Estudo sobre Apocalipse 16:1-3

Apocalipse 16:1-3

Ainda que depois de Ap 15.8 até o final dos flagelos ninguém pudesse entrar no templo cheio de incenso, não podemos imaginar que Deus estaria entronizado lá dentro destituído de quaisquer servos. Os quatro seres angélicos de Ap 4.6, p. ex., não podem ser imaginados longe do trono. É neles que podemos pensar quando são mencionadas as “vozes do trono” (p. ex., Ap 16.17 e 21.3). Dificilmente a ordem aqui proferida está sendo comunicada pelo próprio Entronizado.753 Ouvi, vinda do santuário, uma grande voz, dizendo aos sete anjos.

À grande voz seguem-se, nesse bloco, o “intenso calor” (v. 9), o “grande rio” (v. 12), o “grande dia do Deus Todo-Poderoso” (v. 14), duas vezes o “grande terremoto” (v. 18), a “grande cidade” (v. 19), a “grande Babilônia” (v. 19), a “grande saraivada” (v. 21) e o “flagelo era sobremodo grande” (v. 21). É impossível ignorar a tendência de intensificação. Nos v. 18,21 a linguagem praticamente extrapola, no intuito de poder captar as supermedidas.

Cabe considerar mais um aspecto, nesse sentido, em contraposição à série de flagelos dos cap. 8,9. Lá cada anjo recebeu uma nova ordem para executar seu flagelo. Aqui uma única ordem desencadeia toda a série. Dessa maneira, os flagelos são estreitamente aproximados. Eles não acontecem em gotas dosadas, mas como uma descarga total. Em intervalos mínimos jorra sobre a terra enxurrada após enxurrada. Tão somente passava um juízo, já chegava o próximo. De acordo com o v. 11, até a vigência do flagelo do v. 2 ainda perdura. Diferentemente, Ap 9.12 anunciava minuciosamente o desaparecimento do primeiro ai antes que fosse noticiado o próximo ai.

Assim sendo, os sete anjos recebem uma ordem conjunta de agir: Ide, ouve-se em tom lúgubre (cf. o exposto sobre Ap 14.4), e derramai… as sete taças da cólera de Deus. A ira se assemelha ao fluxo de brasas incandescentes,754 que podem ser derramadas. Ao mesmo tempo o derramar contém a idéia de uma copiosidade pródiga.

Os juízos incidem pela (“sobre a”) terra. Os versículos subsequentes desdobram o conceito de quatro maneiras: solo (v. 2), mar (v. 3), rios (v. 4) e astros (v. 8), ou seja, da mesma forma como em Ap 8.7-12 (cf. Ap 14.7; de modo análogo Ap 11.6). Os juízos acontecem globalmente.755 Toda a terra tornou-se “Egito”. No texto a seguir evocam-no as referências ao Êx.


Saiu, pois, o primeiro anjo e derramou a sua taça pela (“sobre a”) terra. João designa cada anjo apenas com o número ordinal. Dessa forma, o estilo conciso espelha a velocidade da sequência, bem como a sucessão e intensidade do tempo. E, aos homens portadores da marca da besta e adoradores da sua imagem, sobrevieram (“aconteceram”) úlceras (“úlcera” [teb, bj]) malignas e perniciosas. Diferentemente do primeiro flagelo das trombetas, a primeira das taças aflige também as pessoas desde o princípio, e não de modo restrito apenas a um terço delas.756 Como comparação cabe recorrer ao sexto flagelo egípcio. O singular “úlcera” consta aqui [cf. teb, bj] (no v. 11 encontra-se o plural) como contraposição à “marca da besta”, com que estas pessoas se marcaram a si mesmas, numa arrogante atitude desafiadora. Deus não permite que se zombe dele e os marca com a úlcera repugnante. Será que a resposta dele é compreendida e aceita?757

Esse juízo evoca não apenas a primeira praga egípcia, mas também o segundo flagelo das trombetas em Ap 8.8. As consequências, porém, estendem-se sobre todo o mar. O adendo acrescentado ao sangue, “como de morto” (“como o sangue de uma pessoa morta” [blh]) salienta que não está em jogo apenas o efeito da cor (como, p. ex., em Ap 6.12). Devemos lembrar-nos de sangue que não é mais portador da vida palpitante, mas que se tornou coagulado, podre e malcheiroso. Assim o mar, que outrora continha tesouros, transforma-se num charco abjeto e grumoso de sangue. Uma parte substancial da criação fica fora de cogitação para o ser humano (cf. o conceito da “criação ao revés” no excurso 5c). Ademais, esse sangue constitui ao mesmo tempo uma resposta ao derramamento do sangue dos mártires, como dirá expressamente o v. 6.





Notas:
753. Concordamos com Hadorn. A maioria dos comentaristas, porém, identificam decididamente a voz com o próprio Deus. Contudo, dificilmente sua própria voz ressoaria de maneira tão anônima, cf. Ap 1.8 e 21.5.

754. Do mesmo modo em Jr 10.25; Sl 69.24; Sf 3.8 e muitas passagens em Ez. Os vocábulos hebraicos para “ira” trazem a conotação básica de “ser quente”, “inflamar-se”. Em contraposição, o termo alemão “Zorn” significa “perturbação”, “discórdia”, “briga”. Em Ap 8.5 a ira foi simbolizada como uma brasa ardente.

755. Langenberg sempre tenta interpretar “a terra” primeiro como Israel. Por isso ele constata aqui primordialmente juízos contra Israel. Contudo, o contexto interpreta o termo incontestavelmente como sendo o mundo inteiro.

756. Importante é também a observação de que esse primeiro flagelo pressupõe o acirramento do cap. 13 (a marca da besta!), o que, no entanto, não está de forma alguma indicado no primeiro flagelo das trombetas.

757. Questões gerais referentes à interpretação desse flagelo e dos seguintes: Bengel identifica a “terra” com a Ásia, Stokmann com o mundo da cultura, Frey com a igreja que se tornou mundana. Bengel interpreta o “mar” no v. 3 como sendo a Europa, Frey como o mar das nações. Para Bengel os rios do v. 4 são a África (Egito), para Frey são o mundo do espírito etc. Essas fixações não são recomendáveis. Primeiramente, o alvo dos golpes de Deus está sendo o “Egito” escatológico. Cumpre à igreja examinar em cada nova situação a que grandeza concreta ele se aplica. Todos os conceitos constituem inicialmente conceitos de uma antiquíssima linguagem de proclamação do povo de Deus.