Ararate — Enciclopédia da Bíblia Online

ARARATE

Ararate designa, no hebraico bíblico, a região ʾărārāṭ, e nunca o nome de um pico específico; o texto bíblico fala em “montanhas de Ararate” (Gênesis 8:4), e não em “Monte Ararate”. Em 2 Reis 19:37 e Isaías 37:38, Ararate é a “terra” para onde fugiram os filhos de Senaqueribe após o parricídio, enquanto Jeremias convoca “os reinos de Ararate, Mini e Asquenaz” contra Babilônia (Jeremias 51:27–28), o que pressupõe um domínio amplo, setentrional à Assíria. A tradição textual antiga registra variações importantes: a Septuaginta verterá Isaías 37:38 por “Armênia”, e a Vulgata traduzirá 2 Reis 19:37 na mesma linha; o livro de Tobias (1:21) fala em “montes de Ararate”. Escritores cristãos antigos, como Eusébio e Jerônimo, entendiam “Ararate” como equivalente à Armênia.

Na documentação cuneiforme, o território é chamado Urarṭu (assírio Uruaṭri; acádio Uraštu), designação geográfica, não étnica, já atestada desde Salmanasar I (século XIII a.E.C.). Os naturais, porém, chamavam-no “terra de Biainili”, daí a forma historiográfica moderna “Reino de Van”. Esse conjunto cobre a alta paisagem em torno do lago Van e suas cadeias, com limites variáveis que ora avançavam a leste, ora a oeste. O uso amplo de “Ararate” na Bíblia é coerente com esse quadro e com o plural “montanhas de Ararate”, sem nomear um cume individual (BARNETT, “Urartu”. In: The Cambridge Ancient History, 1982, pp. 314-371).

A terminologia sofreu mudança do fim do primeiro milênio a.E.C. ao primeiro milênio d.E.C.: após a queda de Urarṭu, elementos populacionais identificados como Arme se mesclaram às populações locais; Dario, o Persa, passa a falar em “Armênia” (c. 520 a.E.C.), nome que perdura, enquanto “Urarṭu/Ararate” é retido em subdivisões do nordeste. Jerônimo ainda observa: “Ararate é uma região na Armênia, sobre o Araxes”. Essa flutuação explica confusões modernas sobre a localização dos “montes de Ararate” de Gênesis 8:4.

A partir dos séculos XI–XII d.E.C., firmou-se uma nova associação terminológica: dentro da subdivisão ararática da Armênia (39°42’ N; 44°18’ E), o grande estratovulcão que os armênios chamavam Masis (Մասիս), os turcos Büyük Ağrı Dağı e os persas Kūh-i Nūḥ (“Monte de Noé”), passou a ser identificado, por tradição, como o local onde a arca aportou, e assim se popularizou a forma moderna “Monte Ararate”, embora essa expressão não ocorra na Escritura. Reivindicações de achados da arca ali carecem de fundamento documental.

Em paralelo e mais antigo está o eixo aramaico-siríaco: versões targúmicas e siríacas de Gênesis 8:4 vertem “montanhas de Qardu”, refletindo a tradição que procurava o local de repouso na orla sul do antigo Ararate, onde os maciços se erguem primeiro da planície mesopotâmica. Escritores gregos e latinos falam em Gordyaea e em povos Kardouchoi; em turco a referência específica tornou-se Cudi Dağı, e em árabe Jabal Jūdī, topônimo que figura no Alcorão (Sura Hūd 11:44). O cume recebeu, em épocas diferentes, mosteiros nestorianos — inclusive o “Claustro da Arca” — e uma mesquita; por séculos, fiéis de diversas confissões subiam anualmente para comemorar o primeiro sacrifício de Noé.

Ararate
Foto do Mosteiro de Khor Virap com o Monte Ararate ao fundo.

A tradição erudita judaico-cristã também preservou variantes onomásticas. Flávio Josefo, citando Nicolau de Damasco, menciona um monte chamado Baris; há quem proponha emenda para Masis, o nome indígena do grande cume armênio. Topônimos correlatos reforçam o imaginário do desembarque: Nakhichevan foi associada à ideia de “primeiro lugar de descida”, e autores antigos registram o grego Apobatērion (“lugar de desembarque”). Entre armênios, circulou ainda a etimologia de “Ararat” a partir de um príncipe Arai (Aray-iarat, “ruína de Arai”), enquanto eruditos do século XIX (Bohlen, Benfey) aventaram a origem sânscrita aryāvarta (“terra sagrada”) — hipótese linguística hoje rara em estudos modernos, que preferem conectar ʾărārāṭ ao assírio Uruarṭu/Uraštu (“Ararat” em Encyclopaedia Iranica).

Quanto ao uso bíblico ampliado, Jeremias associa Ararate a Minni (provavelmente os maneu/maneanos) e a Asquenaz (identificado em fontes clássicas com cita/asquenazes), uma constelação que casa com o quadro militar do início do século VI a.E.C. O mesmo corpus histórico assírio chama o país de Urarṭu, e cronistas registram a fuga dos assassinos de Senaqueribe para “a terra de Ararate”, confirmada em parte pela Crônica Babilônica. Esses paralelos consolidam a equivalência terminológica Ararate/Urarṭu (Biainili) e explicam o plural “montanhas de Ararate” como referência à massa orográfica do planalto armênio.

No trato filológico e histórico, portanto, “Ararate” (ʾărārāṭ) corresponde ao “Urarṭu/Uraštu” das fontes assírias e ao endônimo “Biainili”, enquanto “Masis”, “Büyük Ağrı Dağı” e “Kūh-i Nūḥ” são nomes do grande vulcão hoje identificado popularmente como “Monte Ararate”, e “Jabal Jūdī/Cudi Dağı” preserva a linha siríaca-islâmica para o local de repouso da arca. Em estudos de referência, “Ararat/Urartu” figura como potência montanhosa cujo centro se situou no entorno do lago Van, com uso técnico do termo “Biainili” nas inscrições locais; essa cartografia dos nomes é hoje standard na historiografia do Cáucaso e do norte da Mesopotâmia.

Para robustecer o quadro terminológico com literatura acadêmica recente: a historiografia de Urarṭu no The Cambridge Ancient History descreve a recuperação do nome e do estado urartiano e sua identificação com o bíblico Ararate, destacando o endônimo Biainili e a natureza geográfica do exônimo assírio (cap. “Urartu”). (BARNETT, ibid., 1982, pp. 314-371) Estudos em Antiquity mapeiam as “fortalezas de altitude” do sul do Cáucaso, o que sustenta a leitura de Ararate/Urarṭu como designações regionais montanhosas mais do que um único pico (HAMMER, Highland fortress-polities and their settlement systems in the southern Caucasus, 2014, pp. 757-774). A Encyclopaedia Iranica sintetiza: “Ararat é o mesmo que Urartu”, e a identificação do cume atual como “Monte Ararate” é moderna, devida à lógica devocional de associar o ponto mais alto da região ao desembarque. No eixo aramaico-siríaco e islâmico, leituras e estudos de 11:44 do Alcorão (Sura Hūd) situam o repouso sobre o Jūdī, preservado toponimicamente como Cudi Dağı, em continuidade com as versões aramaicas de Gênesis 8:4 que falam em “montanhas de Qardu”. (Quran.com) Complementarmente, discussões sobre tradições armênias e o uso de Masis/Ağrı Dağı atestam a fixação medieval do cume como “Monte Ararate” nas literaturas ocidentais. (BRYCE, On Armenia and Mount Ararat, 1877-1878, pp. 169-186) Alguns estudos sobre guerra e ritual assírios apontam os enfrentamentos com Urarṭu a partir do século IX a.E.C., corroborando a pertinência histórica das associações bíblicas de Ararate com atores regionais como Maneu e cita/asquenazes (REDE, The image of violence and the violence of the image, 2018).

I. Toponímia bíblica, exegese e filologia

O nome ʾărārāṭ nunca nomeia um cume individual; a forma singular “Monte Ararate” não pertence ao vocabulário escriturístico. Gênesis 8:4 usa o plural “montes”, e outras passagens reforçam a leitura regional: em 2 Reis 19:37 e Isaías 37:38, os parricidas de Senaqueribe “fugiram para a terra de Ararate”, enquanto Jeremias convoca “os reinos de Ararate, Mini e Asquenaz” (Jeremias 51:27–28), o que supõe uma constelação político-militar do início do século VI antes da era comum, quando Urartu, maneus e cita/medos estavam ativos no arco setentrional. As traduções antigas registram variações significativas: a Septuaginta verte Isaías 37:38 como “Ἀρμενία” e a Vulgata traduz 2 Reis 19:37 como “in terram Armeniorum”; o livro de Tobias preserva “às montanhas de Araráth” (Tobias 1:21). Essas opções refletem a equivalência antiga entre “Ararate” e “Armênia” atestada por Eusébio e Jerônimo, e confirmada pelo uso assírio de Uruaṭri/Urartu para o mesmo espaço setentrional. O dossiê reunido pelas inscrições dos reinados de Salmanasar I, Assurnasirpal II, Salmanasar III, Tiglate-Pileser III e Sargão II chama “Urartu” aquilo que em hebraico se lê ʾărārāṭ, e a própria delimitação geográfica mais antiga situa essa “terra” na região do lago Van, entre as cabeceiras do Tigre, ao sul, e o sistema caucasiano, ao norte.

A tradição textual grega e latina confirma, portanto, que se tratava de uma “terra” e de uma cadeia de montanhas. Em Isaías 37:38, edições da Septuaginta apresentam “eles fugiram para a Armênia”, e em 2 Reis 19:37 a Vulgata verte “in terram Armeniorum”; o mesmo conjunto textual inclui variantes gregas antigas (em 2 Reis 19:37, Ἀραράθ; em Isaías 37:38, Ἀρμενία; em Jeremias 51:27, formas como Ἀραρέθ/Ἀρασέθ), e Tobias 1:21 traz explicitamente “εἰς τὰ ὄρη Ἀραράθ”. Essas escolhas traduzem a compreensão antiga de que ʾărārāṭ era um termo geográfico amplo, identificado, em muitas fontes, à Armênia.

Do ponto de vista filológico e exegético, o plural “montes de Ararate” tem implicações claras. Autores eruditos de língua inglesa do século XIX defenderam que o repouso ocorreu em cumes relativamente baixos da cadeia, hipótese que evita supor a permanência da arca em altitudes extremas antes do rebaixamento das águas e contorna objeções geológicas a uma submersão integral do grande vulcão setentrional; essa leitura também propõe solução para a direcionalidade de Gênesis 11:2 (“do oriente” até a planície de Sinear), lembrando que o texto nunca nomeia o ponto preciso do repouso nem impede deslocamentos subsequentes. Nesse mesmo horizonte, estudiosos como Bohlen e Benfey propuseram uma etimologia sânscrita (aryāvarta, “terra sagrada”), hoje residual; a prática filológica moderna, porém, prefere a equivalência ʾărārāṭ ~ Uruaṭri/Uraštu (assírio/acádio) e o endônimo Biainili.

A distribuição geográfica clássica reforça a leitura regional: a terra de ʾărārāṭ/Urartu estendia-se em torno do lago Van, com limites variáveis, e aparece, em sínteses históricas e geográficas, como a porção setentrional da antiga Armênia; inscrições atribuídas a Esar-Hadom registram ainda o alcance do poder assírio no setor de Hanigalbate “na região da Armênia”, enquanto as fontes bíblicas de Jeremias reúnem Ararate, Minni e Asquenaz como reinos convocados, em linha com a constelação político-militar do começo do século VI antes da era comum. Em crítica moderna, capítulos da The Cambridge Ancient History tratam Ararat/Urartu como a mesma realidade histórico-geográfica, com o endônimo Biainili, e explicitam como essas escolhas textuais antigas (“Armênia” na LXX/Vulgata) refletem a equivalência terminológica do período.

As versões aramaicas e siríacas de Gênesis 8:4, por sua vez, usam “Qardu/Kardu”, fazendo convergir exegese e toponímia para a orla meridional do antigo domínio de ʾărārāṭ; a tradição grega e latina fala em Gordiaia/Gordiene, e a memória árabe guarda Jabal Jūdī. Esses dados pertencem ao dossiê filológico do termo e explicam a oscilação de localizações antigas, mesmo quando a equivalência Ararate/Armênia vinga nas traduções da LXX/Vulgata.

Iconografia e fontes cuneiformes/assírias pertinentes. O corpus cuneiforme assírio registra ʾărārāṭ/Urartu desde o século XIII antes da era comum (Uruaṭri), com coalescência política a partir de Arame em Arzashkun e, depois, de Sarduri I em Tuspa; a iconografia régia acompanha esse quadro. As campanhas de Salmanasar III contra Aramu estão figuradas nos célebres portões de bronze de Imgur-Enlil (Balawat), com registros em sequência que mostram não apenas os feitos militares assírios, mas trajes, armas e objetos de valor urartianos apreendidos, um repertório visual indispensável para observar o equipamento e a cultura material do reino setentrional (CURTIS; COLLON; GREEN, British Museum Excavations at Nimrud and Balawat in 1989, pp. 1-37; KING, Brozen Reliefs, 1915, pp. 24s)

Sob Tiglate-Pileser III, a pressão militar dissolveu alianças urartianas e levou o cerco de Tušpa, enquanto Sargão II, em 714 antes da era comum, devastou o território meridional e ocidental de Urartu, capturou Muṣaṣir/Ardini e levou o ídolo de Ḫaldi, com um rol de butim que as fontes fixam em uma tonelada de ouro, dez toneladas de prata, 109 toneladas de bronze e mais de trezentos mil outros itens; esses feitos foram monumentalizados em baixos-relevos no palácio de Dur-Šarrukin (Khorsabad). A narrativa régia associa a derrota à reação desesperada de Rusa de Urartu; embora severamente castigado, o reino conheceu restauração construtiva sob Argishti II e Rusa II. O conjunto iconográfico de Khorsabad e a documentação arqueológica moderna permitem visualizar campanhas, cortejos de espólio e detalhes de indumentária, em consonância com a descrição dos anais. 

Os portões de Balawat — de Assurnasirpal II e de Salmanasar III — e os relevos de Dur-Šarrukin são fontes primárias de primeira ordem para o estudo de campanhas contra Urartu, quer pelas cenas de batalha, quer pela iconografia do “outro” figurada em vestes, penteados, armas e objetos de luxo capturados; reavaliações recentes discutem o circuito de produção e a leitura das faixas de bronze e, no caso de Khorsabad, detalham o programa decorativo que inclui cenas das expedições, com foco na campanha de 714 antes da era comum. Essa documentação visual se cruza com estudos de campo e de arquivo sobre Muṣaṣir/Ardini, ampliando a base para a compreensão do confronto assírio-urartiano.

Em termos de crítica histórica e contextualização bíblica, o mesmo dossiê epigráfico e imagético que nomeia Urartu/ʾărārāṭ ilumina as passagens de 2 Reis 19:37, Isaías 37:38 e Jeremias 51:27–28, situando-as no quadro do século VIII–VI antes da era comum; leituras contemporâneas em língua portuguesa sobre guerra e ritual neoassírios ajudam a perceber como a violência régia e a exibição de espólios e cativos eram partes de um vocabulário político-religioso que os relevos monumentalizam e que coincide com a mobilização de “reinos” setentrionais no horizonte de Jeremias.

Quanto à delicada questão tradutória “Armênia” versus “Ararate”, o conjunto de evidências aconselha distinguir entre equivalência geográfica antiga — legítima para quem traduzia do hebraico ou interpretava o termo sob o Império Aquemênida — e precisão filológica do texto massorético. Por isso, edições que trazem “Ararate” em 2 Reis 19:37/Isaías 37:38 refletem corretamente a forma hebraica, ao passo que testemunhos da LXX/Vulgata sustentam a recepção antiga “Armênia”, que permanece valiosa para a história da interpretação. Com Tobias 1:21, a tradição grega preserva ainda a fórmula “montes de Ararate”, reforçando o caráter plural e regional do topônimo.

A. Outras passagens na Bíblia Hebraica

Além das montanhas, a mesma toponímia ʾărārāṭ aparece quando os filhos de Senaqueribe, Adrameleque e Sarezer, após o parricídio, “fugiram para a terra de Ararate” (2 Reis 19:37; Isaías 37:38), e quando Jeremias convoca “os reinos de Ararate, Mini e Asquenaz” na queda de Babilônia, situando-os no contexto histórico-militar do início do século VI antes da era comum (Jeremias 51:27–28), com Urartu, os maneus e os citas/medos ativos na região; esse quadro coincide com o uso assírio de Uruaṭri/Urartu para o mesmo espaço e com registros sobre a repressão aos assassinos de Senaqueribe por Esar-Hadom em Hanigalbate, “na região da Armênia”, bem como com a associação antiga do termo bíblico à Armênia reconhecida por Eusébio e Jerônimo, e refletida nas traduções antigas, em que a Septuaginta verte Isaías 37:38 por “Armênia” e a Vulgata traduz 2 Reis 19:37 da mesma forma; o livro de Tobias retoma a fórmula “montes de Ararate” (Tobias 1:21). A localização geográfica convergente situa essa “terra” na faixa montanhosa em torno do lago Van, com as cabeceiras do Tigre ao sul e o sistema do Cáucaso ao norte, enquanto numerosas inscrições dos reinados de Salmanasar I, Assurnasirpal II, Salmanasar III, Tiglate-Pileser III e Sargão II atestam que “Ararate” era chamado “Urartu”. Essas observações de conjunto — extensão regional do topônimo, plural “montes”, equivalência com Urartu e balizas físico-geográficas — emergem das sínteses histórico-bíblicas e assiriológicas preservadas e compendiadas, e articulam-se com leituras críticas recentes sobre o período neobabilônico e as coalizões transmontanas do século VI.

II. Tradições judaicas, cristãs e islâmicas sobre o pouso da arca

A mais antiga linha de tradição escrita e litúrgica entre judeus e cristãos orientais procurou o local do repouso na orla meridional do domínio de ʾărārāṭ, nas serras que separam a Armênia da Mesopotâmia e encerram o Curdistão, conhecidas como Kardu/Carduquiana, helenizadas como Gordiaea; por isso os Targumim (Onkelos inclusive) e as versões siríacas vertem Gênesis 8:4 como “os montes de Qardu/Kardu”, enquanto ecos árabes medievais preservam “Jebel el-Karud”; essa identificação, testemunhada também por Beroso e Abideno (citados por Flávio Josefo e Eusébio), levou a tradição oriental a fixar o pouso na elevação que em turco se chama Cudi Dağ e em árabe Jabal Jūdī, topônimo que figura no Alcorão (Hūd 11:44); no cimo, cristãos nestorianos ergueram mosteiros — entre eles o “Claustro da Arca”, destruído por raio em 776 —, e peregrinações multiconfessionais registradas entre os séculos medievais e o século XIX comemoravam ali o primeiro sacrifício após o Dilúvio; crônicas e relatos de viagem mencionam ainda a construção de uma mesquita “com madeira da arca”, a manutenção de uma lâmpada votiva por dervixes e a persistência de lendas locais, além de indicações de um povoado chamado Karya Thaminin (“Aldeia dos Oitenta”) ao pé do monte, preservando o número de salvos conforme versões islâmicas. Em paralelo, a erudição armênia antiga cita um “monte Baris” em Nicolau de Damasco, que crítica moderna emendou para Masis, o nome indígena do grande cume setentrional; e a memória grega associa Naquichevã a Ἀποβατήριον (“lugar de desembarque”), enquanto autores latinos mantêm “Armênia” por “Ararate”. A tradição ocidental medieval e moderna, sobretudo a partir dos séculos XI–XII, reorientou-se para o norte e identificou o ponto culminante do planalto armênio — Masis em armênio, Büyük Ağrı Dağı em turco, Kūh-i Nūḥ em persa — como o cenário do repouso, interpretação que ganhou proeminência entre cristãos do Ocidente e disseminou o uso moderno “Monte Ararate”, embora o hebraico bíblico só mencione “montes”. O contraste entre as correntes — a siríaco-islâmica de Jabal Jūdī e a armênia-ocidental de Masis — é sólido na documentação patrística e medieval e na geografia histórica do norte da Mesopotâmia.

Ampliações acadêmicas e críticas a partir da literatura especializada sustentam e refinam esses dois eixos tradicionais. Estudos na The Cambridge Ancient History descrevem a recuperação histórica de Urartu e relacionam a designação bíblica de ʾărārāṭ ao estado centrado no lago Van, reforçando a leitura de “montes de Ararate” como maciço/plataforma regional, e registram a persistência da associação medieval com Masis a partir de cerca de 1100 da era comum, quando se populariza a identificação norte-armênia do pouso; nesse mesmo horizonte, levantamentos arqueológicos e topográficos na Anatólia oriental e no entorno de Van detalham rotas, fortificações e hidráulica urartianas, fornecendo pano de fundo material para a geografia bíblica do termo (Urartu/Ararate). Em paralelo, a Encyclopaedia of the Qur’ān e estudos de tradição islâmica sistematizam o dossiê de Jabal Jūdī em 11:44, incluindo a recepção exegética e as localizações na margem esquerda do Tigre, e análises em JSTOR sobre a equivalência targúmica Qardu/Kardu em Gênesis 8:4 esclarecem a transição filológica que une os testemunhos aramaicos-siríacos à tradição curda-gordiena; por fim, pesquisas em português na SciELO sobre guerra e ritual neoassírios oferecem a moldura histórica para a associação de Jeremias 51:27–28 a reinos setentrionais como Urartu, Maneu e agrupamentos citas/medos (BURNEY, A First Season of Excavations at the Urartian Citadel of Kayalıdere, 1966, pp. 16:55-111; BRINNER, Brinner, W. M. (2018). “Jūdī”. In Encyclopaedia of the Qur'ān Online, 2018, REYNOLDS, A Reflection on Two Qurʾānic Words (Iblīs and Jūdī), with Attention to the Theories of A. Mingana, 2004, pp. 675-689)

Detalhes toponímicos vinculados à memória religiosa local completam o quadro: o uso persa Kūh-i Nūḥ (“Monte de Noé”) e a etimologia armênia corrente que associa Naquichevã ao “primeiro lugar de descida” convivem com o testemunho de Ptolomeu sobre Naxuana e com a permanência de Masis como designação indígena, enquanto a crítica moderna lembra que a expressão “Monte Ararate” não pertence ao vocabulário bíblico e consolidou-se por pressão devocional ao identificar o ponto culminante de uma região que, nas Escrituras, é sempre plural e extensa.

III. Intertextualidade bíblica e tradição patrística/medieval

A recepção antiga espelha essa amplitude das versões aramaicas e siríacas que usam Qardu, os gregos e latinos registram Gordiaia/Gordiene, e a tradição islâmica fixa Jabal Jūdī (Alcorão 11:44). Cronistas e geógrafos — de Flávio Josefo a Eusébio e Jerônimo — ainda comentam nomes, hábitos e localizações, com ecos nos autores armênios e na etimologia tradicional de Naxichevan como “Apobatērion”, “lugar de descida”. Na Idade Média, um deslizamento da preferência devocional transferiu o foco para Masis, sem anular a memória oriental do Jūdī nem a gramática plural do texto hebraico.

A. História da pesquisa: de Urartu à “Armênia”

A consolidação acadêmica do tema percorre a via duplamente filológica e arqueológica. No século XIX, viajantes, epigrafistas e geógrafos recombinaram fontes clássicas com os primeiros levantamentos de fortalezas urartianas; ao longo do século XX, Boris Piotrovsky sistematizou a “civilização de Urartu” a partir de Tuspa/Van, suas inscrições, templos, cidadelas e redes de irrigação, oferecendo uma narrativa que integrou iconografia assíria e cultura material local. Em paralelo, a análise estrutural de Paul Zimansky destacou como topografia, clima e pressão da Assíria moldaram a organização estatal de Biainili/Urartu. Em língua portuguesa e com base bíblica, sínteses modernas reiteram que ʾărārāṭ/Urartu é um designativo regional, que a equivalência antiga com “Armênia” é históricocultural e que a adoção medieval de Masis como “Ararate” moderno não altera a exegese do plural veterotestamentário. Essa trajetória historiográfica — de viagens e descobertas às monografias de Piotrovsky e Zimansky — explica por que, na literatura atual, “Urartu/Ararate” nomeia uma constelação histórico-geográfica, ao passo que “Monte Ararate” é um exônimo devocional e moderno (PIOTROVSKY, The ancient civilization of Urartu, 1969; ZIMANSKY, Ecology and Empire: The Structure of the Urartian State, 1985; ZIMANSKY, Urartian Material Culture As State Assemblage: An Anomaly in the Archaeology of Empire, 1995, pp. 103-115)

Quanto à crítica metodológica das “reivindicações” modernas, cumpre sublinhar critérios de boa prática: vínculo estratigráfico claro, cultura material diagnóstica, documentação de campo replicável e compatibilidade físico-química entre supostos materiais e ambientes de alta montanha, além de autorizações legais e ambientais válidas. O contraste entre esse padrão e “pistas” episódicas — sombras sob neve, formas naviformes, amostras de solo de contexto incerto — explica a recorrente rejeição acadêmica de anúncios midiáticos, ao passo que as tradições devocionais conservam valor histórico-cultural, sobretudo onde práticas inter-religiosas persistem (como no Jūdī) e onde topônimos como Naxichevan/“Apobatērion” preservam uma memória antiga da “descida”.

Em termos de salvaguardas e governança, a existência de parque nacional, a vizinhança de fronteiras internacionais e a submissão a protocolos de zona militar fazem do Ağrı/Masis um caso em que conservação ambiental, soberania e segurança se entrelaçam; desse modo, o “estado da arte” sobre ʾărārāṭ/Urartu e sobre as tradições do pouso se beneficia mais de estudos históricos, filológicos e arqueológicos contextualizados — como os de Boris Piotrovsky e Paul Zimansky — do que de expedições midiáticas. Enquanto a crítica e a legislação permanecem assim alinhadas, a interpretação exegética do plural “montanhas de ʾărārāṭ” continua a oferecer o horizonte geográfico amplo contra o qual se devem ler todas as pretensões de “pico específico”.

IV. Delimitação Geográfica e Coordenadas

A delimitação geográfica de Ararate situa-o na Anatólia oriental, no coração do planalto armênio, junto às fronteiras com Armênia, Irã e o exclave de Naquichevã (Azerbaijão), entre os vales do Araxes (Aras) ao norte e do alto Eufrates (ramo Murat) ao sul; é um maciço vulcânico que se ergue como nó orográfico na transição entre as cadeias do Pôntico setentrional, o sistema caucasiano e o arco Zagros–Touro, definindo um setor em que as drenagens maiores da Alta Mesopotâmia nascem ou mudam de direção. A posição entre o Araxes e o Murat é descrita na literatura geográfica moderna e sintetiza a chave regional: o Araxes corre a leste de Ararate formando fronteiras políticas e naturais, enquanto o Murat—principal formador do Eufrates—nasce a sudoeste na mesma província fisiográfica; esse enquadramento é confirmado por cartografia e sínteses de referência do planalto armênio, da enciclopédia Iranica para o Araxes e de compêndios sobre Urartu e a Alta Anatólia.

No interior desse quadro, o maciço ocupa os atuais distritos turcos de Iğdır e Ağrı e se apresenta como um estratovulcão composto com dois cumes principais separados por um platô lávico, o Serdarbulak, a cerca de 2.600 metros de altitude. O cume ocidental, o Grande Ararate (Büyük Ağrı), é o ponto culminante da Turquia e do planalto armênio; o oriental, o Pequeno Ararate (Küçük Ağrı), ergue-se como cone quase perfeito. Os picos distam aproximadamente 11 quilômetros entre si, o que cria uma unidade morfoestrutural dupla com base comum e cumes independentes—um traço bem documentado na geomorfologia recente do complexo Ararat/Ağrı Dağı e nas sínteses enciclopédicas.

As coordenadas geográficas do cume principal consolidaram-se na literatura moderna em 39°42′ N e 44°18′ E, parâmetro que aparece nas descrições histórico-geográficas do maciço e é coerente com a localização no quadrante oriental da Anatólia, a oeste da linha fronteiriça Turquia–Irã e ao sul da fronteira Turquia–Armênia. Quanto à altitude absoluta do Grande Ararate, duas cifras convivem na bibliografia: 5.165 metros (valor tradicional em compêndios gerais) e 5.137 metros (valor preferido por mapeamentos topográficos e pela USGS), com variação recente estimada em torno de 5.125 metros associada à retração da calota nival; a literatura técnica em geomorfologia usa 5.137 metros. Esse intervalo não altera a lógica da delimitação: em ambos os casos, o maciço domina a planície do Araxes por mais de 3.000 metros de desnível, impondo um efeito de “ilha orográfica” que condiciona clima local, drenagens e rotas históricas.

Na escala regional, Ararate integra a “província” Van–Sevan–Urmia, núcleo do antigo território de Urartu (Biainili), centrado no lago Van e cercado por cadeias que moldam as comunicações entre a Alta Mesopotâmia e o Cáucaso. Essa leitura físico-histórica—importante para entender por que a Bíblia fala em “montanhas de Ararate”—está firmemente ancorada na historiografia de Urartu do The Cambridge Ancient History, em capítulos de arqueologia de paisagens do planalto armênio publicados pela Brill e em estudos de síntese sobre o alto platô oriental; todos sublinham que o conjunto de maciços e bacias intermontanas (planície de Ararate, bacia do lago Van, bacia do lago Sevan) forma um anfiteatro elevado cujos corredores naturais conectam Araxes, Eufrates e Touro-Zagros.

O recorte local completa-se com a planície de Ararate estendendo-se ao noroeste até as cercanias de Erevan e Masis, dividida ao meio pelo Araxes; do lado turco, a transição para as bacias de Doğubayazıt e Iğdır reforça o contraste hipsométrico entre a planície (≈ 800–900 m) e o corpo vulcânico (≥ 3.600 m no Pequeno Ararate e > 5.100 m no Grande), contraste que a literatura arqueológica regional associa a padrões tradicionais de transumância e ocupação de encostas. Esse degrau altimétrico foi observado em levantamentos acadêmicos recentes de arqueologia do leste da Anatólia e em sínteses descritivas da própria planície de Ararate (BATMAZ, Doğu Anadolu Arkeolojisi Çalıştayı/Eastern Anatolian Archaeology Workshop II, 2021).

Do ponto de vista dos limites naturais, o maciço projeta influências para três bacias hidrográficas históricas: ao norte, a do Araxes, cujas várzeas sustentaram eixos de povoamento e fronteiras políticas sucessivas; a sudoeste, a do Murat (Eufrates superior), que coleta drenagens de encostas do Touro oriental; e a sudeste, a dos tributários setentrionais do Tigre, em transições de cristas que marcam o início do arco Zagros. A literatura regional confirma esse triângulo hidrográfico e o associa à razão de Ararate ser um “ponto de cumeada” entre Cáucaso, Anatólia e Irã, sobretudo nas obras de referência sobre Urartu e na geografia física do planalto armênio.

A morfodinâmica recente corrobora os contornos dessa delimitação. Em 2 de julho de 1840, um evento sismo-vulcânico provocou deslizamentos e fluxos piroclásticos no flanco norte, remodelando ravinas e feições de alta encosta; esses processos deixaram marcas paisagísticas que a literatura moderna ainda vincula à compartimentação do maciço e aos corredores naturais que o contornam rumo ao vale do Araxes e às passagens para o lago Van. A interpretação tectono-vulcânica situa o complexo na zona de encontro da falha Norte-Anatoliana, da falha Leste-Anatoliana e do cinturão de dobras e empurrões dos Zagros, o que explica sua posição de relevo “pivô” no mapa orográfico regional.

Por fim, a descrição geomorfológica de detalhe, baseada em levantamentos recentes, confirma a natureza de estratovulcão poligenético: base de cerca de 1.100 km², eixo maior noroeste–sudeste próximo de 45 km, volume estimado de materiais lávicos e piroclásticos superior a 1.100 km³ e fases erosivo-glaciais que ajudam a entender o recuo das superfícies de gelo de cume; a separação entre os dois cones por fratura/platô e o papel do Serdarbulak como “sela” estruturante são recorrentemente apontados em estudos de geomorfologia e vulcanologia de Ararat/Ağrı Dağı. Esses parâmetros consolidam a leitura de Ararate como unidade geográfica dupla, bem definida por coordenadas, hipsometria e limites hidro-orográficos com Araxes, Eufrates e a orla setentrional do sistema Zagros–Touro (AZZONI; ZERBONI; PELFINI; et al, Geomorphology of Mount Ararat/Ağri Daği, 2017, pp. 182–190).

V. Geomorfologia e Geologia

Geomorfologia e geologia. O maciço é inequivocamente vulcânico: a própria encosta média está recoberta por “imensas massas de lava, escórias e porfírio”, e uma fenda profunda no flanco setentrional tem sido tomada como vestígio do antigo cráter, zona onde se concentram os maiores registros de instabilidade de vertente. Em escala regional, o planalto armênio resulta de prolongadas ações magmáticas; difere do vizinho sistema do Cáucaso porque não culmina numa crista axial nítida, mas se dilata em planícies e estepes separadas por cordilheiras graduadas, o que historicamente produziu passes altos porém relativamente acessíveis e conectividade interna rara em orógenos de igual altitude. Essa moldura repousa sobre uma fronteira ativa de placas; no encontro Arábia–Anatólia–Eurásia, a extrusão para oeste da Anatólia é acomodada por cisalhamentos complementares — Falhas Anatólia do Norte e do Leste — ancorados no tríplice-junção de Karlıova, mecanismo que explica a elevação do planalto e a alimentação de centros vulcânicos como Ağrı Dağı (Ararate) (ALBINO; CAVAZZA; et al, Far-field tectonic effects of the Arabia–Eurasia collision and the inception of the North Anatolian Fault system. Geological Magazine, 2014, pp. 372-379). Em contraste, o Grande Cáucaso organiza-se como um cinturão de dobras e cavalgamentos vergente-duplo, com encurtamento concentrado nas frentes orogênicas e estilo estrutural típico de “fold-and-thrust belts” — arranjo tectônico distinto da bacia vulcano-platô armênia (SAINTOT; BRUNET; YAKOVLEV, The Mesozoic-Cenozoic tectonic evolution of the Greater Caucasus, pp. 277-289). O quadro geomorfológico recente inclui cicatrizes do evento de 1840 na Garganta de Ahora (flanco N–NE): a sequência sísmica começou em 2 de julho e seguiu, com intervalos, até 1º de setembro; abriram-se fendas e deslizamentos, surgiram fumarolas de coloração avermelhada e odor sulfídrico, e um colapso catastrófico de rocha, gelo e neve despencou cerca de 6 000 pés de uma só vez sobre o vale estreito de Akorhi, espalhando-se por milhas. O mapeamento geomorfológico moderno da área confirma a importância dessa cicatriz — a Ahora Gorge, com ~400 m de profundidade — para entender a dinâmica de avalanches e fluxos mistos detonados em 1840 no setor setentrional do vulcão (AZZONI; FUGAZZA; GARZONIO, Geomorphological effects of the 1840 Ahora Gorge catastrophe on Mount Ararat (Eastern Turkey), 2019, pp. 10-21). A cobertura nival e glacial, que condiciona a forma atual do cone composto, tem recuado nas últimas décadas; cartografia detalhada aponta área de gelo ainda contínua no topo, com línguas de detrito e geleiras de cobertura, em regime sensível a verões mais quentes (AZZONI; ZERBONI; GARZONIO, Geomorphology of Mount Ararat/Ağri Daği, 2017, pp. 182-190).

VI. Clima, pisos altitudinais e ecologia

O clima do planalto é rigoroso: o inverno se prolonga de outubro a maio, seguido por uma primavera muito breve e um verão de calor intenso; o contraste sazonal é tão extremo que, quando em abril as planícies mesopotâmicas já ardem e, no litoral do Euxino, azáleas e rododendros florescem, as campinas armênias ainda estão sob neve, e no início de setembro já gela com força à noite. Logo abaixo do limite de neve perpétua o ambiente é deserto de vida — Wagner fala de um “silêncio e solidão sobrepujantes” — e a própria tradição local lembra Arguri como o único povoado de encosta, reputado por ter recebido a vinha de Noé; no sopé, já no vale do Araxes, situa-se Nakhichevan, local associado ao sepultamento do patriarca. Na alta estepe, a ausência de florestas contrasta com a exuberância de gramíneas estivais, base de um pastoralismo móvel curdo que aproveita a janela curta de pastagem; as cerealíferas amadurecem em altitudes superiores às dos Alpes e Pireneus, favorecidas por solos vulcânicos, água abundante e calor estival concentrado; em Erzrum, acima de 6 000 pés, a seara emerge em meados de junho e já é ceifada antes do fim de agosto, enquanto a videira atinge maturação a cerca de 5 000 pés — bem acima do limite europeu meridional (~2 650 pés). Em termos nivais atuais, a linha de neve sazonal recua ao redor de 4 300 m ao fim do verão no Grande Ararate, com gelo persistente próximo ao cume, sobretudo no quadrante norte (“Montain Ararat” em Encyclopedia Britannica); estudos recentes medem regressão significativa da calota e de suas línguas desde 1976, sob verões mais quentes, num sistema de resposta rápida ao forçamento térmico (SARIKAYA, Recession of the ice cap on Mount Ağrı (Ararat), Turkey, from 1976 to 2011 and its climatic significance, 2012, pp. 190-194). Fitogeograficamente, o maciço integra a ecorregião “Estepe Montano da Anatólia Oriental”, de clima continental e mosaico de estepe montana, estepe semidesértica, prados alpinos e bosques abertos de zimbros e amendoeiras nas faixas mais baixas, com gramíneas de Stipa e Festuca e formas almofadadas de Artemisia e Astragalus escalonadas entre 1 500 e 2 700 m. Como termo de comparação vitícola para a afirmação altitudinal clássica, regiões brasileiras de altitude elevada (Santa Catarina) mostram maturação e colheita bem-sucedidas entre 900 e 1 400 m para cultivares finas, documentando a viabilidade agronômica de vinhedos de montanha — um paralelo moderno útil à viticultura de ~5 000 pés mencionada para o planalto (GIOVANNI; SOUZA; CALIARI, Performance of resistant grape varieties (PIWI), ‘Felicia’, ‘Calardis Blanc’ and ‘Helios’ in two locations of Santa Catarina State (BR), 2022).

A. Hidrografia regional e papel “radiocêntrico”

A organização hipsométrica do planalto torna “indeciso” o declive central e se lê nos cursos iniciais dos grandes rios: o Araxes, destinado ao Cáspio, nasce a oeste de qualquer ramo do Eufrates e primeiro segue rumo norte; o próprio Eufrates, voltado ao sul, chega a brotar mais ao norte que o Araxes e inicia caminho para oeste; a posição do planalto é equidistante do Euxino e do Cáspio ao norte e, ao sul, entre Mediterrâneo e Golfo Pérsico, com conexões naturais por Acampsis, Araxes, Tigre e Eufrates — corredores primitivos de colonização, razão pela qual a Armênia foi chamada “verdadeiro ὀμφαλός do mundo”, além de marco-tríplice entre Rússia, Turquia e Pérsia na era moderna. A hidrografia física atual corrobora o papel nodal: o Araxes nasce perto de Erzurum, nas montanhas Bingöl, em divisores baixos que quase tocam as cabeceiras do Eufrates, e drena para leste a vasta margem setentrional do Ararate antes de buscar o Cáspio via Kura (“Araxes River” em Encyclopaedia Iranica); o Eufrates se compõe, no alto curso, dos troncos ocidentais Karasu e Murat — este último emergindo ao norte do Lago Van, nas vizinhanças do maciço do Ararate, e correndo 722 km até unir-se ao Karasu — prova de como o planalto verte águas tanto para o Levante quanto para a Mesopotâmia (“Murat River” em Encyclopedia Britannica); o Tigre, por sua vez, nasce no Lago Hazar, nos Taurus sudeste-turcos, a poucas dezenas de quilômetros das cabeceiras eufratenses, consolidando o papel do planalto armênio como charneira hidrográfica entre bacias do Mediterrâneo e do Golfo (NICOLL, Geomorphic Evolution of the Upper Basin of the Tigris River, Turkey, 2024). A posição elevada e os “passes comparativamente fáceis”, produto da expansão dos derrames em planaltos escalonados, explicam tanto a importância de vales e gargantas como rotas de travessia quanto a recorrência, desde Urartu, do controle de passos e interflúvios como fundamento de poder; não por acaso, sínteses de Cambridge descrevem o reino urartiano como domínio de montanhas e planícies intermontanas que vigiava as comunicações entre Anatólia oriental, sul do Cáucaso e Irã ocidental (RISTVET, Negotiation, Violence, and Resistance: Urartu’s Frontiers in the Iron Age Caucasus, 2018, pp. 175-205). Esse “papel radiocêntrico”, já intuído na geografia bíblica pela convergência de mares e vales fluviais, ganha robustez quando considerado à luz da dinâmica paleoclimática do Pleistoceno Superior e Holoceno no alto planalto — fases frias alternadas, vulcanismo e relevo diverso modulando nichos e corredores de dispersão humana que pulsaram entre o Mar Negro e o planalto iraniano (REY-RODRÍGUEZ; GAMARRA; ARNAUD, Climatic variability in the Armenian Highlands as the backdrop to hominin population dynamics 50–25 ka, 2024).

VII. Topografia

A topografia do maciço apresenta dois cones bem definidos com base comum e cristas independentes. O conjunto ergue-se da planície do Araxes como duas elevações cônicas separadas por uma depressão profunda, a cerca de 11 quilômetros entre si; o pico maior alcança aproximadamente 5.165 metros de altitude e conserva neve perpétua nos últimos 900 metros do perfil, enquanto o pico menor, a sudeste, atinge cerca de 3.914 metros. Essa configuração típica de vulcão composto inclui no cume principal uma plataforma glaciar ligeiramente convexa, quase circular, descrita como um “tabuleiro” de gelo contínuo com cerca de 200 pés parisienses de diâmetro; abaixo dela, uma suave depressão liga duas eminências no topo. O inventário toponímico tradicional registra os nomes Büyük Ağrı Dağı para o pico principal e Küçük Ağrı Dağı para o secundário; relatos clássicos assinalam ainda a dificuldade do cume maior e a primeira ascensão por Parrot em 1829. A morfologia de encosta mostra ainda a grande fenda setentrional, associada aos eventos de 1840 na Garganta de Ahora, que marca de modo visível a geometria do flanco norte. Esses dados sintetizam a fisionomia do maciço e seus limites nivais, situando o “limite de neve perpétua” alto e tardio no verão.

A história antiga da região designada nas fontes hebraicas como ʾărārāṭ articula-se com o país que as fontes assírias chamam Uruaṭri/Urartu e, em paralelo, com as “terras de Nairi”. Os testemunhos do século XIII antes da era comum já registram Uruaṭri entre os adversários assírios do norte; no século IX, consolida-se um estado urartiano unificado com Sarduri I, cujo centro se fixa em Tuspa (Van), após a fase de Arame em Arzashkun. O repertório iconográfico assírio passa a documentar esse choque de potências: as campanhas de Salmaneser III contra Aramu aparecem nos portões de bronze de Balawat, fornecendo, além de cenas bélicas, vislumbres do traje e do armamento urartianos. A partir de Ispuini, Menua, Argisti e Sarduri II, a influência urartiana avança para oeste e sudoeste, colidindo com províncias assírias e controlando rotas de comércio; o programa interno de obras ergue cidades, templos, cidadelas maciças e uma rede hídrica com aqueduto de cerca de cinquenta milhas, financiada por metais, sal, produtos agrícolas e cavalos, e operada com trabalho de cativos. Na administração e na diplomacia, o reino adota o cuneiforme assírio e assimila modelos de estilo literário, equipamento militar e artes aplicadas.

A reação assíria intensifica-se com Tiglate-Pileser III, que derrota Sarduri II em Arpad (743 antes da era comum) e cerca Tushpa (735), sem tomá-la; em 714, Sargão II descreve a captura de Musasir e o transporte do ídolo de Ḫaldi, com listas de butim que incluem ouro, prata e bronze em grandes quantidades, episódio também representado em relevos no palácio de Dur-Šarrukin. O período posterior combina restauração urartiana sob Argishti II e Rusa II com influxos de cimérios e citas vindos do Cáucaso; no século VII, a edificação de novas cidades e fortificações é intensa. O colapso como estado independente ocorre no início do século VI, após campanhas dos medos, com a região incorporada em seguida ao império persa. A literatura arqueológica e histórica moderna confirma e detalha esse quadro: estudos em Cambridge sobre as fronteiras urartianas no Cáucaso mostram a articulação entre montanhas e planícies intermontanas do lago Van; sínteses sobre os medos explicitam a sequência de campanhas que atingem o reino; análises em Brill lembram o saque de Muṣaṣir nos relevos de Khorsabad; investigações em JSTOR descrevem a hidráulica de Tuspa e da planície de Van, como o “Canal de Menua” e os diques e reservatórios associados (RISTVET, Negotiation, Violence, and Resistance: Urartu’s Frontiers in the Iron Age Caucasus, 2018, pp. 175-205; DIAKONOFF, The Cambridge History of Iran, 1985, pp. 36-148; GARBRECHT, The Water Supply System at Tuσ̧pa (Urartu), 1980, pp. 306-312; BELLI, Dams, Reservoirs and Irrigation Channels of the Van Plain in the Period of the Urartian Kingdom, 199, pp. 11-26).

As transformações étnico-políticas que levam de Biainili/Urartu a “Armênia” combinam movimentos populacionais vindos do sudoeste com reclassificações imperiais. Fontes urartianas do século VII já mencionam grupos Arme; ao relatar sua conquista da área (por volta de 520 antes da era comum), Dario a denomina “Armênia”, uso que perdura e coexiste com a conservação de “Urartu/Ararate” para uma subdivisão setentrional. A tradição latina tardo-antiga preserva a lembrança dessa justaposição toponímica, como no testemunho de Jerônimo: “Ararate é uma região na Armênia, sobre o Araxes”. A equivalência administrativa “Uraštu/Armina” do trilingue de Behistun reforça a passagem de exônimos geográficos a designações provinciais; a historiografia moderna detalha esse processo ao mostrar que “Urartu” nasce como descritor regional e “Biainili” como endônimo, antes de a nomenclatura aquemênida estabilizar “Armênia” como satrapia (WATERS, Forerunners of the Achaemenids: The First Half of the First Millennium BCE, 2014, pp. 19-34).

A cicatriz topográfica mais dramática do maciço — a Garganta de Ahora — remete ao episódio sísmico-vulcânico de 2 de julho de 1840, cuja sequência se prolongou até 1.º de setembro, com fendas, deslizamentos, nuvens avermelhadas, forte cheiro de enxofre e um colapso catastrófico de rocha, gelo e neve que caiu, de uma só vez, cerca de 6.000 pés até o fundo do vale estreito de Akorhi, espalhando-se por várias milhas; relatos científicos da época e a síntese moderna convergem ao interpretar o evento como uma erupção freática com fluxo piroclástico emitido por fissuras no alto flanco norte, deflagrando movimentos de massa e represamentos temporários. Estudos recentes de geomorfologia reconstituíram a evolução da Garganta de Ahora com imagens de satélite e dados térmicos, enquanto trabalhos de glaciologia documentam a retração substancial do gelo do Ararate desde a década de 1970.

Em complemento ao quadro físico, a origem vulcânica do maciço e a variedade de produtos ígneos — lavas, escórias e porfírios — explicam tanto a presença da grande fenda setentrional quanto a persistência de calor residual, aspectos já notados em descrições oitocentistas e compatíveis com o entendimento atual de Ağrı Dağı como estratovulcão ativo no Holoceno. A cronologia eruptiva aponta para atividade histórica em 1840; a construção dos dois cones maiores por derrames e depósitos explosivos de composições que variam de basalto a riolito explica o volume e o desenho do maciço e sua “sela” entre os picos.

Para integrar o dossiê histórico com a geografia política e militar, as fontes bíblicas de época neobabilônica registram Ararate entre os reinos convocados contra Babilônia e como “terra” de refúgio dos filhos de Senaqueribe; a análise histórico-militar das associações com Minni e Asquenaz é coerente com o início do século VI, quando Urartu, maneus, citas e medos estão ativos. Em estudos contemporâneos, leituras críticas da guerra e do ritual assírios documentam a insistência das campanhas contra Urartu e seus aliados setentrionais, enquanto pesquisas em periódicos de arqueologia de campo mostram, na paisagem do Van, os traços materiais do aparato hidráulico urartiano (REDE, Imagem da violência e violência da imagem: Guerra e ritual na Assíria (séculos IX-VII a.C.)., 2018, pp. 81-121).

Por fim, a comparação morfoestrutural com o Cáucaso sublinha o caráter de “platô vulcânico escalonado” do planalto armênio, mais aberto a passes altos e à circulação intermontana do que um sistema axial rígido de dobras e cavalgamentos, o que ajuda a entender como Urartu pôde projetar fortificações, canais e cidades para além de uma única crista central, operando entre as bacias do Araxes, do alto Eufrates e das portas do lago Urmia. Essa leitura converge com sínteses de Cambridge sobre a paisagem imperial urartiana e com estudos de fronteiras no sul do Cáucaso, em que o reino, desde Tuspa, controlava corredores e interflúvios que articulavam montanhas e planícies férteis.

VIII. A arqueologia de Urartu 

revela um programa estatal coerente de urbanismo, culto e engenharia hidráulica, num território centrado em Tuspa/Van, que se firmou entre os séculos IX e VI antes da era comum. Na fase de apogeu, os reis edificaram cidades, templos, cidadelas maciças e obras de irrigação, incluindo um aqueduto de cerca de cinquenta milhas, financiados por metais, sal, produtos agrícolas e cavalos, com grande uso de mão de obra cativa; ao mesmo tempo, a administração adotou o cuneiforme assírio para diplomacia e burocracia, e absorveu modelos de estilo literário, equipamento militar e artes aplicadas. Essas linhas de força — construção urbana e cultual, rede hídrica monumental, adoção do cuneiforme e circulação de bens — estão documentadas em sínteses de referência e são confirmadas por achados arqueológicos e epigrafia reconstituídos desde o século XIX.

Entre os centros de culto, destaca-se Muṣaṣir/Ardini, onde se erguia o templo de Ḫaldi com sua consorte Bagmastu. Em 714 antes da era comum, Sargão II narrou a tomada da cidade e o transporte do ídolo, registrando listas de butim que avaliam aproximadamente uma tonelada de ouro, dez de prata, cento e nove de bronze e mais de trezentos mil outros itens, episódio depois figurado nos relevos do palácio de Dur-Šarrukin (Khorsabad). A narrativa régia e a iconografia dos relevos convergem na descrição do saque e na exibição do espólio, situando Muṣaṣir como santuário nacional urartiano no coração do conflito assírio-urartiano.

A hidráulica urartiana ganha nitidez técnica na análise do chamado “Canal de Menua”, que leva água à capital em um traçado de cerca de 56 quilômetros com represas, aquedutos e paramentos de contenção, obra monumental cuja sequência de inscrições cuneiformes celebra o patrocínio real e cuja operação perdurou milênios no entorno de Van; estudos clássicos e recentes consolidam a leitura dessa rede como política de Estado para a segurança hídrica do planalto. As reconstituições de campo e de laboratório, de Burney no British Institute of Archaeology at Ankara a Garbrecht, explicam como os canais, barragens e lagos artificiais integravam agricultura, viticultura e abastecimento urbano (BURNEY, Urartian Irrigation Works, 1972, pp. 179-186; GARBRECHT, The Water Supply System at Tuσ̧pa (Urartu), 1980, pp. 306–12, ANGELAKIS; BABA; VALIPOUR; et al, Water Dams: From Ancient to Present Times and into the Future, 2024).

O alcance dos artefatos urartianos acompanha as rotas de poder e de troca. A circulação de bronzes finos e de anexos de caldeirões com protomos zoomórficos — tema debatido na literatura sobre a origem e o trânsito desses objetos votivos entre o Levante, a Anatólia oriental, santuários gregos e a Etrúria — mostra como a metalurgia de alto prestígio ecoou no Mediterrâneo; cauldrons ornados e seus encaixes aparecem em depósitos votivos gregos do período Orientalizante e em contextos funerários itálicos, com discussões específicas sobre a influência oriental e possíveis mediações do mundo urartiano. 

O dossiê epigráfico e visual amarra esses vetores. Os portões de bronze de Imgur-Enlil (Balawat), com campanhas de Salmanasar III, alternam registros de façanhas militares com cenas de trajes, armamentos e bens urartianos apreendidos; os relevos de Khorsabad fixam graficamente o cortejo de espólios após 714, complementando as listas textuais. Leituras de conjunto sobre Biainili/Urartu, com mapa de fortalezas e canais, situam esse repertório material no arco entre o lago Van e o Araxes (KROLL; GRUBER; et al, Biainli-Urartu, 2012).

As primeiras ascensões ao Masis moderno integram a história de exploração europeia do século XVIII–XIX. Ensaios fracassados de Tournefort, em 1700, e do paxá de Bayazid, cerca de um século depois, antecedem a primeira subida bem-sucedida por Johann Jacob Friedrich Wilhelm Parrot, que, após duas tentativas frustradas, atingiu o cume em 27 de setembro de 1829 (calendário antigo), descrevendo o topo como plataforma ligeiramente convexa, quase circular, de gelo contínuo com cerca de duzentos pés parisienses de diâmetro. Parrot mediu latitudes e longitudes, e diferenciou os dois picos, maior e menor, com alturas relativas sobre o Araxes; o relato, publicado como Reise zum Ararat e traduzido em inglês por COOLEY (1846) em Journey to Ararat.

Em 29 de julho de 1845, Hermann Abich confirmou observações de cume e acrescentou indicações práticas: a partir do vale entre os dois picos, a cerca de oito mil pés acima do nível do mar, a ascensão “pode com facilidade ser levada a cabo”, ao ponto de parecer mais acessível que o Mont Blanc; o melhor período para a empresa é o fim de julho e o começo de agosto, quando se forma uma janela anual de estabilidade atmosférica e céu límpido. Registros do século XIX ainda mencionam Antonomoff e o inglês Henry Danby Seymour como reivindicantes de ascensão, com datas em meados de setembro de 1846, num quadro em que a montanha já era descrita como de origem vulcânica, com “imensas massas de lava, escórias e porfírio” e uma grande fenda setentrional interpretada por viajantes como vestígio de antiga cratera (ALCOCK, Address to the Royal Geographical Society, 2025).

A estética e a dificuldade do maciço moldaram o imaginário de viagens: relatos oitocentistas descrevem a dupla cabeça nevada elevando-se “em majestade” sobre a planície do Araxes, com encostas intermináveis e brilho ofuscante do cume; a paisagem imediatamente abaixo do limite de neve perpétua é árida e silenciosa, quase sem vida animal, com a memória de Arguri como única aldeia histórica nas vertentes, associada por tradição ao plantio da vinha de Noé, e, na planície, Naquichevã ligada ao sepultamento do patriarca.

O início da década de 1840 adicionou um marco geodinâmico às narrativas de ascensão. Em 2 de julho de 1840, um sismo com manifestações vulcânicas mudou em minutos a fisionomia do setor norte, abrindo fissuras e deflagrando deslizamentos; nuvens avermelhadas e cheiro intenso de enxofre foram sentidos por toda a região. O ponto de maior devastação foi o vale estreito de Akorhi/Ahora, onde massas de rocha, gelo e neve se desprenderam do alto e caíram de um só lance cerca de 1.800 metros, espalhando-se por várias milhas — uma cicatriz que marca a fenda setentrional de modo indelével.

Nas décadas seguintes, a literatura geográfica e alpina popularizou o itinerário sazonal e os motivos estéticos da ascensão, enquanto edições e reedições de Journey to Ararat consolidaram Parrot como referência fundadora, e notas de sociedades geográficas registraram a subida de Abich em 1845 e novas tentativas sob diferentes rotas. Em sínteses modernas, verbetes técnicos de geologia e geografia histórica do Irã e da Armênia recordam a importância de Abich para o estudo petrográfico do maciço e a posição de 1829–1845 como ciclo de primeiras ascensões documentadas.

A soma desses testemunhos — cidadelas e templos de Ḫaldi, inscrições cuneiformes urartianas, rede hidráulica monumental, metalurgia de prestígio com projeções até o Egeu e a Itália, e, mais tarde, as primeiras ascensões com janela meteorológica precisão — permite articular a cultura material de Urartu e a exploração moderna do Masis em uma narrativa contínua, em que o mesmo “sistema radiocêntrico” do planalto armênio que distribuía água e metais também pautou rotas de exércitos antigos e, muito depois, as veredas de alpinistas do século XIX.

IX. Sismologia e riscos naturais

Em 2 de julho de 1840, uma sequência sísmica que “em poucos momentos mudou todo o aspecto do país” abriu fendas e provocou deslizamentos de massa no setor setentrional, acompanhados por “nuvens de fumaça avermelhada” e “forte cheiro de enxofre”, sinais de que “as forças vulcânicas do monte não estão totalmente adormecidas”; a crise prosseguiu, com intervalos, até 1º de setembro. O ápice da devastação ocorreu no estreito vale de Akorhi: massas de rocha, gelo e neve, “desprendidas do cume do Ararate e de seus pontos laterais”, despencaram “de um só salto” cerca de 6.000 pés até o fundo do vale, espalhando-se “por várias milhas”, ao passo que o dano material nos povoados ao redor foi “muito grande”. Relatos de época registraram perdas humanas “não excedendo cinquenta”, cifra que ecoa a fortuna de o abalo ter ocorrido de dia; a reavaliação científica posterior descreve um colapso setentrional com erupção freática e fluxo piroclástico por fissuras no alto flanco, além de lahars e um deslizamento catastrófico que arrasou a aldeia de Akori/Akhuri, dimensões e impactos que catálogos sísmicos e revisões regionais elevam para milhares de vítimas e intensidade máxima IX, com magnitude de ordem 7,4 (Volcano.si.edu). A cicatriz de referência é a Garganta de Ahora, canal por onde a mistura de gelo, detritos e lama correu e represou temporariamente afluentes antes do rompimento da barragem dias depois; mapeamentos geomorfológicos recentes quantificam esse corredor como uma garganta com ~400 m de profundidade, descrevendo as feições de avalanches e fluxos de 1840 na vertente N–NE (Taylor & Francis Online). Em termos de tectônica regional, o episódio de 1840 enquadra-se num cenário de platô vulcânico ativo no Holoceno e fronteiras de placas em interação (Anatólia–Arábia–Eurásia), com extrusão e cisalhamentos que condicionam a elevação do planalto e a alimentação de centros vulcânicos como Ağrı Dağı (ScienceDirect).

Essas reconfigurações abruptas têm implicações diretas para “arqueomitologias” do repouso da arca. Observadores do século XIX anotaram, no topo, uma plataforma de gelo “ligeiramente convexa, quase circular”, e Parrot aventou que a arca poderia ter repousado na “depressão suave” que liga duas eminências de cume. A própria área “imediatamente abaixo do limite de neve perpétua” é descrita como “árida” e “não visitada por fera ou ave”, percepção que reforça a ideia de um cume hostil e de um repouso em cotas menores, solução clássica para objeções topográficas e geológicas sobre submersão total do grande cone. A catástrofe de 1840 — com cheiros sulfídeos, nuvens coloridas e descargas de detritos — fornece um molde empírico de como eventos vulcano-glaciários podem criar, apagar ou deslocar marcas na paisagem, iluminando relatos de “vestígios” com prudência crítica: o entendimento atual caracteriza 1840 como erupção freática com fluxo piroclástico e deslizamento induzido sismicamente, mecanismos capazes de cobrir ou remover estruturas e madeiramentos supostos.

Povoamentos, sítios e tradições locais. Nas vertentes, Arguri é lembrada como “a única aldeia” construída nas encostas, local onde, “segundo a tradição, Noé plantou sua vinha”; a aldeia foi tragicamente atingida no episódio de 1840, e sua memória persiste como marcador etnográfico da vertente norte. Na planície do Araxes, Nakhichevan é associada, por tradição antiga, ao sepultamento do patriarca, conexão que fontes helenísticas e latinas exprimem por Ἀποβατήριον, “lugar de desembarque”, paralelo à forma geográfica Νάξουανα em Ptolomeu, enquanto autores armênios preservam a etimologia popular de “primeiro lugar de descida”. Em testemunho clássico, Flávio Josefo explicita que Apobatērion “é a tradução própria do nome armênio desta cidade”, tradição que costura a toponímia bíblica com a geografia do vale do Araxes.

No quadrante meridional, a corrente aramaico-siríaca e a memória curda apontam para Qardu/Gordiene, com o pico conhecido como Cudi Dağ/Jabal Jūdī; nos Targumim e nas versões siríacas, Gênesis 8:4 aparece como “montes de Qardu”, e a tradição árabe fixa o pouso no Jūdī (Alcorão 11:44). Fontes históricas, de Eutíquio a Epifânio, compiladas pela erudição oriental, atestam a prevalência desse entendimento nas Igrejas orientais; reis e viajantes identificaram o cume e seus arredores como “lugar da arca”, com a notícia de um mosteiro nestoriano — “o Claustro da Arca” — destruído por raio em 776 e de uma lamparina votiva mantida por dervixes num pequeno oratório. Cronistas e viajantes relatam que a cadeia, chamada “Juda Dağ” em turco, forma uma barreira quase intransponível entre o Tigre e as ladeiras setentrionais, com passagem apenas nos meses de verão, descrição que explica a força simbólica dessa fronteira para quem habita a planície mesopotâmica. Relatos modernos preservam a prática comemorativa inter-religiosa no Jūdī: Gertrude Bell, ao descrever o cume e os restos do mosteiro, registra a romaria anual de “cristão, muçulmano e judeu” que sobem no verão para “oferecer suas oblações ao Profeta Noé” — um eco contemporâneo das memórias medievais e pré-modernas da montanha sagrada. Estudos recentes de tradição assírio-siríaca retomam o dossiê Qardo/Kēwillā, mostrando como a topografia viva das comunidades do alto Tigre ancora a toponímia do pouso em práticas devocionais e folclore locais, ao lado da erudição textual de longa duração (cf. AL-JELOO, Qardo and the Mountain of Kēwillā, 2021, pp. 151-162).

No cruzamento entre memória e geografia, a persistência de Arguri nas encostas do Masis e a série de topônimos — Nakhichevan/Apobatērion na planície setentrional, Qardu/Jūdī no bordo meridional — organiza um mapa de lembranças que foi sendo reescrito por catástrofes naturais e por viradas devocionais. A janela sazonal de clima estável “no fim de julho e começo de agosto”, reputada a melhor para qualquer subida, reforça a sazonalidade praticada por peregrinos e alpinistas desde o século XIX, e casa com a própria morfologia do maciço e com as passagens de verão que historicamente conectam montanha e vale.

X. Reivindicações e “buscas” da arca de Noé

A tradição antiga reconhece “montanhas de ʾărārāṭ” como uma região, não um cume isolado, e, por isso, leituras clássicas admitem pouso em altitudes mais baixas do maciço ou mesmo em cadeias contíguas do planalto — solução que evita exigir permanência da embarcação em cota extrema e contorna objeções geológicas a uma submersão total do grande cone setentrional; o raciocínio foi exposto no século XIX, com a ressalva de que a Escritura jamais nomeia um pico específico, e que o repouso pode ter ocorrido “sobre” a cadeia, com posterior deriva antes do escoamento final das águas (Gênesis 8:4; 11:2). Essas considerações, articuladas em sínteses eruditas, distinguem corretamente tradição literária, hipótese geográfica ampla e tentativas de “fixar” um topo singular para o pouso. O dossiê documental que acompanha essa prudência é explícito: nas proximidades de Masis, “afirmam-se, sem fundamento,” achados materiais da embarcação, uma avaliação que ecoa o consenso de crítica e que coaduna com a antiga preferência oriental por Qardu/Gordiene, a sudoeste da cadeia principal (Gênesis 8:4 nas versões targúmicas e siríacas), enquanto a identificação de Masis se firmou apenas na Idade Média (séculos XI–XII).

Entre as “buscas” modernas, dois focos ganharam publicidade e crítica. O primeiro é a formação em forma de “casco” no Durupınar (perto de Tendürek, a sudeste de Doğubayazıt), promovida por entusiastas desde a década de 1960. Investigações geológicas e microscópicas publicadas em periódico especializado mostram tratar-se de estrutura natural: as supostas “ferragens” são produtos de alteração de minerais vulcânicos; os “painéis” seriam concentrações naturais de limonita e magnetita em camadas sedimentares inclinadas; amostras dos chamados “pedras-âncora” revelam litologias locais, incompatíveis com transporte distante. O artigo de Lorence G. Collins e David F. Fasold, em Journal of Geoscience Education (1996), sintetiza esses resultados, ao lado de relatórios geofísicos anteriores que não identificaram remanescentes arqueológicos; compilações acadêmicas e bases institucionais reproduzem os mesmos achados e bibliografia. A literatura popular recente voltou a essa formação, mas sem alterar o quadro: em termos metodológicos, a datação de solo solto, anomalias de radar de penetração e formas “naviformes” não satisfazem padrões de arqueologia de campo quando desancoradas de estratigrafia, cultura material e contexto crono-espacial (cf. Csun.edu; Noah’s Ark Scans; BAUMGARDNER; BAYRAKTUTAN, Geophysical Investigation of Noah’s Ark, 1987; COLLINS; FASOLD, 1996, Bogus “Noah’s” Ark from Turkey exposed as a common geological structure).

O segundo foco é a chamada “Anomalia do Ararate”, um contorno escuro visível em fotografias aéreas e orbitais desde 1949, tomadas por razões militares na plataforma ocidental, em cota elevada. Trata-se de imagem recorrente sob neve e gelo, sem demonstração estratigráfica ou artefatual em superfície; até hoje, a discussão sobre o contorno não ultrapassou a incerteza própria de alvos crípticos em gelo e taludes, e não produziu dados de escavação documentados em repositórios científicos. Em suma: a diferença entre tradição, hipótese regional (cadeia/planalto) e “pico específico” é essencial; a primeira é literária e interconfessional, a segunda é geograficamente plausível, e a terceira permanece sem demonstração empírica robusta.

A. Direito, soberania e acesso contemporâneo

O maciço de Ağrı/Masis situa-se inteiramente em território da República da Turquia, encostado às fronteiras com a Armênia (ao norte) e com o Irã (a leste), condição que explica a presença de zonas militares e protocolos especiais para visitação e ascensão. Normas oficiais — baseadas na Lei nº 2565 sobre Áreas Militares Restritas e Zonas de Segurança e regulamentos correlatos — determinam que ascensões em montanhas situadas nessas zonas, como o Büyük Ağrı Dağı e o Küçük Ağrı Dağı, sejam autorizadas com antecedência e realizadas obrigatoriamente com “mountain host” credenciado pela Federação de Montanhismo da Turquia; os pedidos são processados pelos ministérios competentes e pelas Governadorias de Ağrı e Iğdır, com prazos de até dois meses para solicitações feitas do exterior. O protocolo lista as rotas permitidas, veda equipamentos de imageamento sensível e prevê cancelamento da atividade em caso de exercícios militares ou descumprimento de condições. O ponto de contato administrativo, na prática, é o Kaymakamlık de Doğubayazıt e órgãos de gendarmaria, que checam listas de participantes e cronograma antes do embarque para a montanha.

O enquadramento ambiental adiciona outra camada normativa. O “Ağrı Dağı Millî Parkı” foi criado em 2004, abrangendo cerca de 88.014 hectares que incluem os dois cones principais e áreas de entorno, sob gestão do Ministério da Agricultura e Florestas (Direção-Geral de Proteção da Natureza e Parques Nacionais) e documentação ambiental recente confirma o perímetro e a tutela; órgãos de turismo e patrimônio descrevem o parque em materiais oficiais e parcerias. Em termos práticos, o parque convive com o status de zona militar, de modo que períodos de fechamento, janelas de autorização e exigências de guia local coexistem com a retórica de conservação, e qualquer projeto científico — inclusive “buscas” — deve observar tanto a legislação de áreas protegidas quanto os protocolos militares e consulares.

O impacto geopolítico na pesquisa e nas expedições é direto: a proximidade com fronteiras sensíveis, a necessidade de rotas específicas (Doğubayazıt/Topçatan–Eli; Iğdır/Korhan–Küp Gölü) e o escrutínio de equipamentos e finalidades reduzem improvisos e pressionam pela profissionalização das campanhas; na prática, ascensões “científicas” ou “documentárias” exigem trâmites adicionais de pesquisa estrangeira e autorização cultural específica, inclusive o protocolo de cooperação para projetos sobre a arca no Ararate, citado no próprio texto normativo. A conjugação entre tutela ambiental e soberania militar, somada à sazonalidade de janela meteorológica no fim de julho–início de agosto, explica por que expedições mal documentadas ou “independentes” raramente atendem padrões científicos e, não raro, descumprem a combinação de regras ambientais, patrimoniais e de segurança exigidas no maciço.

XI. Antropologia e memória cultural local

A memória armênia nomeia o maciço como Masis e associa-lhe toponímias devocionais consolidadas pelo menos desde a Idade Média; a tradição local atribuiu a Nakhichevan o epíteto grego de Apobatērion, “lugar de desembarque”, e a etimologia popular armênia de “primeiro lugar de descida”, enquanto, na vertente turca e persa, sobreviveram exônimos devocionais como Aǧrı Dağı e Kuh-i-Nūḥ, “Monte de Noé”, termos que prolongam a sacralização da paisagem na imaginação regional e na peregrinação moderna (Α᾿ποβατήριον em Joséfo; Ptolemeu; Nakhichevan; Kuh-i-Nūḥ) . Na encosta do grande cone, Arguri fixou-se como locus da vinha de Noé, um marcador tradicional que se soma à narrativa funerária do patriarca na planície do Araxes e ajuda a explicar por que a encosta de Masis se tornou eixo de romarias e memórias familiares mesmo quando a identificação do “pouso” se deslocou, na Antiguidade Tardia e no Islã, para o Jabal Jūdī; a literatura de viagem dos séculos XVIII–XIX registra, além disso, a experiência sensorial da alta encosta — silêncio, esterilidade sob a neve e a lembrança do desastre sísmico de 1840 — como parte da pedagogia moral da montanha (Arguri; Nakhichevan; silêncio e esterilidade; sismo de 1840) . No quadrante sudoeste, a cadeia do Qardu/Gordiene preservou, por séculos, uma cultura de peregrinação inter-religiosa: os targumim e versões siríacas vertem Gênesis 8:4 como “montanhas de Qardu”; no cume de Cudi Dağ, nestorianos ergueram mosteiros, inclusive o “Claustro da Arca”; cronistas árabes e viajantes dos séculos XVIII–XIX lembram uma aldeia chamada Karya Thamīnīn, “Aldeia dos Oitenta”, e até uma lamparina votiva mantida por dervixes, enquanto Gertrude Bell documenta, em 1911, a subida comemorativa anual ao Jūdī (Qardu/Cudi/Jabal Jūdī; Karya Thamīnīn; lamparina; subida comemorativa). O pano de fundo etnográfico inclui o pastoreio sazonal curdo nos prados de verão da alta estepe do planalto armênio, onde o cultivo de trigo e cevada alcança altitudes inabituais e a videira amadurece em torno de 5.000 pés, compondo uma ecologia humana coerente com as memórias de travessia e com a persistência de topônimos devocionais no entorno de Masis e do Jūdī (pastoreio curdo; cerealíferas e videira em altitude) .

B. Arte e literatura

A monumentalidade de Masis/Maṣīs impressionou viajantes românticos que deixaram descrições canônicas. Ker Porter observou que “como se os maiores montes do mundo houvessem sido empilhados uns sobre os outros”, as duas cabeças “lançavam um brilho ofuscante, igual a outros sóis”, uma imagem que se tornou referência visual na literatura de viagem do século XIX e inspirou gravuras e óleos de efeito sublime; James Morier, por sua vez, afirmou não haver forma “mais bela” nem altura “mais terrível”, enfatizando a perfeição de linhas e a insignificância das serras vizinhas diante do grande cone (Ker Porter; Morier) . No imaginário armênio moderno, o maciço converteu-se em emblema visual literário e cívico: o brasão nacional coloca Masis no escudo central, com a arca no cume, fixando em heráldica a tradição de Gênesis 8:4; a descrição oficial confirma a centralidade de Ararate/“Masis” como símbolo estatal e poético (brasão de 1992; descrição oficial) (Wikipedia) (president.am). A pintura armênia do século XX consolidou essa iconografia: Martiros Saryan, em “Ararat” (1958) e na tela do “Arco de Charents”, cristalizou a paisagem simbólica na qual a visão do maciço se associa à voz poética de Yeghishe Charents; no mirante erguido em sua memória lê-se o célebre verso que liga a brancura do cume a uma “estrada invencível para a glória”, e a crítica contemporânea reconhece como a poética de Charents fez do Masis um emblema lírico da pátria (Saryan; arco; verso de Charents) (John Moran) (ararattravel.am) (mariammatossian.com). A fotografia de montanha de finais do século XIX e inícios do XX, representada por Vittorio Sella no Cáucaso, ajudou a fixar, em linguagem de altas luzes e gelos, um repertório visual que depois se popularizou em álbuns e cartões-postais do Ararate, contribuindo para a estética glacial que moldou o olhar moderno sobre o maciço (fotografia de alta montanha) (grolierclub.omeka.net).

D. Controvérsias acadêmicas e consensos

A filologia bíblica é taxativa: a forma é plural, “montanhas de ʾărārāṭ”, e designa uma região; o singular “Monte Ararate” é exônimo moderno e não é bíblico. O corpus histórico-exegético preserva a amplitude geográfica original, que inclui Urartu e, na recepção oriental, o Qardu/Jūdī; só a partir dos séculos XI–XII consolidou-se, no Ocidente cristão, a identificação com Masis, o “Ararate” moderno (plural regional; recepção oriental; virada medieval para Masis) . A discussão “Jūdī versus Masis” não é meramente toponímica, mas histórica: targumim, peshitta e cronistas tardios situam o pouso no cordão do Gordiene; a tradição islâmica o fixa em Jabal Jūdī (Alcorão 11:44); estudos filológicos situam a equivalência entre Qardu e Jūdī na circulação siríaca/árabe da Antiguidade Tardia e da Alta Idade Média, reforçando que a “terra de ʾărārāṭ” era uma macro-região norte, não um cume único (Qardu/Jūdī nas fontes siríacas e árabes). O ponto metodológico de maior consenso reside, portanto, na distinção entre tradição literária e prova arqueológica: a literatura antiga é compatível com uma faixa de repouso ampla nos maciços do planalto; a tentativa de fixar “um pico específico” permanece especulativa. Nesse horizonte, leituras geológicas contemporâneas tendem a rejeitar um Dilúvio global recente por falta de sinais estratigráficos coerentes, e preferem leituras regionais de eventos hidrológicos antigos; mesmo hipóteses midiáticas de ruptura catastrófica no Mar Negro foram relativizadas por pesquisas marinhas e geoarqueológicas subsequentes, que sugerem transgressões não-catastróficas e impactos regionais diferenciados, quadro que diminui a força de argumentos que requerem uma submersão total de cones como Masis, história da “flood geology”; Mar Negro não-catastrófico (CLARY; WANDERSEE, The History and Nature of Science: Is the Past the Key to our Future?, 2014, pp. 63-71; BIKOULIS, Evaluating the impact of Black Sea flooding on the Neolithic of northern Turkey, pp. 756-775). Em suma, o consenso filológico-histórico atual mantém o plural ʾărārāṭ como designativo regional, legitima a memória oriental do Jūdī e reconhece a adoção medieval de Masis como devoção posterior; a geologia acadêmica, por sua vez, trabalha com cenários regionais e não com um cataclismo universal recente, o que reforça a leitura de Gênesis 8:4 como referência a uma cadeia montanhosa e não a um único pico exposto como “primeiro” por submersão planetária (plural; cadeia versus pico único) .

Para ancorar a memória cultural na experiência sensível e estética, vale recordar como a mesma tradição armênia cristalizou Masis não apenas em brasão, mas em poesia e pintura; no quadrante curdo-mesopotâmico, a subida comemorativa ao Jūdī — documentada por Bell — prolonga, por sua vez, a cadeia de peregrinações que vem desde os mosteiros nestorianos, mantendo viva a “geografia sacra” do pouso. Esses dois polos — Masis e Jūdī — espelham, em registros distintos, uma mesma realidade textual: os “montes de ʾărārāṭ”, plural de alcance histórico-geográfico, cuja leitura hoje integra filologia, arqueologia da Anatólia oriental e história das religiões, sem exigir a redução a um único cume.

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GALVÃO, Eduardo. Ararate. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], out 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago 2025].

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