Estudo sobre Apocalipse 19:1-4

Apocalipse 19:1-4

Ao se iniciar o cap. 19, parece que finalmente se consumou o juízo contra a Babilônia, já anunciado em Ap 17.1 e proclamado poderosamente no cap. 18 por três mensagens de anjos. Sentimo-nos agora transportados integralmente ao momento em que a vitória de Deus controla a situação. É por isso que temos de imaginar a verdadeira execução do juízo, precisamente em conexão com a parusia, entre os cap. 18,19, de forma que é mais “silenciada” que descrita. Somente a partir de Ap 19.11 começa uma grande série de visões que tem por tema essa grande virada propriamente dita.901

O v. 1 começa com o “depois”, que indica de modo confiável uma “mudança de palco”. Consequentemente, o cap. 18 não está sendo simplesmente prolongado. Por um lado o trecho Ap 19.1-10 indubitavelmente se insere no grande apêndice sobre a Babilônia a partir de Ap 17.1, pois esse não apresenta nenhum ponto final antes de Ap 19.9,10. Ali, porém, ele é inegável. Por isso Ap 19.1-8 constitui a peça final da grande visão da Babilônia, de Ap 17.1–19.10.902

O trecho consiste principalmente de uma liturgia celestial, perfazendo a última de sete no presente livro.903 Ao mesmo tempo ela é a mais magnífica e detalhada, subdividindo-se em aleluias das multidões de anjos (v. 1-3), das cercanias do trono (v. 4) e de todos os servos de Deus (v. 5-8). Os v. 9,10 constituem os versículos finais de todo o apêndice.
 
E depois – um inacreditável contraste em relação ao cap. 18! Aos três cânticos fúnebres contrapõem-se agora três cânticos de aleluia, e ao silêncio sepulcral na Babilônia, sobre a qual se elevam sinistramente as nuvens de fumaça, contrapõe-se um céu cheio de vozes (cinco vezes “voz”). Ouvi no céu uma como grande voz de numerosa multidão. De acordo com o contexto parece que esse primeiro grupo de cantores são anjos, uma vez que a igreja é convidada somente no v. 5 a ingressar na liturgia.904

Eles iniciam e encerram (v. 3) seu cântico com um aleluia,905 i. é, “Louvai a Iahweh!” (nota 909). Essa formulação da Bíblia hebraica encontra-se, sem exceção e cerca de vinte vezes, no último terço do livro dos Salmos, a saber diretamente no começo e final dos assim chamados “salmos de aleluia”. Eles representam o auge do júbilo a Deus e ao mesmo tempo dos Salmos. O Sl 150 praticamente não é nada mais que um único repicante aleluia em doze formulações. No judaísmo o aleluia gozava de alto apreço, e nenhum leitor do Ap carecia de uma tradução do termo.
 
Os intérpretes judaicos percebiam como típica a primeira ocorrência do aleluia no Sl 104.35: “Desapareçam da terra os pecadores, e já não subsistam os perversos. Bendize, ó minha alma, ao Senhor! Aleluia!” Isso não é uma expressão de felicidade particular, mas júbilo acerca de Deus, o vencedor derradeiro da história. Em decorrência, esse aleluia, essa “gota das delícias do céu”, encaixa-se muito bem no contexto do juízo sobre a Babilônia.
 
Com razão a salvação, e a glória, e o poder são do nosso Deus. A locução “nosso Deus”, extraordinária para a maneira contida do Ap, ecoa nada menos do que três vezes (ainda nos v. 5,6). Ao que parece, faz parte do estilo efusivo dos cânticos da salvação, i. é, dos cânticos da vitória final, porque também as duas outras passagens a respeito da “salvação”, a saber, Ap 7.10 e 12.10, elevam-se a esse arrebatamento último por Deus em Jesus Cristo.906 Esse Deus é salvação, quer salvação, e traz salvação – ao contrário da prostituta, cuja natureza perniciosa é denunciada no próximo versículo.

Agora a base legal da soberania de Deus: porquanto verdadeiros e justos são os seus juízos. Finalmente manifesta-se essa verdade com toda a clareza, irradiando irrefutavelmente para dentro da consciência de cada pessoa. Não sobra nenhum resquício de mal-estar: verdadeiramente justo! Aqueles que mais intensamente tiveram fome de justiça hão de exclamar com mais força: Aleluia!
 
O coro de anjos explica melhor o júbilo: pois julgou a grande meretriz que corrompia a terra com a sua prostituição. A mesma acusação já se fez ouvir em Ap 11.18 e foi preparada por meio de Jr 51.25, onde a Babilônia é chamada de “monte que destrói”. No comentário a Ap 11.18 expôs-se que essa corrupção da terra praticamente não se refere a meros danos ambientais. “Terra” está representando a população da terra (como em outras passagens “céu” representa as pessoas do céu; Ap 12.12; 18.20; cf. nota 447). Logo os juízos de Deus foram uma intervenção a favor do mundo, de modo que ele fica totalmente livre da acusação de ter pensado apenas em si próprio e buscado, num sentimento mesquinho, unicamente a sua honra. Seus juízos são inteiramente límpidos e capazes de resistir a qualquer escrutínio.

 
E das mãos dela907 vingou o sangue dos seus servos. Está claro que a formulação segue os moldes de 2Rs 9.7 e passagens análogas, onde diz que Jezabel era culpada do sangue dos servos de Deus. A chacina dos justos neste mundo desde sempre significou a maior prova de incriminação para não se admitir um governo justo de Deus sobre o mundo. Foi por isso que o clamor dos mártires afinal se fez ouvir em Ap 6.10. Ao comentarmos aquele texto já salientamos a grande distância dos sentimentos pessoais de vingança. A prece de que Deus faça justiça (cf. Dn 7.22) não representa sede por triunfos pessoais, mas o restabelecimento de um mundo restaurado sob Deus.
 
Como os salmos de aleluia (cf. acima) também o presente cântico dos anjos apresenta um aleluia no começo e outro no final. E segunda vez disseram: Aleluia! E a sua fumaça (da Babilônia) sobe pelos séculos dos séculos. A marcante forma do verbo no pretérito perfeito, de que os anjos já disseram o aleluia final, talvez vise assinalar uma pausa. O aleluia passou, um silêncio interpõe-se entre esse e o próximo cântico, e tudo se rende à impressão da nuvem de fumaça que poderosamente sobe (presente!) ao alto. Como um memorial e símbolo da justiça de Deus, ela paira sobre a Babilônia. Visto que essa coluna de fumaça permanece para toda a eternidade, a sentença de Deus persiste irrevogável como juízo justo (cf. Is 34.10 e também Ap 14.11; 18.9,18; cf. nota 879).
 
Ao contrário do cap. 5, o louvor a Deus passa agora das margens para o centro. Ele é assumido pelos personagens que, conforme o cap. 4, estão muito próximos do trono. Foi desse trono que partiam os juízos, para ele retorna o eco da adoração. Como premissa do aleluia ouve-se aqui o Amém (cf. o comentário a Ap 1.7), como concordância irrestrita e rendição absoluta à justeza das ações de Deus, como concretizadas pelo coro de anjos no v. 2. Nessas duas palavras “Amém, aleluia!” condensa-se, portanto, o conteúdo do cântico dos anjos dos v. 1-3.




Notas:
901 É sumamente importante para a exegese reconhecer essa sequência como temática, não porém como cronológica. Do contrário se formam doutrinas divergentes, como, p. ex., a de que as núpcias da noiva acontecem antes da parusia (Ap 19.11-21) e que, por isso, também já haveria anteriormente um arrebatamento especial (assim pensa K. Merz, cf. Schumacher, Das tausendjährige Königreich Christi auf Erden, pág. 180-181,184).

902 Alguns exegetas, p. ex., também a edição do nt grego de Aland, tomam os v. 1-4 como uma unidade, contraponto esses versículos, enquanto tríplice aIeluia, aos três lamentos no cap. 18. Os v. 5-8 são assim separados e analisados como as “bodas do Cordeiro”. Essa subdivisão não se justifica, visto que no v. 6 segue-se mais um quarto aleluia. A própria edição de Aland evidencia até mesmo pela disposição gráfica que o estilo poético continua. Igualmente deveria ser observado que a noiva do Cordeiro ainda não é vista, como em Ap 21.2 ou 9, numa visão, mas somente mencionada à margem no âmbito do que se ouve, sem que se especifiquem o onde e o como. O juízo sobre a prostituta deu motivo para que se falasse da perfeição da noiva.

903 Ap 4.5-11; 5.9-14; 7.10-12; 11.15-18; 12.10-12 e 15.3,4.

904 Segundo a opinião de Schlatter, nessa passagem é a igreja que está cantando, conforme outros (p. ex., Bengel) é apenas uma parte da igreja, a saber, os mártires.

905 Diversas traduções católicas para o alemão usam a forma grega: “Alleluja!”

909 Assim também a LXX traduz a expressão hebraica “Halleluja“ (v. 1).

906 De forma semelhante ainda em Ap 11.15 (“de nosso Senhor”).

447 No Ap não raro aparecem objetos ou lugares para pessoas, p. ex., Ap 12.12 (céu para habitantes do céu, e terra e mar para habitantes da terra); Ap 13.6 (casa para moradores da casa); Ap 13.12; 11.18; 19.2 (terra para habitantes da terra). Não por último cabe pensar aqui na Nova Jerusalém, que está no lugar da “noiva”.

907 O sentido literal “a partir da sua mão” precisa ser traduzido como “da sua mão”, porque no idioma grego a frase sobre a pessoa merecedora de castigo, contra a qual se realiza a vingança, pode ser construída com “de” [ex], cf. já em Ap 18.20.

879 Uma coluna de fumaça assim também se levantou sobre as cidades condenadas de Sodoma e Gomorra (Gn 19.28). Ela continuou sendo, entre os profetas, uma figura do juízo (em Is 34.10 para Edom; em Jr 50,51 para a Babilônia; em Ez 30.8 para o Egito; em Ez 28.18 para Tiro).