Significado de Atos 1

Atos 1

Atos 1 inaugura não apenas a continuação da obra lucana iniciada no Evangelho segundo Lucas, mas também marca a transição definitiva entre a presença física de Jesus e a ação invisível, porém poderosa, do Espírito Santo na história da igreja. Trata-se de uma ponte literária e teológica entre o Cristo exaltado e a comunidade dos seus seguidores em missão. O capítulo começa com um prólogo que retoma os eventos finais do Evangelho de Lucas, enfatizando a ascensão de Jesus e suas últimas instruções aos discípulos, e culmina na formação da comunidade apostólica em Jerusalém com a eleição de Matias, preparando o cenário para o Pentecostes no capítulo seguinte. Assim, Atos 1 apresenta-se como um capítulo inaugural, cujo propósito é estrutural e teológico: ele delineia o fundamento da missão cristã, com ênfase na autoridade de Jesus ressuscitado, na promessa do Espírito e na restauração escatológica de Israel.

Estilo Literário e Estrutura

O estilo literário de Atos 1 combina narrativa histórica, linguagem teológica e elementos do discurso jurídico e apocalíptico. Lucas, como historiador e teólogo, escreve em grego koiné refinado, mas permeado de hebraísmos e ecos do estilo septuagíntico, evidenciando seu esforço por narrar os eventos com credibilidade histórica e reverência religiosa. O capítulo pode ser dividido em quatro seções principais:

Prólogo e Retomada do Evangelho (vv. 1–3) – Introdução dirigida a Teófilo, recapitulando os acontecimentos até a ascensão.

A Promessa do Espírito e a Ascensão (vv. 4–11) – Discurso de despedida de Jesus e sua ascensão visível ao céu.

A Comunidade Reunida em Jerusalém (vv. 12–14) – A oração unânime dos discípulos com Maria e os irmãos de Jesus.

A Substituição de Judas por Matias (vv. 15–26) – Um momento decisivo de restauração da liderança apostólica, com base na Escritura.

A narrativa alterna entre o discurso direto de Jesus, a descrição de eventos teofânicos (como a nuvem da ascensão) e ações comunitárias com moldes judaicos, como a escolha de Matias por sorteio e oração. Isso demonstra que Lucas intencionalmente escreve uma história sagrada com contornos de continuidade entre o Israel veterotestamentário e a igreja neotestamentária.

Hebraísmos e Hebraico Gramatical Implícito

Embora escrito em grego, Atos 1 exibe uma estrutura gramatical e sintática profundamente influenciada pelo hebraico bíblico. A repetição de fórmulas como “homens da Galileia” (ἄνδρες Γαλιλαῖοι – andres Galilaioi) segue o modelo semítico de vocativo coletivo (cf. Isaías 1:10: “príncipes de Sodoma”). O uso da partícula grega “μέν... δέ...” (men... de...) nos versículos 1 e 2 é típico da dicotomia hebraica do paralelismo (כִּי... וְ...), criando um ritmo de contraste e complementaridade entre a obra anterior e a nova etapa narrativa.

A presença de hebraísmos é clara na frase “não vos compete saber os tempos ou as épocas que o Pai reservou” (v. 7), que ecoa fórmulas escatológicas do Antigo Testamento como “o tempo determinado por Deus” (דָּן עִתִּים – dān ʿittîm; cf. Daniel 2:21). O uso da expressão “ser-me-eis testemunhas” (ἔσεσθέ μοι μάρτυρες – esesthe moi martyres, v. 8) também remonta diretamente à linguagem profética de Isaías 43:10: “Vós sois minhas testemunhas” (אַתֶּם עֵדַי – ’attem ʿēdai), reforçando o vínculo entre o povo de Israel e a missão dos apóstolos. A eleição de Matias “por sorte” (λαγχάνω – lanchanō) evoca a prática veterotestamentária da distribuição da terra por sortes (Josué 18), indicando que a ação apostólica ainda se move dentro de um marco ritual hebraico, reinterpretado cristologicamente.

Palavras-Chave

Πνεῦμα Ἅγιον (Pneuma Hagion – “Espírito Santo”)

A expressão ocorre já no versículo 2 e reaparece no versículo 5, marcando a promessa da continuidade da presença de Deus. O “Espírito Santo” é aqui não apenas uma força ou influência, mas uma Pessoa que será “derramada” (v. 5) e que revestirá os discípulos de poder (v. 8). O termo evoca Joel 2:28 (“Derramarei o meu Espírito”), e o vocabulário do Espírito é retomado ao longo de todo Atos como o motor da missão cristã.

Μάρτυς (martys – “testemunha”)

No versículo 8, os discípulos são comissionados como “minhas testemunhas”. A palavra tem duplo sentido: legal e sacrificial. No hebraico, עֵד (ʿēd) é alguém que confirma com a vida a veracidade de um fato; no contexto cristão, o mártir é aquele que confirma a verdade pela própria morte. Atos desenvolve essa noção até culminar em Estêvão, o primeiro mártir (Atos 7).

Βασιλεία (basileía – “reino”)

No versículo 3, Lucas afirma que Jesus apareceu durante 40 dias “falando das coisas concernentes ao Reino de Deus”. Esse “Reino” não é geográfico, como os discípulos pensaram no v. 6 (“restaurarás o reino a Israel?”), mas escatológico e espiritual. O hebraísmo implícito é מַלְכוּת אֱלֹהִים (malkut ’ĕlōhîm), conceito messiânico presente em Daniel e nos Salmos, agora reinterpretado em chave cristológica.

Ἀνάλημψις (analēmpsis – “ascensão”)

No versículo 2 e novamente no 9, a ascensão de Jesus é descrita com um termo técnico. Trata-se de um eco direto da ascensão de Elias (cf. 2 Reis 2:11 – וַיַּעַל אֵלִיָּהוּ בְּסַעֲרָה הַשָּׁמַיִם – wayyaʿal ’Eliyāhu bĕsaʿărāh haššāmayim), estabelecendo Jesus como o novo profeta escatológico, maior que Moisés e Elias.

Versículo-Chave

Atos 1:8“Mas recebereis poder ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra.”

Este versículo funciona como a tese central do livro e o coração teológico do capítulo. Ele encapsula o plano missionário da igreja, a fonte do poder espiritual, e a vocação martirial do cristão. É também um resumo geográfico e teológico do movimento de Atos: de Jerusalém aos confins da terra, impulsionado pelo Espírito.

Intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento

Atos 1 é um tecido de alusões veterotestamentárias. A duração de 40 dias (v. 3) remete a Moisés no Sinai (Êxodo 24:18), a Elias no deserto (1 Reis 19:8) e ao tempo de julgamento e preparação. A escolha de Matias por sorte ecoa práticas sacerdotais e tribais de Israel (Levítico 16:8, Josué 14:2). A promessa do Espírito liga-se diretamente a Joel 2:28 e Isaías 44:3. A nuvem que leva Jesus aos céus (v. 9) remete à presença divina em Êxodo 13:21 e Daniel 7:13: “um como o Filho do Homem vinha com as nuvens do céu”. O anjo que anuncia seu retorno (v. 11) reflete Zacarias 14:4, onde o Senhor volta ao monte das Oliveiras — o mesmo cenário de Atos 1.

No Novo Testamento, Atos 1 ecoa diretamente Lucas 24:49, onde Jesus promete o envio do Espírito. O comissionamento apostólico se alinha com Mateus 28:18-20 e João 20:21-22. A centralidade da ascensão é retomada em Efésios 4:8-10 e Hebreus 4:14, onde Jesus é o sumo sacerdote que adentra os céus. A estrutura trinitária do v. 8 (Pai – promessa; Filho – envio; Espírito – poder) antecipa toda a teologia cristã desenvolvida em Atos e nas epístolas.

Lição Teológica Geral

Atos 1 ensina que a igreja nasce não de uma ausência, mas de uma promessa. A ascensão de Jesus não é um fim, mas um início; ela desloca a presença de Cristo do espaço físico para o interior dos crentes, por meio do Espírito. O capítulo estabelece que a missão da igreja é ser testemunha da ressurreição até os confins da terra, em obediência a um Senhor que reina do céu. A continuidade com Israel é afirmada, mas ressignificada: o novo Israel é apostólico, missionário e pneumático. A oração, a eleição, a Escritura e o Espírito são os quatro pilares fundacionais desta nova comunidade. A lição do capítulo é clara: Cristo reina, o Espírito guia, e a igreja testemunha. É um chamado para todo cristão entender sua vocação como parte de um movimento iniciado em Jerusalém, mas destinado ao mundo inteiro.

Comentário Expositivo de Atos 1

A Promessa do Espírito Santo (Atos 1:1-5)

Atos 1:1 “O primeiro tratado fiz” (Ou seja, o Evangelho de Lucas, onde ele narrou detalhadamente a vida, os ensinamentos, os milagres, a morte e a ressurreição de Jesus; agora ele dá continuidade à história, começando onde o seu evangelho parou, na ascensão de Cristo.), “...ó Teófilo...” (Θεόφιλος (Theóphilos) é um nome de origem grega, e sua etimologia composicional é bastante clara. Ela deriva da junção de Θεός (Theós) que significa “Deus” ou “deus”. É a mesma palavra raiz que encontramos em “teologia” (estudo de Deus) ou “teocracia” (governo de Deus), junto à palavra Φίλος (phílos) que tem um significado dual em grego, podendo ser traduzido como: “amigo”, “querido”, “amante de”, ou “amado por”, “caro a”. O mesmo destinatário do Evangelho de Lucas. Teófilo significa “amigo de Deus” ou “amado de Deus”. É quase certo que era uma pessoa real, provavelmente um cristão de posição social elevada, a quem Lucas se dirigia com respeito e carinho, desejando fortalecê-lo na fé com um relato confiável dos fatos. Teófilo, provavelmente, deve ter sido um prefeito, governador ou alguém que exercia outro cargo público. É possível que Teófilo tenha-se tornado cristão entre a composição do Evangelho de Lucas e o livro de Atos dos Apóstolos, razão pela qual o autor refere-se ao destinatário como um irmão cristão apenas em Atos.), “...acerca de tudo...” (Aqui o termo “tudo” não significa literalmente cada detalhe da vida e obra de Jesus, pois isso seria impossível de registrar, como o próprio apóstolo João afirma em João 21:25 — que se fosse escrever tudo, “nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem”. Portanto, Lucas quer dizer que seu primeiro tratado — o Evangelho — abrangeu tudo aquilo que era essencial, tudo que dizia respeito ao propósito redentor de Cristo, ao seu ministério, seus ensinamentos, milagres, morte e ressurreição, até o ponto da ascensão.), “...quanto Jesus começou...” (Perceba essa palavra: começou. Isso é fundamental. Mostra que aquilo que Jesus fez durante o seu ministério terreno foi apenas o início. O livro de Atos é, na verdade, a continuação da obra de Cristo, não mais de forma visível, física, em seu próprio corpo, mas agora por meio de seu Corpo espiritual — a Igreja. E se pensarmos bem, o Evangelho de Lucas começa exatamente com essa proposta: narrar como Jesus inaugurou o Reino de Deus, desde seu nascimento, passando pelo batismo, ministério, morte e ressurreição.), “...não só a fazer...” (Isso se refere às suas obras — aos milagres, às curas, aos exorcismos, à multiplicação dos pães, à ressurreição de mortos, e também a todos os atos de misericórdia, compaixão e amor. Jesus não era apenas um mestre de palavras, mas alguém que encarnava suas próprias palavras em ações visíveis e poderosas. Ele não pregava amor; Ele curava os enfermos. Não falava apenas de perdão; perdoava pecadores. A fé cristã não está edificada sobre especulações ou mitos, mas está firme sobre atos soberanos e testemunhos dados pelo Deus encarnado no universo espaço-temporal. Nascimento, ministério, morte, ressurreição e ascensão do Senhor Jesus Cristo estão solidamente enraizados na história. Reino de Deus é o tema central da pregação de Cristo aos Seus apóstolos durante os 40 dias que marcam o período entre a ressurreição e a ascensão. O centro significativo da história de Jesus não é a cruz, mas a coroa, ou seja, o tempo em que o Rei Jesus se revelará em toda a Sua majestade e reinará em glória, veja Is 11; Dn 7.13,14; 1 Co 15.24-28; Ap 20.4-6.), “...mas a ensinar...” (Ou seja, além dos feitos poderosos, Ele ensinava. E seus ensinamentos não eram filosofia, nem mera moralidade. Eram doutrinas do Reino de Deus, revelação do Pai, luz para os homens, como Ele próprio declara em João 8:12 — “Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida.”. Seus sermões, parábolas, exortações e discursos revelavam quem Deus é, o que Deus requer, e como se entra no Reino dos Céus. Portanto, Lucas está dizendo: no Evangelho eu te contei tudo que Jesus começou a fazer e a ensinar; agora vou te contar como essa obra continuou, e ainda continua até hoje, por meio do Espírito Santo, da Igreja e da proclamação do Evangelho.).

Atos 1:2 “...até ao dia em que foi recebido em cima...” (Ou seja, até o dia da sua ascensão, quando voltou ao céu, assentando-se à direita do Pai, como confirmado em Marcos 16:19 e Hebreus 1:3.), “...depois de ter dado mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera;...” (Veja que Jesus, antes de subir, deu ordens, direções e ensinamentos aos apóstolos, e fez isso pelo Espírito Santo. Isso revela algo tremendo: mesmo o Filho de Deus, na sua missão terrena, agiu em plena comunhão e poder do Espírito Santo. A mesma capacitação que Ele agora promete para os discípulos. E note: foram aos apóstolos que escolhera, mostrando a soberania de Cristo no chamado e na escolha daqueles que iriam dar continuidade à sua obra, como também está claro em João 15:16 — “Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós...”)

Atos 1:3 “Aos quais também, depois de ter padecido, se apresentou vivo...” (Aqui está a ênfase na ressurreição. Não foi um espírito, não foi uma alucinação, não foi uma visão simbólica. Jesus ressuscitou de verdade, em carne e osso, conforme Ele mesmo disse em Lucas 24:39 — “Vede as minhas mãos e os meus pés, que sou eu mesmo; apalpai-me e vede, pois um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho.”), “...com muitas e infalíveis provas...” (Ou seja, provas irrefutáveis, incontestáveis. Ele comeu com eles, deixou que o tocassem, apareceu a muitos de uma só vez, como Paulo relata em 1 Coríntios 15:6 — “Depois foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos.” Nada disso poderia ser fingimento ou imaginação coletiva.), “...sendo visto por eles por espaço de quarenta dias...” (E por que quarenta dias? O número quarenta na Bíblia sempre representa um tempo de preparação, de transição. Moisés ficou quarenta dias no Sinai (Êxodo 34:28), o povo ficou quarenta anos no deserto (Números 14:33), Jesus ficou quarenta dias no deserto em jejum (Mateus 4:2). Aqui, esses quarenta dias servem para preparar os discípulos para uma nova fase: a missão da Igreja. Nos 40 dias que se seguiram à Sua ressurreição, são narradas de 10 a 12 aparições de Jesus aos cristãos, confirmando a Sua ressurreição dentre os mortos. Na última dessas aparições, Jesus reuniu os apóstolos e ordenou-lhes que não saíssem de Jerusalém (At 1.4). Com muitas e infalíveis provas é um argumento que fundamenta a confiança dos cristãos na ressurreição de nosso Senhor. A expressão grega traduzida por infalíveis provas refere-se a uma prova decisiva e convincente.), “...e falando do que respeita ao reino de Deus.” (O tema central das conversas de Jesus nesses dias foi o reino de Deus. Isso significa que, mesmo após sua ressurreição, Ele não estava falando de vingança contra Roma, nem de projetos políticos, nem de riqueza material. Sua mensagem permaneceu sendo a mesma do início: o estabelecimento do governo de Deus nos corações e no mundo, uma realidade espiritual que começa aqui, mas se consumará na eternidade, como também Ele havia ensinado em Mateus 6:33 — “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça...”).

Atos 1:4 “E, estando com eles, determinou-lhes que não se ausentassem de Jerusalém” (Jesus os instrui a permanecerem em Jerusalém. Isso não é um detalhe qualquer. Jerusalém é o palco dos maiores acontecimentos da redenção: foi onde Jesus morreu, ressuscitou, e é onde o Espírito Santo será derramado, inaugurando oficialmente a era da Igreja. Eles não deveriam sair dali até receberem poder do alto.), “mas que esperassem a promessa do Pai” (Que promessa é essa? A promessa clara que foi pregado por João Batista (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.13) e reiterado pelo próprio Jesus, a promessa do Pai é a promessa do batismo com o Espírito Santo. Há sete referências desse batismo na Escrituras, entre as quais cinco são proféticas (At 1.5; Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33); uma é histórica (At 11.15,16), e faz alusão ao Dia de Pentecostes, e outra é doutrinária (1 Co 12.13), explicando o significado e sentido do batismo com o Espírito Santo. A descida do Espírito não é um capricho divino, mas parte central do plano redentor. A Igreja sem o Espírito é um corpo sem vida.), “que (disse ele) de mim ouvistes” (Jesus já havia falado disso diversas vezes. Ele preparou os discípulos para esse momento, deixando claro que a missão deles só poderia ser cumprida com a capacitação do Espírito. Por exemplo, João 16:7 — “Convém-vos que eu vá, porque, se eu não for, o Consolador não virá a vós...”).

Atos 1:5 “Porque, na verdade, João batizou com água” (Aqui Jesus faz uma comparação clara. João Batista veio com um batismo de arrependimento, com água, símbolo de purificação e preparação. Era um batismo externo, que apontava para algo maior.), “mas vós sereis batizados com o Espírito Santo, não muito depois destes dias” (Agora Jesus anuncia o cumprimento da promessa: um batismo diferente, não mais com água, mas com o próprio Espírito Santo. Isso fala de uma imersão total na presença, no poder e na atuação divina. Assim como a água envolve todo o corpo no batismo, o Espírito envolveria toda a vida deles. Isso não seria algo simbólico, mas uma experiência real, transformadora e capacitiva. E observe: não muito depois destes dias. Ou seja, a promessa era iminente. Dentro de poucos dias, o Pentecostes aconteceria, e a Igreja nasceria com poder, ousadia e fogo celestial. A voz passiva do verbo grego indica que o batismo não depende dos nossos esforços para alcançar a promessa, mas baseia-se na vontade do Senhor. O tempo futuro demonstra que não há incerteza ou dúvida na promessa. A palavra grega para batizados significa imersos ou mergulhados. A conotação dessa palavra grega também diz respeito a identificar- se com alguém ou algo. O batismo espiritual nos coloca em união espiritual uns com os outros no Corpo de Cristo, a Igreja, veja 1 Co 12.12,13).

A Ascensão de Jesus (Atos 1:6-9)

Atos 1:6 “Aqueles, pois, que se haviam reunido” (Ou seja, os discípulos. Estavam todos juntos em Jerusalém, obedecendo à ordem de Jesus de não se afastarem da cidade até que recebessem o poder do alto, conforme o versículo 4. Esse ajuntamento era também um momento de expectativa, reverência e talvez até certa ansiedade sobre o que aconteceria a seguir.), “interrogaram-no, dizendo: Senhor, restaurarás tu neste tempo o reino a Israel?” (Essa pergunta revela que, mesmo depois de tudo — da cruz, da ressurreição, das aparições — os discípulos ainda tinham uma compreensão limitada e, de certa forma, equivocada do Reino de Deus. Eles ainda imaginavam um reino político, nacionalista, a restauração do trono de Davi em Jerusalém, com a libertação de Israel do domínio romano. Essa era uma expectativa profundamente enraizada na mentalidade judaica da época. Apesar de tudo que Jesus ensinou sobre o Reino espiritual, eles ainda perguntam se agora seria o momento da restauração de Israel como nação soberana. Isso mostra que, assim como nós muitas vezes fazemos, eles ainda estavam tentando encaixar os planos de Deus dentro dos seus próprios paradigmas humanos e terrenos. A afirmação de Cristo de que o Espírito Santo estava para ser enviado evidentemente despertou os discípulos a respeito do estabelecimento do Reino. Eles esperavam que esse evento acontecesse durante o ministério de Cristo. Agora, após a ressurreição, certamente teria chegado o tempo. Relacionar a vinda do Espírito com a vinda do Reino se coaduna com o pensamento do Antigo Testamento (At 3.21; Is 32.15-20; 44.3-5; Ez 39.28,29; J1 2.28—3.1; Zc 12.8-10). A indagação feita pelos discípulos expressa a ansiedade dos apóstolos para a antecipação das normas do Reino sobre as quais Cristo havia falado nas semanas e nos dias anteriores (At 1.3). A expectativa popular e a esperança fundavam-se na crença de que Cristo estabeleceria o Reino de Deus imediatamente.).

Atos 1:7 “E disse-lhes: Não vos pertence saber...” (Aqui Jesus responde de forma direta, mas também com ternura. Ele basicamente diz: “Isso não é da conta de vocês”. Mas também é notório que Jesus não corrigiu o ponto de vista de Seus discípulos no que diz respeito à restauração do reino de Israel (At 1.6). Em vez disso, Ele tratou de corrigir o que eles consideravam acerca do tempo dessa restauração. Tratava-se de um equívoco semelhante ao que Ele tentara corrigir com a parábola registrada em Lucas 19.11-27, a parábola das minas.) “...tempos ou as estações...” (Os tempos, as épocas, os detalhes dos desígnios futuros pertencem exclusivamente ao Pai. Essas duas palavras tratam do problema da datação de forma distinta da anterior. Tempos é uma referência à cronologia ou à duração do tempo, referindo-se a quanto tempo durará a espera pela vinda. O termo estações é alusivo às épocas ou aos eventos que ocorrerão no tempo compreendido entre a ascensão e o evento escatológico. Os discípulos não sabiam quanto tempo levaria até Cristo estabelecer o Seu Reino, nem poderiam saber os eventos que deveriam ocorrer antes desse estabelecimento. Pedro afirma que mesmo os profetas do Antigo Testamento não tinham conhecimento do tempo compreendido entre os sofrimentos de Cristo e a Sua posterior glorificação (1 Pe 1.11). Todas as coisas acontecerão no tempo de Deus, e à maneira dele. Apenas esse verso deveria ser suficiente para que ninguém tentasse estabelecer datas para o retorno de Cristo. Isso ecoa o que Ele já havia dito em Mateus 24:36 — “Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, mas unicamente meu Pai.”. É como se Jesus dissesse: “Vocês não foram chamados para ficar calculando cronogramas proféticos, nem para especular quando o Reino será manifestado plenamente. Há uma outra missão que é mais urgente.”), “...que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder...” (Isto é, os planos soberanos de Deus são determinados exclusivamente pela sua vontade, pela sua autoridade e pelo seu poder. Ele não precisa da nossa aprovação, nem das nossas especulações. A história está nas mãos dEle, e Ele cumpre tudo no tempo certo, conforme o seu decreto eterno, como está escrito em Isaías 46:10 — “O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade.”).

Atos 1:8 “Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós...” (Aqui Jesus redireciona completamente a atenção deles. Não foquem em “quando” Deus vai restaurar o Reino. Foquem no que Deus vai fazer agora em vocês. Eles receberiam a virtude — ou seja, o poder, a capacitação sobrenatural do Espírito Santo. Isso não seria apenas um sentimento ou uma influência abstrata, mas uma pessoa — o próprio Espírito Santo — vindo habitar neles, enchendo-os de poder para realizar a missão. Sem esse poder, seria impossível cumprir o chamado. Isso cumpre Joel 2:28 — “E há de ser que, depois, derramarei o meu Espírito sobre toda a carne...”), “...e ser-me-eis testemunhas...” (Aqui está a essência da missão. A palavra testemunhas carrega, no original, a ideia de quem dá testemunho, quem afirma solenemente o que viu, ouviu e experimentou. É também a raiz da palavra mártir, porque muitos deles dariam sua vida por esse testemunho. Jesus não os chamou para serem soldados, nem políticos, nem reformadores sociais. Chamou-os para serem testemunhas — de sua vida, de sua morte, de sua ressurreição e de seu poder transformador.), “...tanto em Jerusalém...” (Começando em casa, no centro da fé judaica, onde tudo aconteceu. Jerusalém é o ponto de partida. É o útero da Igreja.), “...como em toda a Judeia e Samaria...” (A Judeia representa a região vizinha, o entorno, ainda entre os judeus. Mas Samaria já quebra as barreiras étnicas e religiosas, porque os samaritanos eram considerados meio-judeus, meio-pagãos. Aqui Jesus já está dizendo que a missão transcende preconceitos, rivalidades e barreiras culturais.), “...e até aos confins da terra...” (Ou seja, não há fronteiras para o Evangelho. O plano de Deus não era nacionalista, não era só para Israel, mas universal. Aquilo que começou com Abraão — “em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gênesis 12:3) — agora se concretiza plenamente. A missão é global. A partir daqui, a Igreja tem um mapa: Jerusalém, Judeia, Samaria e, depois, o mundo inteiro.).

Atos 1:9 “E quando dizia isto, vendo-o eles, foi elevado às alturas...” (Enquanto Jesus ainda falava essas palavras, algo extraordinário acontece diante dos olhos deles: Ele começa a se elevar, subir, ser erguido até as alturas. Isso não é uma metáfora. Isso é literal, visível, físico. Eles realmente o viram subindo, sendo elevado do meio deles. A ascensão não é um detalhe decorativo da fé cristã; ela é essencial. Ela marca a exaltação de Cristo, sua entronização à direita do Pai, como está em Hebreus 1:3 — “...havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas alturas.”), “...e uma nuvem o recebeu, ocultando-o a seus olhos...” (A nuvem aqui não é uma simples massa de vapor. Na Bíblia, a nuvem frequentemente representa a manifestação da glória de Deus — a shekinah. Foi assim no Monte Sinai, na tenda da congregação, no templo, e também na transfiguração de Jesus (Mateus 17:5 — “...uma nuvem luminosa os cobriu”). Agora, essa mesma glória o envolve, recebe e oculta Jesus dos olhos deles, simbolizando que Ele volta à dimensão celestial, onde reina soberano.).

A Promessa da Volta de Jesus (Atos 1:10-11)

Atos 1:10 “E, estando com os olhos fitos no céu, enquanto ele subia” (Imagine a cena. Jesus subindo, sendo elevado, e os discípulos paralisados, olhando fixamente para o céu. A palavra usada aqui para “fitos” é atenizontes, que traz a ideia de olhar com intensidade, olhar firmemente, com concentração máxima. Não era um olhar casual. Era aquele olhar de quem vê algo que nunca viu antes e talvez nunca mais verá igual. Eles estavam literalmente de olhos presos no céu, acompanhando cada segundo da ascensão.), “...eis que junto deles se puseram dois varões vestidos de branco...” (De repente, surgem dois varões — claramente anjos — ao lado deles. A expressão andres duo — dois homens — é proposital, porque, na tradição judaica, o testemunho de dois era o que validava um fato, conforme Deuteronômio 19:15. O “vestidos de branco” (en esthēsei leukē) aponta claramente para seres celestiais, pois o branco nas Escrituras é símbolo de pureza, glória, e do ambiente celestial. Foi assim no túmulo vazio (Lucas 24:4) e na transfiguração, veja Marcos 9:3).

Atos 1:11 “Os quais lhes disseram: Varões galileus...” (Eles se dirigem diretamente aos discípulos chamando-os de “galileus” — andres Galilaioi —, lembrando-lhes de suas origens simples, humildes, do norte de Israel. Deus escolheu pescadores, cobradores de impostos, gente comum, para serem testemunhas dos atos mais sublimes da história da redenção.), “...por que estais olhando para o céu?...” (A pergunta não é uma repreensão, mas um chamado à realidade. É como se dissessem: “Sim, Ele subiu, mas vocês não podem ficar eternamente parados, olhando. A missão continua. O que foi ordenado deve ser feito. Há trabalho a fazer na terra.”.), “Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu...” (Perceba a força da declaração: houtos Iēsous — “esse Jesus”. Não é outro. É esse mesmo Jesus que vocês conheceram, amaram, seguiram, viram morrer e ressuscitar. Esse mesmo que subiu ao céu, fisicamente, pessoalmente, visivelmente.), “...há de vir assim como para o céu o vistes ir.” (Aqui está uma das maiores promessas da história cristã. Assim como Ele subiu, eleusetai — “Ele voltará”. Não é uma volta simbólica, não é espiritual, não é metafórica. É literal, visível, real. Do mesmo modo como eles o viram subir — hon tropon etheasasthe auton poreuomenon eis ton ouranon — eles o verão descer. Essa declaração ecoa o que o próprio Jesus disse em Mateus 24:30 — “Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem... e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu, com poder e grande glória.”. A ascensão não foi apenas um adeus. Foi uma garantia de retorno. A história não caminha para o caos, nem para o acaso. Ela caminha para um encontro marcado com Aquele que subiu e voltará. E esta promessa é âncora da esperança da Igreja através dos séculos: Maranata! Vem, Senhor Jesus!).

O Retorno a Jerusalém e a Perseverança em Oração (Atos 1:12-14)

Atos 1:12 “Então voltaram para Jerusalém...” (Depois de presenciarem a ascensão gloriosa de Jesus, os discípulos obedecem imediatamente à ordem que o Mestre lhes deu: permaneçam em Jerusalém até que do alto sejam revestidos de poder. Eles voltam. A palavra para “voltaram” é hypestrepsan, que indica retornar, dar meia-volta, voltar ao ponto de origem. Eles não ficaram no monte contemplando ou lamentando, nem dispersaram com medo. Eles retornam, porque sabem que Deus está prestes a cumprir uma promessa.), “...do monte chamado das Oliveiras...” (Esse monte, o Oros ton Elaion, tinha um profundo simbolismo. Foi ali que Jesus muitas vezes orou, ensinou e também chorou (Lucas 22:39-44). Foi do alto desse monte que Ele subiu aos céus, e, segundo a profecia de Zacarias 14:4, é ali também que Ele há de voltar no dia do seu retorno glorioso.), “...o qual está perto de Jerusalém...” (O monte não era distante. Era uma caminhada curta.), “...da distância de um caminho de um sábado...” (No judaísmo, havia um limite para a distância que se podia percorrer no sábado sem quebrar a lei, aproximadamente 2.000 côvados — cerca de 1 km. A expressão sabbatou hodos indica essa medida tradicional. Ou seja, era bem perto, algo como 10 a 15 minutos de caminhada. Isso mostra que, logo após a ascensão, eles não perderam tempo; voltaram direto à cidade, à obediência, e à espera da promessa.).

Atos 1:13 “E, entrando, subiram ao cenáculo...” (Teria sido o lugar onde Jesus passou a última Páscoa com Seus discípulos, o lugar onde Ele apareceu a eles após ressuscitar (Lc 24). É possível que o cenáculo tenha sido o mesmo lugar para ambos os eventos. Esse espaço teria pertencido a Maria, mãe de João Marcos. Sua casa é mencionada em Atos 12.12 como um lugar de encontro dos discípulos. Os seguidores de Jesus habitavam nesse lugar, esperando em Jerusalém conforme o Senhor lhes havia ordenado, até que recebessem o poder que Ele prometera (At 1.5). A exceção de Pedro, Tiago e João, essa seria a última menção nominal dos apóstolos. Eles não são mencionados no restante do livro porque entregaram sua vida ao cumprimento da grande comissão. Segundo a tradição cristã, enquanto Pedro foi crucificado de cabeça para baixo, Tomé foi transpassado pela espada por causa de sua fé. Mateus foi assassinado transpassado por uma lança. Matias foi decapitado. Tiago foi morto a chutes. Judas, Filipe e Bartolomeu foram crucificados. A história da ressurreição é poderosamente autenticada pela preferência dos apóstolos de morrer a repudiar a verdade do seu testemunho. As pessoas podem optar por mentir quando conveniente, mas aqueles homens alegremente sacrificariam a vida a fim de perpetuar conscientemente um engano? Nenhum dos apóstolos negou o que tinham testemunhado: a morte, o sepultamento e a ressurreição de Cristo. Nenhum deles deu as costas para o testemunho, ou voltou-se contra seu relato pessoal da ressurreição de Cristo. Eles preferiram selar sua pregação com o próprio sangue.), “...Pedro, e Tiago, e João, e André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelote, e Judas, irmão de Tiago...” (Aqui está a lista dos apóstolos remanescentes, agora reduzida a onze após a tragédia da traição de Judas Iscariotes. É interessante notar que Lucas cita os nomes em pares, como também faz em seu Evangelho, refletindo a prática dos apóstolos de trabalharem em duplas, como Jesus os enviou em Lucas 10:1 — “Designou outros setenta e os mandou de dois em dois”. E o nome “Simão, o Zelote” (Simon ho Zelotēs) indica seu passado ligado ao grupo dos zelotes, uma facção judaica revolucionária. Deus chama gente de todo tipo, até de contextos radicais, e transforma em apóstolos do amor e da paz.).

Atos 1:14 “Todos estes perseveravam unanimemente...” (Aqui está algo maravilhoso e poderoso. A palavra para “perseveravam” é proskartereō, que significa manter-se firme, constante, com dedicação incansável. Não era uma oração ocasional, nem algo esporádico. Era insistente, contínua. E o termo “unanimemente” vem de homothymadon, uma palavra muito bonita que significa “de um só ânimo”, “com o mesmo coração”, “com uma só paixão”. Essa palavra é uma referência às pessoas que pensam e sentem da mesma maneira a respeito de todas as coisas, mas àqueles que deixam de lado sentimentos pessoais e comprometem-se com uma única tarefa — nesse caso, com o testemunho aos outros acerca do Senhor Jesus Cristo (Rm 15.5,6). Jesus disse que o mundo saberia que Ele havia sido enviado pelo Pai celestial quando testemunhasse o amor entre os cristãos (Jo 17-21). A unidade entre os cristãos descrita em Atos era uma demonstração desse amor. Maria, mãe de Jesus, recebe um reconhecimento especial no grupo. Na cruz, Jesus disse a João que tomasse conta de sua mãe (Jo 19.25-27). Eles estavam absolutamente unidos, sem divisões, sem murmurações, sem discussões sobre quem seria o maior. O que os unia? A obediência, a fé na promessa, e a expectativa ardente do cumprimento do que Jesus lhes havia dito.) “...em oração e súplicas...” (E não era uma oração seca, mecânica. O texto diz oração e súplicas — ou seja, proseuchē (oração reverente, devocional) e deēsis (súplica intensa, clamor, petição fervorosa). Eles estavam prostrados diante de Deus, chorando, clamando, buscando intensamente.), “...com as mulheres...” (Aqui vemos algo revolucionário para aquele tempo. As mulheres estão incluídas no mesmo ambiente de busca, de oração, de espera pela promessa. Elas não são coadjuvantes na história do Reino. São parte ativa, participantes plenas do mover de Deus. Isso inclui, sem dúvida, Maria Madalena, Joana, Maria, mãe de Tiago, e muitas outras que já acompanhavam Jesus desde a Galileia, como vemos em Lucas 8:2-3.), “...e Maria, mãe de Jesus...” (Aqui aparece, pela última vez no Novo Testamento, Maria, a mãe de Jesus. E note bem: ela não está sendo adorada, nem entronizada, nem servindo como mediadora. Ela está em oração, como qualquer outro discípulo, aguardando a mesma promessa, dependendo da mesma graça, esperando ser cheia do mesmo Espírito. Isso nos ensina que, diante de Deus, todos somos igualmente necessitados e dependentes.), “...e com seus irmãos...” (Sim, os irmãos de Jesus — “adelphoi”, no grego — estão aqui. Aqueles que antes não criam nEle (João 7:5), agora estão firmes na fé. A ressurreição mudou tudo. Aquele que era apenas o irmão na carne, agora é reconhecido por eles como Senhor, Salvador, Messias. Isso é poderoso! A graça de Deus alcança até os mais próximos que, por muito tempo, resistiram em crer.).

A Proposta de Pedro para a Substituição de Judas (Atos 1:15-26)

Atos 1:15 “E naqueles dias, levantando-se Pedro...” (Pedro, como sempre, se destaca como líder entre os discípulos. A expressão “levantando-se” vem do grego “anistēmi”, que dá a ideia de erguer-se em pé, colocar-se de pé diante dos outros para falar. Isso mostra que Pedro assume aqui a posição de liderança natural, não por imposição, mas porque era reconhecido pelos irmãos, e porque, de certa forma, Jesus já o havia preparado para isso, como vemos em João 21:15-17, quando o Senhor lhe diz: “Apascenta as minhas ovelhas.”), “...no meio dos discípulos...” (Eles estão reunidos no cenáculo, em oração, em espera, mas também atentos às necessidades que surgem. Note que a comunhão deles não é passiva; eles estão atentos, preparados, sensíveis à direção de Deus.), “(ora, a multidão junta era de quase cento e vinte pessoas)” (Perceba o crescimento! Não são apenas os onze apóstolos. Aqui já temos cerca de hekaton eikosi — 120 discípulos. Isso é significativo. No judaísmo, para se constituir uma sinagoga, era necessário o mínimo de dez homens adultos. Aqui, esse número é multiplicado por doze, simbolizando que Deus está preparando uma nova comunidade, o embrião da Igreja, que em breve será cheia do Espírito e se expandirá ao mundo inteiro.), “...disse:...” (Pedro agora vai falar. E quando Pedro fala, a comunidade escuta. Isso mostra que, embora a liderança seja compartilhada, ela também é reconhecida. Há honra, há respeito, há ordem no meio do povo de Deus.). “”

“Varões irmãos, convinha que se cumprisse a Escritura...” (Pedro não age por conta própria, nem segundo sua intuição. Ele fundamenta sua fala na Escritura. A palavra “convinha” aqui tem a ideia de dei, no grego, que significa “é necessário”, “é inevitável”, “deve acontecer”. Ou seja, os acontecimentos em torno de Judas não foram um acidente, nem uma surpresa. Eles estavam dentro do plano soberano de Deus e já haviam sido profetizados.), “...que o Espírito Santo predisse pela boca de Davi...” (Veja como Pedro entende as Escrituras: não são apenas palavras humanas. O Espírito Santo falou pela boca de Davi. Isso confirma a inspiração divina das Escrituras. Elas não são apenas registros históricos, mas a voz do próprio Deus falando por meio de homens.), “...acerca de Judas...” (Aqui Pedro toca no assunto que todos provavelmente estavam evitando, mas que precisava ser enfrentado. Judas. A tragédia da sua traição. A sombra que pairava sobre aquele grupo. Mas Pedro não ignora. Ele encara. E faz isso com base na Palavra.), “...que foi o guia daqueles que prenderam a Jesus...” (Judas não foi apenas um traidor. Ele foi “hodēgos”, um guia, alguém que conduziu os soldados até Jesus no Getsêmani, cf. Mateus 26:47-50, Marcos 14:43-46, Lucas 22:47-48, João 18:2-5. Isso agrava sua culpa, porque não foi uma traição à distância, mas pessoal, direta, consciente.).

Atos 1:17 “Porque foi contado conosco...” (Judas fazia parte do grupo. A palavra kategērēmenos indica que ele foi numerado, contado entre os doze. Ele viveu, caminhou, ouviu, participou de tudo. Isso torna sua queda ainda mais dolorosa.), “...e alcançou sorte neste ministério...” (Ele recebeu uma porção — klēros, uma parte, um quinhão — no ministério dos apóstolos. E aqui a palavra diakonia — ministério — revela que Judas, mesmo sabendo quem era Jesus, mesmo tendo visto seus milagres, mesmo tendo participado da missão, escolheu, no final, entregar o Mestre. Isso nos ensina que ninguém está livre da apostasia, da queda, se não guardar o coração e permanecer na fé.).

Atos 1:18 “Ora, este adquiriu um campo com o galardão da iniquidade...” (O dinheiro da traição — trinta moedas de prata — acabou servindo para comprar um campo. Não diretamente por Judas, mas pelos sacerdotes, como relata Mateus 27:7. Mesmo assim, é atribuído a ele, porque foi fruto de sua traição.), “...e, precipitando-se, rebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram.” (Aqui Lucas descreve o fim trágico de Judas. Diferente de Mateus, que fala de enforcamento, aqui a ênfase está nas consequências físicas da sua morte — possivelmente o corpo pendurado se rompeu, inchou, caiu, ou foi encontrado em decomposição. O fato é que seu fim foi repulsivo, grotesco, como reflexo externo do que já havia acontecido internamente em sua alma — corrupção, perdição, morte espiritual. A palavra prēnēs usada aqui, “precipitando-se”, traz a ideia de alguém que cai de cabeça, de frente, num tom de desespero absoluto.).

Atos 1:19 “E foi notório a todos os que habitam em Jerusalém...” (O que aconteceu com Judas não ficou escondido. Tornou-se público, um escândalo conhecido por todos.), “...de maneira que na sua própria língua esse campo se chama Aceldama, isto é, Campo de Sangue.)” (O nome Hakeldamach, do aramaico, significa exatamente isso: Campo de Sangue. Um nome sombrio, que perpetua o que Judas fez e o seu destino final. O local virou um lembrete público da tragédia de rejeitar e trair o Salvador.).

Atos 1:20 “Porque no livro dos Salmos está escrito: Fique deserta a sua habitação, e não haja quem nela habite...” (Pedro cita aqui o Salmo 69:25. A palavra “habitação” vem de epaulēs, que significa morada, lugar de descanso. É uma profecia da desolação, do vazio que se abate sobre quem rejeita a Deus.), “...e: Tome outro o seu bispado.” (Aqui ele cita o Salmo 109:8. A palavra “bispado” é episkopē, que significa supervisão, cargo de liderança, responsabilidade espiritual. Isso nos mostra que os apóstolos não eram apenas testemunhas, mas também pastores, líderes, supervisores do povo de Deus. Judas perdeu seu lugar, e alguém deveria tomar essa função, não por honra, mas por encargo, por missão divina.).

Atos 1:21 “É necessário, pois...” (A mesma palavra forte de antes: dei — é necessário, é indispensável.), “...que, dos varões que conviveram conosco todo o tempo...” (Pedro estabelece aqui um critério claro: não é qualquer um que pode ser apóstolo. Tem que ser alguém que caminhou com Jesus, que foi testemunha ocular, que viu, ouviu, viveu tudo desde o início.), “...em que o Senhor Jesus entrou e saiu entre nós...” (Ou seja, desde o começo do ministério de Jesus até a sua ascensão. Alguém que tenha estado presente e acompanhado todo o percurso.). 

Atos 1:22 “...começando desde o batismo de João...” (Desde quando Jesus foi batizado no Jordão, quando os céus se abriram e o Pai declarou: “Este é o meu Filho amado” (Mateus 3:17). O apóstolo precisava ter presenciado desde o início da revelação pública do Messias.), “...até ao dia em que dentre nós foi recebido em cima...” (Ou seja, até a ascensão, aquele momento em que os discípulos viram Jesus sendo levado às nuvens.), “...um deles se faça connosco testemunha da sua ressurreição.” (Martys tēs anastaseōs — testemunha da ressurreição. Esse é o ponto central. Ser apóstolo não era ser simplesmente um líder; era ser alguém que pudesse afirmar, com toda autoridade, que viu o Cristo ressuscitado. A ressurreição é o coração da fé cristã.).

Atos 1:23 “E apresentaram dois: José, chamado Barsabás, que tinha por sobrenome Justo, e Matias.” (Dois homens são apresentados, ambos cumprindo os critérios. José, chamado Barsabbas — que significa “filho do sábado” ou “filho da promessa” —, também conhecido como Justo, e Matias. Sabemos pouco sobre eles além disso, mas ambos eram discípulos fiéis, constantes, homens que caminharam com Jesus durante todo o ministério terreno.)

Atos 1:24 “...e, orando, disseram: Tu, Senhor, conhecedor dos corações de todos...” (Aqui eles reconhecem que, por mais que os homens olhem a aparência, só Deus vê o coração. Há aqui uma beleza literária muito grande, que é perdida em muitas traduções. Versões populares, que tendem a não seguir uma tradução mais literal e, portanto, fiel ao texto original, tendem a traduzir esse versículo como: “Ó Senhor, tu conheces cada coração” (NLT), “Senhor, tu conheces o coração de todos.” (NVI), “Tu, Senhor, que conheces o coração de todos os homens” (KJV), “Senhor, tu sabes como cada um é!” (CEV), “Senhor, tu conheces os pensamentos de todos...” (GNB). A palavra usada originalmente por Lucas é kardiognōstēs — literalmente “conhecedor dos corações”. Essa distinção é importante, porque mencionar apenas o verbo “conhecer” não implica no mesmo que o adjetivo “conhecedor”, pois este último transmite a ideia de que o sujeito da frase (Deus) conhece absolutamente tudo sobre cada um de nós. Voltando ao trecho bíblico analisado, Os apóstolos não fazem uma eleição democrática, nem votam. Eles se colocam diante de Deus e dizem: “Senhor, tu sabes quem deve ser”.), “...mostra qual destes dois tens escolhido...” (Eles entendem que a escolha não é deles, mas de Deus. Eles não estão decidindo quem eles querem, mas buscando quem Deus já escolheu desde a eternidade.),

Atos 1:25 “...para que tome a parte deste ministério e apostolado...” (Do original grego “diakonia kai apostolē” — com a ideia de“serviço e envio”. O ministério é serviço; o apostolado é missão. A vida apostólica é uma vida de serviço abnegado e de testemunho fiel.), “...de que Judas se desviou, para ir para o seu próprio lugar.” (Uma expressão terrível. Judas se desviou — parebē, desviou-se do caminho, transgrediu, abandonou — e foi para o seu topos idios, seu “próprio lugar”. Um eufemismo sombrio, indicando seu destino final: perdição, separação eterna de Deus.).

Atos 1:26 “E lançaram sortes sobre eles...” (Era um costume dos judeus determinar o conhecimento da vontade de Deus em certas questões mediante esse método, como o Urim e o Tumim. A prática de lançar sortes, klēros, era comum no Antigo Testamento para tomar decisões baseadas na vontade divina, como vemos, por exemplo, na divisão da terra de Israel em Josué 18. Não era jogo de azar; era uma prática reverente, acompanhada de oração, crendo que Deus guiaria o resultado.), “...e caiu a sorte sobre Matias, e por voto comum foi contado com os onze apóstolos.” (Matias é escolhido. A palavra synkatēphisthē — foi contado, foi incluído oficialmente — marca sua entrada no colégio apostólico, restaurando novamente o número doze, que simboliza a plenitude do povo de Deus, as doze tribos, agora representadas na nova aliança pelos doze apóstolos.).

Índice: Atos 1 Atos 2 Atos 3 Atos 4 Atos 5 Atos 6 Atos 7 Atos 8 Atos 9 Atos 10 Atos 11 Atos 12 Atos 13 Atos 14 Atos 15 Atos 16 Atos 17 Atos 18 Atos 19 Atos 20 Atos 21 Atos 22 Atos 23 Atos 24 Atos 25 Atos 26 Atos 27 Atos 28

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