† ΑΩ (Primeiro e Último) – Dicionário Teológico Grego do Novo Testamento
(→ πρῶτος, ἔσχατος)
A justaposição das duas extremidades do alfabeto grego – ἄλφα (álpha, “alfa”) e ὦ (ō, “ômega”) – é uma construção simbólica singular encontrada exclusivamente no Apocalipse de João, no Novo Testamento. Essa fórmula é proferida nos lábios de Deus em Apocalipse 1:8: “ἐγὼ τὸ ἄλφα καὶ τὸ ὦ, ἡ ἀρχὴ καὶ τὸ τέλος” (egō to álpha kai to ō, hē archē kai to télos, “Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim”), repetida em 21:6 com a mesma formulação. Em 22:13, essa expressão é posta nos lábios do próprio Cristo: “ἐγὼ τὸ ἄλφα καὶ τὸ ὦ, ὁ πρῶτος καὶ ὁ ἔσχατος, ἡ ἀρχὴ καὶ τὸ τέλος” (egō to álpha kai to ō, ho prōtos kai ho éskhatos, hē archē kai to télos, “Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o princípio e o fim”).
Adicionalmente, o título cristológico que se associa semanticamente ao Alfa e Ômega também aparece aplicado a Cristo em Apocalipse 1:17: “ἐγώ εἰμι ὁ πρῶτος καὶ ὁ ἔσχατος καὶ ὁ ζῶν” (egō eimi ho prōtos kai ho éskhatos kai ho zōn, “Eu sou o primeiro e o último, e o vivente”), e em 2:8: “τάδε λέγει ὁ πρῶτος καὶ ὁ ἔσχατος” (táde légei ho prōtos kai ho éskhatos, “Assim diz o primeiro e o último”). A fórmula Alfa–Ômega se encontra assim inseparavelmente ligada aos pares ἀρχή/τέλος (archē/télos, “princípio/fim”) e πρῶτος/ἔσχατος (prōtos/éskhatos, “primeiro/último”), os quais delimitam claramente seu valor semântico. O uso desses termos define Cristo (e Deus) como aquele que é simultaneamente o iniciador e o consumador da realidade cósmica: o Criador e o Telos da história, o princípio absoluto de onde tudo provém e o destino último a que tudo converge (cf. Rm 11:36).
A natureza simbólica do uso alfabético de ἄλφα e ὦ pode ter raízes nas especulações helenísticas mais amplas, as quais influenciaram o pensamento judeu do período do Segundo Templo, especialmente em sua vertente apocalíptica. É possível que ecos dessas especulações tenham chegado ao autor do Apocalipse por via direta, através do ambiente sincrético da Ásia Menor, ou, mais provavelmente, como sugerem alguns estudiosos, por mediação do judaísmo palestinense helenizado. Apesar dessa possível origem, o autor do Apocalipse parece desprovido de qualquer compromisso mais explícito com o conteúdo metafísico desses sistemas especulativos – como, por exemplo, os predicados atribuídos ao “Deus-Eon” (Θεὸς Αἰών) nas correntes gnósticas posteriores. Em seu texto, ἄλφα καὶ ὦ (álpha kai ō, “alfa e ômega”) funciona sobretudo como um recurso retórico-teológico poderoso e memorável, que retoma e reformula o arcabouço veterotestamentário representado na fórmula πρῶτος καὶ ἔσχατος, conferindo-lhe um novo contorno cristológico e escatológico.
Essa reaplicação do simbolismo veterotestamentário é profundamente coerente com a teologia joanina do Apocalipse, que entende a identidade de Cristo como plenamente partícipe da majestade divina descrita pelos profetas. O uso paralelo de “ὁ πρῶτος καὶ ὁ ἔσχατος” (ho prōtos kai ho éskhatos) nos profetas, especialmente em Isaías, oferece o pano de fundo veterotestamentário para essa apropriação cristológica. Isaías 41:4 (LXX) afirma: “ἐγὼ θεὸς πρῶτος, καὶ εἰς τὰ ἐπερχόμενα ἐγώ εἰμι” (egō theòs prōtos, kai eis ta eperkhómena egō eimi, “Eu sou Deus, o primeiro, e nas coisas vindouras também sou eu”); Isaías 44:6, no texto massorético, afirma: “אני ראשון ואני אחרון ומבלעדי אין אלהים” (’ănî rîʾšôn wăʾănî ’aḥărôn ûmibbălāʿdāy ’ên ʾĕlōhîm, “Eu sou o primeiro e Eu sou o último, e fora de mim não há Deus”); enquanto a LXX traduz: “ἐγώ εἰμι πρῶτος καὶ ἐγώ εἰμι εἰς τὸν αἰῶνα” (egō eimi prōtos kai egō eimi eis tòn aiōna, “Eu sou o primeiro e Eu sou para sempre”).
Apesar de a Septuaginta utilizar πρῶτος (prōtos), ela evita aplicar ἔσχατος (éskhatos) diretamente a Deus, optando antes por paráfrases que suavizam essa identificação. O autor do Apocalipse, no entanto, retorna decididamente ao texto hebraico original, afirmando de maneira inequívoca que tanto Deus quanto Cristo são simultaneamente o primeiro e o último (cf. Schlatter). Esse retorno se alinha também com a tradição rabínica, na qual Isaías 44:6 é frequentemente citado em contextos relacionados à simbolização numérica e alfabética.
Reitzenstein observa paralelos na literatura mandeísta, como em Lidzbarski, Liturgien, p. 130s: “Tu és o primeiro, Tu és o último. Tu és aquele que virá”. Ainda que tais semelhanças possam ser notadas, o recurso a essa literatura é desnecessário para se compreender o uso do símbolo ἄλφα–ὦ, dado o claro vínculo com os textos proféticos do Antigo Testamento. Ademais, a forma literal da afirmação mandeísta, especialmente a referência a “aquele que virá”, parece derivar da formulação cristã da expectativa escatológica, particularmente da expressão “ὁ ἦν καὶ ὁ ἐρχόμενος” (ho ēn kai ho erkhómenos, “aquele que era e aquele que há de vir”), que, por sua vez, é uma extensão cristológica do nome divino veterotestamentário “ὁ ὤν” (ho ōn, “aquele que é”, cf. Êx 3:14 na LXX). Essa vinculação com a parusia confere uma qualidade dinâmica à concepção cristã de Deus e do Cristo glorificado, indo além da noção de eternidade estática, ao enfatizar o vir-a-ser escatológico e a conclusão da história em Cristo.
A expressão ὁ πρῶτος καὶ ὁ ἔσχατος (ho prōtos kai ho éskhatos, “o primeiro e o último”) é de fato uma fórmula veterotestamentária, mas o uso específico das letras alfabéticas como representação dessas categorias é inédito no Antigo Testamento. O profeta Isaías, especialmente nos capítulos de teor mais teológico e escatológico, apresenta declarações divinas como: “אני ראשון ואני אחרון ומבלעדי אין אלהים” (’ănî rîʾšôn wăʾănî ’aḥărôn ûmibbălāʿdāy ’ên ʾĕlōhîm, “Eu sou o primeiro e o último, e fora de mim não há Deus” – Is 44:6), o que na LXX torna-se: “ἐγώ εἰμι πρῶτος καὶ ἐγώ εἰμι εἰς τὸν αἰῶνα” (egō eimi prōtos kai egō eimi eis tòn aiōna, “Eu sou o primeiro e eu sou para sempre”). Curiosamente, a Septuaginta evita a palavra ἔσχατος (éskhatos, “último”) nos contextos aplicados a Deus, optando por perífrases como “εἰς τὸν αἰῶνα” (eis tòn aiōna, “para sempre”), indicando uma reticência tradutiva diante de sua carga semântica finalista.
O autor do Apocalipse, porém, retorna deliberadamente ao modelo hebraico, restaurando o uso pleno de ἔσχατος, o que aponta para uma escolha teológica e exegética consciente. O uso dessa terminologia sugere um contato direto com as tradições judaicas e não apenas com sua versão grega. Essa reapropriação, ao mesmo tempo reverente ao Antigo Testamento e ousadamente cristológica, também encontra paralelo nos escritos rabínicos que citam Isaías 44:6 em relação à simbologia alfabética e numerológica. Ainda que o Apocalipse nunca equipare diretamente Cristo à Torah, como fazem certos textos rabínicos, o emprego das letras do alfabeto como símbolo de totalidade e autoridade suprema é um ponto de convergência.
Reitzenstein, ao apontar para os paralelos mandeístas, como “Tu és o primeiro, Tu és o último, Tu és aquele que há de vir”, propõe uma possível convergência espiritual. Todavia, como já observado, tal aproximação parece secundária e até dependente do uso cristão primário. A expressão “ὁ ἦν καὶ ὁ ἐρχόμενος” (ho ēn kai ho erkhómenos, “aquele que era e aquele que virá”) deve ser lida como extensão do tetragrama e do nome divino revelado a Moisés (Êx 3:14: ἐγώ εἰμι ὁ ὤν – egō eimi ho ōn, “Eu sou o que sou”), agora reinterpretado cristologicamente em chave escatológica. Aqui, o NT carrega um timbre marcadamente dinâmico: o Deus que é princípio e fim não é apenas eterno, mas está vindo, aproximando-se do fim da história.
No que tange à simbologia alfabética, tanto o pensamento helenístico quanto o judaico desenvolveram associações entre letras, números, signos e conceitos metafísicos. A tradição helenística, por exemplo, associava o ciclo diário sagrado de 12 ou 24 horas às 24 letras do alfabeto grego, ligando-as ainda aos 12 signos do zodíaco. Desse modo, surgiam dois sistemas simbólicos principais: um em que 1 e 13, 2 e 14, etc., se relacionavam (por exemplo, carneiro = α/ν, touro = β/ξ); outro em que 1 era ligado ao 24, 2 ao 23, e assim por diante (α/ω, β/ψ etc.). Este último sistema foi utilizado pelo gnóstico Marcos, que aplicava as combinações α/ω, β/ψ, etc., às diversas partes do corpo do pleroma, identificando, por exemplo, cabeça = α/ω, pescoço = β/ψ, como expressão simbólica da ἀλήθεια (alētheia, “verdade”). Este tipo de sistema pretendia representar a totalidade do κόσμος (kósmos, “universo”) ou do αἰών (aiōn, “eon”, “era cósmica”).
Portanto, a aplicação apocalíptica da expressão “ἐγώ εἰμι τὸ ἄλφα καὶ τὸ ὦ” (egō eimi to álpha kai to ō, “eu sou o alfa e o ômega”) pode ser vista como apropriação cristã das prerrogativas atribuídas ao Deus-Eon em contextos helenísticos, mas radicalmente reinterpretada em termos proféticos e cristológicos.
O pensamento rabínico também empregou a simbologia das primeiras e últimas letras em pelo menos quatro formas distintas:
A expressão “guardar a Torá de א até ת” (de alef a tav) indicava obediência integral à Lei. No Talmude Babilônico, b. Shabat 55a, R. Joseph († 333) cita uma tradição tannaita que remonta a séculos anteriores. Como o Apocalipse não associa Cristo diretamente à Torá, tal uso não constitui influência direta.
Em Men. 8,1 ss. e T. Men. 9,5, a palavra “Alpha” (אָפְלאַ) designa um lugar de excelência, rico em azeite, vinho, farinha – provavelmente uma metáfora de plenitude. O fato de a letra grega “alpha” aparecer nesse contexto hebraico indica uma interpenetração cultural, seja pela adoção do alfabeto grego ou pelo contato com interlocutores helenizados.
No século III d.C., surgem os sistemas de cifra Albam e Atbash, onde letras são emparelhadas numericamente (ex. א–ל, ב–מ, ת–כ). Em Albam, por exemplo, 1 = 12 (א = ל), 2 = 13 (ב = מ), etc. Já em Atbash, 1 = 22 (א = ת), 2 = 21 (ב = ש), formando equivalências simétricas. Tais esquemas, usados para memorização ou cifragem, não têm necessariamente conteúdo astrológico, mas apresentam estrutura idêntica aos sistemas astrológicos gregos. A tradição rabínica reconhece sua origem estrangeira, o que sugere sua relação indireta com o mundo helenístico.
Por fim, há a especulação segundo a qual a palavra “verdade” (אֱמֶת – ’emet) é o selo de Deus porque contém a primeira (א), a central (מ) e a última (ת) letras do alfabeto hebraico. Essa ideia é atestada em Gn. R. 81 (sobre Gn 35:1), Ct. R. sobre Ct 1:9, e Sanhedrin 18. Ainda que essa tradição seja tardiamente fixada, é plausível que tenha origens anteriores. O uso da letra “m” como central faz mais sentido no alfabeto grego de 24 letras (em que μ = 12), o que sugere empréstimos de sistemas interpretativos helenistas. A ligação com Isaías 44:6 é, contudo, genuinamente judaica, assim como a conexão entre alfabeto e “verdade”.
O gnóstico Marcos, citado por Irineu (Adversus Haereses I.14–15), usou esse modelo para aplicar a ἀλήθεια (alētheia, “verdade”) os mesmos princípios alfabéticos e numerológicos, e é quase certo que tal uso derivou – direta ou indiretamente – de práticas linguísticas e especulações judaicas e cristãs anteriores.
Conclui-se, portanto, que a simbologia de ἄλφα καὶ ὦ (álpha kai ō) foi incorporada ao imaginário cristão apocalíptico não como mera invenção helenística, mas como desenvolvimento orgânico de uma tradição judaica intensamente marcada pela autoridade dos profetas. O Apocalipse, ao declarar Deus e Cristo como “o Alfa e o Ômega”, retoma Isaías 44:6 em sua forma hebraica original, e o reaplica à pessoa glorificada de Cristo. Em sua pena profética, o símbolo alfabético se transforma numa poderosa proclamação da soberania cósmica e escatológica daquele que é, que era e que há de vir.
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