Estudo sobre Apocalipse 20:1-2

Estudo sobre Apocalipse 20:1-2



O presente texto está entre as passagens de fácil explicação do Ap, porque praticamente não contém nenhuma expressão que já não seja conhecida dos capítulos anteriores. Também a indicação do número “mil” e o discurso da “primeira ressurreição” foram preparados. Em decorrência, de forma alguma temos diante de nós um trecho estranho e eclético, mas uma parte consistentemente ancorada no conjunto do livro.

Comparados com a característica geral do Ap, os versículos trazem poucas referências ao AT.952 Essa circunstância nos aconselha mais uma vez a interpretar o trecho a partir do próprio livro do Ap.

Tanto mais nos causa espécie constatar o que aconteceu com esse texto e que papel ele desempenhou e ainda desempenha na luta dos espíritos. Aparece à nossa frente sobrecarregado de materiais estranhos, coberto de apaixonados postulados e introduzido numa variedade de sistemas. Bietenhard, p. ex., examinou 21 interpretações do presente texto, dos século ii a xx, sob o enfoque de quais passagens do AT foram arbitrariamente conectadas com ele. Sua lista contém nada menos de 150 diferentes supostos paralelos ou “cumprimentos”. Quem retorna dessa selva de combinações para o texto que está diante de nós sente-se como se ingressasse num mundo diferente. Além disso, trata-se, em boa parte, de passagens do AT que conforme o Ap apenas serão cumpridas após o cap. 21,22, ou seja, somente depois da criação de um novo céu e uma nova terra.953 É fundamental que essa utilização do AT, pela qual a profecia desemboca, como uma larga torrente, precisamente no reino dos mil anos, seja inteiramente repensada. De forma alguma ela representa a única leitura possível. João envereda por um caminho completamente diferente.

Refugiemo-nos, portanto, no texto. De modo algum ele afirma o que quer apenas por meio de indicações parcimoniosas, porém sob o signo da insistência, a saber, em constantes repetições.954

Então, vi descer do céu um anjo. Esse anjo comum,955 dos quais Deus dispõe em grande número, liqüida o dragão, conforme o v. 2. Somente estende a mão e imediatamente o agarrou. Afinal, o decisivo já aconteceu na Sexta-Feira da Paixão e na Páscoa. Foi lá que Cristo lutou e venceu (cap. 5,12). O que ainda resta para ser feito, é executado, mediante um aceno, pelo servo. O equipamento dele é a do servidor de uma prisão. Tinha na mão a chave do abismo e (pendurada) uma grande corrente.956

Ele segurou o dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o prendeu. Assim como na detenção de um criminoso se presta atenção na identificação exata, profere-se aqui os nomes que já conhecemos de Ap 12.9. O papel do detido como sedutor é singularmente importante. Há pouco, em Ap 19.20, ouvimos a respeito da sedução das nações pelas duas bestas. Contudo, conforme Ap 12.17b era Satanás quem estava por trás delas como causa. Agora que suas ferramentas foram quebradas, chegou a vez dele próprio, como responsável principal.


A punição propriamente dita ocorre somente em Ap 20.7-10.957 Agora a questão é primeiramente a de que ele seja posto de lado e haja pista livre para um outro acontecimento. Pois para compreendermos o trecho Ap 20.1-6 é imprescindível que façamos frutificar sua correlação com o cap. 12. Evoca-o com clareza não somente a repetição dos nomes dos dragões no v. 2, mas também a nova precipitação do dragão no v. 3.

No cap. 12 o dragão foi lançado do céu em virtude da exaltação do Messias. Na terra ele adaptou sua tática e começou a perseguir a comunidade messiânica. Como Cristo no céu, assim é ela sua adversária na terra. O embate entre o dragão e a igreja tornou-se o evento fundamental do fim dos tempos. Agora luta-se pelo domínio da terra (cf. Ap 5.10). Quem vencerá, e quem cederá? A parusia há de decidi-lo. Na realidade ela não traz somente o momento em que se torna manifesto Jesus (Ap 19.11-16), mas também sua igreja (Ap 20.1-6). O mundo não verá somente a ele (Ap 1.7), mas igualmente a igreja (Ap 11.12). Acerca da situação anterior diz-se: “o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo”. Contudo, nós sabemos que “quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele” (1Jo 3.1,2). Em decorrência, a ocultação de Jesus e da igreja está interligada, do mesmo modo como também a manifestação dele e dela na parusia. “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória” (Cl 3.4).

É desse outro lado da parusia que trata Ap 20.1-6: a igreja torna-se manifesta “com o Messias” (v. 4). Assim como em Ap 12.5 a aparição do Cristo em sua majestade fez com que Satanás fosse precipitado do céu, assim o aparecimento da igreja em sua eminência faz com que seja precipitado da terra.

Observemos ainda, no v. 2, a primeira ocorrência do número mil. Ele o prendeu (“amarrou”) por mil anos.958 Essa referência numérica, cujos pormenores serão examinados no comentário ao v. 4, ostenta um realce máximo. Seu conteúdo é definido três vezes (v. 2,3,7) pela capacidade de ação de Satanás e três vezes (v. 4,5,6) pela entronização da igreja. Desde já esse número comum correlaciona estreitamente ambos os eventos.



Notas:
952 A única referência substancial é a de Dn 7. Costuma-se extrair dados demasiados da referência a Ez 37–39 (p. ex., Berkhof, p. 53, e Kuhn em Ki.-ThW., vol. i, pág. 790-792).

953 Para expor o espantoso volume desse processo, relacionamos aqui uma lista de cerca de 30 passagens do at que foram combinadas por um ou vários exegetas com o reino dos mil anos, mas que repercutem no Ap somente depois da nova criação: Is 65.17; 66.22 (Ap 21.1). – Is 52.1; 61.10 (Ap 21.2). – Ez 37.27; 43.7; 48.35; Zc 2.10; 8.8 (Ap 21.3). – Is 25.8; 35.10; 65.16-19 (Ap 21.4). – Jr 31.22 (Ap 21.5). – Zc 14.8 (Ap 21.6). – Zc 8.8 (Ap 21.7). – Is 52.1; Ez 40.2 (Ap 21.10). – Ez 48.31 (Ap 21.12,13). – Ez 40.3,5; Zc 2.2 (Ap 21.15). – Ez 48.16,17 (Ap 21.16). – Is 60.1,19 (Ap 21.23). – Is 60.3,5 (Ap 21.24). – Sl 72.10,11 (Ap 21.26). – Is 52.1 (21.27). – Ez 47.1,12; Jl 3.18; Zc 4.8 (Ap 22.1,2). – Zc 14.11 (Ap 22.3).

954 Seis vezes “mil”, duas vezes “completado”, duas vezes “reviver”, duas vezes “primeira ressurreição”, duas vezes “reinar com o Messias”, respectivamente, “com ele”.

955 Ele é introduzido sem referência à sua majestade, magnitude ou força, um fato que, no entanto, não constituiu nenhum impedimento para que se visse nele Cristo, o Espírito Santo, o arcanjo Miguel ou o apóstolo Paulo. Frey: “Esse personagem potente agarra o dragão”. Bremke intitula o trecho com: “O anjo poderoso”.

956 Chave com artigo definido já ocorre em Ap 9.1. Quanto ao abismo, cf. aquele texto.

957 O ato de amarrar Satanás ainda não tem nada a ver com castigo. Contudo é assim que Schumacher o entende, em Tausendjähriges Reich, p. 188. Entretanto, Satanás ainda precisaria de um tormento mais longo e mais terrível que essa detenção no cárcere. De modo análogo pensa T. Flügge, em Jesus, Sein Leben und Sein Wiederkommen, Berlim, 1956, pág. 126,130: “Mil anos é o tempo que tem na prisão para refletir sobre sua obstinação e se converter”. Depois, após os mil anos, a porta deverá ser aberta para ele mais uma vez, para ver se por acaso aprendeu a ser humilde diante de Deus e Cristo. – Contudo, essas considerações extrapolam o texto.

958 Acerca do uso semântico: do latim mille (mil) e annus (ano) forma-se com frequência “milênio” para “reino dos mil anos”. A doutrina do milênio é chamada às vezes de “milenarismo”, contudo na maioria das vezes de “quiliasmo” (do grego chilioi, mil). Designa-se geralmente de “quiliasmo” um uso distorcido de Ap 20.1-6, um entusiasmo condenável.