Estudo sobre Apocalipse 13:1-2

Estudo sobre Apocalipse 13:1-2



João viu, portanto, emergir do mar uma besta. Ele relata o que viu, apoiando-se intensamente em Dn 7.3. Contudo, nem por isto teve a mesma visão que Daniel. O vidente do AT viu quatro bestas surgirem uma após a outra, a saber, quatro reinos mundiais que se sucediam.588 No Ap não percebemos nada referente a uma intenção de fornecer um esboço da história mundial. Essa única besta apresenta ao mesmo tempo características de todas os quatro animais em Daniel, revelando-se como condensação de grandeza supra-histórica, a saber, como anticristo, como poder intelectual do fim dos tempos, à semelhança de 1Jo 2.15. Ademais, em Daniel são os quatro ventos que erguem as quatro bestas. Em Ap há uma nítida correlação com Satanás, que se posicionou, repleto de desgraça, na beira do mar, fazendo subir a besta como executora de suas guerras.

Acima de tudo, parece que em Daniel o mar representa a história das nações. A partir dele erguem-se os reinos. Na presente passagem, porém, o mar é sinônimo para “abismo” (Ap 11.7; 17.8,11).589 Para o ser humano da Antiguidade, a interpretação do mar como abismo de destruição era confirmada pela observação de que o mar não produz nenhum animal amigável e manso. Em relação a uma pessoa que parecia possuída por poderes demoníacos dizia-se: “Foi o mar que te deu à luz!”590 Também o movimento de emergir de baixo caracteriza a besta como satânica, pois “toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto” (Tg 1.17). Finalmente, a besta feroz e indomada,591 com a concentração de todos os traços de animal predador, constitui um indício do anticristo, nesse caso do anti-cordeiro.

Nas frases subsequentes João descreve partes do corpo da besta na ordem em que surgem do mar. Deixa, porém, à parte a característica mais marcante, a saber, a boca, a fim de abordá-la exaustivamente no final.

Primeiro saem das ondas dez chifres. Portanto, a besta era bastante similar a seu senhor (Ap 12.3), um segundo dragão. O número dez592 simboliza nitidamente não um determinado poder político, mas o número completo dos poderes do mundo, a perfeição da plenitude da força política. Também as sete cabeças593 e os dez diademas devem ser comparados com Ap 12.3. Aqui ainda não interfere a explicação adicional de Ap 17.9.

O nome sobre as cabeças corresponde ao que se passa dentro dessas cabeças. Trata-se de nomes de blasfêmia. A blasfêmia ocorre em Ap sempre nos lábios de Satanás e seus auxiliares (cf. o comentário a Ap 2.9) e significa a repulsa consciente do senhorio do Cordeiro, bem como a tentativa de roubar-lhe sua dignidade, isto é, seu “nome”, e atribuí-lo a si mesmo. Pouco tempo antes do banimento de João e da redação do Ap, o imperador romano Domiciano havia se concedido o nome “nosso deus e senhor”.594 Em 27 a.C. o imperador Gaio Júlio César Otaviano determinou que ele fosse alçado à categoria de “Augusto”, como se tornou conhecido da posteridade. “Augusto” é adjetivação de divindades: “majestoso”, “santo”, “digno de adoração”. Também aceitava o título “Divo”, o semelhante aos deuses. Exemplos em pequena escala são trazidos em At 4.12; 12.22. O anticristo envia muitos anticristos. Os primeiros leitores talvez tenham sido lembrados do caso de Domiciano, que era atual para eles.595

De resto a besta era um ser misto (cf. a exposição sobre Ap 9.17), seu corpo era semelhante a uma pantera, como no terceiro animal em Daniel (Dn 7.6), e seus pés como de urso, como no segundo animal em Daniel (Dn 7.5), e finalmente sua boca como de leão, igual à do primeiro animal em Dn 7.4. Nos v. 5,6 João demonstra que esta boca596 não evocava voracidade, mas produzia uma voz intimidadora, com a impostação da autoconfiança. É uma boca blasfema, como em Dn 7.8,25; 11.36, no quarto animal. Essa bocarra profere o que se podia ler sobre os chifres.

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Essa visão traz uma confusão tamanha na sequência dos animais de Daniel que não sobra mais nada do seu esboço a respeito da história mundial. Aqui trata-se do retrato falado do poder anticristão único, que atua no tempo escatológico. É dado destaque peculiar à sua natureza blasfema.

E deu-lhe o dragão o seu poder, o seu trono e grande autoridade. A besta aceitou o que o Cristo rejeitou, conforme Lc 4.6-8. Permitiu que fosse feito representante plenipotenciário do príncipe desse mundo.597 O número de três dádivas é um simulacro das dádivas divinas, e a mesma equipagem também se encontra em Cristo. Assim como o Pai divino envia seu Filho, assim, pois, o dragão envia a besta, o anti-filho. Por intermédio dessa besta ele construirá o seu domínio. Sua “grande cólera” (Ap 12.12) concretiza-se na “grande autoridade”. E não obstante, visto no contexto todo, trata-se, nessa fúria e nesse desdobramento de poder, do poder impotente de alguém que foi três vezes deposto (Ap 12.9).

Índice:
Apocalipse 13:1-2 




Notas:
588. Que são: Babilônia, Média, Pérsia, reino greco-macedônio ou, segundo a leitura judaica, o Império Romano.

589. Quanto ao conceito, cf. o comentário a Ap 9.1; quanto ao assunto, cf. o exposto sobre Ap 20.8,13; 21.1. Bengel, Lohmeyer e Hadorn, em consonância com a exegese rabínica de Dn 7, explicam “mar” como sendo o Ocidente, i. é, Roma e seu culto ao imperador. Talvez se possa depreender esse aspecto como traço secundário. Roma, no entanto, foi a concretização da besta daquele tempo, ou seja, Roma era “bestial”, mas não a besta em si.

590. H. Rahner, Symbole der Kirche, Salzburgo 1964, pág. 285.

591. Em grego thérion, cf. nota 257. – Animais ferozes são uma metáfora antiga para perseguidores: Jr 51.34; Sl 7.2; 22.12,13; 27.2; 35.17,21; 91.13). Esse é igualmente o uso em 2Macabeus 9.15, assim como no posterior linguajar dos mártires, possivelmente também em 1Co 15.32.

592. Essa plenitude de chifres não era nada incomum na Antiguidade. Na arte pictórica da Mesopotâmia encontra-se com frequência a coroa com chifres: vários pares sobrepostos de chifres de touro. Os selêucidas mostram-se, em suas moedas, ornados de chifres, cf. também Ap 5.6.

593. Alguns estudiosos somam, nesse texto, as cabeças de Dn 7: 1 + 1 + 4 + 1 = 7. Contudo o dragão de sete cabeças é figura tradicional, cf. excurso 9a.

594. Usado para Deus em Ap 4.11, para Jesus em Jo 21.28.

595. Os v. 17,18 voltam a abordar esse nome.

596. Novamente não fica esclarecido qual das sete cabeças estava equipada com essa boca e se devemos imaginar as demais cabeças sem boca. Confirma-se, pois, que, ao contrário de Dn 7, não temos diante de nós um quadro com cores saturadas, mas um esboço abstrato, que deixa muitos pontos em aberto.

597. É assim que também se caracteriza o anticristo em 2Ts 2.9: com o poder da “eficácia de Satanás”.