Estudo sobre Atos 1:7-8

Estudo sobre Atos 1:7-8


Por essa razão, a resposta de Jesus aos apóstolos também não contém qualquer conotação de crítica ou repreensão das expectativas em si. Ele somente declara: “Não vos compete conhecer tempos e prazos13 que o Pai fixou por sua própria autoridade.”

“Tempos e prazos” é somente Deus quem estabelece. E justamente agora Deus está em vias de introduzir um “tempo” completamente novo, o tempo da “igreja”. Deus deseja dar um presente muito precioso a seu Filho obediente depois que Este consumou a obra da redenção: o presente do “corpo”. Jesus não deve ser apenas o Rei de Israel, e não somente o Senhor e Juiz do mundo, mas também a cabeça do corpo.14 Esse corpo é convocado entre as fileiras de Israel e sobretudo das nações. Por isso a efusão do Espírito não significa a irrupção imediata do reino, mas “recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas”. Começa a missão, a evangelização para a construção do corpo de Cristo. Para isso há necessidade de “poder”. Porém não bastam o poder do intelecto, da vontade humana, da retórica. “Poder do Espírito que desce sobre vós”: somente por meio dele é possível desincumbir-se dessa tarefa. Com ele, os apóstolos serão as “testemunhas” eficazes de Jesus. Prestemos muita atenção no teor das palavras. Não está escrito “deveis”. Por meio do Espírito Santo somos retirados da esfera da “lei”, das meras exigências, e incluídos no espaço dos acontecimentos factuais. Pois o Espírito atua em nós e age dentro de nós e através de nós.

Ele nos transforma em testemunhas. Conhecemos o termo “testemunha” do linguajar jurídico. Num processo judicial são interrogadas testemunhas. Não lhes cabe externar sua opinião, nem relatar seus pensamentos, mas – exatamente como fazem os apóstolos (At 4.20) – “falar das coisas que viram e ouviram”. As testemunhas estabelecem o que aconteceu na realidade. Por isso agora os apóstolos, conforme os v. 21ss, já podiam ser testemunhas de Jesus. No entanto, como se trata de realidades invisíveis, divinas, não bastam todos os testemunhos humanos para convencer o próximo dos fatos. Somente o poder do Espírito Santo pode atestar o testemunho de Jesus de forma que atinja a consciência da pessoa e ela creia ou se rebele contra a verdade, que já não pode ser negada. Ou seja, acontece o que João nos transmitiu usando palavras de Jesus: o Espírito da verdade “não falará de si mesmo”, ele “me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16.13s). Os apóstolos não recebem do Espírito novos ensinamentos misteriosos, mas o testemunho eficaz de Jesus. Não dirão nada diferente do que testemunham desde já (v. 21s), mas falarão de “outro modo”, da forma sensibilizadora como Lucas nos mostrará logo adiante no cap. 2. Ademais, o termo grego para “testemunha” = “martys” nos lembra que justamente esse testemunho que atinge o coração é que conduz os mensageiros ao sofrimento, e ele somente pode ser prestado mediante o sofrimento (At 9.16!).


Esse serviço de testemunho se desdobrará de forma crescente: Jerusalém – Judéia – Samaria – todo o mundo. Esse é simultaneamente o plano da obra que Lucas começa a escrever. Durante longos capítulos ele nos manterá em Jerusalém; depois ele passa ao grande avivamento na Samaria, e, na sequência, à conversão de Paulo, com o qual viajaremos até Roma. Com a expressão “até os confins da terra” Jesus acolhe o anúncio profético e a promessa divina de Is 49.6 nele contida. Na visão de Lucas, a promessa não registra seu primeiro cumprimento somente depois que Paulo de fato alcança a Espanha (Rm 15.23s), mas já quando Paulo anuncia o evangelho em Roma, pois esta domina os confins da terra. Tudo isso, porém, não se realiza de acordo com uma inteligente “estratégia missionária”, elaborada pelos apóstolos. Lucas há de nos mostrar muito claramente como isto “sucede”, justamente também através daquilo que não parece ser nada mais que empecilho e obstrução. Tudo acontece de acordo com o plano cuja base Jesus está comunicando aos apóstolos.

Nós, contudo, não podemos olhar retrospectivamente para aquilo que Atos dos Apóstolos nos descreve como sendo uma história distante e concluída, que pode ser “contemplada” de maneira serena e edificante. Essa história continua e nos envolve pessoalmente em seu desenrolar, requisitando nossa oração, nossa contribuição e nosso empenho pessoal. De acordo com a providência de Deus, o “fim da terra” se dilatou cada vez mais, quanto mais globalmente vínhamos a conhecer o mundo. Ele foi alcançado e, por outro lado, ainda não alcançado de acordo com a ordem de Jesus. Mt 24.14 foi cumprido e ainda não cumprido definitivamente. Por conseguinte, ainda nos encontramos nesses “tempos e prazos”, nessa era da convocação do corpo de Cristo, nesse serviço de testemunhas “até o fim da terra”. Somente compreenderemos a “igreja” e sua história, suas tarefas e suas promessas quando compreendermos essa verdade. Também no nosso caso não se trata de nosso próprio querer, de nossos próprios pensamentos, interesses e planos. Também hoje toda “missão” e “evangelização” ainda está enraizada na majestosa palavra do próprio Senhor, que constitui ao mesmo tempo uma ordem e uma promessa: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém e na Judéia e Samaria, e até o fim da terra.” E também nós somente cumpriremos o sentido de nosso serviço se compreendermos sempre que nisso tudo há somente um único fato realmente decisivo: o poder do Espírito Santo que veio sobre nós.


Notas:
13 A língua grega conhecia dois termos bem distintos para “tempo”: um deles, “chronos”, refere-se ao curso normal do tempo, e o outro, “kairós”, ao tempo especial, fazedor de história. G. Stählin oferece uma bela tradução para esse versículo: “espaços de tempo e horas de Deus”.

14 Por isso deveríamos falar de Jesus não somente como o “Senhor da igreja”. Juntamente com seu corpo (e, em vista disso, conosco, os membros do corpo), Jesus se encontra num relacionamento bem diferente, precioso, sobre o qual deveríamos nos alegrar com profunda gratidão.