Estudo sobre Atos 1:9-10

Estudo sobre Atos 1:9-10


Às últimas instruções aos apóstolos segue-se imediatamente a despedida. Os discípulos veem como Jesus é “erguido”. Na sequência, porém, uma “nuvem” oculta tudo de seus olhares.

Essa “ascensão” de Jesus causou dificuldades especialmente grandes, em termos de visão de mundo, às pessoas modernas. Será que não está baseada na concepção típica à Antiguidade de que a abóbada celeste acima do disco da terra é o local da habitação de Deus? Nós, porém, já conhecemos a terra como esfera que gira em torno do sol, o sol como estrela isolada no gigantesco sistema da Via Láctea, e esse sistema como uma ilha de estrelas entre inúmeras outras no universo! Como pode ser possível que Jesus “subiu ao céu”? Não seria tudo isso uma “mitologia”, que se tornou inaceitável para as pessoas de hoje?

Contudo, quem “desmitologiza”15 nesse ponto precisa responder à pergunta: Onde está agora “esse Jesus”, se conhecê-lo e amá-lo, confiar nele e obedecer-lhe perfaz todo nosso “cristianismo”? O testemunho nítido dos discípulos é que depois da Páscoa ele inicialmente ainda esteve junto deles, aparecendo à vista deles. Esse “ver”, porém, acabou. Jesus “subiu” diante deles. É assim que Lucas o expressa nos v. 10 e 11. Essa tradução singela é intencional. Para onde ele foi? Somente podemos responder com Lucas: Ele foi “elevado”, “erguido” para junto de Deus. Tanto Lutero quanto G. Tersteegen já tinham consciência de que isso não é um local geográfico no espaço planetário ou galáctico,16 mas significa que “Deus está presente…” preenchendo todos os lugares e estando perto de nós. Personagens bíblicos, como Paulo e Lucas, não teriam essa noção também? Eles já não liam no AT: “Eis que os céus e até o céu dos céus não te podem conter” (1Rs 8.27)? Isso não quer dizer que os autores bíblicos “localizaram” a Deus em qualquer lugar do universo. Deus, com sua poderosa “direita”, está em todos os lugares em que deseja estar e atuar. A “ascensão”, a “elevação” de Jesus representa a “exaltação à destra de Deus” (cf. At 2.33-36), porém isso não expressa outra coisa senão que desse modo Jesus se torna participante dessa forma divina de ser e atuar. Na verdade, desse modo Jesus não está mais direta e visivelmente “presente” entre os discípulos. Porém os apóstolos sabiam muito bem que seu Senhor estava próximo e atuante: At 2.47; 3.13; 4.10; 4.30; 9.5; 22.17-21! E se ele está atualmente oculto aos olhos dos discípulos, o contrário não acontece: Ap 2.2; 2.9,13-19; etc. Como acontecimento, a ascensão é descrita por Lucas, mas como fato da “exaltação” de Jesus, é testemunhada em todo NT: Rm 8.34; Ef 1.20; Fp 2.9; 1Tm 3.16; 1Pe 3.22; Hb 1.3.


Ao mesmo tempo, porém, a situação é tal que nem sequer podemos evitar que essas realidades divinas sejam expressas com metáforas de espaço, que sempre constituíram o único recurso para expressá-la. Será que até mesmo o físico moderno, quando pensa em Deus, poderá deixar de “levantar os olhos” ao céu e procurar a Deus “nas alturas”? De sua parte, Lucas tomou o cuidado, em sua descrição, de excluir tudo o que de fato é “mítico”! Fê-lo de um modo que teríamos de admirar se não fosse simplesmente a maneira em que se expressava a fé genuinamente bíblica. Não encontramos uma única palavra de ilustração fantasiosa! Quem conhece a literatura correspondente da Antiguidade (incluindo vários escritos do âmbito da igreja antiga) e considera o anseio do coração humano ávido por fatos miraculosos, pode aquilatar integralmente a casta contenção do presente trecho.17 Aqui, como em outras ocasiões na Bíblia, a “nuvem” não é uma constelação atmosférica, mas expressão do encobrimento que Deus confere à Sua ação misteriosa.18 Jesus é retirado de uma ligação, ainda existente, com o espaço terreno. É justamente por isso que as testemunhas do NT não podiam pensar na mera elevação dentro desse espaço. Trata-se do caminho para a “altitude” junto de Deus, que é inconcebível para os seres humanos e fica encoberto pela “nuvem” aos olhares dos discípulos.

Também é um traço tipicamente bíblico não dar a menor informação sobre o sentimento íntimo dos discípulos nesse evento tão inaudito quando incisivo. Importantes são os atos e fatos divinos, não nosso sentimento diante deles. A exposição de Lucas chega a ser quase assustadoramente sóbria.

O envolvimento íntimo dos apóstolos somente fica claro no fato de que “incessantemente continuam olhando para o céu”.19 Contudo, um chamado objetivo os tira também dessa atitude. Por meio da expressão bíblica muito frequente “Eis”, nossos olhares, bem como os dos apóstolos, são desviados do “céu”, porque dois emissários do céu subitamente estão do lado dos apóstolos e os interpelam.20


Notas:
15 Por meio dos esforços de R. Bultmann, a desmitologização se tornou um bordão teológico muito controvertido. Bultmann tinha em consideração o ser humano moderno, para quem a “Ascensão” de Jesus e muitas outras coisas na Bíblia têm um aspecto “mítico”, refém da antiga visão mágica do mundo. Bultmann visava soltar a “verdadeira” mensagem do NT dessa amarração, “desmitologizá-la”, tornando assim seu cerne novamente acessível ao ser humano de hoje. Quanto ao nosso posicionamento, veja o comentário.

16 Galáctico é o termo técnico da astronomia para o sistema da Via Láctea.

17 Esse é o modo bíblico de expressão, que leva a sério a realidade do Deus santo e vivo, motivo pelo qual se limita às alusões mais sucintas possíveis, quando informa acerca de Deus e de acontecimentos divinos. Cf. Êx 3.2; 24.9s; 33.17-23, mas também Mt 1.18; Lc 1.26-35 ou os relatos da ressurreição do Senhor.

18 Cf. Êx 16.10; 24.15; 40.34; 13.21; Dt 33.26; Sl 97.2; Sl 104.3; Is 1.4; Dn 7.13; Mt 17.5; 1Co 10.1,2; 1Ts 4.17; Ap 14.14.

19 Como no v. 2 a palavra “por intermédio do Espírito Santo”, aqui a palavra “para o céu” está posicionada de tal maneira que pertence simultaneamente a duas afirmações, à que fala dos discípulos olhando para o alto, e à que se refere ao Senhor que se afasta. A tradução deveria fazer todo o esforço para deixar essa dupla relação clara: “ao qual Jesus subia”.

20 Trata-se de dois ”varões”, “vestidos de branco”. Cf. Mt 28.2s; Mc 16.5; Lc 24.4; Jo 20.12. Como, afinal, nos veio a ideia de retratar “anjos” simplesmente como “mulheres” ou “moças”? Será que por trás disso está uma desmasculinização do cristianismo, que por sua vez contribuiu para que os homens passassem para segundo plano em nossa vida eclesial?