O Novo Testamento e o Talmude

O Novo Testamento e o Talmude



Essas duas importantes obras literárias cristãs e judaicas são agrupadas juntamente neste debate, porque cada uma delas a seu próprio modo fornece estrutura conceituai definitiva para interpretar a Bíblia Hebraica, que tanto cristãos como judeus compartilham conjuntamente, mas que dela se apossam de modo muito diverso. A primitiva comunidade cristã, a princípio um movimento judaico, tornara-se entidade religiosa separada pelo fim do século I d.C. O judaísmo rabínico, sobrevivendo à queda de Jerusalém em 70 d.C, padronizou rapidamente formas de exegese ritual e bíblica que anteriormente haviam sido muito mais fluidas e disputadas entre judeus. Enquanto ambas as comunidades religiosas se apegavam tenazmente à Bíblia Hebraica, os autoritários Novo Testamento e Talmude garantiam que eles veriam os mesmos textos através de lentes confessionais marcadamente diferentes.

Os primeiros cristãos eram judeus, que consideravam a Bíblia Hebraica, quer no original, quer na tradução grega, como seus textos religiosos oficiais (§12.1.a). Eles não precisaram de qualquer outra Escritura durante muitas décadas. Seus próprios escritos apresentavam a Jesus como o cumprimento das expectativas religiosas da Bíblia Hebraica. Mesmo quando se separaram da comunidade judaica, os cristãos não sentiram a necessidade de imaginar seus próprios escritos como um acréscimo a ou um substituto para a Bíblia. Tão somente à medida que surgiam conflitos na Igreja sobre a natureza da fé e da identidade cristã no século II d.C, é que se tornou premente asseverar que a Bíblia Hebraica era realmente Escritura, mas que, além disso, um núcleo de escritos cristãos primitivos constituía uma segunda divisão da Escritura igualmente autorizada. Foi assim que surgiu a designação Antigo Testamento (ou Aliança) para a Bíblia Hebraica e Novo Testamento (ou Aliança) para a literatura sagrada cristã.

Depois disso, a Bíblia Hebraica em tradução grega ou latina, suplementada pelos Apócrifos, foi associada ao Novo Testamento para formar a Bíblia dos cristãos católicos. Os cristãos ortodoxos orientais concordaram, exceto que eles incluíram livros adicionais dos Pseudepígrafos.

O Talmude (ou seja, “estudo/instrução”) é o extenso corpo da Lei oral codificada que se desenvolveu desde cerca de 250 a.C. até 550 d.C, com base na qual as autoridades rabínicas moldaram definitivamente a estrutura do judaísmo depois que a queda de Jerusalém em 70 d.C. havia eliminado formas rivais de vida e pensamento religiosos judaicos. As raízes de suplementação oral das instruções legais e cultuais da Bíblia Hebraica provavelmente se estendem de volta a um tempo não longo depois que a comunidade judaica adotou abertamente a Lei (Gênesis-Deuteronômio) como o seu documento de carta patente. A essência destes suplementos ou interpretações/reinterpretações orais consistia em deduzir do texto bíblico diretrizes exatas para comportamento comum religioso e ritual judaico (Halakah, ou seja, “caminhando, guiando a própria vida”). Gerações de intérpretes, identificados com os fariseus desde aproximadamente 150 a.C, desenvolveram estas leis orais, que foram codificadas por volta de 180 d.C. na Mishnah (ou seja, “repetição/estudo”), escritas em hebraico e compostas de sessenta e três tratados em seis divisões. Comentário aramaico sobre a Mishnah prosseguiu até aproximadamente 550 d.C. A Mishnah ficou associada a este comentário aramaico, conhecido como a Gemara (isto é, “completamento”), para formar o Talmude.

Entrementes, ao lado da interpretação legal e cultual das tradições, desenvolveu-se interpretação/reinterpretação piedosa de textos bíblicos não-legais. Por meio de aperfeiçoamento das narrativas e profecias bíblicas, fomentavam-se a fé e a esperança judaicas (Haggadah, isto é, “narração”). As reflexões da Haggadah penetraram no Midrash (isto é, “exposição”), constando de numerosos comentários sobre textos bíblicos que foram escritos a partir de 150 até 1300 d.C. O midrash (pl., midrashim), como forma literária, é de importância crescente nos estudos bíblicos porque alguns críticos argumentam que este costume de reapropriação escrita de um texto valioso anterior já se praticava em livros bíblicos pós-exílicos, tais como Crônicas e Daniel.

Visto que o judaísmo rabínico não admitiu um revelador histórico novo de Deus da maneira que o cristianismo admitiu a Jesus, não ocorreu impulso algum entre os judeus por ampliar a Bíblia Hebraica a fim de incluir a Mishnah ou o Talmude completo. Na verdade, afirmou-se que o próprio Moisés no Sinai iniciara o processo de dar leis orais explicativas ao lado de leis escritas. O Talmude, enquanto Lei Oral codificada, imaginou-se como a palavra viva continuadora de Moisés, e portanto totalmente compatível com as palavras da Lei na Bíblia Hebraica. Não houve oportunidade de fazer referência à Bíblia Hebraica como a Lei Antiga e a Mishnah e/ou o Talmude como a Lei Nova. No seu lugar, a primeira recebeu o nome simples descritivo de Tanak, chamando a atenção para os seus conteúdos triplos (cap. 1 n. 1), ou foi denominada meramente Torá, empregando o nome da primeira divisão a fim de referir-se ao conjunto.


Cf. O Talmude e sua Importância