Segundo Adão — Similaridades entre Jesus e Adão
SEGUNDO ADÃO
A figura de Adão como arquétipo do homem terreno e Cristo como arquétipo do homem celeste é um tema que perpassa toda a Escritura e encontra sua mais plena formulação nas epístolas paulinas, especialmente em Romanos 5 e 1 Coríntios 15. Paulo não apenas compara Adão e Cristo, mas propõe que há uma tipologia fundante — Adão como “τύπος τοῦ μέλλοντος” (týpos tou mellontos, “figura daquele que havia de vir” — Romanos 5:14). Essa correspondência, porém, não se limita à analogia da obediência versus desobediência. A teologia bíblica, a exegese patrística e a escatologia paulina revelam um entrelaçamento mais profundo, onde Adão e Jesus representam duas ordens de humanidade: a da criação natural e a da nova criação.
Neste artigo, investigaremos dez similitudes principais entre Jesus e Adão, estruturadas em tópicos, cada um embasado por análise filológica, teológica e hermenêutica rigorosa. Não se trata de um exercício comparativo superficial, mas de uma arqueologia da revelação cristológica inscrita já nas narrativas da criação. A tese que aqui defendemos é que a figura de Jesus como “segundo Adão”[1] não é meramente uma analogia ilustrativa, mas um constructo ontológico, redentivo e escatológico essencial à cristologia bíblica.
I. Adão e Cristo como cabeças de duas humanidades
A primeira e mais abrangente similitude entre Adão e Cristo é sua posição representativa. Ambos não são apenas indivíduos históricos, mas prototipos de ordens humanas distintas. Paulo desenvolve essa ideia em Romanos 5:12–21 e 1 Coríntios 15:21–22.
1 Coríntios 15:22:
“ὥσπερ γὰρ ἐν τῷ Ἀδὰμ πάντες ἀποθνῄσκουσιν, οὕτως καὶ ἐν τῷ Χριστῷ πάντες ζῳοποιηθήσονται.”
Transliteração: hōsper gar en tōi Adam pantes apothnēiskousin, houtōs kai en tōi Christōi pantes zōopoiēthēsontai
Tradução: “Porque assim como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados.”
Neste versículo, o uso das preposições ἐν τῷ Ἀδὰμ (en tōi Adam) e ἐν τῷ Χριστῷ (en tōi Christōi) é crucial: trata-se de uma união representativa federal. Estar “em Adão” é participar de sua condição pós-queda; estar “em Cristo” é compartilhar de sua vida ressuscitada. A morte entra como consequência da solidariedade humana com Adão; a vida, como consequência da solidariedade espiritual com Cristo.
No hebraico, o nome אָדָם (ʾādām) não é apenas um nome próprio, mas também um substantivo comum que significa “homem”, “humanidade”. Assim, o jogo entre pessoa e coletivo está inscrito no próprio vocábulo.
Cristo, como “segundo Adão”, se torna o novo cabeça da humanidade restaurada. Efésios 2:15 declara que Ele “criou em si mesmo dos dois um novo homem” (εἰς ἕνα καινὸν ἄνθρωπον — eis hena kainon anthrōpon), e em 2 Coríntios 5:17, Paulo escreve que “se alguém está em Cristo, nova criatura é” — aqui, o termo καινὴ κτίσις (kainē ktisis, nova criação) remete à inauguração de uma nova ordem cósmica com Cristo como cabeça.
II. Ambos introduzem a humanidade em um mundo não corrompido
O livro do Gênesis afirma que Adão foi colocado em um Éden “muito bom” (Gênesis 1:31: וְהִנֵּה־טוֹב מְאֹד, ve-hinnēh ṭôv meʾōd), em estado de harmonia ontológica com a criação. A entrada de Cristo no mundo, ainda que em um contexto caído, é marcada por sua pureza e obediência perfeitas, sendo o único justo a andar em meio ao mundo corrupto sem se corromper.
A narrativa de Mateus 4 — a tentação de Jesus no deserto — é construída como um reverso da tentação de Adão. Enquanto Adão cede à sedução em um jardim paradisíaco, Cristo resiste à tentação em um deserto árido. Em Mateus 4:3, o tentador diz: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem pães.” (cf. também Lucas 4:1–13). Em ambos os casos, o homem é colocado diante de uma decisão existencial: confiar na Palavra de Deus ou agir por si.
Mas, diferentemente de Adão, Cristo responde com fidelidade:
“οὐκ ἐπ’ ἄρτῳ μόνῳ ζήσεται ὁ ἄνθρωπος”
Transliteração: ouk ep’ artōi monōi zēsetai ho anthrōpos
Tradução: “Não só de pão viverá o homem.” (Mateus 4:4)
Aqui o uso de ζήσεται (zēsetai, “viverá”) evoca a vida verdadeira que Adão perdeu. Assim, enquanto Adão iniciou a vida em um paraíso e caiu, Cristo inicia sua missão no exílio e vence.
III. Ambos enfrentam provações decisivas sob uma árvore
A árvore, em sua função simbólica, emerge desde Gênesis como eixo de decisões morais e existenciais da humanidade. A árvore do conhecimento do bem e do mal (em hebraico ʿēṣ ha-daʿat ṭôv wā-rāʿ, עֵץ הַדַּעַת טוֹב וָרָע) não é apenas uma planta no jardim, mas um signo teológico da liberdade moral, da responsabilidade volitiva e do limite entre Criador e criatura. Quando Deus diz: “וּמֵעֵץ הַדַּעַת טוֹב וָרָע לֹא תֹאכַל מִמֶּנּוּ” (u-mēʿēṣ ha-daʿat ṭôv wā-rāʿ lōʾ tōʾkhal mimmennu) — “da árvore do conhecimento do bem e do mal, não comerás” (Gênesis 2:17) — Ele estabelece uma economia de confiança: o homem deve viver pela Palavra, e não pela autonomia do próprio juízo.
Adão, no entanto, falha justamente nesse ponto. Ele estende a mão (וַתִּקַּח מִפִּרְיוֹ, va-tiqqaḥ mipiryô) e toma o fruto da árvore, segundo Gênesis 3:6, não apenas violando uma ordem, mas assumindo um projeto de autodeterminação sem Deus. A árvore se torna, assim, o teatro da queda, o altar onde a humanidade se sacrifica a si mesma. A tentação de Adão, portanto, não é apenas sensorial — ela é ontológica. Ele deseja ser “como Deus” (כֵּאלֹהִים, ke-ʾĕlōhîm) conhecendo o bem e o mal, isto é, definindo por si o que é bom e o que é mau.
Cristo, o segundo Adão, também enfrenta uma árvore — mas de modo inverso. O Novo Testamento se apropria do termo grego ξύλον (xylon) — literalmente, “madeira” ou “árvore” — para designar a cruz (cf. Atos 5:30; Atos 10:39; Gálatas 3:13; 1 Pedro 2:24). Essa escolha vocabular não é casual: remete conscientemente à árvore do Éden. Em Atos 5:30 lemos: “ὃν ὁ Θεὸς ἤγειρεν... κρεμάσαντες ἐπὶ ξύλου” (hon ho Theos ēgeiren... kremasantes epi xylou) — “a quem Deus ressuscitou... suspendendo sobre o madeiro.” A cruz de Cristo é, portanto, uma nova árvore: aquela em que, ao invés de desobediência, se realiza obediência perfeita; ao invés de usurpação, há entrega; ao invés de comer para morte, há doação para vida.
A teologia de 1 Pedro 2:24 sintetiza com precisão esse paradoxo redentor:
ὃς... ἀνήνεγκεν ἐπὶ τὸ ξύλον.
Transliteração: hos... anēnenken epi to xylon.
Tradução: “Ele mesmo levou [nossos pecados] sobre o madeiro.”
A forma verbal ἀνήνεγκεν (anēnenken, aoristo de anapherō, “levar para cima, oferecer como sacrifício”) carrega conotação sacrificial. O madeiro não é apenas local de execução, mas de oferta expiatória, remetendo ao léxico levítico dos holocaustos (cf. Levítico 1:9: וְהִקְטִיר הַכֹּהֵן, ve-hiqtîr ha-kōhēn, “e o sacerdote queimará como oferta”).
A tipologia culmina quando comparamos os gestos de ambos: Adão toma do fruto e come. Cristo toma o pão, dá graças e diz: “λάβετε, φάγετε· τοῦτό ἐστιν τὸ σῶμά μου” (labete, phagete; touto estin to sōma mou) — “tomai, comei; isto é o meu corpo” (Mateus 26:26). A expressão λάβετε, φάγετε evoca o verbo do Éden (וַתֹּאכַל, va-toʾkhal, “ela comeu”), mas agora redimido. O que no Éden foi o gesto inaugural da morte, na ceia pascal torna-se o gesto da vida eucarística. João 6:33 complementa: “ὁ ἄρτος... καταβαίνων ἐκ τοῦ οὐρανοῦ δίδωσιν ζωὴν τῷ κόσμῳ” (ho artos... katabainōn ek tou ouranou didōsin zōēn tō kosmō) — “o pão que desce do céu dá vida ao mundo.”
A árvore do Éden, símbolo da tentativa de autoapoteose, é agora substituída pela árvore da cruz, símbolo da autodoação do Filho. Na árvore do jardim, o homem quis se exaltar e caiu. Na árvore do Calvário, o Filho se humilha e é exaltado. Há aqui uma reversão dramática da economia da salvação. Adão, ao comer, tornou-se escravo da morte; Cristo, ao entregar-se como pão, torna-se fonte de vida. A teologia patrística, especialmente em Irineu de Lião, reconheceu essa correspondência e falou da cruz como lignum vitae — a árvore da vida que Adão perdeu e que agora se encontra novamente no corpo crucificado do Cristo vivificante.
Assim, não é forçoso concluir que a árvore é mais do que um elemento simbólico — ela é um lugar de revelação escatológica. O homem foi expulso do jardim e do acesso à árvore da vida (Gênesis 3:24); mas o Cordeiro de Deus, pendurado numa árvore, reabre o caminho do Éden. A visão de Apocalipse 22 sela essa tipologia: a árvore da vida está no centro da nova Jerusalém e suas folhas curam as nações. O ciclo da redenção se completa: da árvore da queda à árvore da redenção, e enfim à árvore da vida restaurada.
IV. Ambos recebem esposas de forma sobrenatural
Um dos paralelos mais densos e ricos da tipologia entre Adão e Cristo reside no modo como ambos recebem, por intervenção direta e sobrenatural de Deus, suas respectivas esposas. Esse paralelo é muito mais que uma curiosidade exegética: trata-se de um padrão tipológico estruturante da economia da aliança, onde a união nupcial não é mera ilustração, mas realidade teológica arquetípica que atravessa toda a história da redenção. A relação entre Adão e Eva, por um lado, e Cristo e a Igreja, por outro, estabelece não apenas um contraste, mas uma correspondência redentiva que culmina na escatologia nupcial do Cordeiro (Apocalipse 19–21).
A formação de Eva é descrita em Gênesis 2:21–22 com um detalhamento singular que não se repete em nenhuma outra criação da narrativa bíblica:
Texto hebraico
וַיַּפֵּל יְהוָה אֱלֹהִים תַּרְדֵּמָה עַל־הָאָדָם וַיִּישָׁן וַיִּקַּח אַחַת מִצַּלְעֹתָיו וַיִּסְגֹּר בָּשָׂר תַּחְתֶּנָּה. וַיִּבֶן יְהוָה אֱלֹהִים אֶת־הַצֵּלָע אֲשֶׁר לָקַח מִן־הָאָדָם לְאִשָּׁה
Transliteração: wayyappēl YHWH ʾĕlōhîm tardēmāh ʿal-hāʾādām wayyîšān, wayyiqqaḥ ʾaḥat miṣṣalʿōtāyw wayyisgōr bāśār taḥtenāh. wayyiben YHWH ʾĕlōhîm ʾet-haṣṣēlāʿ ʾăšer lāqaḥ min-hāʾādām leʾiššāh)
Tradução: “Então o Senhor Deus fez cair um sono profundo sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma das suas costelas e fechou o lugar com carne. E da costela que o Senhor Deus tomara do homem, formou uma mulher.”
A mulher não é criada ex nihilo, mas extraída de Adão. O termo hebraico צֵלָע (ṣēlāʿ) pode significar “costela”, mas também “lado” — implicando não apenas uma parte anatômica, mas uma expressão de origem ontológica compartilhada. Deus constrói (וַיִּבֶן, wayyiben) a mulher — verbo geralmente usado para edificar um altar ou uma casa, indicando que a mulher é o fundamento de uma habitação relacional. A formação de Eva, portanto, é ao mesmo tempo biológica, relacional e escatológica.
Em João 19:33–34, quando Jesus está morto na cruz, o evangelista relata:
ἀλλ’ εἷς τῶν στρατιωτῶν λόγχῃ αὐτοῦ τὴν πλευρὰν ἔνυξεν, καὶ εὐθὺς ἐξῆλθεν αἷμα καὶ ὕδωρ
Transliteração: all’ heis tōn stratiōtōn lonchēi autou tēn pleuran enyxen, kai euthys exēlthen haima kai hydōr
Tradução: “...mas um dos soldados lhe perfurou o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água.”
A escolha lexical é profundamente significativa: o termo πλευρά (pleurá) é o mesmo utilizado na Septuaginta (LXX) para traduzir o hebraico צֵלָע (ṣēlāʿ) de Gênesis 2:21. Assim, João está deliberadamente construindo um paralelo tipológico entre Eva e a Igreja: Eva saiu do lado de Adão adormecido; a Igreja emerge do lado de Cristo morto. O verbo ἔνυξεν (enýxen, “perfurou”) transmite a ideia de penetração violenta, mas é o que desencadeia o fluxo de sangue e água — sinais sacramentais que os Padres da Igreja sempre interpretaram como símbolos do batismo e da eucaristia.
A patrística desenvolveu essa analogia com uma intensidade teológica notável. Irineu de Lião, no Adversus Haereses (5.1.3), vê na formação de Eva e na perfuração do lado de Cristo um único ato redentor em duas alianças. Cipriano, Ambrósio, João Crisóstomo e, mais sistematicamente, Agostinho de Hipona, interpretam a perfuração como a geração da Ecclesia, nascida misticamente do costado do novo Adão. Para Agostinho, assim como Eva foi formada do lado de Adão, a Igreja é formada “ex latere Christi dormientis in cruce” — “do lado de Cristo adormecido na cruz.”
Não é acidental que Cristo já estivesse morto quando foi perfurado. Assim como Adão estava em “sono profundo” (תַּרְדֵּמָה, tardēmāh) quando Eva foi formada, Cristo está no “sono da morte” quando a nova Eva é revelada. A expressão do evangelista em João 19:30 — “παρέδωκεν τὸ πνεῦμα” (paredōken to pneuma, “entregou o espírito”) — marca esse repouso escatológico, não como fracasso, mas como consumação da obra criadora (cf. João 19:28: τετέλεσται, tetelestai, “está consumado”).
Além disso, a água e o sangue que fluem do lado de Cristo são elementos materiais que, segundo a teologia joanina, apontam para os meios visíveis pelos quais a Igreja é continuamente formada e sustentada: o batismo, que purifica (água); e a eucaristia, que alimenta (sangue). João 3:5 afirma: “ἐὰν μή τις γεννηθῇ ἐξ ὕδατος καὶ πνεύματος” (ean mē tis gennēthē ex hydatos kai pneumatos) — “se alguém não nascer da água e do Espírito...” — e João 6:53: “ἐὰν μὴ φάγητε τὴν σάρκα... καὶ πίητε αὐτοῦ τὸ αἷμα, οὐκ ἔχετε ζωὴν” (ean mē phagēte tēn sarka... kai piēte autou to haima, ouk echete zōēn) — “se não comerdes a carne... e beberdes o seu sangue, não tendes vida...”. Assim, a esposa do Cordeiro é formada precisamente pelos elementos que fluem do seu lado rasgado.
A tipologia é ainda reforçada no uso escatológico do tema nupcial. Em Efésios 5:25–32, Paulo declara explicitamente que o matrimônio humano é mistério (μυστήριον) que se refere a Cristo e à Igreja. O versículo 30 é chave: “ὅτι μέλη ἐσμὲν τοῦ σώματος αὐτοῦ” (hoti melē esmen tou sōmatos autou, “porque somos membros do seu corpo”). E logo em seguida: “Ἀντὶ τούτου καταλείψει ἄνθρωπος... καὶ οἱ δύο εἰς σάρκα μίαν” — citando Gênesis 2:24 para aplicar diretamente a união de Eva com Adão à união de Cristo com a Igreja. O que era carne da carne e osso dos ossos em Adão torna-se carne espiritual e corpo místico em Cristo.
Essa esposa, porém, não é imposta ou tomada à força. João 10:3–4 afirma que o bom pastor chama suas ovelhas pelo nome, e elas ouvem sua voz — contrastando com Adão, que, após o pecado, se esconde da voz de Deus (Gênesis 3:8–9). Em Cristo, a voz não expulsa, mas convoca; não interroga, mas atrai. O segundo Adão não procura sua esposa no esconderijo da culpa, mas a forma pelo Espírito e a atrai em amor.
No ápice escatológico, a esposa do Cordeiro aparece em Apocalipse 21, adornada como cidade santa e gloriosa. O casamento de Cristo e a Igreja sela a história com um novo Gênesis. Aquilo que começou com uma mulher tirada do lado do homem no paraíso terrestre termina com uma humanidade glorificada saída do lado do Filho na cruz, no paraíso celeste. O matrimônio entre o céu e a terra, entre o Criador e a criação, se consuma.
V. Ambos são colocados como representantes e mediadores
A função de representação vicária — isto é, de agir em nome de muitos — é um dos traços mais significativos que unem Adão e Cristo no coração da teologia paulina. Ambos são estabelecidos por Deus como cabeças federais, cada um presidindo uma ordem da existência: o primeiro, da criação natural; o segundo, da nova criação espiritual. Mas não são apenas representantes nominais ou metafóricos. São mediadores existenciais: o que fazem repercute ontologicamente sobre todos aqueles que lhes estão vinculados. Com Adão, a humanidade foi lançada na morte e na alienação. Com Cristo, uma nova humanidade é gerada na vida e reconciliação.
Essa realidade é formulada de modo lapidar em Romanos 5:12–21, onde o apóstolo Paulo constrói uma teologia da solidariedade redentiva a partir da representação federal de Adão e Cristo. O versículo 12 inicia com a proposição causal:
Romanos 5:12
Διὰ τοῦτο ὥσπερ δι’ ἑνὸς ἀνθρώπου ἡ ἁμαρτία εἰς τὸν κόσμον εἰσῆλθεν, καὶ διὰ τῆς ἁμαρτίας ὁ θάνατος”
Transliteração: Dia touto hōsper di’ henos anthrōpou hē hamartia eis ton kosmon eisēlthen, kai dia tēs hamartias ho thanatos
Tradução: “Por isso, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte...”
A estrutura do texto é binária e cumulativa. Adão, aqui chamado de ἕνας ἄνθρωπος (henas anthrōpos, “um só homem”), age como origem e porta-voz de toda a humanidade. A entrada do pecado (ἡ ἁμαρτία, hē hamartía) e da morte (ὁ θάνατος, ho thánatos) no cosmos é mediada por ele. Mas não se trata apenas de causalidade histórica; trata-se de solidariedade ontológica: “porque todos pecaram” (v. 12). Em Adão, todos pecam porque todos estão incluídos nele. É o mistério do simul: simultaneidade entre indivíduo e coletivo, pessoa e humanidade. Essa concepção não é estranha à antropologia hebraica, que concebe o ser humano como ligado à sua comunidade, sua descendência e à sua linhagem espiritual.
A contraposição é expressa com máxima densidade teológica em Romanos 5:18–19:
v. 18: “Ἄρα οὖν... δι’ ἑνὸς δικαιώματος εἰς δικαίωσιν ζωῆς”
Transliteração: ara oun... di’ henos dikaiōmatos eis dikaiōsin zōēs
Tradução: “Assim também, por um só ato de justiça, veio a justificação que dá vida a todos os homens.”
v. 19: ὥσπερ γὰρ διὰ τῆς παρακοῆς τοῦ ἑνὸς... οὕτως καὶ διὰ τῆς ὑπακοῆς τοῦ ἑνὸς...
Transliteração: hōsper gar dia tēs parakoēs tou henos... houtōs kai dia tēs hypakoēs tou henos...
Tradução: “Pois, como pela desobediência de um só... assim também pela obediência de um só...”
A força das expressões παρακοή (parakoē, “desobediência”) e ὑπακοή (hypakoē, “obediência”) é soteriologicamente decisiva. O primeiro Adão peca em nome de todos; o segundo Adão obedece em favor de todos. A consequência de cada ato é repassada àqueles representados por esses dois homens: condenação e morte com Adão; justificação e vida com Cristo. O termo δικαίωμα (dikaiōma) em Romanos 5:18 — “ato de justiça” — é mais do que um ato ético: é um evento redentor, a encarnação, paixão, morte e ressurreição do Filho de Deus como oferenda vicária. A obediência de Cristo não é apenas a de um homem virtuoso, mas a do Filho obediente até à cruz, como diz Filipenses 2:8: “ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου” — “humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte.”
Essa tipologia já se encontrava insinuada em 1 Coríntios 15:45–47, onde Paulo usa uma linguagem quase metafísica:
ὁ πρῶτος ἄνθρωπος Ἀδὰμ εἰς ψυχὴν ζῶσαν· ὁ ἔσχατος Ἀδὰμ εἰς πνεῦμα ζῳοποιοῦν.
Transliteração: ho prōtos anthrōpos Adam eis psychēn zōsan; ho eschatos Adam eis pneuma zōopoioun
Tradução: “O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão, espírito vivificante.”
Aqui, o contraste não é apenas moral ou histórico, mas ontológico. O primeiro é alma vivente (ψυχὴ ζῶσα, psychē zōsa), remetendo a Gênesis 2:7 — וַיְהִי הָאָדָם לְנֶפֶשׁ חַיָּה (vayhî hāʾādām lenefeš ḥayyāh) — enquanto o segundo é espírito que dá vida (πνεῦμα ζῳοποιοῦν, pneuma zōopoioun), isto é, princípio de regeneração espiritual. Cristo não apenas possui vida; Ele dá vida. O segundo Adão não repete o padrão do primeiro; Ele o transcende, inaugurando um novo modo de ser humano — agora enraizado no Espírito e não na carne.
Enquanto mediador, Adão fracassa: ele não guarda o jardim, não protege a mulher, não intercede diante de Deus. Cristo, por outro lado, cumpre todas essas funções em grau absoluto. Ele é o novo sacerdote (Hebreus 7–10), o novo guardião do Éden espiritual (João 17), e o intercessor perene (Romanos 8:34: “ὅς καὶ ἐντυγχάνει ὑπὲρ ἡμῶν” — “que também intercede por nós”).
Portanto, o papel de ambos como representantes e mediadores não é acidental, mas fundacional. Ambos foram colocados por Deus para exercer uma função pública e universal. Ambos agem “em nome de muitos.” Mas enquanto o primeiro introduz a humanidade na tragédia da morte, o segundo a conduz para a plenitude da vida. E o critério de pertencimento a um ou outro não é biológico, mas espiritual: estar “em Adão” ou estar “em Cristo” (1 Coríntios 15:22) é a distinção última entre o velho e o novo mundo.
VI. Ambos recebem o sopro de Deus
A linguagem do “sopro de Deus” constitui uma das imagens mais arquetípicas das Escrituras para descrever o dom da vida, a infusão da alma, a criação e, por extensão, a recriação. Em ambas as alianças, o sopro (neshamah/pneuma) é mais que um elemento fisiológico — é uma investidura existencial. O primeiro Adão recebe o sopro criacional; o segundo Adão transmite o sopro redentor, tornando-se Ele próprio fonte da vida espiritual. Em ambos os casos, trata-se de um ato direto de Deus — inaugural, pessoal e dotado de significação cósmica.
A narrativa fundacional está em Gênesis 2:7, que descreve a criação do homem com precisão cerimonial:
Gênesis 2:7
וַיִּיצֶר יְהוָה אֱלֹהִים אֶת־הָאָדָם עָפָר מִן־הָאֲדָמָה וַיִּפַּח בְּאַפָּיו נִשְׁמַת חַיִּים וַיְהִי הָאָדָם לְנֶפֶשׁ חַיָּה
Transliteração: wayyîṣer YHWH ʾĕlōhîm ʾet-hāʾādām ʿāfār min-hāʾădāmāh, wayyippaḥ beʾappāyw nišmat ḥayyîm, wayhî hāʾādām lenefeš ḥayyāh
Tradutor: “Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego da vida, e o homem tornou-se alma vivente.”
Aqui, a ação de Deus é descrita com o verbo וַיִּפַּח (wayyippaḥ), do radical נָפַח (nāpaḥ, “soprar”), que transmite a ideia de um gesto deliberado, íntimo e pessoal. Deus inclina-se, por assim dizer, sobre o corpo inerte do homem moldado do pó e infunde-lhe נִשְׁמַת חַיִּים (nišmat ḥayyîm, “o fôlego de vida”). A alma humana, portanto, não é um princípio autônomo, mas um dom recebido pela mediação direta do sopro divino. A existência humana, desde o princípio, é um presente derivado do hálito do Altíssimo.
Esse sopro é reiteradamente visto nas Escrituras como símbolo da ação criadora e sustentadora de Deus. O Salmo 104:30 proclama: “תְּשַׁלַּח רוּחֲךָ יִבָּרֵאוּ” (tešallaḥ rūḥăkā yibbārēʾû) — “Envias o teu espírito e são criados”. O termo aqui usado é רוּחַ (rûaḥ), geralmente traduzido como “espírito”, mas também significando “vento”, “alento”, ou “sopro”.
Quando chegamos ao Novo Testamento, o segundo Adão aparece, não apenas como receptor, mas como doador do sopro de Deus. Isso se cumpre dramaticamente em João 20:22, após a ressurreição:
καὶ τοῦτο εἰπὼν ἐνεφύσησεν καὶ λέγει αὐτοῖς· Λάβετε πνεῦμα ἅγιον”
Transliteração: kai touto eipōn enephysēsen kai legei autois: Labete pneuma hagion
Tradução: “E, tendo dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo.”
Este é o único lugar no Novo Testamento em que o verbo ἐμφυσάω (emphysaō, “soprar”) é usado. Trata-se da exata forma grega empregada na Septuaginta em Gênesis 2:7, onde Deus “soprou” o fôlego de vida em Adão. João, portanto, não apenas narra um gesto simbólico, mas evoca explicitamente o ato criacional: o mesmo verbo, a mesma estrutura, a mesma significação. O Cristo ressuscitado repete o gesto do Criador, mas agora não infunde vida física, mas vida espiritual. O sopro que antes fazia do homem um ser vivo agora o faz nova criatura.
A tipologia é inexorável: Adão recebe o sopro e torna-se alma vivente; Cristo sopra o Espírito e cria a nova humanidade pneumatizada. Isso é confirmado por Paulo em 1 Coríntios 15:45:
ἐγένετο ὁ πρῶτος ἄνθρωπος Ἀδὰμ εἰς ψυχὴν ζῶσαν, ὁ ἔσχατος Ἀδὰμ εἰς πνεῦμα ζῳοποιοῦν
Transliteração: egeneto ho prōtos anthrōpos Adam eis psychēn zōsan, ho eschatos Adam eis pneuma zōopoioun
Tradução: “O primeiro homem, Adão, tornou-se alma vivente; o último Adão, espírito vivificante.”
A construção aqui é ontológica: o primeiro Adão “torna-se” (ἐγένετο, egeneto) ser animado por alma; o segundo Adão “é” (implícito) espírito que comunica vida. O adjetivo verbal ζῳοποιοῦν (zōopoioun, “vivificante”) não apenas descreve alguém que vive, mas aquele que dá vida a outros — ou seja, aquele que transmite o Espírito (pneuma), como aconteceu em João 20:22.
A tradição patrística compreendeu essa correspondência como um eco do Gênesis em chave redentora. Agostinho escreve que “como o primeiro homem recebeu a alma pela infusão divina, assim também os discípulos receberam o Espírito pela expiração do Senhor ressuscitado.” Cipriano o interpreta como “o sopro da nova criação”, e Teodoro de Mopsuéstia afirma que “o Cristo ressuscitado assopra como quem reinaugura o Éden, formando seus novos Adões.”
Mas há um elemento adicional de revelação progressiva: enquanto Adão recebe o sopro e passa a depender de Deus para viver, Cristo é o próprio sopro feito carne, a palavra encarnada que dá vida ao mundo. João 1:4 afirma: “ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν” (en autō zōē ēn) — “nele estava a vida” — e João 6:63 explicita: “τὸ πνεῦμά ἐστιν τὸ ζωοποιοῦν” (to pneuma estin to zōopoioun) — “o Espírito é o que vivifica.” O sopro que Cristo dá não é uma parcela exterior, mas a comunicação da sua própria vida, sua própria substância divina. O segundo Adão não é apenas recipiente do fôlego divino, mas fonte do Espírito que recria.
Assim, Adão e Cristo compartilham o gesto fundacional do sopro — o primeiro, como vaso receptor; o segundo, como fonte doador. Ambos são marcos inaugurais de humanidades distintas, e em ambos o “alento” de Deus não é metáfora, mas realidade substancial que define a vida, a consciência, a identidade e a vocação do ser humano.
VII. Ambos são chamados filhos de Deus
A designação “filho de Deus” (ben ʾĕlōhîm בֶּן־אֱלֹהִים no hebraico, huios tou Theou υἱὸς τοῦ θεοῦ no grego) carrega, no cânon bíblico, uma complexidade teológica multifacetada. Tal título aplica-se, em contextos distintos, a Adão, aos anjos, ao rei davídico, ao povo de Israel, e, supremamente, ao Messias. A compreensão tipológica entre Adão e Cristo como “filhos de Deus” exige, portanto, uma articulação ontológica e histórica que leve em conta essa polissemia e a forma como ela é transfigurada na cristologia neotestamentária.
A primeira referência explícita a Adão como “filho de Deus” ocorre no Evangelho segundo Lucas 3:38, no encerramento da genealogia de Jesus:
τοῦ Ἐνὼς, τοῦ Σὴθ, τοῦ Ἀδὰμ, τοῦ Θεοῦ
Transliteração: tou Enōs, tou Sēth, tou Adam, tou Theou
Tradução: “...de Enos, de Sete, de Adão, de Deus.”
O texto omite o substantivo “filho” (huios) por razões estilísticas, mas a estrutura genitiva cumulativa implica a ideia: Adão é, em última instância, “de Deus”, ou seja, “filho de Deus” — não por adoção nem por nascimento terreno, mas por criação direta. O paralelismo é com Jesus, que é chamado “filho de Deus” de modo pleno em Lucas 1:35: “τὸ γεννώμενον ἅγιον κληθήσεται υἱὸς Θεοῦ” (to gennōmenon hagion klēthēsetai huios Theou) — “o que nascer será chamado Filho de Deus.”
Este contraste prepara o campo para compreender a superioridade do segundo Adão sobre o primeiro: enquanto Adão é chamado filho por derivação criacional, Cristo é gerado eternamente (cf. João 1:14 – μονογενής, monogenēs, “Unigênito”) e é o Filho no sentido absoluto.
Contudo, para compreender a progressão dessa filiação, é preciso considerar que os anjos também são chamados “filhos de Deus”. Em Jó 1:6 e 38:7, lemos:
וַיָּבֹאוּ בְּנֵי הָאֱלֹהִים לְהִתְיַצֵּב עַל־יְהוָה
Transliteração: wayyābōʾû benê hāʾĕlōhîm lehit-yatṣēb ʿal-YHWH
Tradução: “E vieram os filhos de Deus apresentar-se perante o Senhor.”
Aqui, benê ʾĕlōhîm se refere inequivocamente a anjos — seres espirituais criados, que participam da corte celeste. Essa expressão também aparece em Gênesis 6:2, em um contexto complexo, e na literatura intertestamentária (cf. 1 Henoc), consolidando a ideia de que “filhos de Deus” designava, na linguagem hebraica antiga, qualquer ser que tivesse sua origem imediata em Deus, sem mediação humana.
A teologia bíblica, porém, vai restringindo e ao mesmo tempo aprofundando essa categoria. Com o avanço da revelação, o título se aplica não mais à origem apenas, mas à relação e missão. No Salmo 2:7, o rei messiânico é declarado:
בְּנִי אַתָּה, אֲנִי הַיּוֹם יְלִדְתִּיךָ
Transliteração: benî attāh, ʾănî hayyôm yelidtîkā
Tradução: “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei.”
O Novo Testamento identifica explicitamente esse “Filho” como o Cristo (cf. Atos 13:33; Hebreus 1:5). A filiação aqui não é apenas metafísica, mas regencial, real, escatológica. A entronização do Filho marca sua ascensão como novo Adão, novo Davi, novo Israel — o “Filho” por excelência.
É nesse contexto que a carta aos Hebreus 1 brilha como a mais clara exposição da superioridade do Filho sobre os anjos, apesar destes também serem chamados “filhos de Deus”. O autor constrói uma sequência de citações veterotestamentárias que culminam em uma afirmação ontológica e entronizacional da filiação de Cristo. Já no versículo 2 lemos:
ἐπ’ ἐσχάτου τῶν ἡμερῶν... ἐλάλησεν ἡμῖν ἐν υἱῷ”
Transliteração: ep’ eschatou tōn hēmerōn... elalēsen hēmin en huiō
Tradução: “Nestes últimos dias, nos falou por meio do Filho.”
O uso enfático de ἐν υἱῷ (en huiō, “em Filho”, sem artigo definido) reforça que o meio da revelação final não é um anjo, nem um profeta, mas um Filho — e não qualquer filho, mas aquele por cuja mediação tudo foi criado (v. 2b: δι’ οὗ καὶ ἐποίησεν τοὺς αἰῶνας – “por quem também fez os séculos”).
O versículo 3 intensifica:
ὃς ὢν ἀπαύγασμα τῆς δόξης... φέρων τε τὰ πάντα τῷ ῥήματι τῆς δυνάμεως αὐτοῦ...
Transliteração: hos ōn apaugasma tēs doxēs... pherōn te ta panta tō rhēmati tēs dynameōs autou
Tradução: “O qual, sendo o resplendor da glória... e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder...”
Cristo aqui é descrito não como derivado, mas como irradiação da glória divina, consubstancial com o Pai. O Filho não é criatura, como os anjos, mas o criador e sustentador de tudo. Por isso, em Hebreus 1:5, a pergunta retórica:
Τίνι γὰρ εἶπέν ποτε τῶν ἀγγέλων· Υἱός μου εἶ σύ, ἐγὼ σήμερον γεγέννηκά σε;
Transliteração: Tini gar eipen pote tōn angelōn: Huios mou ei su, egō sēmeron gegennēka se?
Tradução: “A qual dos anjos jamais disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei?”
A citação de Salmo 2:7 é retomada para excluir os anjos do status de Filho eterno e entronizado. Eles são “espíritos ministradores” (v. 14); o Filho é aquele “a quem os anjos devem adorar” (v. 6: προσκυνησάτωσαν αὐτῷ πάντες ἄγγελοι Θεοῦ – “adorem-no todos os anjos de Deus”).
Portanto, se Adão é filho por criação, e os anjos por procedência espiritual, Cristo é Filho por natureza, por geração eterna, por entronização messiânica e por missão redentora. O Novo Testamento reconhece essas camadas, mas sempre converge na afirmação que apenas em Cristo a filiação atinge sua plenitude absoluta. Ele é o Filho no qual se torna possível que outros sejam “filhos em o Filho” (filii in Filio). Gálatas 4:4–6 o confirma: “Deus enviou seu Filho... para que recebêssemos a adoção de filhos... enviou o Espírito de seu Filho a nossos corações, que clama: Abbá, Pai.”
Assim, a tipologia Adão–Cristo na categoria “filho de Deus” revela uma ascensão teológica: o primeiro é filho terreno, o segundo, celestial; o primeiro, portador da imagem, o segundo, imagem perfeita do Pai (Colossenses 1:15); o primeiro, figura transitória; o segundo, herdeiro eterno de todas as coisas (Hebreus 1:2).
VIII. Ambos são colocados sobre a criação
Uma das características estruturantes da tipologia Adão–Cristo é a posição de domínio sobre a criação que ambos recebem diretamente de Deus. O primeiro Adão é comissionado como vice-regente da terra criada, sendo investido de autoridade sobre todas as criaturas vivas. O segundo Adão, Cristo, é proclamado Senhor de todas as coisas — não apenas das realidades terrenas, mas também celestiais e espirituais, tendo recebido domínio universal após sua ressurreição e exaltação. Essa investidura regencial, em ambos os casos, está enraizada em uma teologia da imagem, da autoridade delegada e da função sacerdotal-real do homem na criação.
A descrição da missão original de Adão encontra-se no Gênesis 1:26–28, texto fundamental para qualquer teologia da dignidade humana e da estrutura da ordem criada:
Gênesis 1:26
וַיֹּאמֶר אֱלֹהִים נַעֲשֶׂה אָדָם בְּצַלְמֵנוּ כִּדְמוּתֵנוּ וְיִרְדּוּ בִדְגַת הַיָּם וּבְעוֹף הַשָּׁמַיִם...
Transliteração: wayyōmer ʾĕlōhîm: naʿăśeh ʾādām beṣalmēnû kidmûtēnû; veyirdû vidgat hayyām ûveʿôf haššāmayim...
Tradução: “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu...”
O verbo central aqui é וְיִרְדּוּ (veyirdû, do radical רָדָה / rādāh, “dominar, governar”), que implica soberania delegada — domínio administrativo, e não autocrático. O homem não é proprietário da criação, mas seu zelador e representante de Deus. A imagem (צֶלֶם, ṣelem) e a semelhança (דְּמוּת, demût) conferem-lhe o status de ícone vivo da autoridade divina na terra. Adão, portanto, é instituído como rei-sacerdote do Éden, aquele que cultiva (עָבַד, ʿāvad) e guarda (שָׁמַר, šāmar) o jardim (Gênesis 2:15), refletindo o padrão litúrgico que mais tarde será aplicado ao culto levítico (cf. Números 3:7–8).
A queda, no entanto, frustra esse mandato. O homem perde o domínio efetivo, a criação torna-se hostil, e o mundo, deformado pela corrupção, geme em agonia (Romanos 8:20–22). Contudo, a Escritura não abandona essa vocação regencial. Antes, a desloca para o Filho do Homem glorificado, que restaura e consuma o mandato perdido por Adão.
Essa transição é articulada com notável força teológica em Salmo 8, onde o salmista reflete sobre o lugar do homem na criação:
Salmo 8:5–6 (v. 6–7 heb.)
“וַתְּחַסְּרֵהוּ מְעַט מֵאֱלֹהִים, וְכָבוֹד וְהָדָר תְּעַטְּרֵהוּ. תַּמְשִׁילֵהוּ בְּמַעֲשֵׂי יָדֶיךָ, כֹּל שַׁתָּה תַחַת רַגְלָיו”
Transliteração: vatḥassĕrēhû meʿaṭ mēʾĕlōhîm, vekhāvôd vehādār teʿaṭṭĕrēhû. tamšîlêhû bemaʿăśê yādeykā, kôl šattā taḥat raglāyw
Tradução: “Fizeste-o um pouco menor do que Deus [ou: os anjos]; de glória e de honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés.”
O texto hebraico utiliza o verbo תַּמְשִׁילֵהוּ (tamšîlêhû, do radical מָשַׁל, māšal, “governar”), reafirmando a função de domínio. Embora aqui o homem ainda esteja em estado caído, o salmista vislumbra a dignidade que lhe foi conferida originalmente.
O Novo Testamento reaproveita Salmo 8 para reinterpretá-lo cristologicamente. Em Hebreus 2:6–9, o autor aplica esse salmo diretamente a Cristo, o segundo Adão. A chave hermenêutica é a união entre encarnação, humilhação e exaltação:
Hebreus 2:9
τὸν δὲ βραχύ τι παρ’ ἀγγέλους ἠλαττωμένον βλέπομεν Ἰησοῦν... διὰ τὸ πάθημα τοῦ θανάτου δόξῃ καὶ τιμῇ ἐστεφανωμένον...
Transliteração: ton de brachy ti par’ angelous ēlattōmenon blepomen Iēsoun... dia to pathēma tou thanatou doxē kai timē estephanōmenon
Tradução: “Vemos, porém, aquele que, por um pouco, foi feito menor que os anjos, Jesus... coroado de glória e honra por causa do sofrimento da morte...”
O Cristo, como novo Adão, recapitula a glória perdida (estephanōmenon – “coroado”), mas agora com um escopo ampliado: não apenas o domínio sobre os animais do campo, mas sobre todas as coisas visíveis e invisíveis, celestes e infernais. Isso é confirmado pela cristologia cósmica de Colossenses 1:15–17:
ὅς ἐστιν εἰκὼν τοῦ Θεοῦ τοῦ ἀοράτου, πρωτότοκος πάσης κτίσεως· ὅτι ἐν αὐτῷ ἐκτίσθη τὰ πάντα... τὰ ὁρατὰ καὶ τὰ ἀόρατα...
Transliteração: hos estin eikōn tou Theou tou aoratou, prōtotokos pasēs ktiseōs; hoti en autō ektisthē ta panta... ta horata kai ta aorata
Tradução: “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda criação; pois nele foram criadas todas as coisas... as visíveis e as invisíveis...”
Aqui, Cristo é não apenas restaurador, mas criador da criação. O domínio que Adão recebeu como representante é aqui reencontrado na fonte. O termo πρωτότοκος (prōtotokos, “primogênito”) não implica prioridade temporal, mas preeminência de posição e autoridade (cf. Salmo 89:27, LXX: πρωτότοκον θήσομαι αὐτόν, “eu o farei o primogênito, o mais elevado dos reis da terra”).
Em Filipenses 2:10, lemos que todo joelho se dobrará diante dele — linguagem de soberania cósmica, que pertence unicamente a YHWH em Isaías 45:23. Em Efésios 1:22, Paulo conclui que Deus “sujeitou todas as coisas debaixo de seus pés” (ὑπέταξεν πάντα ὑπὸ τοὺς πόδας αὐτοῦ, hypetaxen panta hypo tous podas autou), ecoando o Salmo 8.
Portanto, enquanto Adão é rei da terra, Cristo é rei do cosmos; enquanto Adão perde o domínio por desobediência, Cristo o conquista por obediência até a cruz. Ambos são colocados sobre a criação — o primeiro como ícone que fracassa, o segundo como imagem perfeita do Deus invisível que reina para sempre. A criação que geme sob o peso da corrupção aguarda, segundo Romanos 8:19, a revelação dos filhos de Deus — cuja cabeça e herdeiro é o segundo Adão, exaltado acima de todo nome (Filipenses 2:9).
IX. Ambos são governantes sobre o Reino de Deus (sumo sacerdotes do templo de Deus)
A Escritura não apresenta o Éden como um mero jardim idílico, mas como o primeiro santuário da história da redenção, um templo primitivo em cuja estrutura arquitetônica, topográfica e simbólica já ressoam os ecos da presença santa de Deus. O artigo acadêmico ora utilizado como base oferece sólida evidência textual e tipológica de que o Jardim do Éden deve ser lido como a primeira morada litúrgica de Deus na terra, e que Adão, sua figura central, é instituído não apenas como jardineiro ou administrador, mas como sumo sacerdote e guardião cultual do templo cósmico de YHWH. O segundo Adão, Jesus Cristo, aparece então como aquele que recapitula e consuma essa vocação sacerdotal-regente de forma perfeita, tornando-se o grande sumo sacerdote e o Rei do Reino de Deus.
O ponto de partida está em Gênesis 2:15, onde a missão de Adão no jardim é descrita com dois verbos que, em todo o Pentateuco, têm forte conotação sacerdotal:
וַיַּנִּחֵהוּ בְּגַן־עֵדֶן לְעָבְדָהּ וּלְשָׁמְרָהּ
Transliteração: vayyanniḥēhû be-gan-ʿēḏen leʿāvdāh ûlešāmrāh
Tradução: “E o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar.”
O par verbal ʿāvad(עָבַד) e šāmar (שָׁמַר), frequentemente traduzido como “cultivar e guardar”, tem seu paralelismo literário mais claro em textos como Números 3:7–8, 8:25–26 e 18:5–6, onde designam as funções dos levitas e sacerdotes no cuidado do tabernáculo. Não se trata de uma horticultura ordinária, mas de uma função cúltica: “servir a Deus” e “guardar o santuário da contaminação”.
Esse caráter do Éden como templo é reforçado por uma série de convergências: (1) A presença de Deus que “anda no jardim” (Gênesis 3:8) evoca o padrão cultual de Levítico 26:12:“וְהִתְהַלַּכְתִּי בְּתוֹכְכֶם” — “E andarei no meio de vós”, linguagem sacerdotal de habitação divina. (2) O Éden é descrito, em Ezequiel 28:13–14, como o “monte santo de Deus”, contendo santuários (miqdāšîm, plural raro que aponta para múltiplas câmaras sagradas), e o personagem adâmico ali está vestido com pedras preciosas, ecoando o peitoral do sumo sacerdote (cf. Êxodo 28:17–20). O texto assevera que esse “querubim ungido que guarda” é lançado do santuário por causa da sua corrupção — tal linguagem é imprópria para um anjo rebelde, mas coaduna-se com Adão como figura sacerdotal expulsa do templo por ter profanado seu ofício (Ez 28:18). A orientação leste-oeste do jardim (Gn 3:24), com querubins guardando a entrada oriental, repete-se em todo o culto levítico — o tabernáculo e o templo têm entrada pelo oriente, e querubins guardam a arca no Santo dos Santos (Êxodo 25:18–22). Assim, a expulsão de Adão é uma excomunhão cultual da presença de Deus.
Dessa forma, Adão é instalado no Éden como sacerdote régio, incumbido de preservar a pureza do espaço sagrado e de expandir esse templo pelos confins da terra (cf. Gn 1:28). Sua missão não era estática: a glória de Deus deveria encher a terra a partir do Éden, como as águas cobrem o mar (cf. Habacuque 2:14). Mas Adão falha. Ele não guarda o templo contra a entrada da serpente. Ele não sustém a Palavra de Deus como norma cultual. O resultado é a perda do templo, da comunhão e da glória.
O segundo Adão, Jesus Cristo, emerge como aquele que não apenas restaura, mas consuma essa vocação sacerdotal e regente. Hebreus 4:14 o declara explicitamente:
Ἔχοντες οὖν ἀρχιερέα μέγαν διεληλυθότα τοὺς οὐρανούς, Ἰησοῦν τὸν υἱὸν τοῦ Θεοῦ...
Transliteração: Echontes oun archierea megan dielēluthota tous ouranous, Iēsoun ton huion tou Theou
Tradução: “Tendo, pois, um grande sumo sacerdote que penetrou os céus, Jesus, o Filho de Deus...”
A expressão ἀρχιερεύς μέγας (archiereus megas, “grande sumo sacerdote”) indica a culminação do sacerdócio levítico. Ele não ministra em tenda feita por mãos, mas no verdadeiro santuário celestial (Hebreus 9:11–12). Ele entrou “pelo véu, isto é, pela sua carne” (Hb 10:20), abrindo o caminho de volta ao Santo dos Santos, que Adão havia fechado.
Além disso, o Novo Testamento não limita a Cristo o papel sacerdotal: Ele institui um novo povo sacerdotal, restaurando em sua Igreja o propósito original do Éden. 1 Pedro 2:9 ecoa Êxodo 19:6:
Ὑμεῖς δὲ... βασίλειον ἱεράτευμα...
Transliteração: Hymeis de... basileion hierateuma
Tradução: “Vós, porém, sois... sacerdócio real.”
Aqui, o povo de Deus, em união com Cristo, é revestido da vocação de Adão: cultivar a presença de Deus, guardar sua santidade, expandir sua glória às nações. Apocalipse 1:6 afirma que Cristo “nos fez reis e sacerdotes para Deus, seu Pai” — cumprindo o destino adâmico de reinar com Deus dentro e a partir do templo.
Assim, enquanto Adão foi instalado no Éden como sumo sacerdote do templo terrestre, falhando em preservar a santidade e a missão da morada divina, Cristo é o novo e definitivo sumo sacerdote, que entra no verdadeiro tabernáculo com seu próprio sangue, restabelece a comunhão perdida e envia rios de vida do trono de Deus para curar as nações (cf. Apocalipse 22:1–2).
Cristo reina do monte santo, do templo celestial, e em sua vitória retoma e transfigura o Éden, restaurando a presença de Deus como fonte de vida, propósito e missão. O que era sombra em Adão torna-se realidade em Jesus: o verdadeiro Rei-sacerdote do Reino de Deus.
X. Ambos dão nomes
No pensamento bíblico antigo, nomear não é um ato meramente linguístico ou descritivo: é um exercício de soberania, um gesto de autoridade que expressa conhecimento, domínio e responsabilidade sobre aquilo que se nomeia. Em culturas semíticas, o nome revelava a essência ou vocação do ser, e conferir um nome significava designar a identidade e o destino de alguém ou algo sob o domínio de quem nomeia. Dentro dessa estrutura simbólica, tanto Adão quanto Cristo são apresentados na Escritura como aqueles que dão nomes, cada um dentro de seu respectivo reino, como representantes da autoridade divina.
Em Gênesis 2:19–20, Adão é conduzido por Deus ao primeiro exercício do domínio criacional:
Gênesis 2:19–20
וַיָּבֵא אֶל־הָאָדָם לִרְאוֹת מַה־יִּקְרָא־לוֹ... וַיִּקְרָא הָאָדָם שֵׁמוֹת לְכָל הַבְּהֵמָה
Transliteração: vayyāvēʾ ʾel-hāʾādām lirʾôt mah-yiqrāʾ-lô... vayyiqrāʾ hāʾādām šēmôt leḵol habbehemāh
Tradução: “E os trouxe ao homem, para ver como os chamaria... e o homem deu nomes a todo o gado.”
A ação de nomear (קָרָא שֵׁם, qārāʾ šēm) é o exercício inaugural da autoridade humana sobre a criação. Trata-se de um ato simbólico de regência cultual: Adão, o sacerdote do templo-jardim, nomeia as criaturas não como um taxonomista naturalista, mas como representante de Deus, exercendo domínio racional e ético sobre o mundo.
Note-se que Deus não instrui Adão diretamente sobre como nomear: Ele observa “para ver como os chamaria” (לִרְאוֹת מַה־יִּקְרָא־לוֹ, lirʾôt mah-yiqrāʾ-lô). Há aqui uma liberdade participativa: Deus compartilha com o homem sua autoridade criadora, deixando que o homem desenvolva o vocabulário da criação com base em sua percepção racional e espiritual da realidade. Esse é um gesto de confiança ontológica e de vocação representativa. É um “reino nomeante”.
Cristo, o segundo Adão, repete esse gesto de forma transfigurada. Ao longo do Novo Testamento, especialmente nos Evangelhos e no Apocalipse, Jesus nomeia, renomeia e confere identidade com sua palavra criadora. Em João 1:42, por exemplo, ao encontrar Simão, o texto declara:
σὺ εἶ Σίμων ὁ υἱὸς Ἰωάννου· σὺ κληθήσῃ Κηφᾶς (ὃ ἑρμηνεύεται Πέτρος).
Transliteração: su ei Simōn ho huios Iōannou; su klēthēsē Kēphas (ho hermēneuetai Petros)
Tradução: “Tu és Simão, filho de João; serás chamado Cefas (que quer dizer Pedro).”
A mudança de nome — de Simão para Cefas (Pedro) — não é ornamental. Ela simboliza uma transformação ontológica e vocacional. Cristo vê a vocação antes da realidade. Ele nomeia como Deus nomeia: conforme o propósito eterno, não conforme a aparência atual. O mesmo acontece com Tiago e João, a quem Jesus chama “Boanerges” (Mc 3:17), e com os discípulos em João 15:15, quando os nomeia “amigos”, elevando-os da categoria de servos para parceiros da sua missão.
Mais explicitamente, em João 10:3, ao falar do pastor e das ovelhas, Jesus afirma:
τὰ πρόβατα τῆς φωνῆς αὐτοῦ ἀκούει... καὶ τὰ ἴδια πρόβατα φωνεῖ κατ’ ὄνομα καὶ ἐξάγει αὐτά.
Transliteração: ta probata tēs phōnēs autou akouei... kai ta idia probata phōnei kat’ onoma kai exagei auta
Tradução: “As ovelhas ouvem a sua voz... ele chama pelo nome as suas próprias ovelhas e as conduz para fora.”
Essa imagem é preciosa: o novo Adão, o bom pastor, conhece pessoalmente cada uma de suas ovelhas e as chama “pelo nome”. Há aqui uma analogia direta com o gesto de Adão: aquele que conhece profundamente o ser nomeado, e por isso tem autoridade legítima sobre ele.
A recapitulação culmina em Apocalipse 2:17, onde Cristo promete ao vencedor:
δώσω αὐτῷ ψῆφον λευκὴν... καὶ ὄνομα καινὸν γεγραμμένον...
Transliteração: dōsō autō psēphon leukēn... kai onoma kainon gegrammenon
Tradução: “Dar-lhe-ei uma pedra branca... e nela um nome novo escrito...”
Dar um “nome novo” é dar uma nova identidade existencial, conforme a nova criação. O nome dado por Cristo é irrevogável, irreversível, inscrito na eternidade. Ele não apenas nomeia — Ele recria pelo nome.
Além disso, Jesus é o próprio portador do nome sobre todo nome (Filipenses 2:9: ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα), e o seu nome é chamado “Verbo de Deus” (Apocalipse 19:13), o nome que confere realidade à existência. Ele não apenas dá nomes: Ele é o Nome eterno de Deus (cf. João 17:6: “manifestei o teu nome...”).
Portanto, assim como Adão dá nomes como vice-rei e sacerdote da criação, Cristo dá nomes como rei eterno e criador da nova humanidade. O ato de nomear é, em ambos, expressão da realeza cultual. No primeiro, é imagem projetada e delegada; no segundo, é essência eterna revelada. O primeiro nomeia os seres da criação; o segundo nomeia os redimidos da nova criação. O primeiro nomeia no Éden; o segundo, no Reino eterno do Pai.
Conclusão
A tipologia do “segundo Adão” constitui um dos eixos mais profundos da cristologia paulina e joanina, fundamentando-se em uma analogia densa entre o primeiro homem, Adão, e o último homem, Cristo, como representantes prototípicos da antiga e da nova humanidade. Ao longo desta dissertação, examinamos exaustivamente dez eixos de similitude teológica entre ambos, que, longe de serem meras coincidências narrativas, revelam uma arquitetura soteriológica e ontológica integrada no drama da redenção.
Do barro ao Espírito, do jardim ao trono, do domínio sobre a terra ao pastoreio eterno das ovelhas, a Escritura constrói um paralelismo crescente e progressivo entre a queda adâmica e a glorificação cristológica. Como demonstrado nos textos de Romanos 5, 1 Coríntios 15 e Hebreus 2, a antítese entre desobediência e obediência, corrupção e incorruptibilidade, pecado e justiça, não apenas descreve dois eventos históricos, mas estrutura a narrativa cósmica da criação, da queda e da nova criação. O primeiro Adão introduz a morte (ὁ θάνατος, ho thánatos); o segundo, vivifica por meio do Espírito (τὸ πνεῦμα ζωοποιοῦν, to pneuma zōopoioun). O primeiro foi feito alma vivente (ψυχὴ ζῶσα, psychē zōsa); o segundo, espírito vivificante (πνεῦμα ζωοποιοῦν, pneuma zōopoioun).
Cristo não apenas corrige o fracasso do primeiro homem; Ele transcende sua estatura e realiza aquilo que era apenas latente na criação edênica: a união plena entre humanidade e divindade, tempo e eternidade, corpo e glória. Em Cristo, o projeto adâmico não é anulado, mas transfigurado. Ele é o “nomeador” da nova criação, o “pastor” que chama pelo nome, o “sumo sacerdote” que oficia no verdadeiro templo, o “governante” que exerce domínio sem corrupção. O que Adão perdeu, Cristo reconquista com sangue, obediência e cruz.
Além disso, este estudo mostrou que Cristo, como o novo Adão, não apenas refaz a história humana em si mesmo, mas a eleva: onde Adão era imagem, Cristo é plenitude; onde Adão era terreno (ἐκ γῆς, ek gēs), Cristo é celestial (ἐξ οὐρανοῦ, ex ouranou). Ambos são chamados filhos de Deus, mas o segundo é o unigênito (μονογενής, monogenēs) por essência, não apenas por criação. Ambos foram tentados, mas um cedeu; o outro venceu, não apenas para si, mas para todos os que nele são regenerados.
A análise exegética dos textos-chave revelou que a linguagem paulina sobre “vida”, “morte”, “justiça”, “nome”, “imagem” e “governo” não é metafórica nem simbólica no sentido moderno, mas escatológica e ontológica. A teologia do segundo Adão é, portanto, uma teologia da nova criação, onde a antropologia, a soteriologia e a escatologia convergem num único ponto: Jesus Cristo, o Filho de Deus que se fez homem para que o homem fosse feito filho de Deus.
Notas:
[1]Ainda que o vocábulo “segundo Adão” não ocorra literalmente nas Escrituras, sua utilização teológica é perfeitamente legítima, coerente e alinhada ao pensamento do apóstolo Paulo. A objeção de que essa expressão seria “errada” ou “coisa de leigo” carece de fundamento gramatical, bíblico e teológico. Tal objeção, como se encontra em sites de perfil devocional superficial como a chamada Biblioteca do Pregador, revela antes uma incompreensão da lógica paulina e da tradição teológica da Igreja do que uma leitura acurada do texto sagrado.
De fato, o apóstolo Paulo emprega a expressão “último Adão” em 1 Coríntios 15:45 (ὁ ἔσχατος Ἀδὰμ, ho eschatos Adam) para se referir a Cristo, em oposição ao “primeiro homem, Adão” (ὁ πρῶτος ἄνθρωπος Ἀδὰμ, ho prōtos anthrōpos Adam) no v. 45 e ao “segundo homem” (ὁ δεύτερος ἄνθρωπος, ho deuteros anthrōpos) no v. 47. Ora, Paulo alterna entre os termos “Adão” e “homem” de modo intercambiável, pois “Adão” (אָדָם, ʾādām) em hebraico significa exatamente “homem”. Logo, não há qualquer contradição semântica ou teológica em se referir ao “último Adão” como “o segundo Adão”, visto que o próprio Paulo chama Cristo de “segundo homem” (deuteros anthrōpos), em contraste com o “primeiro homem”.
Se fosse equivocada a construção “segundo Adão”, o próprio Paulo não teria utilizado a ideia paralela de “primeiro homem” e “segundo homem” para indicar o mesmo contraste entre Adão e Cristo. A substituição do termo “homem” por “Adão” na expressão “segundo homem celestial” seria absolutamente natural e semanticamente equivalente, pois o próprio Adão é, etimologicamente e teologicamente, o arquétipo do homem terreno. Assim, falar em “primeiro Adão” e “segundo Adão” é apenas uma forma de descrever os dois grandes representantes federais da humanidade — o primeiro, terreno e mortal; o segundo, celestial e vivificante.
Essa prática teológica de nomear conceitos legítimos sem depender da ocorrência literal das palavras na Escritura é comum, necessária e historicamente defendida. O exemplo mais notório é o termo “Trindade”, que jamais aparece nas Escrituras de forma literal, mas que exprime uma verdade teológica sintetizada a partir de múltiplas passagens bíblicas (Mateus 28:19; 2 Coríntios 13:13; João 1:1–14; etc.). Da mesma forma, conceitos como “união hipostática”, “encarnação” ou “onipresença” também não aparecem como termos técnicos nos escritos bíblicos, mas descrevem com precisão as doutrinas centrais da fé cristã. O critério hermenêutico não é se uma palavra aparece ipsis litteris, mas se ela expressa com fidelidade o conteúdo revelado na Escritura.
Logo, a terminologia “segundo Adão” é não apenas legítima como teologicamente precisa, desde que seja usada no mesmo espírito e contexto em que Paulo fala do “segundo homem” e do “último Adão”. Negar a validade dessa expressão sob o argumento de que ela não é literal é aplicar um hiper-literalismo que, se levado a sério, desmantelaria boa parte da linguagem teológica cristã. Além disso, sites que acusam tal uso de “erro de leigo” deveriam antes revisar seus próprios fundamentos e apresentar bibliografia técnica, exegese responsável e domínio do vocabulário teológico.
Em resumo, o “segundo Adão” é uma expressão legítima e precisa para se referir a Cristo como o novo cabeça da humanidade redimida, à luz de Romanos 5 e 1 Coríntios 15. Tal nomenclatura reflete não um erro, mas uma leitura fiel, cuidadosa e exegética da própria estrutura tipológica da revelação.[↩]
📚 Bibliografia
ALEXANDER, T. Desmond. From Eden to the New Jerusalem: An Introduction to Biblical Theology. Grand Rapids: Kregel, 2008.
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📝 Artigos Acadêmicos
BOAHENG, Isaac. Soteriological Reflections on Adamic Christology. International Journal of Social Science Research and Review, [S. l.], v. 6, n. 12, p. 62-76, dez. 2023. (PDF)