o “homem que é bom diante dele” de Eclesiastes 2:26. A “aflição de espírito” e a “vaidade” da acumulação para o pecador são ecoadas na parábola do Rico Insensato (Lucas 12:16-21), onde o homem acumula vastos bens, mas morre inesperadamente, deixando-os para outros, sem proveito eterno.

O apóstolo Paulo, em Romanos 2:7-8, afirma que Deus dará “vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, buscam glória, honra e incorruptibilidade; mas ira e indignação aos que são contenciosos e desobedientes à verdade”. Isso demonstra que Deus distribui recompensas e consequências de acordo com a conduta. Em 1 Timóteo 6:9-10, Paulo adverte que “os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína. Porque o amor do dinheiro é a raiz de todos os males”. Essa advertência ilumina a “vaidade e aflição de espírito” do pecador que ajunta riquezas. A verdadeira sabedoria, conhecimento e alegria, no Novo Testamento, são encontrados em Cristo (Colossenses 2:3), e a “boa obra” que tem valor eterno é a obra do Senhor (1 Coríntios 15:58), que não está sujeita à futilidade da herança terrena, mas resulta em glória com Deus.

Eclesiastes 2:26 é uma profunda reflexão sobre a providência divina na distribuição dos dons e na justiça retributiva. O Pregador observa que Deus concede sabedoria, conhecimento e alegria ao homem que o agrada, enquanto o pecador é condenado a uma labuta vã, acumulando riquezas que, no final, serão transferidas ao justo. Apesar de reconhecer essa justiça divina, ele ainda qualifica a situação como “vaidade e aflição de espírito”, pois a posse terrena e o trabalho para acumular, mesmo que justos, ainda não resolvem o problema do sentido último da vida “debaixo do sol”. As Escrituras corroboram a providência de Deus e a distinção entre justos e ímpios, mas o Novo Testamento, em particular, transcende a melancolia do Pregador ao oferecer uma esperança e um propósito que vão além da acumulação terrena, focando na riqueza espiritual e na vida eterna em Cristo como a verdadeira e duradoura alegria.

✝️ Teologia de Eclesiastes 2

O Fracasso de Todos os Caminhos Humanos
(Soteriologia Negativa e Antropologia)

O capítulo 2 de Eclesiastes é uma jornada profundamente humana por todos os caminhos possíveis em busca de sentido. Trata-se de uma peregrinação do coração — e do intelecto — por prazeres, projetos, realizações e sabedoria, que termina onde começou: no vazio. O que se revela ao final dessa caminhada não é apenas uma crítica existencial às realizações humanas, mas uma afirmação teológica crucial: nenhuma obra humana, por si só, pode salvar. Este capítulo ecoa com força a confissão soteriológica negativa: o homem, em sua condição decaída, é incapaz de redimir a si mesmo.

Qohelet começa testando o caminho do hedonismo. “Disse comigo: vem, eu te provarei com alegria; goza, pois, o prazer” (Ec 2:1). Contudo, logo admite: “eis que também isso era vaidade”. Ao relatar seus feitos — vinhas, casas, jardins, servos, gado, ouro, música, concubinas (vv. 4-8) —, o Pregador não está apenas descrevendo uma vida de excessos, mas dramatizando a tentativa humana de encontrar, na criação, aquilo que só o Criador pode fornecer: sentido duradouro, paz interior e identidade estável. A antropologia bíblica aqui é refinada: o ser humano, feito à imagem de Deus, carrega em si uma sede de eternidade que os bens terrenos não podem saciar. O pecado não anulou essa sede, mas distorceu sua direção — e é esse desvio que o capítulo expõe.

A conclusão é devastadora: “olhei para todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também para o trabalho que eu, trabalhando, fiz; e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento” (Ec 2:11). Aqui há uma renúncia solene à autossalvação. As mãos humanas constroem, cultivam e acumulam, mas sem Deus tudo se dissipa. Esta é a base de uma Soteriologia negativa: o homem não pode salvar-se por sua sabedoria (cf. Ec 2:13-16), nem por seus feitos, nem por seu prazer. Esse testemunho converge com as palavras paulinas em Romanos 3:20: “por obras da lei nenhuma carne será justificada diante dele”.

Mas há mais. O Pregador também testa a sabedoria como caminho de escape, e, de certo modo, reconhece sua superioridade à loucura (Ec 2:13). Contudo, também a sabedoria morre com o sábio. “Como sucede ao tolo, assim também sucede a mim; por que, pois, busquei eu então mais sabedoria?” (Ec 2:15). A morte nivela todos os projetos humanos, e com isso desmascara a pretensão do homem de controlar seu destino. Este não é apenas um comentário sobre a vida; é um diagnóstico sobre a natureza caída da humanidade e a necessidade de algo — ou Alguém — que transcenda os ciclos da história e da carne.

O texto também atinge o ponto mais amargo da frustração humana: “aborreci a vida… porque tudo é vaidade” (Ec 2:17). A palavra usada para “aborrecer” (sané) é forte — revela um coração exausto da própria existência. Esse testemunho, longe de ser um niilismo sem solução, é uma confissão sincera da alma decaída. É no reconhecimento do fracasso de todos os caminhos humanos que se abre espaço para a verdadeira revelação — para a vinda da graça. O Novo Testamento começa onde Eclesiastes termina: no fim do eu, e na entrada de Deus em carne.

E assim, o capítulo termina com uma nota inesperada: “não há coisa melhor do que comer, e beber, e fazer com que a sua alma goze o bem do seu trabalho… também isso vi que vem da mão de Deus” (Ec 2:24). Após negar todas as autossalvações, Qohelet redescobre a gratuidade dos dons simples, não como caminho para o céu, mas como expressão da bondade divina. Quando a vida é recebida como dom — e não construída como torre de Babel —, ela se enche de sentido. A salvação ainda não foi revelada, mas a graça já se insinua.

✝️ Comentário Reformado:

A Busca de Salomão pelo Sentido da Vida

No segundo capítulo de Eclesiastes, Salomão inicia uma profunda investigação sobre as recompensas da razão e da não-razão, do prazer sensual e estético, da iniciativa criativa, da apreciação e da atividade como colecionador e ativista. Seu objetivo é explorar o que a vida poderia significar para aqueles idealmente dotados e com vantagens. Lutero, ao refletir sobre essa busca, comenta: “Não devemos encontrar prazer na felicidade, nos bens, em nossos próprios conselhos ou em qualquer outra coisa; somente como Deus nos deu devemos usá-los. Deve-se deixar Deus ter Seu caminho. Não nos cabe prescrever o lugar, a pessoa ou a maneira; se o fizermos, erraremos. Isso não significa que a felicidade seja condenada como algo mau ou vão. O que é condenado é o esforço e o planejamento humanos, quando nós mesmos queremos ou tentamos criar a felicidade sem respeito à vontade de Deus. Mas como ambos vêm de Deus, assim os usemos.... A tristeza, a felicidade e todas essas coisas, sejam externas ou internas, não devem ser medidas com base em lugares, tempos, etc.; mas como vêm de Deus em Sua completa liberdade, assim se deve usá-las em completa liberdade” (AE vol. 15, p. 30).

Apesar de a diversão poder trazer alívio, quando em excesso, ela pode conduzir à tolice e à improdutividade. A diversão, por si só, é incapaz de apaziguar uma consciência culpada, curar um espírito entristecido ou satisfazer a alma. A palavra traduzida como “prazer” no texto original significa literalmente “bom”.

Salomão prossegue em sua exploração, buscando alegrar seu corpo com vinho, mergulhando nos prazeres do paladar e da carne. Contudo, ele o faz intencionalmente, buscando “deter-se na loucura” de forma controlada, pois se dedicou à sabedoria para gerenciar cuidadosamente seu uso dos prazeres sensuais. A brevidade da vida e o serviço ao Senhor devem ser guiados por Sua Palavra, e não pela busca exclusiva do prazer. Há um jogo de palavras em hebraico (shamayim... yeme) entre “debaixo do céu” e “poucos dias”, que ressalta essa transitoriedade. Assim, é considerado bom realizar a obra do Senhor.

Os versículos 2:4-6 encontram paralelos em 1 Reis 4–11 e 6:38, e a arqueologia confirma os extensos projetos de construção de Salomão por todo Israel, conforme se pode verificar na nota de 1 Reis 9:15. A construção de um grande império, como os “grandes trabalhos” mencionados em 2:4, poderia, em tese, trazer satisfação duradoura e grande dignidade, como descrito em 1 Reis 4–11. Salomão tenta criar um paraíso na terra (2:5-6), mas a recriação de todas as coisas só pode acontecer com o retorno de Cristo em glória (Ap 21–22). Seus “jardins” e “lagos” eram sistemas de irrigação para pomares e árvores madeireiras, através de aquedutos (cf. 2Sm 2:13; 4:12).

Para realizar seus ambiciosos projetos, Salomão necessitou de milhares de “escravos” (2:7), que eram comprados e intencionalmente mantidos para o trabalho físico (cf. 1Rs 5:13; 9:22). Além disso, suas “manadas e rebanhos” eram claros sinais de riqueza em culturas agrárias, e é interessante notar que a família de Salomão teve suas origens como pastores. É digno de observação que ele não discute sua esposa e filhos neste contexto, mas sim sua família estendida, que incluía escravos e concubinas em sua casa. A palavra hebraica para “concubinas” (2:8), que se refere a um “harém”, ocorre apenas aqui na Escritura, mas é similar ao termo cananeu usado para concubinas. Salomão, de fato, teve 300 concubinas e 700 esposas (1Rs 3:1; 11:1–13), e tais casamentos tipicamente envolviam relações diplomáticas, políticas e comerciais.

Apesar de todas essas buscas, a “sabedoria permaneceu com ele” (2:9), o que indica que, do versículo 1 ao 9, a sabedoria identificou o que era bom (v. 1) e o que valia a pena (v. 3). No entanto, os termos para “cansaço” e “trabalho” aparecem mais de 25 vezes em Eclesiastes, e embora o trabalho trouxesse prazer, Salomão concluiu que, ao revisar o prazer que buscou e as grandes conquistas obtidas, não obteve nenhuma vantagem ou satisfação, pois não havia “lucro debaixo do sol” (2:10-11). Mesmo com sabedoria, o trabalho é sem sentido à parte do temor a Deus (ver nota, 1:3).

Em síntese, a busca pelo prazer, como evidenciado em Eclesiastes 2:1–11, pode nos afastar do Senhor e nos direcionar para outros “altares”, assim como Salomão se voltou para outros deuses e ídolos antes de retornar a Deus (cf. Mt 6:19–24). Quando expressamos gratidão a Deus por Seus dons graciosos e simples — casa e lar, rebanhos e manadas, cônjuge e filhos — focamos em Sua misericórdia e bondade paternais. Nesse sentido, podemos orar: • Ó Senhor Cristo, ajuda-nos! Fortalece nossa fé e confiança em Ti. Recebemos todos os nossos tesouros somente em Ti. Somos pobres; Tu és rico. Concede-nos Tua fé e justiça para que possamos confiar e permanecer em Teu amor eterno por toda a eternidade, por Jesus Cristo. Amém.

A Sabedoria e a Loucura: Uma Perspectiva Eclesiastes

Em Eclesiastes 2:12, o Pregador questiona: “o que pode fazer o homem que vem depois do rei?”. A riqueza, a pompa e a grandiosidade do reino de Salomão podiam ser herdadas, mas sua sabedoria não. Seu herdeiro (Roboão; 1Rs 12) precisaria adquirir sabedoria através do estudo e da experiência. Embora o Senhor tivesse permitido a Salomão construir o templo e o palácio, ele ainda pode ter se sentido insignificante aos olhos de Israel em comparação com seu pai, o Rei Davi.

O prazer da sabedoria, embora não suficiente para tornar as pessoas felizes, é superior à tolice (2:13). A tolice, por sua vez, ofusca e obscurece a mente. O versículo 2:14, “olhos em sua cabeça”, refere-se à sabedoria, que detecta perigos e vantagens, e sabe onde pisar. A “escuridão”, em contraste, faz com que se perca o caminho e, talvez, caia em um abismo do qual não há resgate. Um tolo (Pr 1:22) é aquele que despreza o conhecimento. A sabedoria reverencia a Deus; a tolice não.

É importante notar que os mesmos perigos podem superar tanto o sábio quanto o tolo (2:15), e a morte, a grande niveladora, em última instância devora ambos. Apenas a fé no Senhor salva. Lutero resume essa ideia: “A sabedoria é benéfica, então, se faço o que sei que é agradável a Deus e Lhe entrego o que Ele deseja que seja realizado por meio de mim. Se fizéssemos isso, então finalmente seríamos verdadeiramente sábios” (AE 15:42). Assim, não há “lembrança duradoura” (2:16) para aqueles que são sábios ou tolos pelos padrões do mundo, pois seus nomes são escritos no pó da terra (cf. 1Co 1:20). Em contraste, o nome do crente é escrito no céu (Lc 10:20).

Salomão, em dado momento, cansou-se de seu trabalho e o via com desprezo (2:17). Esse fardo o fatigava à medida que envelhecia, e sua tristeza aumentava. Este mundo é um vale de lágrimas, mesmo para os privilegiados. Aqueles que estão sobrecarregados são convidados a vir ao Senhor para encontrar descanso (Mt 11:28).

Em suma, de Eclesiastes 2:12–17, depreende-se que, no final, a vida é vaidade à parte da fé no Senhor. O desfecho é o mesmo para o sábio e para o tolo. Tudo o que é feito na ausência da fé se tornará palha lançada ao fogo devorador. Cristo nos convida a vir a Ele e a sermos submetidos ao Seu fardo leve. Busquemos primeiro o Seu reino e os Seus dons, e todas as outras coisas nos serão dadas. • Pai Celestial, Deus eterno, onde estaríamos se Tu nos abandonasses? Quão rapidamente os educados se tornam infantes; os prudentes, simples; os sábios, tolos! Mantém-nos no fervor da fé e aumenta-a diariamente através de Jesus Cristo, nosso Redentor. Amém.

A Realidade Inevitável da Morte e a Provisão Divina

A morte, em sua inevitabilidade (2:18), finalmente nos separa de nossos lucros (cf. Jó 8:9). Eles passam para a próxima geração (cf. v. 21; Lc 12:20). O “trabalho” aqui se refere ao mesmo conceito discutido nas notas de 2:10–11. Uma pessoa sábia aumenta uma herança; um tolo a esbanja e desfaz o trabalho do mestre (cf. Mt 25:14–30). Salomão provavelmente estava considerando seu filho Roboão e outros potenciais herdeiros. De fato, a alta tributação de Roboão (1Rs 12:1–20; 2Cr 10) levou Israel à revolta (2:19). Essa “desesperança” (2:20) é um resultado direto do significado que cria o desespero e a depressão.

Os versículos 2:21-23 reafirmam a futilidade de certas buscas, e para mais detalhes, pode-se consultar as notas nos versículos 18 e 19. Os seres humanos não podem adicionar um único momento à sua expectativa de vida (Mt 6:27; Lc 12:16–21), e a decepção é garantida. Quando dominado pelos afazeres diários e esperançoso pelo descanso noturno, um indivíduo passa a noite com os olhos abertos, o coração palpitante e o cérebro em pleno processo, preocupado com o que está por vir (2:23).

Apesar de todas as aflições, o tema de “encontrar prazer” (2:24) é repetido em 3:12–13, 22; 5:18–20; 8:15; 9:7. É fundamental ressaltar que o hedonismo descarado não é sugerido aqui. Devemos receber os dons de Deus e usá-los com alegria, sabendo que nunca trarão felicidade absoluta (12:13). O “trabalho” aqui novamente se refere ao já explorado nas notas de 2:10–11. Contudo, tudo isso provém “da mão de Deus” (2:24), conforme descrito na Quarta Petição do SC, aqui; cf. Sl 145:15–16; At 17:28; Ef 5:20. Para mais informações, ver nota, 12:13 (2:25).

Para o “pecador” (2:26), os dons são facilmente corrompidos e explorados para o prazer. Eles seduzem, tiranizam e aprisionam. A verdadeira sabedoria vem somente de Deus (cf. Sl 111:10; Pr 2:6; Cristo é sábio: 1Co 1:24, 30). A passagem descreve o juízo de Deus sobre a fé e as obras. Além disso, Deus “dá a quem Lhe agrada”, não necessariamente o justo, mas a quem Ele permite herdar.

Portanto, o “trabalho” e o “labor debaixo do sol” (2:18–26) podem levar alguém à beira de um desespero profundo. As chamadas “coisas significativas” desta vida podem se tornar ídolos que, em última análise, perecem e não fornecem valor duradouro no contexto do perdão, vida e salvação em Cristo (cf. Mt 6:19–24). Nosso gracioso Pai celestial estende Sua mão e provê tudo de que precisamos para esta vida temporal e a vida eterna através de Seu Filho, nosso Senhor. • Pai celestial, preciosíssimo, Tu nos deste muitos dons inestimáveis por Tua graciosa mão. Não pedimos prata ou ouro, mas uma fé forte e firme. Não nos deixes viver para o prazer nas coisas do mundo, mas conforta-nos e refresca-nos em Tua abençoada e curadora Palavra. Então, com fé verdadeira, poderemos confiar em Tua graça até o fim. Amém.

📚 Comentários Clássicos Teológicos

📖 Matthew Henry (1662–1714)

Matthew Henry entende Eclesiastes 2 como uma continuação do testemunho pessoal de Salomão sobre a futilidade de tudo o que é realizado “debaixo do sol”. O capítulo, segundo ele, registra uma série de experiências em que o rei se lançou: prazeres, obras, riqueza, conhecimento — tudo foi testado, e tudo se mostrou vão.

Logo nos versículos iniciais (vv.1–2), Henry destaca o contraste entre a expectativa de alegria nos prazeres e o vazio deixado por eles. “Vem agora, eu te provarei com alegria” é para ele um retrato de uma alma tentando anestesiar o coração com divertimentos, mas colhendo apenas frustração. A conclusão — “também isso era vaidade” — marca o tom do restante do capítulo.

Nos vv.4–11, Henry analisa os grandes empreendimentos de Salomão: jardins, palácios, vinhas, servos, tesouros, música. Ele observa que o rei acumulou tudo o que um homem poderia desejar — e ainda assim não encontrou satisfação. O v.11 — “olhei para todas as obras... e eis que tudo era vaidade” — é lido por Henry como um alerta aos que confiam em realizações visíveis. Ele compara esse esforço com a “corrida atrás do vento”, ecoando a linguagem poética da frustração espiritual.

Ao comentar o contraste entre o sábio e o tolo (vv.12–16), Henry afirma que, apesar de haver vantagens práticas na sabedoria, ela não livra o homem da morte. “Como morre o sábio, assim morre o tolo” — uma sentença que para Henry revela a necessidade de um referencial eterno. Ele enfatiza que sem a esperança da ressurreição, toda superioridade humana é reduzida a pó.

Na conclusão (vv.17–26), Henry enxerga um desabafo sincero: Salomão “odiou a vida”, não porque a criação seja má, mas porque todo esforço humano, se separado de Deus, leva ao desalento. Mas ele termina destacando os vv.24–26 como um “raio de luz”: o gozo legítimo da vida é possível quando vem das mãos de Deus. É Deus quem dá “sabedoria, conhecimento e alegria” àquele que lhe agrada.

Fonte: Matthew Henry Commentary on Ecclesiastes 2

📖 John Gill (1697–1771)

John Gill trata Eclesiastes 2 como um catálogo detalhado das tentativas humanas de encontrar felicidade fora de Deus. Ele comenta que Salomão se tornou um “experimentador moral”, buscando em cada aspecto da vida terrena algum sentido para a existência.

Ao abordar o v.1 (“Vem agora, provarei a alegria”), Gill destaca que o verbo אֲנַסֶּנּוּ (ʾanassenû, “provar”) implica um experimento deliberado e consciente. Ele vê nisso uma tentativa racional de medir o valor dos prazeres terrenos — mas que já nasce frustrada: “também isso era vaidade”.

Nos vv.4–8, Gill oferece observações sobre a cultura material: casas, vinhas, hortas, servos, gado, prata, ouro, cantores. Ele observa que o vocabulário hebraico utilizado retrata riqueza extrema (como os “tesouros de reis” — segullat melakhim) e luxo sensorial. Mas o v.11 afirma que tudo isso era “vaidade e aflição de espírito” (reʿut rûaḥ), que Gill interpreta como “um desejo que nunca se satisfaz”, um vento que se escapa entre os dedos.

No v.13 — “a sabedoria é mais proveitosa que a estultícia” — Gill reconhece a superioridade relativa da sabedoria, mas ressalta que sua vantagem é temporária: a morte nivela todos. A frase “não haverá memória do sábio” (v.16) é lida como uma denúncia do esquecimento humano, e ele cita Jó 14:2 para ilustrar a brevidade da vida.

A transição no v.17 — “pelo que aborreci a vida” — é, para Gill, um grito da alma que perdeu o eixo espiritual. Ele interpreta que Salomão não está em desespero suicida, mas descrevendo a realidade de uma vida centrada em si mesma.

Nos vv.24–26, Gill chama atenção para a palavra hebraica טוֹב (ṭov, “bom”), que aparece repetidamente. Comer, beber e alegrar-se não são condenados em si — antes, são dons que devem ser recebidos “da mão de Deus”. Ele observa que, embora esse refrão se repita ao longo do livro, aqui ele introduz pela primeira vez a ideia de que Deus dá contentamento ao homem piedoso e frustração ao ímpio, antecipando o tema do julgamento final.

Fonte: John Gill's Exposition of the Entire Bible on Ecclesiastes 2

📖 Albert Barnes (1798–1870)

Albert Barnes enxerga Eclesiastes 2 como o capítulo onde Salomão começa seu “diário de experiências” — um tipo de autobiografia espiritual. Ele nota que o tom é confessional: Salomão não apenas pensa, mas age, experimenta, compara e conclui.

No v.1, Barnes sublinha que a busca da “alegria” e do “prazer” não é irreligiosa por si, mas revela sua insuficiência quando divorciada da verdade. Ele interpreta o v.2 — “do riso disse: é loucura” — como uma crítica ao hedonismo superficial.

Ao comentar os empreendimentos materiais (vv.4–8), Barnes destaca que cada projeto de Salomão representa um tipo de ambição moderna: propriedade, estética, riqueza, cultura. No v.10 — “não neguei aos meus olhos coisa alguma” — ele vê um colapso moral: a razão se rende ao desejo. Mas o v.11 revela a desilusão inevitável: “nada havia de proveito debaixo do sol”.

No v.14 — “o sábio tem olhos na cabeça” — Barnes interpreta como discernimento espiritual, mas o v.16 quebra essa esperança com a morte universal. Ele escreve que, sem fé, o abismo da morte consome toda distinção.

No v.18 — “aborreci todo o meu trabalho” — Barnes vê um lamento pela transitoriedade da herança: tudo que se acumula pode ser deixado a um insensato. Ele destaca o v.23 — “todos os seus dias são dores” — como um retrato do homem moderno, ocupado, cansado, insatisfeito.

Mas nos vv.24–26, Barnes observa uma mudança: ele vê a graça de Deus como restauradora do sentido da vida. O verbo נָתַן (nātan, “dar”) aparece três vezes, indicando que a verdadeira alegria é um dom. Comer e beber são reabilitados como formas legítimas de contentamento, quando recebidos com gratidão.

Fonte: Albert Barnes' Notes on the Whole Bible on Ecclesiastes 2

📖 Keil (1807–1888) & Delitzsch (1813–1890)

Keil & Delitzsch realizam uma leitura filológica meticulosa de Eclesiastes 2, focando no vocabulário hebraico e na estrutura do argumento. Eles observam que o capítulo está dividido em dois movimentos: a busca pelos prazeres e obras (vv.1–11) e a reflexão sobre sabedoria, herança e justiça divina (vv.12–26).

No v.1, eles analisam o verbo אֲנַסֶּנּוּ (ʾanassenû, “provarei”) como denotando um experimento metódico. A “alegria” (שִׂמְחָה, simḥāh) e o “prazer” (טוּב, ṭûv) são contrastados com a vaidade. O v.2 usa o termo שְׂחוֹק (seḥôq, “riso”) que eles interpretam como zombaria ou frivolidade — uma resposta fútil diante do vazio existencial.

Ao comentar os grandes feitos descritos entre os vv.4–8, Keil & Delitzsch observam que as palavras “jardins” (פַּרְדֵּסִים, pardēsîm) e “lagos” (בְּרֵכוֹת, bĕrekhôt) remetem à linguagem persa e mostram a grandiosidade cultural do texto. A enumeração de bens é intensiva e cumulativa — reforçando o ponto de que nada, mesmo em abundância, sacia o coração.

O v.11 traz a expressão הֲבֵל וּרְעוּת רוּחַ (hevel ûreʿût rûaḥ), que Keil & Delitzsch traduzem como “vapor e aflição do espírito” — indicando algo não apenas fútil, mas cansativo e sem consistência. A expressão ocorre diversas vezes em Eclesiastes, formando uma espécie de refrão teológico.

No v.15 — “como sucede ao tolo, assim também a mim me sucederá” — eles apontam que a estrutura gramatical do hebraico cria um efeito retórico: mesmo o sábio se vê esmagado pela realidade da morte. No v.23, a expressão כַּעַס וָכֶעַס (kaʿas wākheʿas, “aflição e dor”) é interpretada como um paralelismo enfático para retratar o sofrimento mental e físico do trabalhador.

Nos vv.24–26, o verbo נָתַן (nātan) — “dar” — é essencial. Eles destacam que só Deus pode conceder a capacidade de gozar do fruto do trabalho. A repetição da ideia de dom (matan) sugere uma teologia da dependência: a única felicidade possível é a que vem de Deus.

Fonte: Keil & Delitzsch Commentary on Ecclesiastes 2

Índice: Eclesiastes 1 Eclesiastes 2 Eclesiastes 3 Eclesiastes 4 Eclesiastes 5 Eclesiastes 6 Eclesiastes 7 Eclesiastes 8 Eclesiastes 9 Eclesiastes 10 Eclesiastes 11 Eclesiastes 12

📚 Bibliografia

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