Teólogos Fundamentais da Patrística

Teólogos Fundamentais da Patrística

por Alister E. McGrath



Ao longo desta obra, haverá referências a um número significativo de teólogos do período patrístico. Contudo, apresentamos a seguir os seis escritores cuja importância singular merece ser destacada com uma menção especial.

Justino Mártir (c. 100 - c. 165)

Justino talvez seja o maior dos Apologistas — escritores cristãos do século II, que se dedicavam à defesa do cristianismo diante das intensas críticas de origem pagã. Justino, em sua obra, Primeira apologia, defendeu que podem ser encontrados sinais da verdade cristã em grandes escritores pagãos. Sua doutrina do logos spermãtikos (“palavra geradora”) permitiu-lhe afirmar que Deus havia preparado o caminho para sua revelação final em Cristo por intermédio dos indícios de sua verdade, que estavam presentes na filosofia clássica. Justino, nos fornece um importante exemplo inicial da tentativa de um teólogo em relacionar o evangelho à perspectiva da filosofia grega, tendência particularmente associada à igreja oriental.

Ireneu de Lion (c. 130 - c. 200)

Acredita-se que Ireneu tenha nascido em Esmirna (na atual Turquia), embora posteriormente tenha se estabelecido em Roma. Tornou-se, por volta de 178, Bispo de Lion, posição que ocupou até sua morte, duas décadas depois. Ireneu é especialmente notável por sua defesa veemente da ortodoxia cristã, em face da objeção apresentada pelo gnosticismo (vide p. 349). Sua obra mais importante, “Contra as Heresias” (adversus haereses), representa uma defesa importante da compreensão cristã a respeito da salvação e, especialmente, do papel da tradição em se manter fiel ao testemunho apostólico, diante de interpretações não-cristãs.

Orígenes (c. 185 - c. 254)

Orígenes, um dos mais importantes defensores do cristianismo do século III, forneceu uma base importante para o desenvolvimento do pensamento cristão oriental. Suas contribuições mais relevantes para o desenvolvimento da teologia cristã podem ser vistas em duas áreas principais. Orígenes, no campo da interpretação bíblica, desenvolveu a noção de interpretação alegórica, argumentando que se deveria fazer uma distinção entre o sentido superficial das escrituras e seu sentido espiritual mais profundo. No campo da cristologia, Orígenes consolidou a tradição de se distinguir entre a divindade plena do Pai e uma divindade limitada do Filho. Alguns estudiosos veem o arianismo como consequência natural dessa abordagem. Orígenes também adotou, com algum entusiasmo, a ideia de apocatastasis, segundo a qual toda criatura — incluindo tanto o ser humano quanto Satanás — será salva.

Tertuliano (c. 160 — c. 225)

A princípio, Tertuliano foi um pagão originário da cidade de Cartago, no norte da África, que se converteu ao cristianismo quando tinha cerca de trinta anos. Ele, com frequência, é considerado o pai da teologia latina em razão do tremendo impacto que teve sobre a igreja ocidental. Ele defendeu a unidade do Antigo e do Novo Testamentos contra Marcião, que argumentava que ambos se relacionavam a deuses distintos e, não, a um mesmo e único Deus. Ao fazer isso, Tertuliano lançou as bases para a doutrina da Trindade. Ele se opunha intensamente ao fato de a teologia ou a apologética cristãs tornar-se dependentes de fontes estranhas às Escrituras. Ele está entre os primeiros representantes mais influentes que defenderam o princípio da suficiência das Escrituras, o qual condenava aqueles que recorriam às filosofias seculares para alcançar um conhecimento verdadeiro de Deus (como os que pertenciam à Academia de Atenas).

Atanásio (c. 296 — c. 373)

A importância de Atanásio está relacionada, principalmente, a temas da cristologia que se tornaram relevantes ao longo do século IV. Ele, provavelmente, por volta de vinte anos, escreveu o tratado De incarnatione Verbi [A encarnação do Verbo], uma defesa poderosa da ideia de que Deus assumira a natureza humana na pessoa de Jesus Cristo. Esse tema mostrou-se de importância crucial na controvérsia arianista (vide pp. 412-17), à qual Atanásio deu grande contribuição. Ele ressaltou que se Cristo não era plenamente Deus, como alegava Ário, desse fato resultava uma série de implicações. Primeiro, era impossível para Deus salvar a humanidade, pois nenhuma criatura poderia redimir a outra. Em segundo lugar, havia o fato da igreja cristã ser culpada pela prática de idolatria, uma vez que os cristãos regularmente louvavam e oravam a Cristo. A “idolatria” pode ser definida como a “adoração de algo construído ou criado pelo ser humano”, desse fato resultava que essa adoração era idólatra. Por fim, esses argumentos venceram e levaram à rejeição do arianismo.

Agostinho de Hipona (c. 354 — c. 430)

Ao falar de Aurelius Augustinus, conhecido normalmente como Agostinho de Hipona - ou simplesmente por Agostinho - deparamo-nos talvez com a mente mais brilhante e influente da igreja cristã por toda sua longa história. Agostinho, atraído ao cristianismo pela pregação do Bispo Ambrósio de Milão, vivenciou uma dramática experiência de conversão. Agostinho, que aos 32 anos não havia ainda satisfeito seu ardente desejo de conhecer a verdade, encontrava-se em um jardim de Milão, debatendo-se com as importantes questões sobre a natureza e o destino humanos, quando teve a impressão de ouvir, próximo dali, algumas crianças cantando Tolle, lege [“Tome e leia”]. Interpretou esse fato como orientação divina e tendo à mão o Novo Testamento — na verdade, a carta de Paulo aos Romanos — leu as proféticas palavras: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Romanos 13.14). Para Agostinho, cujo paganismo havia se tornado cada vez mais difícil de ser mantido, essa foi a gota d’água. Posteriormente, como ele mesmo relembrou, “uma luz de convicção invadiu meu coração e dissipou toda sombra de dúvida”. A partir desse momento, Agostinho dedicou sua imensa capacidade intelectual à defesa e à consolidação da fé cristã, escrevendo em um estilo que era, ao mesmo tempo, apaixonado e inteligente, o qual apelava tanto à mente quanto ao coração. Agostinho, provavelmente por sofrer de algum tipo de asma, deixou a Itália e retornou ao norte da África, onde, em 395, se tornou Bispo de Hipona (na atual Argélia). Em seus trinta e cinco anos restantes, ele testemunhou numerosas controvérsias de importância fundamental para o futuro da igreja cristã no ocidente, e a contribuição de Agostinho foi decisiva para a solução de cada uma delas. Sua meticulosa exegese do Novo Testamento, em especial das cartas de Paulo, concedeu-lhe a reputação, que ainda hoje lhe é atribuída, como “o segundo pai da fé cristã” (Jerônimo). Com o término da Idade Média, a substancial produção teológica de Agostinho constituiria, na Europa Ocidental, a base de um grandioso projeto de renovação e desenvolvimento da teologia, que consolidaria sua influência na igreja ocidental. Uma parte fundamental da contribuição de Agostinho é o desenvolvimento da teologia como uma disciplina acadêmica. Na verdade, não se pode dizer que a igreja primitiva tenha desenvolvido qualquer forma de “teologia sistemática”. A preocupação fundamental da igreja primitiva era defender o cristianismo das críticas que lhe eram feitas (como se percebe nas obras apologéticas de Justino Mártir), bem como, esclarecer os aspectos centrais do pensamento cristão, para combater a heresia (como se nota na obra de Ireneu, que ataca o gnosticismo). Contudo, ao longo dos quatro primeiros séculos, um substancial desenvolvimento doutrinário ocorreu particularmente em relação às doutrinas da pessoa de Cristo e da Trindade. A contribuição de Agostinho foi no sentido de alcançar uma síntese do pensamento cristão, sobretudo em seu grande tratado De civitate Dei [A cidade de Deus]. Como no célebre romance de Charles Dickens, a “Cidade de Deus”, de Agostinho, conta uma história sobre duas cidades — a cidade do mundo e a cidade de Deus (vide p. 626). A obra apresenta um tom apologético: Agostinho é sensível à acusação de que a queda de Roma devia-se ao fato do império haver abandonado o paganismo clássico em favor do cristianismo. Contudo, à medida que defendia o cristianismo dessas acusações, ele inevitavelmente proporcionava uma apresentação e uma explicação sistemáticas das linhas principais da fé cristã. Além disso, porém, pode-se ainda afirmar que Agostinho contribuiu de maneira fundamental em relação a três grandes áreas da teologia cristã: a doutrina da igreja e dos sacramentos que surgiu a partir da controvérsia Donatista (vide pp. 545-47); a doutrina da graça que surgiu a partir da controvérsia pelagianista (vide pp. 506-13) e a doutrina da Trindade (vide pp. 385-89). Agostinho nunca explorou realmente a área da cristologia (isto é, a doutrina da pessoa de Cristo), a qual, sem dúvida alguma, teria se beneficiado de sua notável sabedoria e perspicácia.