Teologia do Período Patrístico
Teologia do Período Patrístico c. 100-451
por Alister E. McGrath
O cristianismo teve suas origens na Palestina mais especificamente na região da Judeia, em particular na cidade de Jerusalém. Esse movimento via a si mesmo como uma continuação e uma evolução do judaísmo e, a princípio, floresceu em regiões às quais o judaísmo estava tradicionalmente associado, sobretudo na Palestina. Entretanto, rapidamente se espalhou para as regiões vizinhas, em parte por meio dos esforços dos primeiros evangelistas cristãos, como Paulo de Tarso. Ao final do século I, o cristianismo parece haver se estabelecido por toda a região banhada pelo Mediterrâneo Oriental e, até mesmo, adquirido uma presença significativa na cidade de Roma, a capital do Império Romano. A medida que a igreja em Roma se tornava cada vez mais poderosa, começaram a surgir tensões entre a liderança cristã em Roma e em Constantinopla, pressagiando o cisma posterior entre as igrejas ocidental e oriental, respectivamente concentradas nesses centros de poder. Nesse processo de expansão surgiram diversas regiões que se tornaram importantes centros de debate teológico. Três delas podem ser apontadas como detentoras de importância especial, das quais as duas primeiras falavam o grego e a terceira, o latim.
1 A cidade de Alexandria, no Egito atual, se destacou como um centro de educação teológica cristã. Um estilo teológico característico veio a ser associado a essa cidade, o qual retrata sua antiga associação com a tradição platônica. O estudante encontrará referências a abordagens “alexandrinas” em áreas como a cristologia e a interpretação bíblica (vide pp. 61; 416-17), o que reflete tanto a importância quanto a peculiaridade do estilo de cristianismo associado a essa região.
2 A cidade de Antioquia e a região vizinha da Capadócia, na atual Turquia. Em uma primeira fase, uma forte presença cristã veio a consolidar-se nessa região norte do Mediterrâneo Oriental. Algumas das viagens missionárias de Paulo o levaram até essa região. A Antioquia se destaca de maneira significativa em vários pontos da história da igreja primitiva, conforme registrado em Atos dos Apóstolos. A própria cidade de Antioquia logo se tornou um importante centro do pensamento cristão. Como Alexandria, foi associada a abordagens específicas com respeito à cristologia e à interpretação bíblica. O termo “antioqueno” é frequentemente utilizado para designar esse estilo teológico característico (vide pp. 61; 418-21). Os “pais capadócios” também tiveram uma importante presença nessa região, em termos de teologia, no século IV, especialmente notável por sua contribuição à doutrina da Trindade
3 O norte da África Ocidental, especialmente a área da atual Argélia. Nesse local, ao final do período clássico, ficava Cartago, importante cidade mediterrânea e, em um certo momento, adversária política de Roma, pois ambas disputavam o domínio da região. No período em que o cristianismo se espalhou por essa área, essa cidade era uma colônia romana. Entre os importantes escritores da região estão Tertuliano, Cipriano de Cartago e Agostinho de Hipona. Isso não significa que outras cidades do Mediterrâneo não tinham importância alguma. Roma, Constantinopla, Milão e Jerusalém também eram centros do pensamento da teologia cristã, ainda que nenhuma delas estivesse destinada a alcançar a mesma importância de suas concorrentes.
Esclarecimento dos termos
O termo “patrístico” vem da palavra latina pater, “pai”, e tanto designa o período referente aos pais da igreja quanto as ideias características que se desenvolveram ao longo desse período. O termo é não inclusivo; ainda não havia surgido na literatura algum termo inclusivo que fosse aceitável por todos. Os termos a seguir relacionados são encontrados com frequência e devem ser registrados.
• Período patrístico. Esse termo representa algo definido de forma vaga que frequentemente é considerado como o período a partir do término dos documentos do Novo Testamento (c. 100) até o decisivo Concilio da Calcedônia (451).
• Patrístico. Normalmente, esse termo significa o ramo do estudo teológico que trata do estudo dos “pais” (patres) da igreja.
• Patrologia. Esse termo já significou literalmente “o estudo dos pais da igreja”, mais ou menos, da mesma forma que “teologia” significava “o estudo de Deus” (theos). Entretanto, em anos recentes, a palavra sofreu uma alteração em seu significado. Agora, ela se refere a manuais de literatura patrística, como aquele do célebre acadêmico alemão Johannes Quasten, que fornece a seus leitores fácil acesso às principais ideias dos escritores patrísticos e a alguns dos problemas de interpretação associados a elas.
Uma visão geral do período patrístico
O período patrístico representa um dos mais empolgantes e criativos da história do pensamento cristão. Somente essa característica é suficiente para assegurar que, ainda por muitos anos, ele continuará a ser tema de estudo. Esse período também é importante por motivos teológicos. Todos os principais ramos da igreja cristã - incluindo as igrejas anglicana, ortodoxa oriental, luterana, reformada e católica romana - consideram o período patrístico como um marco decisivo na evolução da doutrina crista. Cada uma dessas igrejas se considera como uma continuação, uma extensão e, naquilo que for necessário, uma crítica às visões dos escritores da igreja primitiva. Por exemplo, Lancelot Andrewes (1555-1626), importante escritor anglicano do século XVII, afirmou que o cristianismo ortodoxo baseava-se em dois testamentos, três credos, quatro evangelhos e nos cinco primeiros séculos de história cristã. O período foi da maior importância para o esclarecimento de uma série de questões. A tarefa fundamental era delimitar a relação existente entre cristianismo e judaísmo. As cartas de Paulo, no Novo Testamento, são uma prova da importância desse ponto no primeiro século da história cristã, à medida que várias questões práticas e doutrinárias passaram a ser consideradas. Os cristãos gentios (isto é, os não judeus) eram obrigados a circuncidar-se? Como o Antigo Testamento deveria ser corretamente interpretado?
No entanto, logo surgiram outras questões. Uma das que tiveram importância especial no século II foi a da apologética - a defesa argumentativa e a justificação da fé cristã perante seus críticos. Ao longo do primeiro período de história crista, a igreja foi frequentemente perseguida pelo Estado. Sua agenda era sobreviver; havia espaço limitado para debates teológicos, quando a própria existência da igreja cristã não poderia ser considerada um fato consumado. Essa observação nos ajuda a entender, por meio de escritores como Justino Mártir (c. 100 - c. 165), preocupados em explicar e em defender as crenças e práticas do cristianismo a um público pagão hostil, por que a apologética tornou-se uma questão de tamanha importância para a igreja primitiva. Embora esse primeiro período tenha produzido alguns teólogos extraordinários — como Ireneu de Lion (c. 130 — c. 200), no ocidente, e Orígenes (c. 185 — c. 254), no oriente —, o debate teológico só pôde de fato iniciar-se uma vez cessada a perseguição à igreja. Essas condições se tornaram possíveis ao longo do século IV com a conversão do imperador Constantino. Em 311, o imperador romano, Galerius, ordenou a cessação da perseguição oficial aos cristãos. Essa fora um fracasso e somente havia exacerbado a decisão dos cristãos em resistir à nova imposição da clássica religião pagã dos romanos. Galerius proferiu um edito que permitia aos cristãos levar novamente uma vida normal e “realizar suas assembleias religiosas desde que não perturbassem a ordem pública”. O edito identificava, de forma explícita, o cristianismo como uma religião e lhe oferecia pleno amparo legal.
O status legal do cristianismo, que havia sido ambíguo até esse momento, fora estabelecido. A igreja não teria mais que lutar por sua sobrevivência. O cristianismo era agora uma religião legal; era, porém, apenas mais uma religião dentre tantas outras, lutando por influência no mundo romano. A conversão do imperador Constantino ocasionou uma mudança completa na situação do cristianismo em todo o Império Romano. Constantino nasceu em um lar pagão, em 285. (Sua mãe posteriormente se tornaria cristã, ao que parece devido à influência de seu filho.) Embora ele não tenha demonstrado qualquer atração específica pelo cristianismo a princípio, Constantino certamente parece ter considerado a tolerância como uma virtude essencial. Constantino, após a tomada de poder por Maxentius, na Itália e no norte da África, liderou algumas tropas vindas da Europa Ocidental em uma tentativa de retomar o poder na região. A batalha decisiva ocorreu em 28 de outubro de 312, na ponte Mílvia, ao norte de Roma. Constantino derrotou Maxentius e foi proclamado imperador. Em algum momento, pouco tempo após esse fato, ele se declarou cristão. Constantino, em seu período como imperador (306-307), obteve sucesso na reconciliação entre Igreja e Estado, cujo resultado foi a mudança de mentalidade, pois a igreja não mais vivia sob constante perseguição. Em 321, ele decretou que os domingos deveriam se tornar feriados.
No Império Romano, devido à influência de Constantino, o debate teológico construtivo se tornou uma atividade pública. Agora, a igreja, exceto por um breve período de incertezas ao longo do reinado de Juliano, O Apóstata (361-3), podia contar com o apoio do Estado. Assim, a teologia saiu da obscuridade dos encontros secretos para se tornar, ao longo de todo o Império Romano, uma questão de interesse e preocupação públicos. Progressivamente, os debates doutrinários tornaram-se uma questão de importância tanto política, quanto teológica. O desejo de Constantino era ter uma igreja unida em todo seu império e, assim, preocupava-se com o fato de que as diferenças doutrinárias deveriam ser debatidas e conciliadas como uma questão prioritária. O período patrístico posterior (de cerca de 310 a 451), em consequência disso, pode ser considerado como o ápice na história da teologia cristã. Nesse período, os teólogos dispunham de liberdade para trabalhar sem a ameaça de perseguição e foram capazes de tratar de uma série de assuntos de importância capital para a consolidação do consenso teológico, que emergia nas igrejas. A igreja percebeu que teria que chegar a um consenso quanto às divergências e tensões contínuas por meio de um extenso debate e um processo doloroso de aprendizagem. Contudo, em boa parte, o estabelecimento desse consenso, que mais tarde seria consagrado nos credos ecumênicos, já estava em evolução nesse período formativo. Evidentemente, o período patrístico é de considerável importância para a teologia cristã, embora seja considerado bastante difícil por muitos estudantes de teologia de nossos dias. Pode-se atribuir quatro motivos principais para essa percepção:
1 Alguns debates do período parecem desesperadamente irrelevantes em face do mundo moderno. Embora fossem considerados extremamente importantes na época, normalmente é muito difícil para o leitor atual sentir uma certa empatia em relação aos temas e compreender porque atraíam tanta atenção. Nesse aspecto, é interessante comparar o período patrístico com o período da Reforma, pois muitos dos temas que foram tratados durante esse último período continuam como assuntos de interesse da igreja atual; muitos professores de teologia percebem que seus estudantes são capazes de se tido se o leitor possuir alguma familiaridade em relação aos debates filosóficos do período. Mesmo levando-se em consideração que, pelo menos, alguns dos estudantes de teologia possuem um certo conhecimento das ideias presentes no discurso de Platão, essas ideias foram objeto de avanços e de críticas consideráveis no mundo mediterrâneo, no período patrístico. O médio platonismo e o neoplatonismo diferem bastante entre si, assim como das ideias originais de Platão. A excentricidade de muitas das ideias filosóficas do período age como outro obstáculo para seu estudo. Isso torna difícil, para o estudante que se inicia na teologia, avaliar com profundidade o que está se passando em algumas das discussões do período patrístico.
3 O período patrístico é caracterizado por uma considerável diversidade doutrinária. Representou uma era de transição, ao longo da qual os marcos e os padrões — inclusive documentos, como o Credo Niceno e dogmas, como o relativo às duas naturezas de Cristo - emergiram gradativamente. Os estudantes acostumados à relativa estabilidade de outros períodos da doutrina cristã (como o da Reforma, em que a pessoa de Jesus não representou uma questão de maior relevância) normalmente consideram desconcertante essa característica do período patrístico.
4 O período assistiu ao surgimento de um grande cisma, por razões tanto políticas quanto linguísticas, entre as igrejas do oriente, de língua grega, e a do ocidente, de língua latina. Muitos estudiosos notam uma marcante diferença de identidade teológica entre os teólogos orientais e os ocidentais: os primeiros normalmente apresentam inclinações filosóficas e são dados à especulação teológica, ao passo que os últimos são normalmente contrários à interferência da filosofia na teologia, pois consideram esta como a investigação das doutrinas postas nas Escrituras. Esse aspecto fica evidente na célebre pergunta retórica do teólogo ocidental Tertuliano (c. 160 - c. 225): “Qual a relação entre Atenas e Jerusalém? Ou, entre a Academia e a Igreja?”