Estudo sobre Apocalipse 22:3-4
Apocalipse 22:3-4
A partir do v. 3 principia o discurso profético, prolongando a linha da superação do paraíso. Nunca mais haverá qualquer maldição (“E não haverá na cidade nada que esteja debaixo da maldição de Deus” [BLH]; “E tudo que está debaixo da maldição [toda maldição] não existirá mais” [tradução do autor]). Esse paraíso não tem serpente nem ameaça de morte, nem algo que fira a santidade de Deus.1085
Deus não poderia morar onde ainda houvesse uma maldição. “Não serei mais convosco, se não desarraigardes o anátema do meio de vós” (Js 7.12 [RC]). Visto, porém, que a terra se apresenta sem merecer qualquer punição, o céu pousou sobre ela (Ap 21.2,3) e ela se tornou lugar da entronização de Deus.
É a esse eixo que se referem os últimos versículos. Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os seus servos o servirão (“adorarão”) como sacerdotes. Em torno do trono desenrola-se atividade litúrgica. Os servos de Deus e do Cordeiro aparecem como o que já eram desde Ap 1.5,6 e continuam sendo ininterruptamente desde a parusia (Ap 20.4,6), a saber, sacerdotes. A palavra para servir usada no presente versículo foi tomada na Bíblia como termo fixo para o serviço sacerdotal, com o auge especial da adoração. Esse serviço significa ser definitivamente liberto de qualquer domínio estranho por parte do pecado, da morte e do diabo (cf. o comentário a Ap 7.15). Consequentemente, nesse serviço o ser humano todo revive. Finalmente o ser humano é ser humano e serve a Deus de todo o coração, de toda a alma, com todas as suas forças e com todo o entendimento.
É esse o “descanso” em que o povo de Deus entrará segundo a carta aos Hebreus. Ele descansa de suas fadigas (Ap 14.13), não porém de seu serviço. O descanso consiste no movimento contínuo do serviço, sem transtornos. De acordo com as promessas de Deus, mas também de acordo com tudo que move o coração e os desejos de seus servos, esse serviço terá continuidade na consumação. Nem morte nem ressurreição, nem juízo nem nova criação os separarão do serviço a Jesus. Nunca mais sua existência se desprenderá do senhorio de Deus e do Cordeiro. “Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos” (Rm 14.8).
A frase “o adorarão” traz o pronome no singular, que pelo contexto se refere a Deus e ao Cordeiro, ou seja, a uma dupla. Dessa maneira atesta-se a unidade inseparável, não das pessoas,1086 mas seguramente das funções. Deus aparece com o Cordeiro, de maneira inseparável, como um só senhorio. Isso já foi dito em Ap 3.21 e constitui o fundamento de todo o livro. Na visão da consumação, essa formulação se acumula (quatro vezes). Justamente ao atingir o seu alvo o Ap se distancia extremamente de um Deus “em si”. Ele aparece na comunhão eterna com aquele personagem de sacrifício. A ele, ao Cordeiro, ele entregou tudo. Cada pessoa terá de dirigir-se a ele. O Cordeiro representa integralmente a Deus, e o senhorio de Deus é o senhorio do Cordeiro.
Para os servos de Deus desdobra-se a promessa de um servir futuro ainda mais. Eles contemplarão a sua face.1087 Não somente têm o direito de esperar pela continuação do serviço, mas também por um serviço melhor. Ainda não estão vendo face a face àquele a quem servem. Por essa razão ainda não estão servindo tão bem como deveriam servi-lo. Mesmo quando têm boa intenção não executam sempre um serviço bom, e sobretudo falta-lhes a necessária alegria e liberdade. Quando, porém, virem a sua face, seu serviço assumirá forma perfeita, motivo pelo qual também a glória de Deus e do Cordeiro brilhará plenamente. Dessa forma concretiza-se o alvo da criação pelo próprio Deus: uma humanidade que lhe serve e que o glorifica.
Esse alvo não foi atingido na primeira criação. A respeito dela Ap 20.11 diz, em síntese, que ela fugiu da presença de Deus (cf. Ap 6.16). A essa precipitação no nada contrapõe-se, depois da nova criação, a permissão de que pessoas renovadas vejam essa mesma face.
A continuação concretiza a plenitude desse novo culto a Deus: e na sua fronte está o nome dele (“E seu nome será visível na testa deles” [tradução do autor]). Bengel escreve: “De maneira muito formosa estão sendo colocadas lado a lado a face de Deus e as testas dos servos. Como se espelhará, então, a glória de Deus!”
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O culto desses servos de Deus não se limita a uma realização unilateral, mas um reflexo do Senhor glorificado recai sobre seus servos. “Se alguém me servir, o Pai o honrará”, prometera Jesus (Jo 12.26). Como cumprimento dessa promessa e também dos oráculos dos vencedores em Ap 2.17; 3.12 agora o nome de Deus torna-se legível em suas frontes.
Com toda a certeza o nome de Deus não aparece em testas impróprias. Quando ele reluz torna-se manifesto simultaneamente que a imagem de Deus nesses servos foi verdadeiramente restaurada. Os que levam o seu nome serão “semelhantes a ele”. Essa expressão de 1Jo 3.2 não soa muito diferente de Gn 3.5: “vocês serão como Deus!” (blh). Contudo, as afirmações formalmente similares estão a mundos de distância uma da outra. Em uma ocasião a verdade “o ser humano foi feito à semelhança de Deus” é distorcida pela serpente no sentido de que ser como Deus é igual a ser pessoalmente Deus e ocupar o trono. Em contrapartida, o “ser semelhante a ele” de João significa: combinar com ele, ser criado e redimido para a comunhão com ele.
No versículo final (v. 5) o paraíso dos tempos iniciais mais uma vez é excedido. O cumprimento escatológico traz consigo um paraíso sem a expulsão de Gn 3.24, um paraíso ininterrupto e infinito. Para atingir esse propósito, João parece contentar-se com repetições dos cap. 21. Já lemos em Ap 21.25 que não existe mais noite, e Ap 21.23 já dizia que não há mais necessidade da luz do sol e da lua. Contudo, novamente um olhar mais atento será profícuo.
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Apocalipse 22:3-4
Notas:
1085 Para “maldição” aparece o termo grego katátema, uma expressão que não ocorre nem em Gn nem em qualquer outro livro da Bíblia. Ele parece estar intensificando o termo grego anátema, mais recorrente. – Seria totalmente estranho ao contexto inferir que agora não existe mais o charco de fogo, como faz Rissi. A definição de lugar “nela” (nenhuma maldição mais na cidade e no paraíso) impede que a locução seja tomada como uma afirmação genérica.
1087 “Ver a face de Deus” é uma expressão da linguagem de culto, como evidenciam inúmeras passagens nos salmos. Participar do sacrifício e celebrar no templo eram considerados como “comparecer perante a sua face” e como “contemplar a Deus”. Não obstante, o próprio judaísmo sentia-se insatisfeito nessa maneira de contemplar a Deus, esperando por um cumprimento no fim dos tempos, pelo verdadeiro culto a Deus.