Provérbios 5: Significado, Explicação e Devocional

Provérbios 5

Provérbios 5 é o primeiro grande ensinamento sobre os perigos de se relacionar com uma mulher que não é sua esposa. Os discursos da primeira parte do livro contêm três grandes blocos de tal ensino e significado (5:1–23; 6:20–35; 7:1–27), enquanto os provérbios da segunda parte também têm vários ditos concisos que apoiam o ensino ali encontrado (como 22:14; 23:27; 30:20). A dinâmica deste capítulo continua sendo um pai instruindo seu filho, e aqui o fato de o filho ser do sexo masculino é de vital importância, pois o tema é a proibição de relacionamentos íntimos com mulheres que estão fora do relacionamento conjugal.

O pai aborda essa preocupação com todo o poder retórico que pode reunir porque a tentação é grande. Um relacionamento íntimo com uma mulher fora dos limites do casamento promete grande prazer e satisfação. A verdade por trás da aparência, no entanto, é que essas ligações resultam em uma dor tremenda. Assim, o pai adverte o filho a não seguir os próprios desejos, mas a obedecer à instrução. Se o filho não o fizer, lamentará profundamente a ruína que trouxe à sua vida.

No entanto, o pai não para de avisar sobre o mau comportamento; ele também incentiva o filho a um comportamento adequado na área de relacionamentos íntimos. Usando metáforas bastante provocativas, o pai diz ao filho para desfrutar da intimidade com a esposa. Nesse discurso, o filho é casado, então é provável que pensemos nele como um jovem adulto. De qualquer forma, o pai incentiva a ideia de que a melhor defesa (contra o adultério) é uma ofensa forte (revelar-se com as alegrias do sexo conjugal). No entanto, no final, ele apela ao olhar atento de Yahweh para empurrar o filho para um comportamento adequado. A obediência é o que separa os justos dos ímpios, e os ímpios acabam mortos.

Explicação de Provérbios 5

Provérbios 5:1

Filho meu! Atenta para a minha sabedoria, inclina os teus ouvidos ao meu entendimento. (Hb.: beni lekhokhmati haqshivah litvunati hat-oznekha). O vocativo beni (“filho meu”) abre o versículo com um chamado íntimo, quase um sussurro paterno que puxa o ouvinte para dentro da cena: não é um decreto distante, é conversa de família, onde a vida está em jogo. A expressão lekhokhmati vem de ḥokhmah, termo amplo que inclui habilidade prática, discernimento moral e arte de viver sob o temor do Senhor, de modo semelhante ao quadro de ḥokhmah em outros trechos de Provérbios. Já litvunati deriva de tevunah, que aponta para inteligência discriminadora, capacidade de perceber nuances, de “separar” o que se assemelha mas não é igual, como quem escolhe o grão e rejeita a palha. Assim, sabedoria (ḥokhmah) é o todo do edifício; entendimento (tevunah) são as vigas internas, a engrenagem fina que sustenta o todo. O imperativo haqshivah (“presta atenção”) é forma hifil de qashav, que sugere um ouvir intensificado, um inclinar-se para captar cada sílaba, não um escutar distraído. Em paralelo, hat-oznekha (“inclina o teu ouvido”) personifica o ouvido como algo que pode ser curvado na direção certa: não basta ter o órgão físico, é preciso decidir para onde ele se inclina. Sintaticamente, temos dois imperativos coordenados dirigidos ao mesmo “filho”: atender à sabedoria e inclinar o ouvido ao entendimento; a duplicação reforça a intensidade do apelo. O versículo pinta o estudo da sabedoria como ato de atenção amorosa e de entrega: o filho é chamado a fazer da sabedoria de outrem (a do pai, enraizada na de Deus) o eixo da própria vida, a ponto de remodelar até a postura do corpo. O eco com outros chamados paternos em Provérbios 1–9 (por exemplo, “Filho meu, ouve a instrução de teu pai” em Provérbios 1:8 e “Filho meu, atende às minhas palavras” em Provérbios 4:20) mostra que a verdadeira autoridade paterna aqui é mediadora da própria voz de Deus, preparando o caminho para ecos neotestamentários em que o Pai chama o Filho amado e, nele, todos os filhos adotivos (como em Hebreus 12:5–11).

Aqui o vocativo “filho meu” não é apenas o suspiro íntimo de um pai qualquer, mas a voz de um mestre que se insere numa cadeia de discursos sapiencais cuidadosamente arquitetada entre os capítulos 1 e 9. Toy mostra que essa primeira grande unidade é “um grupo de discursos sobre sabedoria e conduta sábia”, no qual o capítulo 5 ocupa um lugar bem definido como “advertência contra as mulheres impuras”, ao lado de outras peças que também giram em torno da formação moral de um jovem num mundo urbano cheio de armadilhas. (TOY, A critical and exegetical commentary on the Book of Proverbs, 1899, p. vii–viii).

Nesse cenário, o chamado “atenta” é quase o toque de trombeta de uma escola de sabedoria: o mestre convoca o discípulo a entrar numa tradição de observação, reflexão e autocontrole que visa produzir um caráter capaz de sobreviver à cidade, às transações, às seduções. Toy descreve Provérbios como uma espécie de “manual de conduta”, um florilégio de gnomos que pretende orientar a vida doméstica, agrícola, urbana e até política. (TOY, 1899, p. xi). Assim, “filho meu” não é só ternura; é a inscrição do ouvinte numa guilda pedagógica em que a sabedoria se torna um patrimônio compartilhado, transmitido como herança mais preciosa que campos e casas.

A imagem de “inclinar o ouvido” coloca o corpo inteiro em atitude de atenção: o jovem é convidado a curvar-se, a ajustar a postura para ouvir melhor, como quem se aproxima de uma voz baixa e séria. No pano de fundo que Toy traça, Provérbios supõe uma comunidade em que a instrução é sistemática: há “sábios” (ḥăkāmîm), há um “aparato de ensino”, e os termos para “instrução” e “disciplina” aparecem com tanta frequência que sugerem um ambiente escolarizado, ainda que doméstico, em que o ouvido treinado vale tanto quanto a mão trabalhadora. (TOY, 1899, p. xii).

Inclinar o ouvido, nesse horizonte, é aceitar entrar numa ordem rítmica de palavras e máximas que serão repetidas, memorizadas, saboreadas até se tornarem reflexo. O mestre de Provérbios não se apresenta como profeta extático, mas como observador paciente da vida; ele fala “em seu próprio nome”, sem invocar revelações espectaculares, e a “lei” à qual remete é a lei interior da consciência que se afinou com o temor do Senhor. (TOY, 1899, p. xv). O ouvido que se inclina, portanto, é o ponto de encontro entre tradição e liberdade: é o lugar onde o jovem decide se deixará que a sabedoria de gerações passe a habitar seu próprio julgamento.

A tradição rabínica lê esse “filho meu” como o chamado constante da Torá aos discípulos em todas as gerações. O Midrash Mishlei sobre “Ouve, meu filho, a disciplina de teu pai” em Provérbios 1:8 declara que a “disciplina do pai” é a Torá escrita e o “ensinamento da mãe” é tudo o que foi explicado em Sinai, a Torá oral, mostrando que o vocativo “meu filho” ultrapassa a família biológica e nomeia Israel como aluno da revelação (Midrash Mishlei 1:8). Nessa chave, o apelo de Provérbios 5:1 é lido como a voz da Torá chamando o discípulo a se curvar, não apenas com o ouvido físico, mas com o coração inteiro, ao ensino que desce de Sinai e passa, de mestre em mestre, como descreve a cadeia de transmissão de Pirkei Avot 1:1, em que Moisés recebe, transmite a Josué, aos anciãos, aos profetas e, enfim, aos Sábios da Grande Assembleia. A literatura talmúdica reforça essa ampliação ao afirmar que, em termos espirituais, o mestre que ensina sabedoria tem uma prioridade até maior que o pai biológico, porque o pai introduz o filho neste mundo, mas o mestre o introduz “na vida do mundo vindouro” (Bava Metzia 33a), o que colore o “filho meu” de Provérbios 5 como um chamado de um mestre que dá a vida verdadeira. Assim, ao ouvir “Filho meu! Atenta…”, o leitor judaico, guiado por Sábios e midrashim, escuta a voz encadeada da tradição, impondo sobre o discípulo o jugo doce da Torá, como o jugo colocado sobre o boi jovem no Midrash Mishlei a propósito de educar a criança: um fardo que parece pesado no início, mas que conduz à verdadeira liberdade.

Aqui a voz que chama “filho meu” não é apenas a de um pai terreno sentado à beira da cama, mas a própria Sabedoria de Deus batendo à porta do coração. Em cada “filho meu” ressoa o “Filho meu” que Deus pronunciou sobre Israel em Êxodo 4:22, chamando o povo de “meu filho, meu primogênito”, e que depois se concentra de modo absoluto em Jesus, o Filho amado em quem o Pai tem prazer, segundo Mateus 3:17. Quando este pai de Provérbios diz “minha sabedoria”, ele empresta a sua voz à sabedoria que vem de cima, como um catequista que fala, mas por detrás dele passa um rio mais fundo. Devocionalmente, o versículo é um espelho: cada um de nós se vê sentado como menino diante de um Pai que, desde a alvorada da criação, repete o mesmo apelo — “atenta”. Não é um grito estridente, é um chamado insistente, desses que não machucam o ouvido, mas pesam na consciência. A sabedoria aqui é dom e mandato: dom, porque vem de fora, da boca de Deus; mandato, porque exige atenção. Em Deuteronômio 6:4-7, a mesma linha se prolonga: “Ouve, Israel... estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração... as inculcarás a teus filhos”. O pai de Provérbios 5 é herdeiro desse Shemá, e o cristão, ao lê-lo, enxerga atrás da cortina a figura de Cristo, em quem “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” estão escondidos (Colossenses 2:3). Ouvir este “Filho meu” é, então, consentir em ser reeducado pelos caminhos de Deus: é quando o orgulhoso se deixa tratar como criança, o autossuficiente aceita sentar-se no chão da sala de aula divina. A alma que atende torna-se escola ambulante de Deus; a que não atende, faz-se órfã por escolha.

Inclinar o ouvido é gesto de quem se curva sem ver, confiando no que escuta. A metáfora sugere corpo que se dobra para ouvir melhor, como Maria sentada aos pés de Jesus, em Lucas 10:39, enquanto Marta se dispersa nos serviços. O ouvido inclinado é o contrário da nuca dura de que se queixam os profetas quando falam de Israel: povo de “cerviz dura” (Êxodo 32:9), que não se inclina nem mesmo sob o peso da glória. Devocionalmente, o versículo nos pergunta em silêncio: a quem tens inclinado teu ouvido? Ao noticiário que te inquieta? À serpente que, desde Gênesis 3, sussurra meios-termos? Ou ao Pai que, em Hebreus 12:5–6, repete: “Filho meu, não desprezes a disciplina do Senhor”? O verbo “inclinar” sugere um descentramento: o ouvido sai do centro, a voz de Deus passa a ocupar o lugar central. Vieira diria que o ouvido é a porta da alma, por onde entra o hóspede que regerá a casa; se a porta se inclina para a rua, entra o tumulto; se se inclina para o santuário, entra a paz. A vida espiritual amadurece quando o crente aprende essa arte: fechar o ouvido para o mel dos elogios fáceis e abri-lo para a admoestação que salva; calar o ruído interior para que a delicada voz da Palavra o governe. Assim se cumpre, em miniatura, o que Jesus repetiu tantas vezes: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Ouvidos todos têm; o problema está em quantos se dispõem a incliná-los.

Provérbios 5:2

Para observares a sabedoria, e guardem os teus lábios o conhecimento. (Hb.: lishmor mezimmot vedaat sefatêkha yintseru — “para guardares desígnios prudentes, e que o conhecimento guardem os teus lábios”). O infinitivo lishmor (“guardar”) vem de shamar, verbo clássico da aliança, usado para “guardar os mandamentos”, cuidar de um jardim, vigiar uma cidade. Aqui, ele rege mezimmot, plural de mezimmah, termo ambíguo que pode designar planos perversos ou, como neste contexto, cálculos prudentes, deliberação sábia; é como se o texto dissesse: “que a sabedoria te habilite a arquitetar bons planos em vez de tramas obscuras”. Em paralelo, daat (“conhecimento”) é aqui o conteúdo interiorizado da revelação, não mera informação, e está ligado à boca pelo sintagma sefatêkha yintseru (“os teus lábios guardarão”): o verbo natsar (na forma yintseru) reforça o campo semântico de “guardar, vigiar, proteger”, sugerindo lábios que não apenas falam, mas vigiam o que deve ser dito. Morfologicamente, o versículo articula dois propósitos da escuta do versículo anterior: no interior, a mente passa a reter mezimmot sábias; no exterior, a fala se torna guardiã de daat. A sintaxe apresenta um paralelismo em que o primeiro cola a sabedoria ao coração e o segundo cola o conhecimento aos lábios, costurando dentro e fora. Exegeticamente, a ideia é que a verdadeira sabedoria se traduz em prudência estratégica e em fala calibrada: o coração aprende a planejar, a boca aprende a não desperdiçar palavras. O pano de fundo de Provérbios 10–15, onde a relação entre coração, língua e destino é repetidamente reforçada (“A morte e a vida estão no poder da língua”, em Provérbios 18:21), já está aqui em germe. E, pela janela do Novo Testamento, a cena lembra como Jesus conecta boca e coração (“a boca fala do que está cheio o coração”, em Mateus 12:34), mostrando que lábios guardados por daat são lábios enraizados em um coração instruído.

O versículo descreve o alvo pedagógico do apelo anterior: que o aluno se torne alguém capaz de guardar “mezimmōt” — planos, desígnios ponderados — e de ter os lábios vigiados pelo “conhecimento”. Toy caracteriza o livro inteiro como empenhado na inculcação de “virtudes sociais cardeais”, entre as quais sobressaem a discrição, a veracidade e a prudência nas palavras. (TOY, 1899, p. viii). Não se trata apenas de evitar gafes, mas de formar uma pessoa cujos projetos interiores e cujo discurso exterior caminhem juntos na direção da justiça e da paz.

Dentro dessa moldura, o domínio da língua é um tema ético de primeira grandeza. Toy salienta que uma parte significativa das máximas de Provérbios gira em torno da “honestidade e veracidade na vida pública e privada”, especialmente nas “transações comerciais e nos tribunais”. (TOY, 1899, p. xii–xiii). Os lábios guardados pelo conhecimento não são apenas lábios que evitam a mentira grosseira, mas lábios que se tornam instrumentos de reconciliação, que não espalham calúnia, que não inflamam contendas. Por trás da forma breve do provérbio está toda uma crítica à cultura urbana do “boato”, da retórica manipuladora, das palavras usadas como armas — cenário que faz de 5:2 uma espécie de antídoto inicial antes de enfrentar o veneno da “mulher estranha”.

Os rabinos ligam fortemente sabedoria e lábios, porque, para eles, a Torá só se torna viva quando passa pela boca, em ensino e resposta. Pirkei Avot abre descrevendo uma Torá recebida e “transmitida” — verbo que supõe a palavra pronunciada — e conclui instruindo que se erga uma “cerca em torno da Torá”, imagem que muitos comentaristas entendem como disciplina da linguagem, das decisões e dos pronunciamentos legais (Pirkei Avot 1:1). Na mesma coleção, Avot 2:9 elogia aquele cuja “sabedoria é acompanhada por um bom coração”, sugerindo que não basta acumular conteúdo; é preciso que a boca fale a partir de um centro interior transformado. À luz disso, os lábios que “guardam o conhecimento” em Provérbios 5:2 foram frequentemente conectados, nos comentários rabínicos, à função do estudioso que recita Torá e halachá de modo fiel, sem tomar a palavra sagrada em vão, o que ecoa as advertências talmúdicas contra o uso leviano da boca em assuntos de pureza sexual e espiritual, como em Nedarim 20b, onde a mesma expressão “lábios” se torna símbolo de manipulação e engano quando não guiada pela disciplina da Torá. Assim, a literatura rabínica lê neste versículo um chamado para que a boca se torne “arca” da sabedoria, onde o que é recitado é também o que foi interiorizado, de modo que lábios e coração estejam alinhados.

A sabedoria, aqui, já não é apenas algo contemplado, é um patrimônio que se guarda como se guarda um testamento num cofre. “Desígnios prudentes” são planos alinhados com a vontade de Deus, projetos que não se fazem à revelia do céu. É como se o texto dissesse: escuta, para que um dia sejas tu mesmo capaz de planejar segundo o coração de Deus. Em 2 Crônicas 1:10, Salomão pede a Deus “sabedoria e conhecimento” para sair e entrar diante do povo; o pedido é uma confissão de incapacidade: sem a sabedoria divina, o plano humano é castelo de cartas. O discípulo de Jesus, por sua vez, encontra eco dessas linhas quando Tiago aconselha: “Se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus” (Tiago 1:5), e quando insiste que a sabedoria do alto é “primeiramente pura, depois pacífica...” (Tiago 3:17). Guardar sabedoria é guardar este estilo de pensar, que é puro e pacificador, não apenas estratégico. Devocionalmente, isso significa que cada manhã se torna oficina de planejamento com Deus: o coração abre o mapa do dia, e o Espírito vai riscando e reescrevendo caminhos. Não se trata de vida sem desejo, mas de desejo convertido: o homem que outrora planejava como esconder o pecado agora planeja como esconder a Palavra no coração, para não pecar contra o Senhor, como o salmista em Salmos 119:11. Guardar sabedoria é transformar a mente num sacrário de intenções limpas.

A ordem aqui se inverte: não são os lábios que guardam o conhecimento, é o conhecimento que guarda os lábios, como sentinela de boca. A imagem é delicada e severa ao mesmo tempo: a sabedoria posta no coração ergue muralha à porta da boca, seleciona o que entra e o que sai. Em Isaías 6, o profeta sente seus lábios “impuros” no meio de um povo de lábios impuros, até que uma brasa do altar toca a sua boca e a purifica; aqui, o que toca os lábios é o conhecimento da vontade de Deus, que se torna fogo e filtro. Jesus dirá mais tarde que “a boca fala do que está cheio o coração” (Mateus 12:34); Provérbios 5:2 antecipa esse diagnóstico e o transforma em apelo: enche-te de conhecimento, para que a boca se torne fonte de verdade. Devocionalmente, isso desce à nossa convivência: quantas vezes nossas palavras, sem passarem pelo crivo do conhecimento de Deus, ferem como espada, alimentam a sedução em vez de a combater? O mesmo lábio que canta hinos no domingo pode, na segunda, emprestar-se à conversa maldosa, ao flerte irresponsável, à insinuação que desperta fogo estranho. Deixar que o conhecimento guarde os lábios é um ato diário, quase litúrgico: antes de falar, o coração pergunta à Palavra — isto edifica? isto honra a aliança? isto cura ou envenena? Assim, pouco a pouco, a língua se converte de serpente em pomba, e os lábios se tornam fronteira do Reino.

Provérbios 5:3

Porque os lábios da mulher estranha destilam mel, e a sua boca é mais macia do que o azeite. (Hb.: ki nophet tittopnah sifte zarah veḥalaq miššemen ḥikkah — “porque favo de mel gotejam os lábios da mulher estranha, e mais suave do que o óleo é o seu paladar”). O advérbio causal ki (“porque”) amarra este versículo aos dois anteriores: a necessidade de sabedoria e de lábios que guardam conhecimento nasce do fato de existir um discurso alternativo, sedutor, que tenta capturar o filho. Nophet designa o mel em forma de favo, o mel bruto, espesso e perfumado, imagem de doçura concentrada; o verbo tittopnah (“gotejam”), de nataph (“gotejar”), sugere um fluxo lento e contínuo, quase hipnótico, como gotas que caem ritmadas de um favo pendente. Sifte zarah (“lábios de mulher estranha”) traz a figura da ishah zarah, a mulher de fora, estrangeira à aliança, que em Provérbios 1–9 funciona tanto como tentadora concreta quanto como personificação de qualquer sedução que desvia do temor do Senhor. A segunda linha intensifica a metáfora: veḥalaq miššemen ḥikkahḥalaq (“liso, escorregadio, suave”) é adjetivo usado para lisonja e discurso adulador; miššemen (“do que o óleo”) cria comparação com o óleo, símbolo de suavidade, cura e alegria; ḥikkah (“seu paladar”) é mais do que boca física, é o lugar do gosto e da fala articulada. Morfologicamente, o paralelismo é sinonímico: lábios que gotejam mel = paladar mais suave que óleo. A sintaxe reforça a progressão das imagens, dos lábios à boca, da doçura ao deslizante. O texto desmascara a lógica da tentação: o primeiro contato é sempre doce, polido, agradável, com palavras que parecem cuidar, elogiar, acolher. Mas a doçura é enganosa, como mel que esconde veneno. A oposição entre a “mulher estranha” de Provérbios 5 e a “esposa da tua mocidade” em Provérbios 5:18–19 mostra que não se trata de um ataque à sexualidade em si, mas à sexualidade desenraizada da aliança. No horizonte maior da Escritura, a sedução da mulher estranha antecipa a sedução da “grande prostituta” em Apocalipse 17–18 e dialoga com os alertas apostólicos sobre “palavras suaves e lisonjeiras” que enganam os simples (como em Romanos 16:18), lembrando que nem todo mel alimenta: há mel que gruda e aprisiona.

O hebraico fala de lábios que “gotejam favo de mel”, imagem de sedução doce, lenta, quase hipnótica. Toy observa que os “avisos contra a falta de castidade” constituem característica especial da primeira grande seção do livro, e menciona que um dos termos para a prostituta, “mulher estranha” (’iššā zārā), designa justamente essa prática como um atentado contra o bem-estar da família. (TOY, 1899, p. xii). O mel, aqui, é saboroso mas perigoso: é alimento roubado, que não nasce da aliança, mas da ruptura.

Historicamente, esse retrato se insere num ambiente em que a cidade traz novas possibilidades e novos riscos. Toy sublinha que o livro foi forjado em um contexto de “alta cultura moral”, no qual moralistas urbanos observam de perto crimes de perjúrio, roubo e adultério, situando o sexo ilícito no mesmo horizonte de ameaças à paz social que a violência econômica e a injustiça judicial. (TOY, 1899, p. xii–xiii). Os “lábios que destilam mel” pertencem a esse universo: não são apenas a metáfora de um encontro privado, mas o ponto onde a fragilidade da casa se encontra com uma economia de prazer que pode desestruturar heranças, contratos, alianças e, em última instância, a própria coesão da comunidade.

A comparação com o azeite aprofunda o campo semântico da sedução: o óleo unge, suaviza, perfuma; é símbolo de festa e de consagração. Aqui, porém, o que deveria ser sinal de alegria cultual e doméstica converte-se em textura do engano. Na leitura global de Toy, a obra de Provérbios busca gerar uma vida “segura, pacífica e feliz” na família e na comunidade, e por isso combate com vigor tudo o que mina a estabilidade: a língua maldosa, a preguiça, a injustiça — e, de modo insistente, a sexualidade desregrada que transforma a casa em campo de batalha. (TOY, 1899, p. xi–xii).

A “boca mais macia que o azeite” é, nesse sentido, o avesso profano do óleo de alegria: em vez de consolidar alianças, dissolve; em vez de curar feridas, abre chagas. Toy nota que, nas seções em que a mulher é apresentada positivamente — como esposa e dona de casa exemplar — ela é “uma força no lar, capaz de torná-lo miserável ou feliz”, dotada de sabedoria ampla. (TOY, 1899, p. xii–xiii). A “mulher estranha” é a antítese dessa figura: ela pega a linguagem do perfume e do óleo, próprios de festa e de culto, e os põe a serviço de um caminho que romperá a aliança em vez de selá-la.

Aqui, a literatura rabínica se detém longamente. O Midrash Mishlei sobre este versículo adverte: “Meu filho, toma cuidado com a mulher prostituta, para que ela não te desvie com as palavras de seus lábios, e para que a suavidade do seu paladar não te faça errar após a sua voz” — sublinhando o poder da retórica doce, que precede a queda (Midrash Mishlei 5:2) A tradição exegética posterior radicaliza essa leitura ao identificar a “mulher estranha” com a própria heresia (minut): em um compêndio de Rashi sobre Provérbios 5, “os lábios da mulher estranha” são explicitamente glossados como “heresias”, e o seu paladar liso como o discurso sedutor que se sustenta em palavras de Torá, mas as torce para fins estranhos (Mishlei 5 – Rashi). Essa linha é retomada por mestres mais recentes: Rav Kook, por exemplo, associa “os lábios que destilam mel” ao sistema religioso cristão como forma de minut que se apresenta revestida de amor e piedade, mas arrasta consigo violência e desordem moral, lendo nossa passagem como metáfora dessa sedução (Otzrot HaRa’ayah VII, ad Mishlei 5:3). Em outra direção, textos chassídicos como Peri Tzadik descrevem a mesma expressão “lábios da estranha” como figura do apikoros, o cético que, a partir de um discurso aparentemente espiritual, passa a negar julgamento e justiça, dissolvendo todo senso de responsabilidade diante de Deus (Peri Tzadik, Devarim 3). Assim, entre midrash e misticismo, a “mulher estranha” torna-se, na leitura rabínica, tanto a figura concreta da prostituição quanto a personificação de sistemas ideológicos que usam mel e óleo — doçura e suavidade — para afastar o coração da fidelidade à Torá.

O quadro muda de tom: depois da boca guardada pela sabedoria, entra em cena a boca desguardada pela insensatez. A “mulher estranha” é, ao mesmo tempo, figura concreta e símbolo, personificação de toda sedução que não passa pelo crivo da aliança. Seus lábios destilam mel: não é o mel da terra prometida, que mana leite e mel sob a bênção de Deus (Êxodo 3:8), mas o mel clandestino, apanhado em colmeias alheias, como em Provérbios 9:17: “As águas roubadas são doces”. É o mel que escorre sobre a língua, mas não alimenta; adocica o momento, azeda a existência. Teologicamente, a cena remete à primeira sedução em Gênesis 3: a serpente também “destila mel” em forma de discurso: “sereis como Deus”. O “mel” da promessa não é mentira total, é meia verdade de sabor intenso, que esconde o veneno. No Novo Testamento, Paulo desmascara pregadores que adoçam o evangelho com palavras lisonjeiras, mas servem aos próprios apetites (Romanos 16:18). Devocionalmente, este verso é um aviso à alma: nem todo mel é maná, nem todo elogio é bênção, nem toda companhia agradável é dom de Deus. Há vozes que se aproximam com a doçura de quem nos compreende, mas, debaixo da ternura, carregam um convite à infidelidade — conjugal, espiritual, ética. Quando o texto diz “porque”, está explicando por que é tão urgente guardar os lábios e o coração: porque lá fora há lábios treinados para adoçar o pecado até que pareça inocente.

Se o mel fala ao paladar, o azeite fala à pele: unge, suaviza, perfuma. Em toda a Escritura, o óleo é sinal de consagração e alegria — utensílios, sacerdotes e reis eram ungidos com óleo para o serviço de Deus (Êxodo 30:25–30). Aqui, o óleo é profanado: a boca da estranha se reveste de linguagem sacra para oferecer culto a outro altar. É uma liturgia invertida: em vez de óleo que separa para Deus, azeite que lubrifica o caminho do pecado. Lembremos do Salmo 23: “unges-me a cabeça com óleo”; ali, a unção é gesto de hospitalidade divina, sinal de que Deus nos recebe à sua mesa. Em Provérbios 5, a mulher estranha também oferece mesa, mas a toalha é outra: o azeite que alisa sua boca prepara um banquete cujo fim é amargura. No Apocalipse, a grande Babilônia se enfeita com ouro, pedras preciosas e perfumes (Apocalipse 18:12–13), seduzindo os reis da terra; a boca macia desta mulher faz parte do mesmo arsenal. Devocionalmente, o texto nos treina a suspeitar da suavidade que não traz consigo a cruz. Palavra que nunca confronta, afeto que nunca corrige, elogio que nunca chama ao arrependimento, são óleo escorregadio de lábios estranhos. O cristão maduro aprende a distinguir a maciez do Bom Pastor — que unge para curar — da maciez do mercenário — que unge para adormecer o rebanho antes de vendê-lo.

Provérbios 5: Significado, Explicação e Devocional

Provérbios 5:4

Mas o seu fim é amargo como o absinto, agudo como a espada que a fere. (Hb.: veaḥaritah marah kallaʿanah ḥaddah keḥerev piyyot — “mas o seu fim é amargo como o absinto, afiada como uma espada de dois gumes”). O contraste é marcado por veaḥaritah (“mas o seu fim”), derivado de aḥarit, termo que pode designar o desfecho, o futuro, a última cena da história de alguém. A sabedoria bíblica olha sempre para o aḥarit: o que parece doce na entrada pode ser devastador na saída. O adjetivo marah (“amargo”) reverte a imagem do mel; em vez da doçura espessa do nophet, temos o gosto áspero de laʿanah, uma planta conhecida por sua extrema amargura, frequentemente associada a juízo e maldição, como em outras passagens do Antigo Testamento que falam da “erva de amargura”. A segunda metáfora acrescenta a dimensão da dor cortante: ḥaddah (“afiada”) qualifica ḥerev piyyot, literalmente “espada de bocas”, isto é, uma espada de duas lâminas ou de dois fios; o hebraico usa “bocas” como imagem dos gumes que “devoram”. Morfologicamente, a estrutura paralela reúne dois predicados do mesmo sujeito (o “fim” da mulher estranha e de sua proposta): amargo como laʿanah, afiado como espada de múltiplos gumes. O versículo está em oposição direta com o anterior: lábios doces → fim amargo; boca suave → espada cortante. Exegeticamente, o texto insiste que a experiência do pecado é sempre assimétrica: a entrada é atraente, mas o desfecho é desolador. A imagem da espada de dois gumes encontrará eco explícito no Novo Testamento, onde a Palavra de Deus é descrita como “mais cortante do que qualquer espada de dois gumes” em Hebreus 4:12, mas ali a lâmina fere para curar, discernir e salvar, enquanto aqui a lâmina da sedução fere para destruir. Provérbios, portanto, educa o olhar para além do instante: convida o leitor a saborear antecipadamente a amargura do fim, para que não se deixe capturar pela doçura inicial.

No horizonte em que Toy situa o livro, a vida é contemplada “no seu lado exterior e visível, como um conjunto de atos”, e a sabedoria se dedica a mostrar que cada gesto carrega um “fim” — uma ’aḥarît — que nem sempre coincide com a aparência inicial. (TOY, 1899, p. xiii). A metáfora do absinto projeta essa pedagogia em cores fortes: a bebida amarga que sobe à língua depois do gole doce, a lâmina que só se revela quando a sedução já envolveu o coração.

A “espada de dois gumes” dialoga com o universo jurídico e militar em que Toy vê o livro se mover: um mundo de tribunais, contratos, conflitos políticos, onde violência e injustiça não são abstrações, mas realidades concretas. (TOY, 1899, p. xi). Ao aplicar essa imagem à relação sexual ilícita, o sábio traduz a experiência de muitos: o prazer breve, seguido de uma série de cortes — honra ferida, confiança destruída, patrimônio fragmentado, filhos divididos — que rasgam não apenas o indivíduo, mas todo o tecido social.

O mesmo Midrash Mishlei que explicou a doçura inicial da “mulher estranha” volta a insistir na inversão de fim: aquilo que começa em palavras suaves termina em ferida (Midrash Mishlei 5:2) Essa estrutura — doçura aparente, amargor final — é largamente explorada pela homilética rabínica para falar do yetzer ha-raʿ (inclinação má): Sukkah 52b descreve o yetzer ha-raʿ como algo que se apresenta pequeno e manejável, mas cresce até esmagar o homem, e diversos pregadores ligados a essa tradição usam Provérbios 5 como texto-âncora para mostrar como o prazer proibido parece leve no começo e se torna espada no fim. Em Berakhot 5a, quando os Sábios aconselham “atrair” o yetzer ha-raʿ para a casa de estudo, comentadores chassídicos citam nossa passagem (“os lábios da mulher estranha… o seu fim é amargo”) para mostrar que o estudo de Torá é o único antídoto capaz de inverter o final da história, deslocando o amargor para o pecado em vez de para o pecador. Em leituras místicas posteriores, como em textos de Ben Ish Chai, a “espada de dois gumes” é lida como a própria palavra humana: os mesmos lábios que podem ferir — pactuando com a “estranha” — são também capazes de proclamar Torá e, assim, cortar as amarras da tentação. A doçura enganosa do início e a espada amarga do fim, assim, tornam-se um esquema quase paradigmático para falar de toda sedução espiritual que começa com brilho e termina em ruína.

A conjunção “mas” é o clarão de verdade que rasga a ilusão: mel e azeite eram o prólogo; agora o texto aponta para o epílogo. O “fim” (ʾaḥarît) é palavra constante na sabedoria bíblica: ela ensina a olhar não apenas para o começo luminoso de um caminho, mas para o seu desfecho. O absinto, erva amarga associada ao juízo e à idolatria (Jeremias 9:15), aparece aqui como gosto que sobra na boca depois que o mel se vai. É como se a Escritura nos pusesse diante de dois cálices: o cálice da sedução, doce na borda e amargo no fundo; e o cálice da obediência, às vezes amargo na borda — negar-se a si mesmo, tomar a cruz —, mas doce no fim, como o vinho novo do Reino. Jesus, no Getsêmani, escolheu o cálice amargo da vontade do Pai (Mateus 26:39), para que nós não precisássemos beber até o fundo o cálice da ira e do absinto. Quem se entrega à “mulher estranha” — qualquer forma de infidelidade — inverte a escolha: recusa o cálice da cruz e abraça o cálice do absinto, ainda que disfarçado de cristal. Devocionalmente, este versículo nos convida a exercitar uma espécie de imaginação escatológica: antes de ceder ao mel, provar, em pensamento, o absinto do fim; antes de ceder à fantasia, ver o rosto dos feridos que ficarão pelo caminho — cônjuge traído, filhos confundidos, igreja escandalizada, comunhão quebrada. Quem medita no “fim” do pecado começa a desgostar da doçura do início.

A mesma boca que parecia acolhedora torna-se lâmina. A espada de dois gumes corta para ambos os lados; assim também o pecado sexual e espiritual fere a quem seduz e a quem é seduzido. Em Hebreus 4:12, a Palavra de Deus é chamada de espada de dois gumes que discerne pensamentos e intenções do coração; aqui, a espada é a consequência da Palavra desobedecida. Onde a espada da Escritura não nos corta em arrependimento, a espada da história nos corta em julgamento. Na narrativa de 2 Samuel 11–12, Davi experimenta algo semelhante: a mulher no terraço é mel e azeite à distância; mas o “fim” dessa aventura é espada que não se aparta da casa dele (2 Samuel 12:10). Teologicamente, Provérbios 5:4 antecipa esta lei moral que se cumpre ao longo de toda a Bíblia: o pecado que acariciamos com a mão será, um dia, espada voltada contra o nosso peito. O verso é um apelo ao temor santo: não basta saber que Deus perdoa; é preciso tremer diante das cicatrizes que o perdão não apaga — relacionamentos quebrados, memórias feridas, oportunidades perdidas. A graça limpa a culpa, mas não apaga a história. É melhor deixar-se cortar hoje pela espada da exortação, do que ser dilacerado amanhã pela espada das consequências.

Provérbios 5:5

Os seus pés descem à morte, e os seus passos acorrem ao inferno. (Hb.: ragleyha yordot mavet, sheol tzeadeha yitmoku — “os seus pés descem à morte; ao Sheol, os seus passos se agarram”). A imagem muda do paladar para o movimento: de lábios e boca passamos a pés e passos. Ragleyha (“os seus pés”) personifica toda a direção de vida dessa mulher e, por extensão, de qualquer caminho de infidelidade. O verbo yordot (“descem”), de yarad, cria uma topografia espiritual: seguir essa rota é sempre um movimento descendente, uma espécie de escada rolante para baixo, mesmo quando a sensação é de ascensão social, prazer ou poder. O destino é mavet (“morte”), aqui não apenas o cessar biológico da vida, mas um estado de separação e ruína. A segunda linha traz sheol, o reino dos mortos, profundidade sombria que, no imaginário bíblico, é o lugar para onde vão os que foram arrancados da terra dos viventes. O verbo yitmoku é difícil, mas no contexto assume o sentido de “apoiar-se, agarrar-se, firmar-se”: os passos dela são como colunas que se fincam no Xeol, estabilizando-se ali. Morfologicamente, os dois membros apresentam sujeito feminino singular (“os pés dela / seus passos”) com verbos que descrevem movimento e fixação. A metáfora enfatiza que a sedução não é neutra nem estática: tem direção, tem gravidade, tem destino. Aquele que segue a mulher estranha não está apenas “brincando”; está embarcando numa descida real, mesmo que invisível a curto prazo. A literatura sapiencial como um todo reforça essa teologia do caminho (por exemplo, a oposição entre o “caminho dos justos” e o “caminho dos ímpios” em Salmos 1), e o Novo Testamento retoma a mesma lógica quando Jesus fala de uma “porta larga” e um “caminho espaçoso” que conduzem à perdição, em contraste com o caminho estreito que leva à vida, em Mateus 7:13–14. Aqui, os pés que descem à morte são a antecipação desta estrada larga.

Aqui, o corpo inteiro entra na cena: não mais apenas lábios e boca, mas pés que trilham um declive. Toy mostra que a ética de Provérbios é fortemente “exterior”: a vida é vista como um caminho feito de atos visíveis, e as pessoas são julgadas pela conformidade ou não a uma lei que estrutura esse caminho. (TOY, 1899, p. xiii–xiv). Falar de “pés que descem à morte” é, portanto, uma maneira concreta de dizer que certas escolhas têm um movimento constante, quase gravitacional, em direção ao colapso da vida.

Mais adiante, na introdução, Toy observa que o livro contempla a possibilidade de uma “felicidade universal” como ideal último, mas reconhece “a existência do mal moral e físico” sem tentar explicar sua origem. (TOY, 1899, p. xiv–xv). A mulher estranha representa precisamente o ponto em que esse mal se encarna num caminho: quem a segue não entra num estado neutro, mas passa a descer uma escadaria cujos degraus são culpas, medos, culpas ocultas, doenças, violência. A imagem da descida à morte não é apenas teológica; é também sociológica: mostra o movimento de quem se afasta progressivamente de uma vida ordenada em direção à ruína.

O termo “inferno” nas traduções tradicionais corresponde aqui a Sheol, o mundo dos mortos. Toy, ao tratar da escatologia de Provérbios, afirma que o Sheol é concebido de modo “simples e primitivo”: é a morada de todos os mortos, “sem significado moral”; não há julgamento pós-morte que reorganize as posições, e o juízo divino se manifesta “no último momento de vida” (TOY, 1899, p. xvi). Isso torna ainda mais contundente a linguagem de 5:5: descer ao Sheol não é apenas “ir para o além”, mas cair precocemente num fim que poderia ter sido evitado, experimentar morte como ruptura brutal da promessa de longevidade da sabedoria.

No contexto histórico de Provérbios, longevidade, descendência e estabilidade são sinais da bênção divina nesta vida. Por isso, um caminho que “acorre ao Sheol” é tudo o que nega esse ideal: é a trilha dos assassinatos passionais, das vinganças, das doenças resultantes de vida desregrada, das intrigas que terminam em sangue. Toy sublinha que os sábios estão preocupados com “como tirar o melhor da vida”, não com especulações metafísicas sobre o além (TOY, 1899, p. xiv). Vista à luz dessa preocupação, a frase não é apenas doutrina sobre morte; é diagnóstico social de um meio em que certas escolhas sexuais e morais encurtam, de fato, a existência.

A literatura rabínica gosta de ler os “pés” como metáfora dos movimentos decididos da vida — a direção em que o ser inteiro caminha. Rav Kook, comentando precisamente sobre Provérbios 5:5 e 7:27, fala do “caminho que leva a Sheol” como símbolo de tudo o que destrói a “interioridade dos valores da vida”, retomando a mesma figura da “mulher estranha” como doutrina que parece espiritual mas conduz o povo à esterilidade interior (Otzrot HaRa’ayah VII, ad Mishlei 5:5; 7:27). Em Nedarim 20b, um trecho de homilia chassídica associa a queda de Esaú — que “caçava com a boca” — ao caminho da “estranha” de Provérbios 5, indicando que os pés que descem à morte começaram por lábios que caçam. Outra linha de leitura, preservada em coleções homiléticas modernas que reúnem passagens de Chazal, cita Provérbios 5:3–20 ao lado de Provérbios 27:10 para advertir contra o “mau vizinho”: o conselho “afasta o teu caminho dela” (5:8) é equiparado à ordem de se afastar da companhia que empurra para baixo, ecoando a máxima de Avot 2:9 sobre o “bom amigo” e o “mau vizinho” como fatores decisivos do caminho moral (Comentário sobre Mishlei 5:6 e 27:10). Assim, a descida à morte em Provérbios 5:5 é lida, na literatura rabínica, como o resultado acumulado de passos pequenos, dados ao lado de companhias e doutrinas que, pouco a pouco, inclinam o percurso para o Sheol.

Depois da boca e da espada, a atenção se desloca para os pés. A vida é descrita como uma descida, não como um salto: os pés vão descendo degrau por degrau, às vezes quase imperceptivelmente. Lembra o Salmo 73, onde o salmista confessa que “quase resvalaram os meus pés” ao invejar a prosperidade dos ímpios; mas aqui não é “quase”: os pés descem mesmo. E não descem para qualquer lugar, descem “à morte” — não apenas à morte física, que um dia nos alcança a todos, mas à morte ética, à morte da sensibilidade espiritual. Em Romanos 6:21, Paulo pergunta: “Que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? Porque o fim delas é a morte”. É como se ele estivesse comentando este versículo. Devocionalmente, isso nos leva a examinar nossos passos: para onde estão descendo os nossos pés quando ninguém vê? Para quais conversas a nossa agenda desce, para quais sites, para quais mensagens secretas? Ninguém cai de repente do telhado; primeiro subiu até lá por uma escada. Provérbios 5 desmascara a escada: cada pequeno passo na direção da “estranha” — do flerte preservado, da fantasia alimentada, do ressentimento cultivado — é um degrau a mais em direção à morte. A boa notícia é que, enquanto há vida, há tempo de voltar escada acima pela mão da graça.

Aqui a descida ganha um destino: Sheol, o mundo dos mortos, torna-se metáfora de toda existência separada da presença de Deus. No Antigo Testamento, o Sheol é sombra e silêncio; no Novo, a revelação é aprofundada: perdição, banimento, “trevas exteriores”. Jesus fala de um caminho largo que conduz à perdição (Mateus 7:13), e Provérbios 5:5 nos mostra, em close, os pés que percorrem esse caminho. Os passos “acorrem”, isto é, parecem apressados; há uma pressa estranha que acompanha o pecado: a adrenalina de fazer o proibido, de fugir com a “estranha”, de experimentar o que “todos fazem”. Mas o texto diz que esses mesmos passos se firmam no Sheol: cada decisão cria raízes num solo ou noutro. Teologicamente, isso evoca a seriedade da liberdade humana: Deus nos chama, adverte, cerca; mas não nos leva amarrados para o céu. Há um caminho que leva de volta ao Pai, pelo Filho; há outro que leva ao Sheol, pela autoentrega às seduções. Devocionalmente, é como se o autor pusesse diante de nós duas plantas de arquitetura: a casa construída sobre a rocha e a casa construída sobre a areia (Mateus 7:24–27). Os passos que correm atrás da “mulher estranha” são marteladas nessa casa de areia. O Espírito, pela Palavra, nos convida a interromper a corrida, a inverter o passo, a correr agora para o trono da graça, onde os pés de Cristo, traspassados, nos aguardam como degraus de misericórdia.

Provérbios 5:6

Não consideres a vereda da vida; não conheces as suas veredas. (Hb.: orach chayyim pen tefales, naʿu maʿggeloteha lo tedaʿ — “a vereda da vida, para que não a pondere; suas trilhas vagueiam, ela não as conhece”). O hebraico aqui é denso e, em parte, enigmático. Orach chayyim (“vereda da vida”) evoca um caminho principal, o eixo que leva à plenitude, em contraste com os atalhos sinuosos do pecado. O partícula pen (“para que não, a fim de que não”) geralmente introduz uma prevenção: o sentido é que a mulher estranha não quer que o discípulo ponderem o “caminho da vida”, ou que ela mesma não pondera esse caminho, dependendo de como se resolve o sujeito implícito. O verbo tefales, de palas (“pesar, avaliar, pavimentar”), sugere a imagem de alguém que mede, alinha e alisa um caminho; a vereda da vida precisa ser pesada, avaliada, escolhida com cuidado, não seguida por inércia. Em seguida, naʿu maʿggeloteha (“tremem / se desviam as suas trilhas”) traz o verbo nuaʿ (“balançar, oscilar, vaguear”), indicando instabilidade; maʿggelot são “trilhos, roldanas, percursos circulares”, imagens de trajetos repetidos que agora estão cambaleantes. O fecho lo tedaʿ (“ela não as conhece”) aponta para uma ignorância culpada: não é ignorância por falta de luz, mas por recusa de ponderar. Sintaticamente, o versículo contrasta o caminho objetivo da vida com as trilhas subjetivas, cambaleantes, da mulher; o foco está na oposição entre ponderar e vaguear. Exegeticamente, a ideia é que a sedução nunca convida à reflexão profunda: ela precisa de pressa, impulso, atalho, porque o exame detido da vereda da vida desmontaria o encanto. Por isso, em toda a Escritura, os convites de Deus vêm acompanhados de apelos ao “considerar” (como em Deuteronômio 32:29, “Quem dera fossem sábios, que isto compreendessem, e atentassem para o seu fim”, e em Hebreus 3:1, “considerai o Apóstolo e Sumo Sacerdote da nossa confissão”). A mulher estranha é o anti-espírito de ponderação: suas trilhas sacodem, os passos giram em círculos, e ela mesma já não sabe onde está.

A “vereda da vida” é a grande imagem organizadora da ética em Provérbios: uma estrada onde cada curva é um ato e cada bifurcação, uma decisão. Toy insiste que o livro não se preocupa em discutir a psicologia interna da decisão — não há exame sobre “consciência” ou “dever” como conceitos; o que aparece é o resultado visível de uma rota adotada. (TOY, 1899, p. xiii). A mulher descrita em 5:6 é alguém que não “pesa” esse caminho, não o “niveliza” (sentido do verbo palas); ela vive sem cartografia moral, enquanto suas trilhas se tornam cada vez mais tortuosas e imprevisíveis para quem se deixa conduzir por ela.

Nessa perspectiva, o versículo funciona como mapa de risco para o discípulo: seguir essa mulher é caminhar num terreno cujo traçado ele não domina. Toy menciona que os autores de Provérbios são “pensadores independentes”, que usam o material da tradição “livremente como literatura” e não como um código jurídico fechado, mas que vêem a vida como um cosmos moral ordenado, em que sabedoria e insensatez produzem trajetórias opostas. (TOY, 1899, p. xvii). A “vereda da vida” é justamente esse cosmos em miniatura; fugir dela é perder não apenas o rumo, mas o próprio horizonte no qual as escolhas podem ser avaliadas.

A imagem das veredas que não são ponderadas ressoa com muitas advertências rabínicas sobre o perigo de viver sem cheshbon ha-nefesh, o “exame da alma”, tema recorrente em obras de Mussar. Comentários que citam nossa passagem, como alguns glossários em Sefaria sobre Mishlei 5:6, relacionam a falta de ponderação com a decisão de deixar-se conduzir por prazeres imediatos, sem interrogar o fim, alinhando o versículo com a pergunta de Avot 2:9: “qual é o caminho reto ao qual o homem deve aderir?”. Em textos de ética rabínica posterior, a “vereda da vida” é identificada com o caminho da Torá, que exige reflexão constante; já as trilhas errantes da “estranha” simbolizam uma religiosidade que se abandona à emoção, sem a disciplina do juízo. A tradição de Avot, com sua ênfase em examinar o futuro (“quem é sábio? Aquele que vê o que está por nascer”, Avot 2:9), é colocada lado a lado com Provérbios 5:6 para advertir que o pecado começa quando se perde essa visão de longo alcance. A literatura rabínica, portanto, lê a “vereda da vida” não como um mistério inacessível, mas como um caminho que se torna invisível a quem recusa o exercício de pesar os próprios passos à luz da Torá.

Aqui o foco volta à cabeça e ao coração: o problema da “estranha” não é só moral, é também intelectual; ela não pondera o caminho da vida, não pesa consequências, não mede distâncias. As veredas da vida são como trilhos; quem as ignora viaja sem mapa. Em Jeremias 6:16, Deus conclama: “Ponde-vos nos caminhos e vede, e perguntai pelas veredas antigas, qual é o bom caminho; andai por ele”. A mulher de Provérbios 5 é o oposto dessa atitude: ela não pergunta, não consulta veredas antigas, não se deixa instruir por ninguém. É a encarnação do “faço o que quero, quando quero, com quem quero” — lema da insensatez moderna. A “vereda da vida” é, em última análise, o próprio Cristo, que dirá “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6). Aquele que não o pondera, que não O considera seriamente, inevitavelmente se perde em trilhas errantes. Devocionalmente, o versículo é um alerta contra viver sem exame: quantas vezes repetimos os mesmos erros simplesmente porque não paramos para pesar o caminho, para revisar as trilhas percorridas? A “estranha” é também uma voz dentro de nós, que nos impede de fazer esse exame, dizendo: “não exagera, não precisa pensar tanto, segue o coração”. O texto responde: coração sem Palavra é bússola avariada. Deus nos convida a redescobrir o hábito santo de ponderar — à luz do Antigo e do Novo Testamento, à luz da cruz e da ressurreição — cada estrada em que pisamos, para que não acordemos, um dia, em veredas que nunca pretendemos conhecer.

Provérbios 5:7

Agora, pois, filhos, ouvi-me, e não vos desvieis das palavras da minha boca. (Hb.: veatah banim shimʿu li ve-al tasuru me-imre fi — “e agora, filhos, ouvi-me, e não vos afasteis das palavras da minha boca”). Após descrever a sedução e o seu destino, a voz paterna volta com mais força. Veatah (“e agora”) marca um ponto de virada: depois do quadro sombrio, vem a conclusão prática. O vocativo muda de singular para plural: banim (“filhos”), sinal de que, embora a cena seja narrada em forma de conversa entre pai e um filho, o ensino é válido para uma comunidade inteira de discípulos. O imperativo shimʿu (“ouvi”) retoma o grande verbo da aliança, shamaʿ, que em hebraico significa ouvir obedecendo, acolher com o corpo inteiro; não é escuta neutra, mas escuta que se transforma em caminho. Em paralelo, ve-al tasuru (“e não vos desvieis”), de sur (“virar, desviar-se”), é o verbo típico para falar de apostasia ou abandono da rota; aplicado aqui a me-imre fi (“das palavras da minha boca”), indica que desviar-se das palavras da sabedoria é, na prática, caminhar na direção daquela descida à morte descrita nos versículos anteriores. Aqui, temos dois imperativos – um positivo, um negativo – que enquadram a resposta desejada: ouvir e não desviar. O versículo recolhe todo o peso imagético dos versículos 1–6 e o converte em urgência: ouvidos que se inclinam para a sabedoria, lábios que guardam conhecimento, olhos que enxergam além do mel e do óleo, pés que recusam a escada em direção ao Sheol, coração que pondera a vereda da vida. No pano de fundo do Antigo Testamento, esse chamado ecoa o “Ouve, Israel” de Deuteronômio 6:4; no Novo Testamento, encontra ressonância nas exortações de Hebreus a não se desviar da palavra ouvida (Hebreus 2:1). Aqui, o pai, porta-voz da sabedoria de Deus, ergue a voz como um vigia nos muros, pedindo aos filhos que mantenham os pés firmes no caminho e o ouvido fiel ao conselho, antes que o brilho do mel e a maciez do óleo os façam esquecer que, logo adiante, a estrada se abre num precipício.

O “agora, pois” marca uma espécie de pausa dramática: depois de descrever a sedução e seu fim, o mestre retoma o fio da autoridade. Toy observa que o sábio de Provérbios fala “em seu próprio nome”, sem apelar para Moisés ou para os profetas, e que sua “lei” é a condensação de experiência e reflexão sob o horizonte do temor de Deus. (TOY, 1899, p. xv). Quando ele diz “minhas palavras”, não está erigindo um código pessoal arbitrário, mas oferecendo ao discípulo a síntese de uma tradição que viu, ao longo de muitas vidas, como termina o caminho dos lábios doces e dos pés que descem.

Ao mesmo tempo, o plural “filhos” amplia a cena: já não é apenas um pai diante de um único jovem, mas um mestre diante de uma geração. Toy nota que os provérbios, ainda que não formem um tratado sistemático, refletem “escolas de moralistas” num período de alta cultura, onde se buscava treinar, de forma organizada, a juventude para a honestidade, a diligência, a castidade, a misericórdia. (TOY, 1899, p. xi–xii). Nesse horizonte, “não vos desvieis das palavras da minha boca” é a linha de segurança que o mestre traça no chão: uma corda estendida na beira do precipício, um apelo para que os “filhos” não soltem a mão da tradição justamente quando as vozes melífluas do eros desordenado parecem mais sedutoras.

A repetição de “filhos” retoma o tom de Provérbios 5:1, e a literatura rabínica gosta de ler esse plural como alusão à comunidade inteira dos discípulos ao longo das gerações. Em Midrash Mishlei 1:8, o “filho” é Israel como todo um; aqui, o plural “filhos” ecoa os muitos elos da cadeia de Avot 1:1, lembrando que cada geração se torna filha da anterior na recepção da Torá. Os Sábios também insistem, em diversos lugares, que as “palavras da boca” do mestre são como brasas: Avot 2:10 adverte a “aquecermo-nos junto ao fogo dos sábios”, mas sem chegar perto demais para não sermos queimados, imagem que ressalta a seriedade do contato com a palavra ensinada. Em coleções sobre Midrash Mishlei, estudiosos modernos lembram que este midrash é justamente um ponto de virada na literatura rabínica: um comentário mais curto, versículo a versículo, preocupado com o sentido imediato dos textos de sabedoria. Isso mostra como os próprios rabinos quiseram, por assim dizer, encarnar este versículo: “não vos desvieis das palavras da minha boca” converte-se em um projeto exegético que mantém as palavras de Provérbios perto da boca e do ouvido da comunidade, gerando midrashim, tratados éticos e comentários que, ao longo dos séculos, continuam a advertir os “filhos” contra a sedução da “estranha” e a chamá-los de volta à vereda da vida.

Depois do retrato sombrio da “mulher estranha”, o pai levanta a voz como quem puxa o filho do precipício pela gola. O “agora, pois” é um hoje de Deus: não se trata de mera conclusão retórica, é um “hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração” de Hebreus 3:7–8. O vocativo muda para o plural: já não é só “filho meu”, é “filhos”; a advertência é comunitária, a luta contra a sedução não se trava em solitário. Na igreja, esse “ouvi-me” se ecoa em cada pregação fiel, em cada exortação de irmão para irmão, em cada conselho pastoral que tenta salvar um casamento, um ministério, uma vocação. A graça se revela aqui como segundo chamado: apesar de todo o caminho descido, ainda há um “agora, pois” que suspende a queda e oferece retorno. Devocionalmente, o crente é convidado a ouvir este “agora” no presente absoluto: não ontem, quando já passou; não amanhã, que é incerto; mas o agora em que lê, o instante em que o Espírito, pela Palavra, acende no peito uma luz de desconforto santo. Cada “agora, pois” de Deus é uma fresta de arrependimento aberta na muralha do costume.

O desvio aqui retoma toda a imagética de caminho que percorreu o capítulo: veredas, passos, descida. Desviar-se das palavras é desviar os pés da vereda. No Antigo Testamento, “não se desviar nem para a direita nem para a esquerda” é fórmula da fidelidade (Josué 1:7); no Novo, Jesus fala do “permanecer” em sua palavra como condição de verdadeiro discipulado (João 8:31). A boca do pai, neste texto, é boca da sabedoria; no horizonte cristão, ela aponta para a boca de Cristo, que diz: “as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida” (João 6:63). Devocionalmente, este último trecho funciona como selo: depois de mostrar o mel e o absinto, a espada e o Sheol, a Escritura nos põe diante de uma escolha de fidelidade: ou seguimos as palavras que saem da boca de Deus, ou seguimos as palavras que saem dos lábios da “estranha”. Não há terceira via. O coração dividido tenta conciliar os dois discursos: um pouco de Bíblia, um pouco de sedução; um pouco de oração, um pouco de fantasia acariciada. Provérbios 5 não deixa essa ilusão de pé: quem se desvia das palavras do Pai acaba indo, mais cedo ou mais tarde, habitar as palavras da “mulher estranha”. A boa nova é que ainda hoje o mesmo Deus, através das Escrituras, põe a sua boca bem perto da nossa e sussurra, como em Deuteronômio 30:14: “A palavra está mui perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a cumprires”. Guardar essa palavra é construir, tijolo por tijolo, um coração que não se desvia, um casamento que não se curva ao mel estranho, uma comunidade que, cercada de vozes, permanece enraizada na única voz que atravessa a morte e chama, pelo nome, cada filho que volta.

Provérbios 5:8

Afasta-te do seu caminho (Hb.: harḥēq mēʿāleyhā darkekā — “afasta o teu caminho dela”). O verbo harḥēq vem da raiz rāḥaq (“estar longe”, “manter distância”) em forma hifil imperativa, ou seja, não é apenas “fica longe”, mas “faz o teu caminho ficar longe”, toma uma decisão ativa de distanciamento. A preposição min fundida em mē- mais ʿalêhā (“de sobre ela”) pinta a imagem de um trajeto que passava “por cima” dela, muito perto, quase roçando sua esfera de vida; o pai manda o filho redesenhar a rota. Darkekā (“o teu caminho”) no singular concentra a ideia de estilo de vida, não só de um passeio ocasional. Sintaticamente, a frase é uma ordem direta, sem atenuantes, com foco no sujeito (“teu caminho”), como se dissesse: não confies em tua força, muda a geografia dos teus passos. Exegesemente, a cláusula insiste que a sabedoria começa antes da tentação explícita: não é “resistir dentro da casa dela”, é não fazer do próprio caminho uma rua que passa sempre diante da porta errada. A forma forte do hifil lembra que a distância aqui não é um sentimento, mas uma ação concreta: cortar rotas, evitar contextos, escolher uma topografia moral que dificulte o pecado.

Aqui a cláusula da frase está dentro do cenário urbano que Toy, na introdução, descreve como o ambiente típico de Provérbios: uma cidade com tentações específicas, nas quais a advertência contra a prostituição e o adultério é uma “característica especial” do bloco 1–9, ligada à preservação da coesão familiar e social, não apenas à pureza individual (TOY, ibid., 1899, p. xii). A ordem de afastar o próprio caminho (“teu caminho”) em vez de apenas “os teus passos” sugere, na leitura que Toy faz da “sabedoria” como “manual de conduta” em chave social, uma reorganização do estilo de vida inteiro, pois o livro observa, segundo ele, “relações domésticas, agrícolas, urbanas (as tentações da vida na cidade), comerciais, políticas e militares” como um conjunto coerente de práticas que podem ser corrompidas por pequenos desvios que se tornam hábitos (TOY, 1899, p. x). Murphy, ao agrupar 5:1–23 num único discurso dentro das “Instruções introdutórias”, indica que esse afastar-se do caminho não é meramente uma prudência privada, mas faz parte da formação pedagógica do jovem, moldando o seu lugar dentro de um cosmos moral em que a fidelidade conjugal é vista como parte da ordem criada que a sabedoria sustenta (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 29). A imagem do “afastar-se” é, assim, uma disciplina de fronteiras: não apenas fugir de uma mulher individual, mas recusar uma rota urbana, uma rede de sociabilidade, uma economia de prazer que mina, pela base, as virtudes cardeais que Toy enumera como foco do livro: indústria, discrição, veracidade, honestidade, castidade, benignidade e perdão (TOY, 1899, p. vii).

Na terceira rodada, a literatura rabínica lê este imperativo como um chamado não apenas a evitar a mulher adúltera, mas a erguer um cordão de isolamento em torno de qualquer coisa que seduza o coração para longe da aliança. No Talmude, em Avodah Zarah 17a, os sábios tomam este versículo e o deslocam para o campo da idolatria e da heresia: “Afasta o teu caminho dela” é explicado como um afastar-se da minut, a heresia, e também da reshut, o poder político mundano que pode esmagar a alma que se compromete demais com ele (Avodah Zarah 17a). Essa releitura já mostra que, para os rabinos, a “estranha” não é apenas a mulher sedutora, mas qualquer sistema de desejo que toma o lugar de Deus. Comentários posteriores, como o de “Naḥmias” sobre Provérbios 5:8, preservado em coleções posteriores e resumido em recursos modernos, explicitam essa leitura: “Afasta o teu caminho dela — isto é a heresia;” ou seja, o caminho que se deve evitar é a vereda intelectual e espiritual onde a mente se deleita com doutrinas que corroem a fé, mesmo antes de qualquer ato exterior.

Esse deslocamento da imagem, da sedução sexual para a sedução doutrinária, ganha ainda mais peso quando Rambam, séculos depois, codifica a proibição de se aproximar de hereges em sua Mishneh Torah. Ao tratar dos apóstatas que abandonam a Torá, ele escreve que não se deve “conversar com eles nem responder às suas palavras”, e fundamenta essa reserva no mesmo versículo de Provérbios 5:8, entendendo “afastar o caminho” como afastar-se até mesmo do diálogo que possa tornar sedutor o erro (Mishneh Torah, Foreign Worship 2:5). A metáfora da rua e do caminho torna-se, então, a metáfora do “campo de influência”: não basta não praticar a idolatria, é preciso não caminhar na estrada onde ela domina o imaginário. O mesmo movimento se vê em Midrash Aggadah a Êxodo 23:7, onde o mandamento “Afasta-te da mentira” é associado à heresia, e a advertência de Provérbios 5:8 é citada como eco, mostrando que “afastar o caminho” é afastar-se dos discursos que distorcem a verdade de Deus (Midrash Aggadah, Êxodo 23:7; folha de estudo em Sefaria).

Nessa paisagem rabínica, o pai de Provérbios é quase um mestre de yeshivá advertindo o aluno: não é só o ato que contamina, mas o itinerário. Avodah Zarah discute o caso de quem se deixa fisgar intelectualmente por discursos heréticos, e comenta que a transgressão começou quando ele se permitiu “aproximar o caminho” daquelas ideias, contrariando o conselho de Salomão (Avodah Zarah 16b–17a). O que em Provérbios aparece como um pai dizendo “Filho, dá meia-volta”, na boca dos rabinos se torna uma cerca espiritual: não frequente certos espaços, não consuma certas leituras, não tome como entretenimento aquilo que, gota a gota, dessacraliza teu coração. O versículo, assim, é o bordão de uma pedagogia da distância: distância da casa da adúltera, distância da casa da idolatria, distância da casa da heresia, para que o coração não aprenda a achar normais os perfumes do exílio.

...e não te aproximes da entrada da sua casa (Hb.: wĕʾal tiqrab ʾel-peṭaḥ bêṯāh — “e não te aproximes da porta da sua casa”). O wĕʾal une a segunda cláusula à primeira com nuance de reforço: não basta afastar o caminho, é proibido “chegar perto”. Tiqrab é imperfeito qal de qārab (“aproximar-se”), usado aqui com sentido proibitivo (“não te aproximarás”). A preposição ʾel (“para, em direção a”) mais peṭaḥ (“entrada, portal”) e bêṯāh (“sua casa”, com sufixo 3ª f.) constrói uma cena concreta: o limite físico onde o público termina e o íntimo começa. Sintaticamente, temos um paralelo negativo à ordem positiva inicial: o que era “afasta” complementa-se com “não te aproximes”, criando um paralelismo antitético com o espaço. Exegesemente, a “porta da casa” é o limiar da intimidade ilícita, o ponto de não retorno. A cláusula aponta para a responsabilidade de não flertar com o interlúdio, não ficar na soleira, não transformar a fronteira em lugar de jogo. A sabedoria manda fechar o arco antes da curva: não brincar com portas que não te pertencem.

Na cultura israelita que Toy reconstrói, a “casa” é mais que edifício: é o núcleo da identidade familiar, onde a honra é acumulada e exibida, de modo que aproximar-se da porta de uma mulher estranha significa penetrar simbolicamente no espaço de outra economia doméstica, deslocando recursos afetivos, materiais e sociais que deveriam ser guardados para a própria família (TOY, 1899, p. xii). Murphy, ao tratar 5:1–23 como discurso dirigido a “filho meu” dentro da grande introdução de 1:8–9:18, destaca o caráter escolar dessas advertências: a porta da casa da adúltera é uma espécie de “porta de escola rival”, onde outra pedagogia, de prazeres imediatos e descuido com o futuro, tenta formar o jovem à revelia da sabedoria paterna. O tabelamento que ele oferece na página 24–29, colocando 4:1–27 e 5:1–23 lado a lado como lições sucessivas (MURPHY, 1998, p. 29), sugere justamente isso: primeiro, o caminho da sabedoria é traçado; em seguida, mostra-se a porta alternativa, diante da qual o discípulo é instruído a nunca estacionar. Historicamente, a “porta” é também lugar jurídico e comercial; estar ali, em torno da casa dela, é entrar numa outra rede de alianças, favores, trocas e culpabilidades.

A segunda cláusula (hb.: wĕʾal tiqrab ʾel petaḥ bētāh — “e não te aproximes da porta da sua casa”) é ainda mais concreta na literatura judaica, e é justamente essa concretude que a tradição rabínica explora. A baraita citada em Avodah Zarah toma o “não te aproximes” literalmente: não andar sequer nas imediações da porta. A discussão ali associa a imagem ao “portal” onde a prostituta recebe seus clientes, e pergunta: até onde a pessoa deve manter distância? A resposta de Rav Ḥisda é famosa: quatro cúbitos — uma espécie de raio mínimo de santidade em torno da tentação (Avodah Zarah 17a; ver também o resumo em WikiYeshiva).

Essa leitura, porém, não fica restrita ao bordel. A mesma tradição, preservada em compilações posteriores e retomada por estudos contemporâneos, registra duas versões: em uma, “não te aproximes da entrada da sua casa” é interpretado como a porta da idolatria; noutra, como a porta do poder político (reshut) ou da prostituta em sentido literal, dependendo da linha de transmissão (Avodah Zarah 17a). Em qualquer dos casos, a imagem é a mesma: há portas que não são neutras; cruzar seu limiar é entrar em um ambiente cuja lógica, uma vez respirada, passa a parecer natural. Por isso, o sábio diz: não te aproximes nem da soleira.

Rambam faz dessa porta uma figura jurídica. Nas leis de relações proibidas, ele estende o versículo para ensinar que não se deve entrar em situações que sejam “preliminares” óbvias ao pecado, ainda que, tecnicamente, nada de ilícito tenha acontecido. O movimento do corpo já é uma espécie de voto antecipado do coração. Por isso, ao tratar de condutas impróprias — olhar prolongado, intimidade leve, ou mesmo entrar em lugares marcados pela imoralidade — ele invoca o “não te aproximes da porta da sua casa” como um axioma: o caminho para o pecado é, ele mesmo, campo proibido (Mishneh Torah, Forbidden Intercourse 21:7–12; síntese em Chabad.org).

Em outro eixo, quando Rambam fala dos minim, os hereges de Israel, ele volta à mesma imagem, agora no campo do pensamento: é proibido “conversar com eles ou responder-lhes”, porque isso já é “aproximar-se da sua porta”, isto é, entrar na antecâmara de um edifício doutrinário que corrói as bases da fé. O versículo de Provérbios 5:8, originalmente um alerta contra a adúltera, torna-se, assim, um princípio contra a curiosidade que brinca com o fogo da heresia (Mishneh Torah, Foreign Worship 2:5; ver também o eco em Chidushei Mayim Chayim).

Midrashim posteriores reforçam a mesma lógica de “porta perigosa”. Em Midrash Aggadah sobre Êxodo 23:7, a advertência “afasta-te da mentira” é aplicada à heresia, e o midrash cita explicitamente Provérbios 5:8 para mostrar que não basta recusar o falso; é preciso não se postar à sua entrada, como quem admira a fachada e se entretém com a decoração do erro (Midrash Aggadah, Êxodo 23:7). Já Midrash Mishlei como um todo, embora mais sóbrio e próximo do peshat, reforça a visão de Provérbios 5 como um capítulo em que a sabedoria materna e paterna cria cercas em torno do perigo, trabalhando sempre com imagens de casa, porta e interior, para marcar que há espaços onde o insensato entra como hóspede, mas de onde sai como cativo (Midrash Mishlei).

Sob a luz desses textos, a “entrada da sua casa” deixa de ser apenas a porta de uma residência individual e se torna, na imaginação rabínica, o limiar de qualquer ordem de realidade que rivalize com Deus: prostíbulos, templos de ídolos, corte dos poderosos, círculos de hereges, até mesmo ambientes sociais em que a Torá é constantemente ridicularizada. A cerca de quatro cúbitos em Avodah Zarah vira um símbolo: um pequeno anel de abstinência física que protege um grande território de fidelidade interior. O pai de Provérbios, na leitura dos rabinos, não está apenas prevenindo contra “pessoas perigosas”; ele está ensinando uma arte de desenhar fronteiras invisíveis ao redor de tudo o que, mais cedo ou mais tarde, nos roubaria o coração — ainda que, de fora, a porta pareça inocente, pintada de cores suaves e adornada com flores.

A sabedoria começa aqui desenhando um mapa, não de ruas, mas de afetos. O verbo que manda afastar o caminho é o mesmo que, em outras passagens, descreve o movimento do justo que se desvia do mal, como em Provérbios 3:7, onde o temor do Senhor faz o homem “apartar-se do mal”. O coração que ama pensa que pode caminhar perto da borda sem cair, mas o sábio sabe que a alma é mais frágil do que a curiosidade admite, e por isso manda não apenas “não entrar”, mas não aproximar o passo sequer da porta. Em Salmos 1, essa lógica aparece em forma de trilho: primeiro andar “no conselho dos ímpios”, depois deter-se “no caminho dos pecadores”, por fim assentar-se “na roda dos escarnecedores”. A porta da mulher estranha é a imagem dessa primeira concessão: é a esquina onde se para “só para ver”, o corredor em que a imaginação se permite brincar com o que logo assumirá o comando. Não por acaso o Novo Testamento afina o tom: quando Paulo escreve “Fugi da prostituição” e “Fugi da idolatria” (1 Coríntios 6:18; 10:14), ele não oferece argumento casuístico, oferece direção de corrida. O verbo não é negociar, ponderar, testar limites: é fugir. José, na casa de Potifar, personifica a obediência a Provérbios 5:8 antes do texto nascer: ele não discute com a esposa do patrono, não entra num jogo de sedução espiritual; ele “foge”, deixando até o manto em suas mãos (Gênesis 39:12), porque sabia que, às vezes, a única vitória é escapar inteiro, ainda que aparentemente desonrado.

Nesse quadro, “a entrada da sua casa” não é só a porta física de um quarto proibido; é toda situação, conversa, ambiente, tela, lembrança, em que a alma se debruça na beira do abismo para provar que é forte. O livro adverte que a coragem verdadeira não é provar resistência diante do vinho da sedução, mas nem se sentar à mesa onde a taça circula. Jesus retoma esse princípio quando fala dos “olhos” como lâmpada do corpo (Mateus 6:22–23) e vai ainda mais fundo ao dizer que o adultério começa no olhar cobiçoso (Mateus 5:27–28): o limiar do pecado é interior, a porta da casa da estranha ergue-se primeiro na imaginação. A sabedoria, então, manda mudar o trajeto antes de mudar o gesto, reprogramar as rotas do coração, porque quem controla a geografia das suas idas e vindas — físicas e digitais — já fechou metade das portas do inferno.

Provérbios 5:9

Para que não entregues a outros a tua honra... (Hb.: pen tittēn laʾăḥērîm hôdekā — “para que não dês a outros o teu esplendor”). A partícula pen introduz o propósito negativo: “para que não…”, ligando as proibições do versículo anterior às consequências deste. O verbo tittēn (imperfeito qal de nātan, “dar”) sugere um ato de entrega, voluntário no momento da paixão, mas amargo no resultado. Laʾăḥērîm (“a outros, a estranhos”) retoma o vocabulário de alteridade, mas agora não é a “mulher estranha”: são aqueles que colherão o dano. Hôdekā vem de hōd (“majestade, esplendor”), termo usado para brilho, dignidade, peso de presença; a honra aqui é uma espécie de luz do caráter. Sintaticamente, a cláusula funciona como oração final da proibição anterior: o distanciamento físico visa proteger um capital simbólico. Na exegese, “entregar a honra” não é apenas ficar mal falado; é ceder a energia moral e a credibilidade a terceiros: um marido traído que passa a ter sobre ti uma dívida, um círculo social que te lê para sempre como adúltero, uma voz interior que já não fala com a mesma autoridade. O hebraico sugere que a honra não é roubada, é dada, entregue em mãos alheias no ato de insensatez.

A expressão “tua honra” (hôdekā) dialoga com o quadro ético de Toy em que a justiça, a veracidade e a retidão constituem o capital simbólico mais precioso de um israelita, capital esse ligado ao nome, à reputação e à posição na comunidade (TOY, 1899, p. xi). Entregar essa honra “a outros” é, no contexto antigo, expor-se à chantagem, à humilhação social, às implicações legais de um adultério que podia envolver compensações materiais ao marido traído, perda de credibilidade como testemunha em juízo e ruptura com redes de parentesco que garantiam proteção econômica. A sabedoria identifica virtude e conhecimento, de forma que a integridade do nome está ligada ao domínio de si e ao aprendizado da sabedoria como “atributo divino” que rege a criação. Nesse horizonte, entregar a honra significa, em linguagem quase sacramental, desperdiçar a imagem da sabedoria que se espelhava na biografia do justo: o jovem que se vende por um momento de prazer transfere ao “outro” — o marido enganado, o cúmplice, a própria mulher estranha — o brilho que deveria coroar seu futuro.

Na escuta rabínica, esta linha se desdobra em três direções: a honra como capital moral desperdiçado na luxúria, como culto desviado para outros deuses e como glória espiritual arrancada pela própria falta. Ralbag, lido nas edições modernas do seu comentário a Provérbios, explica que o “esplendor” (hod) foi dado ao ser humano para adquirir sheleimut, a perfeição do caráter e da sabedoria; quando ele o entrega “a outros”, não colhe nenhum proveito disso, pois esse brilho é desviado para servir de instrumento às tramas da concupiscência, e não ao crescimento da alma (Ralbag sobre Provérbios 5:9). O jogo de forças é nítido: o mesmo vigor que poderia ser a chama do estudo e da justiça passa a alimentar as fogueiras de um desejo curto e voraz; a honra, em vez de coroar a obediência, torna-se moeda de troca num mercado de prazeres.

Rashi, em sua leitura profundamente teológica, desloca ainda mais o eixo: “Para que não entregues a outros a tua honra” significa “para que não voltes o teu coração a outros deuses, dando a eles o esplendor da tua honra e do teu louvor” (Rashi sobre Provérbios 5:9). A mulher estranha, aqui, torna-se uma parábola da idolatria: o perigo não é apenas o escândalo social, mas a transferência da kavod que deveria subir ao Deus de Israel para altares alheios. O versículo passa a ser lido, então, como advertência contra qualquer forma de desvio do coração — ainda que o corpo continue, exteriormente, dentro dos limites da comunidade. Entre os comentaristas medievais preservados em coleções como Mikraot Gedolot, encontra-se também a linha que entende “honra” como reputação social e status jurídico: quem se enreda com a adúltera acaba entregue ao poder de outros homens — marido traído, juízes, credores — e precisa ceder seus bens e sua dignidade para escapar às consequências (Mikraot Gedolot sobre Provérbios 5:9).

Um comentarista tardio como Immanuel de Roma, cuja voz chega até nós por meio das edições digitais, condensa essa linha realista: “para que não entregues o teu esplendor e os teus anos nas mãos de cruéis”, pois o que se deita com a mulher estranha “põe em risco a própria vida, e seu corpo e sua existência ficam entregue a outros” (Immanuel of Rome on Proverbs 5:8–9). O brilho, então, não é só metafísico: é o crédito, o nome limpo na praça, a força de trabalho, todo um capital de confiança que, pouco a pouco, desliza para mãos alheias. Uma leitura midráshica, preservada em resumos contemporâneos de Midrash Mishlei, vai mais fundo e afirma que a mulher estranha “faz com que seja retirado de ti o teu esplendor e o esplendor da Shekinah” (Mishlei 5 em Mikraot Gedolot / Midrash Mishlei). A honra do indivíduo e a presença de Deus entre o povo se entrelaçam: ao profanar o dom do corpo e da aliança, o pecador enfraquece também a epifania da glória divina em sua vida. A mesma palavra hod que, em outros contextos, descreve o resplendor concedido a Salomão ou a realeza davídica, aqui é o manto que se esgarça nas mãos de “outros” — deuses, amantes, poderes — cada vez que o coração se rende à sedução que fala doce e exige tudo.

...e os teus anos ao feroz (Hb.: ûšĕnōṯêkā laʾaḵzārî — “e os teus anos ao cruel”). O û (“e”) cola esta consequência à anterior, ampliando o dano. Šĕnōṯêkā (“os teus anos”) exprime tempo de vida, somatório de dias, não um episódio isolado. Laʾaḵzārî é adjetivo de ʾaḵzār (“cruel, sem compaixão”), aqui substantivado: “ao cruel”, podendo designar tanto pessoas concretas quanto uma realidade opressora. Sintaticamente, temos paralelismo com a cláusula anterior: “a outros a honra / ao cruel os anos”, reforçando a proporcionalidade entre o que se dá e a quem se dá. Na exegese, essa linha desenha a figura de um devorador de tempo: anos que deveriam ser gastos em construção de casa, formação de filhos, serviço a Deus, são consumidos por alguém ou algo que não conhece misericórdia — processos, dívidas, chantagens, castigos, até doenças. O hebraico faz ressoar um paradoxo: por uns momentos de prazer “livre”, o insensato cede a própria duração da existência à tirania de um outro.

Toy sublinha que, em Provérbios, o livro contempla a vida “no seu lado externo e visível, como um conjunto de atos” (TOY, 1899, p. xiii); aqui, isso significa que o tempo inteiro de uma pessoa pode ser consumido por forças “cruéis” — credores impiedosos, sistemas judiciais exploradores, redes de exploração sexual — que se alimentam dos que se desviam. A palavra “cruel” (ʾaḵzārî) abre a possibilidade de ler essa figura tanto como o marido traído, que reivindica reparação severa, quanto como o sistema de poder que se aproveita da fragilidade do transgressor, algo que Toy chama de “moral externa”: a vida é julgada “sem concessão”, e os maus colhem, já aqui, a violência estrutural de um mundo em que os fortes exploram fraquezas morais (TOY, ibid.). Murphy, ao mostrar que 5:1–23 pertence às primeiras instruções, sugere que o autor quer prevenir, não apenas descrever: se o jovem entender que cada ano entregue ao vício é um ano ganho por poderes “cruéis” — sistemas, pessoas, hábitos — será mais fácil que ele recuse, desde cedo, essa servidão.

A segunda metade do versículo (hb.: ušĕnōtêkha leʾaḵzārî — “e os teus anos ao cruel”), aos olhos dos rabinos, mergulha na dimensão do tempo e do juízo. O mesmo Ralbag que via na “honra” o capital de perfeição interpretará “os teus anos” como os dias que deveriam ser investidos na aquisição dessa perfeição, mas que são entregues a uma força cruel que destrói com dureza aquele que a ela se submete (Ralbag sobre Provérbios 5:9). Nessa leitura, o “cruel” não é apenas o marido vingativo ou o juiz severo, mas o próprio sistema de desejos desordenados, que esmaga sem piedade o tempo do pecador. Os anos que poderiam ser semeados em estudo, bondade e temor de Deus ficam hipotecados a uma engrenagem de culpa e fuga: noites gastas em esconderijos, dias consumidos na ansiedade de ser descoberto, energia que se esvai em sustentar um duplo rosto.

Rashi, porém, dá nome a esse “cruel”: “o príncipe de Gehinnom” (sar shel Gehinnom). Nos compêndios que preservam sua exegese, lemos: “E os teus anos ao cruel — ao príncipe de Gehinnom” (Rashi sobre Provérbios 5:9; ver também a edição em hebraico em Daat). A linha entre ética e escatologia é direta: quem gasta os anos na infidelidade entrega-os, na verdade, à jurisdição de um anjo cruel encarregado do castigo. Um trecho de Midrash Rabbah citado em antologias modernas torna essa imagem ainda mais vívida: “‘e os teus anos ao cruel’ — deram seus anos a um anjo cruel, de modo que seus dias e anos se aproximaram de perecer”, conectando o provérbio à denúncia de Ezequiel 22: “trouxeste perto os teus dias e chegaste aos teus anos” (Midrash Rabbah sobre Provérbios 5, em Daat; Ezequiel 22:4). O que parecia apenas consequência psicológica — remorso ao fim da vida — é, no horizonte midráshico, uma antecipação do tribunal divino: dias encurtados, anos queimados antes da hora, como se o relógio tivesse sido entregue nas mãos de um carrasco invisível.

Outros comentaristas, como aqueles reunidos em coleções modernas de exegese rabínica popular, retomam o antigo ensinamento de que o “cruel” pode ser lido também como o marido enganado ou como as potências estrangeiras às quais Israel se submete quando trai a aliança. Uma síntese acessível, baseada em Midrash Mishlei e em Rashi, descreve assim: quem se perde em relações ilícitas “entregará seu patrimônio a estranhos ou seu corpo a mensageiros estrangeiros, e se tornará servo de nações cruéis” (Ensaio “Pituim mesukanim la-ḥofesh shelkha” em tora.us.fm). É como se o versículo estivesse escrito sobre o exílio: anos de juventude usados para sustentar vícios se transformam mais tarde em anos de servidão, debaixo de jugos que não conhecem compaixão. A adúltera de Provérbios torna-se, nesse espelho, símbolo de forças políticas, econômicas ou espirituais que seduzem e depois escravizam.

E há ainda a leitura mística que atravessa alguns manuscritos e reaparece em recursos como Mikraot Gedolot HaKeter: “para que não dês os teus anos ao cruel — para que não sejas morto por causa dela” (Mikraot Gedolot sobre Provérbios 5:9). A ferocidade, aqui, não é metáfora, mas risco físico: o amante surpreendido pode ser morto pelo marido ou condenado à pena capital; a vida que lhe restava é entregue, inteira, à espada. Immanuel de Roma, ao falar de “vida e corpo entregues nas mãos de outros”, está na mesma frequência: o pecado de Provérbios 5 não é uma aventura romântica, mas um pacto suicida com forças que exigem, mais cedo ou mais tarde, o pagamento integral em anos, saúde e paz. Essa leitura se articula com o tema mais amplo de Provérbios 5–7, em que a mulher estranha é, ao mesmo tempo, pessoa concreta e figura de um caminho de morte; e os rabinos, movendo-se entre o peshat e o derash, fazem com que “os teus anos ao cruel” soem ora como aviso social, ora como grito escatológico, ora como símbolo de qualquer aliança em que a criatura entrega, gota a gota, o tempo que Deus lhe deu ao serviço de algo que, no fim, há de devorá-lo.

A partir daqui, o texto deixa de falar apenas em perigo e começa a falar em perda. Honra, nesse contexto, não é apenas reputação social, é o brilho da imagem de Deus que deveria se refletir na história de alguém. Quando o filho se entrega à mulher estranha, ele não perde só um segredo bem guardado; ele vai pondo sua dignidade em penhor nas mãos de quem não o ama, trocando a coroa da aliança por moedas de prazer. A cena lembra o retrato de Esaú, que vende a primogenitura por um prato de lentilhas (Gênesis 25:29–34): o texto sublinha que “desprezou Esaú a sua primogenitura”. Ali, como aqui, o pecado não é apenas o objeto desejado; é o desprezo por algo infinitamente maior que foi colocado nas suas mãos. A honra entregue “a outros” é a vocação que se troca por migalhas, a integridade que vira moeda num jogo em que, no fim, quem ganha é sempre o lado mais cruel.

Os “anos ao feroz” são talvez uma das imagens mais tristes do capítulo. Não se trata apenas de enfermidade física ou de punição externa; trata-se do tempo — esse dom irreversível — posto a serviço de algo que o devora. Oseias 7:9 lamenta sobre Efraim: “estrangeiros lhe devoraram a força, e ele não o sabe”; a velhice chega, os cabelos embranquecem, e ele não percebeu em que momento o vigor foi sendo comido por mãos que não tinham amor por ele. A mesma lógica se desenha na parábola do filho pródigo: “desperdiçou os seus bens vivendo dissolutamente” (Lucas 15:13) e, com os bens, foram-se também os melhores anos, a juventude, a energia, o futuro. O “feroz” de Provérbios 5:9 é esse conjunto de forças impessoais — vícios, sistemas, pessoas — que nunca se saciam, que sempre exigem mais um ano, mais uma noite, mais um segredo, até que o calendário inteiro seja repassado em branco. Em contraste, o Salmo 90 pede: “Ensina-nos a contar os nossos dias, de tal maneira que alcancemos corações sábios”. A sabedoria conta os dias para consagrá-los; a insensatez não os conta, e por isso os entrega de bandeja ao algoz que não hesitará em queimá-los até o fim.

Provérbios 5:10

Para que não se fartem os estranhos do teu poder... (Hb.: pen yiśbĕʿû zārîm kōḥekā — “para que não se saciem estranhos da tua força”). Mais uma vez pen marca a finalidade de evitar, agora com foco econômico. Yiśbĕʿû (imperfeito qal de śābaʿ, “fartar-se, encher-se”) evoca banquete, satisfação abundante. Zārîm (“estranhos, forasteiros”) retoma o campo semântico da alteridade perigosa. Kōḥekā vem de kōaḥ (“força, vigor, capacidade”), podendo significar tanto energia física quanto poder produtivo. Sintaticamente, a estrutura ecoa o padrão “para que não + verbo” dos v. 9–10, compondo uma cadeia de “evitar que”. Exegesemente, a imagem é de parasitagem: gente de fora se alimentando da força do tolo. O poder aqui não é abstrato; é a capacidade de trabalhar, de gerar bens, de sustentar. A cláusula sugere que a irresponsabilidade sexual termina, mais cedo ou mais tarde, numa transferência de recursos: o que era para ser suporte da própria casa passa a engordar mesas estranhas.

No horizonte traçado por Toy, o livro se preocupa com o “bem-estar social e doméstico” e vê a fidelidade conjugal como parte dessa arquitetura (TOY, 1899, p. xii). A imagem dos “estranhos” que se alimentam da força do jovem remete a um mundo em que a energia, o trabalho e até os filhos podem ser “capturados” por outras casas: filhos ilegítimos que herdam sem saber, credores de casas alienígenas que devoram salários, patrões que se aproveitam da reputação fragilizada da vítima para impor condições duras.

A sequência hebraica desta primeira clásusula, como já comentado, começa com pen (“para que não / a fim de que não”), e amarra este versículo ao imperativo do versículo 8 (“afasta-te do seu caminho, e não te aproximes da entrada da sua casa”), como se o pai dissesse: “afasta-te, para que não aconteça o seguinte desastre”. A forma verbal yisbeʿû é um imperfeito de sābaʿ (“ficar saciado, fartar-se”), termo típico de mesa e de abundância, de modo que a imagem central é de forasteiros que comem até se fartar daquilo que foi produzido pela força do filho. O sujeito, zārîm (“estranhos”), não designa apenas pessoas desconhecidas, mas “gente de fora”, alheia ao círculo da família e da aliança; é a palavra usada na literatura sapiencial para marcar o que não pertence, o que não deveria ter acesso àquilo que é fruto de anos de trabalho e fidelidade. O complemento mikkōaḥeḵā traz o substantivo kōaḥ (“força, vigor, energia vital”) com o sufixo “tua”: literalmente, “da tua força”. A construção “fartar-se da tua força” é, pois, uma metáfora condensada: o vigor do filho se converte, por meio do seu trabalho, em bens; quando esses bens são devorados por estranhos, é como se a própria força dele estivesse sendo comida à mesa alheia. É exatamente esse movimento que Roland E. Murphy torna explícito em sua tradução: ele verte o verso como “Para que estranhos não se fartem de sua riqueza e de seu trabalho na casa de outro.”, traduzindo kōaḥ não por “força” mas por “riqueza”, porque enxerga na palavra a força transformada em patrimônio, a energia de uma vida inteira convertida em recursos que agora serão consumidos por outros (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 30). Na nota ao texto hebraico, Murphy observa que kōaḥ “é outra palavra cujo sentido é sombreado pelo contexto; literalmente significa ‘força’”, indicando justamente esse deslizamento semântico de vigor físico para capacidade produtiva, que a tradução “riqueza” tenta capturar (MURPHY, ibid.).

A sintaxe do verso, unida aos versículos 9–11 pela anáfora de pen (“para que não”), é lida por Murphy como parte de uma cadeia de despossessão: no versículo 9 o jovem entrega a outros a sua “força/poder” e os “anos” de sua vida; em 5:10, a cena se desloca para o banquete dos estranhos, que se fartam de sua riqueza e se instalam na casa que deveria ser dele, enquanto o fruto de seu labor se acumula “na casa de outro”. O comentarista resume de forma pungente: “se o homem (casado) não escutar, ele está prestes a perder tudo: poder, anos, riqueza e o fruto de um trabalho árduo (‘na casa de outro’, v. 10). Outros, completos estranhos, colherão seus lucros e o tratarão com dureza, de modo que o seu ‘fim’ […] é medonho. Ele só volta a si tarde demais” (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 32). Nessa leitura, o versículo 10 não é um detalhe moral periférico, mas o quadro econômico-social do juízo: o adultério, ao romper a aliança, desencadeia um processo em que a casa do adúltero se esvazia e a casa de “outro” se enche; o peso do texto está menos em um castigo jurídico formal e mais na lógica quase inevitável de uma vida desordenada que abre brechas para que terceiros se alimentem daquilo que o homem deveria guardar para os seus.

Murphy acompanha, em linhas gerais, a tradição exegética que entende kōaḥ aqui como metonímia para os bens gerados pelo esforço, mas sua ênfase está na totalidade da perda: “poder, anos, riqueza e fruto de trabalho árduo” formam uma escada descendente, que vai da dignidade social ao patrimônio concreto, descendo finalmente até a exaustão física descrita em 5:11. Assim, “os estranhos” que se fartam não são apenas figuras abstratas; são aqueles que, por causa da imprudência sexual, acabam com as propriedades, salários, economias e herança que deveriam permanecer na família. Quando o tradutor português diz “poder”, Murphy permite entrever que, por trás dessa palavra, há o conjunto de fatores que dão consistência à vida de um homem: prestígio, capacidade de sustento, possibilidade de prover os seus. Tudo isso vai para a mesa de outros, que se sentam à vontade na casa que não ajudaram a construir.

Dentro da lógica mais ampla do capítulo, Murphy lê 5:10 como parte do grande contraste entre dois “caminhos”: o caminho da mulher estranha, cheio de promessas doces mas que termina em perdas irreparáveis, e o caminho da sabedoria, que preserva a vida, o corpo e a casa. A escolha verbal “fartar-se” ecoa, em sentido irônico, as imagens de fartura legítima que aparecem mais adiante no mesmo capítulo, quando o marido é chamado a “beber” da própria cisterna e a “embriagar-se” no amor da esposa (5:15–19); a saciedade dos estranhos com a riqueza do insensato é, por assim dizer, a caricatura pervertida dessa alegria conjugal que Deus aprova (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 32). A força que se derrama na cama proibida volta, como um bumerangue, na forma de contas, indenizações, perdas judiciais e ruína pública; a imagem de forasteiros fartos é um modo concreto de dizer: “serás exaurido para alimentar uma mesa que não é tua”.

Do ponto de vista da exegese, portanto, a interpretação de Murphy pode ser resumida assim: o verso descreve o preço econômico do adultério, em que “estranhos” – provavelmente o marido ofendido, sua família e outros oportunistas – se apoderam da energia acumulada de uma vida inteira de trabalho; o hebraico enfatiza a origem dessa riqueza na “força” do homem, e o contexto exige que essa força seja entendida como o capital que ele amealhou. A advertência é feita em ritmo de poesia, mas tem os pés no chão: quem brinca com o fogo sexual pode acabar “trabalhando para encher a casa de outro”, enquanto a sua própria casa se desmorona. Foi essa convergência entre o vigor consumido, a fortuna perdida e a invasão de estranhos no espaço doméstico que Murphy quis condensar ao traduzir “para que não se fartem os estranhos do teu poder”, e ao comentar que, se o homem não ouvir, “ele está prestes a perder tudo” (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 30; p. 32).

A escuta rabínica começa por perguntar o que exatamente são esse “poder” e esses “estranhos”. Rashi lê o verso dentro do drama da idolatria: os “estranhos” são os profetas de Baal que “cobram dinheiro com suas mentiras e sua temeridade”, isto é, líderes religiosos falsos que se alimentam do patrimônio do povo enganado; o “poder” que eles devoram é o fruto do esforço econômico do fiel, sua capacidade de produzir riqueza, desviada para sustentar um culto ilegítimo (Rashi sobre Provérbios 5:10). Nessa leitura, o pai de Provérbios 5 não fala apenas de consequências íntimas da infidelidade sexual, mas de uma dinâmica de exploração espiritual em que a energia, o tempo e o dinheiro que deveriam ser consagrados ao Deus de Israel acabam saciando bocas alheias — sacerdotes de ídolos, sistemas religiosos espúrios, estruturas que prometem salvação e devolvem ruína.

O “Biur” em Wikisource, resumindo Metzudat David e outros, oferece três caminhos complementares. Em primeiro lugar, “poder” pode designar a própria força de trabalho: o adúltero, como o infiel à aliança, acaba vendido ou submetido a estrangeiros, de modo que sua energia vital é consumida em benefício de outros; essa linha é relacionada a juízos como o de Sansão, que, capturado pelos filisteus, vai moer no cárcere “em casa de estrangeiros” (Juízes 16:21). Em segundo lugar, “poder” pode ser lido como força física ligada à fertilidade: o Malbim interpreta “koach ha-guf” como a própria potência sexual, especialmente o sêmen, e “estranhos” como a mulher estranha e a descendência que nasce dela; nesse caso, o provérbio denuncia o desperdício do dom da geração, que deveria ser canalizado para dentro da aliança do casamento e, em vez disso, alimenta uma linhagem que não reconhece o Deus da casa (Malbim sobre Provérbios 5:10). Finalmente, o mesmo Biur recolhe a linha de Metzudot: “estranhos de ti, que não são dignos de te herdarem, se fartarão do teu poder, isto é, da riqueza que veio pelo teu esforço”, aproximando Provérbios 5:10 das maldições de Deuteronômio 28, onde “o fruto da tua terra e todo o teu trabalho comerá um povo que não conheces” (Biur sobre Provérbios 5:10; Deuteronômio 28:33).

Essa rede de ecos se expande quando o Biur aponta para Oséias 7:9, onde “estranhos devoraram a sua força, e ele não o sabe”; ali, Israel é comparado a um pão que queimou de um lado só porque o fogo de fora foi comendo a massa, imagem que o Malbim retoma para comentar como forças externas consomem o vigor espiritual de Efraim (Oseias 7:9; Malbim sobre Oseias 7:9). Lido à luz desse horizonte profético, “Para que não se fartem os estranhos do teu poder” torna-se uma sentença sobre qualquer forma de adultério da aliança: tanto no quarto quanto no culto, quando o coração abandona o caminho da sabedoria, o que acontece não é apenas culpa subjetiva, mas transferência objetiva de energia. O que deveria ser força a serviço da Torá — estudo, trabalho honesto, vigor criativo — passa a alimentar sistemas “estranhos”: a casa da adúltera, o templo de Baal, o império opressor, qualquer estrutura que se ergue sobre o esgotamento da alma alheia. A literatura rabínica lê nesse verso, portanto, um aviso contra toda economia espiritual em que o servo de Deus acaba financiando o próprio cativeiro, até descobrir tarde demais que o seu “poder” já se converteu em banquete de outros.

...e os teus trabalhos na casa de estranhos (Hb.: weʿămāleykā bĕḇêṯ nokhrî — “e os teus labores na casa de um estrangeiro”). Weʿămāleykā vem de ʿāmāl (“trabalho penoso, fadiga”), com sufixo de 2ª masc. sg., indicando esforço cansativo, suor. Bĕḇêṯ nokhrî combina “casa” com nokhrî (“estranho, estrangeiro”), termo próximo de zār mas frequentemente com nuance de pertencimento a outro grupo. A sintaxe coloca o “trabalho” como algo que muda de endereço: não é o estranho que entra em tua casa, é o teu labor que vai morar na casa dele. Exegesemente, a linha completa a progressão: honra, anos, força, agora o próprio fruto da fadiga são deslocados. A casa do outro vira beneficiária de uma vida que se gastou. Em termos de sentido, o provérbio pinta a ironia: o adúltero que buscou prazer “de graça” acaba sustentando, com o próprio esforço, a casa alheia — seja em forma de pensões, multas, dívidas, seja em forma de energia emocional e mental gasta num enredo que não é seu.

Toy enfatiza que muitos provérbios são máximas de prudência comum, que enaltecem o trabalho diligente como via para uma vida estável (TOY, 1899, p. xi). Aqui, o drama é que essa mesma diligência pode ser sequestrada: o jovem continua trabalhando, mas agora o fruto do seu esforço enriquece uma “casa estrangeira”, que pode ser tanto um lar adulterino quanto uma estrutura econômica hostil. A literatura de sabedoria do antigo Oriente Próximo, que tanto Toy quanto Murphy mencionam em seus panoramas, conhece bem esse cenário em que o insensato termina servindo como mão de obra barata para os mais astutos; em Provérbios, isso é revestido de teologia: a sabedoria, que é para Toy uma espécie de “vida comum entre Deus e o homem” (TOY, 1899, p. xvii), é traída quando o trabalhador consagra a energia do seu corpo ao serviço de uma casa que representa a desordem moral.

O foco rabínico recai sobre o termo ʿaṣavim (hb.: weʿaṣāveḵa bevet nokhrî — “e os teus trabalhos [os teus esforços dolorosos] na casa de um estrangeiro”), que, como mostra o Biur, tanto pode significar “aquilo que foi moldado e trabalhado com esforço” quanto a própria dor, o desgaste que acompanha esse trabalho (Biur sobre Provérbios 5:10). Nessa chave, “os teus trabalhos na casa de estranhos” quer dizer que tudo aquilo que o indivíduo “projetou, moldou e criou com grande esforço” acaba sob controle de outros; não apenas a força bruta, mas os frutos mais refinados da sua criatividade são sequestrados. Há aqui um eco direto da sentença do Éden — “com dor comerás dela” — que o Malbim também invoca: os bens que o homem adquiriu “com dor” serão, no fim, usufruídos pelos filhos da mulher estranha, herdeiros que não partilham nem da sua fé nem da sua responsabilidade (Malbim sobre Provérbios 5:10). A casa de “estranhos”, segundo Rashi, é literalmente “casa de idólatras”, isto é, um espaço onde outros deuses são servidos; a imagem concentra, numa só expressão, o desvio religioso e o desvio econômico: aquilo que construíste com lágrimas pode acabar erguendo altares que contradizem tudo em que crês (Rashi sobre Provérbios 5:10).

O mesmo Biur desenvolve duas consequências dessa leitura. Por um lado, há uma leitura social dura: em contextos antigos, o adúltero podia ser punido com escravidão ou confisco de bens; assim, “trabalhos na casa de estranhos” descreve um castigo em que o corpo e o fruto do labor passam a servir dentro da casa de outro, como no destino de Sansão, que se torna escravo moendo no cárcere dos filisteus (Juízes 16:21). Por outro lado, a mesma expressão é lida como maldição de aliança: como em Deuteronômio 28:33, em que “o fruto do teu solo e todo o teu trabalho comerá um povo que não conheces”, o provérbio adverte que o pecado — seja sexual, seja idólatra — abre a porta para uma espécie de exílio econômico, em que o homem vê suas colheitas, projetos e patrimônios alimentarem casas, povos e sistemas que lhe são estranhos (Deuteronômio 28:33; Chizkuni sobre Deuteronômio 28:33). A literatura rabínica costura, então, um cenário em que a cama da adúltera, o altar do ídolo e a casa do estrangeiro são variações de uma mesma realidade: lugares onde o servo de Deus perde o controle daquilo que suas mãos produziram, até que seus “trabalhos” já não falem mais de sua vocação, mas da sua servidão.

Uma nota fina do Biur, citando R. Moshe David Vali, aprofunda ainda mais a psicologia do verso: ʿaṣavim também pode nomear o estado de alma que surge quando não há mais “formar e criar”. Quando o homem não investe sua energia em uma obra que lhe é própria, “quando não há ʿiẓuv (moldagem), há ʿeẓev (tristeza)”; ao entregar seus trabalhos à casa de estranhos, ele perde não só os bens, mas o próprio senso de missão, caindo num estado de abatimento e depressão espiritual (Biur sobre Provérbios 5:10). Esse contraste é reforçado pela comparação com o homem justo de Salmos 128, em que “o trabalho das tuas mãos comerás; feliz serás, e te irá bem”, e em que a esposa e os filhos florescem dentro de casa como videira e rebentos de oliveira, exatamente o contrário da dispersão de Provérbios 5, onde o trabalho alimenta mesas alheias (Salmos 128:1–3).

Aqui, a metáfora desce ao chão da economia. A energia que Deus nos dá — física, mental, espiritual — é semente destinada a um campo: construir uma casa, sustentar uma família, servir à comunidade, socorrer o pobre, alegrar-se diante de Deus. Quando essa energia é desviada pelo caminho da estranha, quem se farta dela não é aquele para quem ela foi dada. “Estranhos” se alimentam do que deveria ser pão na mesa da aliança. Há um eco claro das maldições de Deuteronômio 28: “O fruto da tua terra e todo o teu trabalho comerá um povo que não conheces” (Deuteronômio 28:33). Em Ageu 1:6, o profeta descreve um povo que semeia muito e colhe pouco, come e não se farta, bebe e não se satisfaz, recebe salário num saco furado. Provérbios 5:10 descreve a versão moral desse “saco furado”: o salário, a criatividade, a força, tudo escorre para dentro da casa de alguém que não partilha da fé, nem da responsabilidade, nem da aliança.

O Novo Testamento, sem usar a mesma imagem, ecoa a lógica quando fala de “semear para a carne” e “semear para o Espírito” (Gálatas 6:8). Quem semeia para a carne colhe corrupção, isto é, colhe a experiência de ver tudo o que fez apodrecer antes de amadurecer; quem semeia para o Espírito colhe vida eterna, isto é, colhe frutos que permanecem diante de Deus. O adúltero de Provérbios é um semeador que sacia os “estranhos” com o seu poder, mas volta para casa com as mãos vazias. Em contraste, o Salmo 128 mostra o justo comendo “do trabalho das suas mãos” e vendo a esposa como “videira frutífera” no interior da sua casa e os filhos como “rebentos de oliveira” ao redor da mesa. O adúltero, ao contrário, vê seus trabalhos na casa de estranhos, seus frutos no colo de outros, seu esforço sustentando uma arquitetura que o exclui. Em linguagem espiritual, isso é o que acontece sempre que o coração entrega suas melhores horas, seus melhores pensamentos, sua melhor energia a um “outro” que não é o Senhor: o trabalho interior alimenta ídolos mudos, e a alma volta faminta.

Provérbios 5:11

E tenhas chorado no teu fim, consumindo a tua carne e o teu pão (Hb.: wĕnāhamtā beʾaḥărîtḵā biklōṯ bĕśārḵā ûšĕʾerkā — “e gemas no teu fim, quando se consumirem a tua carne e o teu corpo”). Wĕnāhamtā é perfeito qal de nāham em valor futurista (“gemer, lamentar”), desenhando um lamento tardio. Beʾaḥărîtḵā (“no teu fim”) usa ʾaḥărît para o desfecho da vida, o ponto em que as contas são vistas em perspectiva. Biklōṯ (infinitivo construto de kālāh, “consumir, acabar”) indica processo de desgaste. Bĕśārḵā (“tua carne”) e šĕʾerkā (“teu corpo/tuas carnes”) formam um par que aponta para a integridade física e vital do indivíduo. A oração condicional implícita liga o futuro lamento ao presente descuido: se não te afastares, chegará o dia em que gemerás. O quadro é de um velho que olha para trás e vê no próprio corpo as marcas da colheita: carne consumida por excessos, saúde corroída, talvez também um corpo emocional e relacional desgastado. A menção ao “fim” reforça a natureza sapiencial do texto: ele quer educar a imaginação para ver o desfecho, não apenas o início adocicado da aventura.

Aqui o verbo ve-nāhamtā (“e tu gemerás”) é o rugido tardio de quem acorda no último capítulo da própria história: não é um suspiro piedoso, é um estertor de angústia. A forma hebraica descreve um clamor que explode “no teu fim” (beʾaḥărîtḵā), isto é, no “depois” de toda a trajetória, quando o resultado final já se impôs, como Murphy observa ao enquadrar os versículos 7–14 como o cenário de um “fim arrasador e autoacusador” para quem insistir em seguir a mulher estranha (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 31]; cf. a tradução de 5:11, “Então você gemerá no final, quando sua carne e seu corpo forem consumidos.”). Em outra passagem, ao falar do vocábulo “fim” (ʾaḥarīt), Murphy mostra como este termo funciona como palavra-gancho que opõe o “caminho que está diante” e o “resultado derradeiro”, lembrando que aquilo que parece seguro ao olhar imediato pode terminar em morte e ruína (MURPHY, ibid., 1998, p. 104). Essa chave ilumina Provérbios 5: aqui, o “fim” do jovem seduzido espelha o “fim” da própria mulher estranha em 5:4, de modo que o discípulo que a segue não apenas se une ao seu leito, mas também ao seu destino.

No núcleo da frase, a locução biḵlōt besarḵa ušĕ'ereḵa retrata o momento em que “tua carne e teu corpo” chegam ao ponto de esgotamento total: o verbo kālâ (“ser consumido, chegar ao fim”) marca aquele instante em que já não há reservas, como quando uma lâmpada queima até o último fio do pavio. Waltke mostra como o versículo combina “depleção física com perda social”: o gemido revela uma situação de “extrema exaustão e penúria”, em que o arrependimento chega tarde demais, quando o corpo já foi “gasto, esgotado, usado até falhar” (WALTKE, Proverbs 1–15 (NICOT), 2004, p. 428). Toy, no ICC, afina com essa leitura ao insistir que “corpo e carne (= o ser, a personalidade) são consumidos, gastos”, não como mera descrição de doença venérea, mas como imagem da perda de posição, poder e de “tudo aquilo que torna a vida gozosa”. Assim, a carne consumida não é apenas o músculo que mirra, é a pessoa inteira que se descobre gasto em vão, como um campo exaurido por safras sucessivas de egoísmo.

Dentro da arquitetura do capítulo, Murphy lê esse versículo não em isolamento, mas como parte da conclusão dramática do bloco 7–14: a instrução começa com um “afasta-te do seu caminho” e progride até a cena em que o próprio discípulo, já velho, se apresenta como testemunha contra si mesmo. A imagem do choro “no teu fim” funciona então como o clímax subjetivo de uma ruína já objetivamente descrita nos versículos anteriores: a honra entregue a outros, a força e o fruto do trabalho passando para a casa de estranhos (5:9–10). No comentário de Toy, essa progressão é expressa com nitidez: primeiro, o adúltero vê sua riqueza ser saqueada “por outros”, de modo que o trabalho da vida inteira ergue a casa de outrem; depois, em 5:11–14, ouvimos “o lamento do homem sobre a vida quebrada”, quando descobre que seu corpo e sua carne, isto é, sua personalidade e sua história, foram consumidos num caminho que não construiu nada duradouro. E é precisamente essa encenação do “fim quebrado” que Murphy recolhe ao falar de um “fim arrasador e autoacusação”, pois, em 5:12–13, o gemido se converte em confissão: “Como odiei a instrução... não escutei... não inclinei o ouvido...”, texto que ele identifica como citação da própria voz do insensato, incorporada ao discurso sapiencial para servir de advertência (MURPHY, ibid., 1998, p. 31).

Na lógica de Murphy, portanto, Provérbios 5:11 é o momento em que o jovem, agora envelhecido, volta-se para trás e enxerga o fio completo da narrativa: o prazer rápido do capítulo inicial se converteu num “fim” amargo em que ele mesmo se torna acusador de sua antiga surdez. O verbo “chorar/gemer” não fala de uma lágrima puramente emocional, mas de uma consciência tardia, esmagadora, que entende que o desperdiçar do corpo foi, na verdade, desperdício de vocação, de anos, de possibilidades. As imagens físicas — carne, corpo, pão — funcionam como sacramento da vida inteira: carne consumida, corpo gasto, pão comido às pressas na casa de outros. No horizonte mais amplo do livro, essa cena dialoga com todos os textos que contrastam o caminho do justo e o caminho do insensato: o justo floresce “no fim”, o ímpio murcha; aqui, o adúltero é o exemplo de quem só descobre o fim quando não há mais tempo, ecoando aquele princípio que Murphy explora em Provérbios 14:12: há um caminho que, sob a luz curta do presente, parece direito, mas cujo desfecho é uma estrada larga para a morte (MURPHY, ibid., 1998, p. 105).

A tradição rabínica lê esse gemido (hb.: wenāhamta beʾaḥarītekha — “e tu gemerás no teu fim”) como o grito tardio de uma consciência que desperta quando o corpo já está gasto. O verbo nāham é interpretado como um rugido de dor: Radak, comentando Ezequiel 24:23, explica “e vós gemereis (wənehēmtem)… como em ‘e gemerás no teu fim, quando se consumirem a tua carne e o teu corpo’”, tomando nosso versículo como paradigma de um lamento que vem “depois da desgraça feita” (Radak sobre Ezeuiel 24:23). Na página de Mishlei 5:11 em Wikitext, onde se reúnem Rashi, Ralbag, Metzudat David, Metzudat Tsion e Malbim, Ralbag comenta que, “no fim (beʾaḥarītekha), quando a carne se tiver consumido na velhice, então o homem clamará e se lamentará”, sublinhando que o versículo aponta para o momento em que o sujeito olha para trás e percebe que suas forças foram gastas em caminhos vãos (“Mishlei 5:11” – Ralbag). Malbim, no mesmo conjunto de comentários, desenvolve essa linha dizendo que, “no final, quando a tua carne se tiver consumido pela purgação da paixão, tu gemerás e te arrependerás do passado”, e acrescenta que, enquanto o homem se deixa governar pelos desejos da carne, ele sacrifica o “mundo eterno” em troca de satisfações imediatas, descobrindo apenas no fim o alcance dessa perda (Malbim sobre Provérbios 5:11; ver também o Be’ur ha-millim em Malbim Beur Hamilot sobre Provérbios 5:11).

Esse “fim” é lido também em chave pedagógica e escatológica. A página de Wikitext dedicada a Mishlei 5:11 traz, além dos comentaristas clássicos, um “Biur Wiki” que descreve o versículo como chamado a “pensar na aḥarit”, a última estação da vida e o momento em que o homem se dá conta de que gastou suas forças em prazeres sem peso, aproximando o nosso provérbio de outros textos sapienciais que usam “aḥarit” para falar do destino final (como Provérbios 23:18; 24:14) (Biur: Mishlei 5:11). Em chave de Mussar, o tratado Reshit Chokhmah, Sha’ar ha-Yirah usa explicitamente Provérbios 5:11–13 para descrever o momento em que o ímpio, ao se aproximar da morte, percebe que “todos os seus dias foram em vão” e que agora não pode mais praticar Torá e boas obras, apenas gemer pelo que perdeu (Reshit Chokhmah, Gate of Fear 11). Nessa moldura, “e tenhas chorado no teu fim” não é um fatalismo teológico, mas uma imagem didática: o leitor é convidado a projetar-se nesse futuro em que escutará o próprio gemido, para que, enquanto ainda há vigor, escolha caminhos que não conduzam a esse lamento.

Os comentaristas clássicos se detêm na duplicação da segunda parte, “tua carne / teu corpo”. Em Metzudat Tsion, preservado na mesma página de Mishlei 5:11, lê-se que “šəʾerkha também se diz da carne, como em Salmos 78:20, ‘se preparar carne (šʾer) para o seu povo’; e assim o versículo apenas reforça a ideia com sinônimos, como ‘terra de pó’ em Daniel 12”, insistindo na imagem de um organismo inteiro que se desgasta (Metzudat Zion sobre Provérbios 5:11; ver o conjunto em Wikitekst Mishlei 5:11). Metzudat David, por sua vez, lê “no teu fim” como “no fim dos teus dias, no dia da morte, quando a tua carne se terá consumido; então gemerás de dor no coração”, tornando explícito o vínculo entre desgaste físico e remorso moral (Metzudat David sobre Provérbios 5:11). Malbim, tanto no comentário quanto no Be’ur ha-millim, distingue com fineza: “bĕśarkha” é toda a carne, inclusive o que veio com gordura e robustez, enquanto “šəʾerkha” designa “os pedaços mínimos de carne que restam sobre os ossos mesmo no homem magro”, concluindo que o versículo pinta um corpo consumido de alto a baixo pelo “polimento da paixão” que o gastou em busca de prazer (Malbim sobre Provérbios 5:11; Malbim Beur Hamilot sobre Provérbios 5:11:1).

Ao lado dessa leitura “somática”, a tradição rabínica amplia o campo semântico. Alguns biurim modernos – que se apoiam nesses comentaristas e em paralelos bíblicos – chamam atenção para Êxodo 21:10, onde “šĕ’ērāh” aparece ao lado de “vestes” e “coabitação”, como parte do dever conjugal; a partir daí, sugerem que “carne e corpo” em Provérbios 5:11 podem incluir também a esfera da intimidade matrimonial, isto é, o vínculo conjugal destruído pelo adultério, de modo que o consumo não é só biológico, mas também relacional (Êxodo 21:10 em Sefaria; ver discussão em Wikitekst Biur: Mishlei 5:11). Em chave escatológica, um trecho de Otzar Midrashim preservado em edição online de Malaquias 3:19–24 cita nosso versículo (“e gemerás no teu fim, quando se consumirem a tua carne e o teu corpo”) ao descrever o juízo: “e nenhum deles escapa, a não ser aquele em quem há Torá e boas ações”; ali, o consumo da carne torna-se figura da completa impotência de quem chega ao tribunal sem frutos (Malachi 3:19–24 com Otzar Midrashim). Halakhot Gedolot, num tom semelhante, reúne o bloco de Provérbios 5:11–14 (“e gemerás no teu fim… como odiei a instrução… não ouvi a voz dos meus mestres…”) para advertir que, se o homem não ouvir agora a correção, será forçado a confessar, no fim, que desprezou o ensino e quase se perdeu “em todo mal no meio da congregação” (Halakhot Gedolot 76).

Depois de falar de rota, honra, anos e trabalho, o texto nos leva para o cenário final: um homem no fim da vida, olhando para trás. O verbo “chorar” aqui — gemer — é a voz de quem não apenas sente remorso, mas sente o corpo inteiro ser testemunha da própria história. A carne consumida não é só metáfora de enfermidade; é o registro de anos em que o corpo foi usado como instrumento de idolatria de si mesmo. Tiago 1:14–15 descreve esse processo em miniatura: “cada um é tentado pela sua própria cobiça… então a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte”. Consumar e consumir são irmãos: aquilo que se consuma repetidas vezes vai consumindo a própria estrutura que o pratica. O resultado, no fim, é esse gemido tardio em que a pessoa percebe que não foi apenas o corpo que envelheceu; foi a alma que encolheu junto, foi o coração que perdeu a capacidade de se alegrar com o que é puro.

No horizonte do Antigo Testamento, esse “fim” lembra o de Sansão, cego, moendo no cárcere dos filisteus (Juízes 16:21–30): um homem que tinha sido consagrado, que recebeu um dom excepcional, e que, ao brincar com a sedução, termina usando a força para divertir seus inimigos num banquete de ímpios. Ali, como em Provérbios 5:11, há lágrimas tardias, há arrependimento que chega no limite, há carne consumida por uma história que poderia ter sido outra. No Novo Testamento, o eco se ouve nas palavras de Hebreus 12:16–17, quando o autor usa Esaú como exemplo de quem, “querendo herdar a bênção, foi rejeitado, porque não achou lugar de arrependimento, embora com lágrimas o tivesse buscado”. As lágrimas, quando chegam tarde, já não mudam a colheita; apenas reconhecem o que as sementes plantadas produziram. O gemido de Provérbios 5:11 é um aviso profético: ou choras agora, diante da Palavra que corta e cura, ou chorarás depois, diante da colheita que não pode mais ser arrancada.

Provérbios 5:12

E tenhas dito: Como odiei a instrução, e como desprezei a repreensão! (Hb.: weʾāmartā ʾêḵ śānēʾtî mûsār wĕtôḵaḥat nāʾaṣ libbî — “e digas: Como odiei a disciplina, e meu coração desprezou a repreensão!”). Weʾāmartā (“e dirás”) introduz a confissão tardia. ʾÊḵ (“como!”) é interjeição de espanto e pesar. Śānēʾtî (perfeito de śānēʾ, “odiar”) indica não simples negligência, mas rejeição ativa. Mûsār é termo-chave em Provérbios: “disciplina, correção formativa”, a pedagogia que molda. Tôḵaḥat (“repreensão, admoestação”) é a palavra franca que confronta o erro. Nāʾaṣ libbî vem de nʾṣ (“desprezar, desdenhar”), aqui com “coração” como sujeito interno do desprezo. Sintaticamente, temos paralelismo interno entre “odiei a disciplina” e “desprezei a repreensão”, reforçando a intensidade da resistência. Exegesemente, a cláusula traduz em palavras o que antes era apenas gesto: a recusa de ouvir pais, mestres, sabedoria. O foco está na relação com a Palavra que adverte, não apenas com a mulher que seduz; o pecado de adultério é fruto de uma trajetória de hostilidade à correção. O texto mostra que, no fim, o insensato reconhece não só o erro, mas a arrogância anterior: discursivamente ele está falando consigo mesmo, mas diante de Deus e da tradição que havia desprezado.

O versículo é construído como um grito tardio, já não do pai, mas do próprio discípulo, projetado para o futuro: o verbo weʾāmartā (“e dirás”) coloca a confissão na boca do filho quando tudo já estiver arruinado, de modo que a voz que fala é uma voz quebrada pelo tempo, como se o sábio fizesse o leitor ouvir, antecipadamente, o eco da sua própria imprudência. O advérbio ʾêk (“como!”) funciona aqui como interjeição de espanto doloroso, mais lamento do que simples pergunta, a explosão de quem vê, em retrospecto, a cadeia inteira de decisões tolas, e a palavra alonga o verso como um suspiro de quem reclama contra si mesmo; Waltke nota que essa abertura confere ao versículo o tom de lamentação pungente, em continuidade direta com o choro do versículo anterior, onde já se descreve o fim consumido e exausto (WALTKE, The Book of Proverbs: Chapters 1–15, 2004, p. 429).

O coração do lamento está nos dois verbos: śānēʾtî (“eu odiei”) e nāʾaṣ (“desprezou”), ambos no perfeito, não como lampejos momentâneos, mas como um histórico inteiro de resistência sistemática. O primeiro verbo vem do campo semântico do ódio decidido, não de uma mera antipatia; o segundo descreve o gesto de tratar algo como desprezível, cuspido para fora, e Waltke observa que, ao ligá-lo a libbî (“meu coração”), o texto desloca a responsabilidade do erro para o centro da vontade e da consciência, indicando que o problema não foi falta de informação, mas rejeição voluntária da correção (WALTKE, ibid., 2004). A nata da insensatez não está apenas no ouvir mal, mas no odiar aquilo que, por natureza, vem para salvar — a disciplina (mûsār) que educa, poda, corrige; a repreensão (tôkaḥat) que desmascara a autoilusão.

Esses dois substantivos, mûsār (“disciplina formadora”) e tôkaḥat (“repreensão, refutação”), condensam todo o programa pedagógico de Provérbios: desde o início do livro, o pai chama o filho a acolher mûsār como um tesouro (Provérbios 1:2; 3:11–12), porque é por meio dela que Deus endireita caminhos tortos e preserva da ruína. Wilson nota que, no contexto imediato de Provérbios 5, o discurso do pai sobre a mulher estranha faz da rejeição dessa disciplina o eixo interpretativo do desastre: o colapso financeiro, social e corporal dos versículos anteriores é, em última análise, “um fracasso de disciplina (5:12, 23)”, o resultado de ter preferido o prazer imediato à voz da sabedoria (WILSON, Proverbs: An Introduction and Commentary, 2018, p. 99). Assim, o verso não é um queixume contra Deus ou contra o destino, mas uma confissão de culpa pedagógica: odiei precisamente aquilo que foi minha única salvaguarda.

A sintaxe paralela dos dois cola (“Como odiei a instrução / e como desprezei a repreensão”) intensifica esse movimento: o segundo membro não acrescenta uma nova informação, mas dobra a primeira ideia, como se o verso fizesse ecoar o remorso, tendo a forma de um paralelismo sinonímico, no qual “odiar a disciplina” e “desprezar a repreensão” são duas faces de uma mesma rebeldia. Waltke chama a atenção para o modo como esse paralelismo dialoga com a estrutura do parágrafo: se, nos versículos 9–10, o foco estava no que se perde para os outros (honra, anos, riquezas), aqui o foco volta-se para o que se perdeu em si, na interioridade, de sorte que o lamento moral (v. 12) corre em paralelo ao lamento social (v. 13) e ambos se projetam sobre o colapso descrito no v. 11 (WALTKE, ibid., 2004). A forma é de poesia hebraica clássica: pensamento que respira em dois sopros, reafirmando no segundo o que já gemeu no primeiro.

A teologia que se insinua nesse verso é, por isso, severa e terna ao mesmo tempo. Severamente, porque não oferece álibis: quem fala sabe que odiou mûsār quando ainda havia tempo de acolhê-la, e Wilson ressalta que o discurso do pai em todo o capítulo 5 trabalha com o contraste entre o “agora” da escolha e o “depois” da lamentação; a conjunção entre o imperativo de ouvir (vv. 1–2, 7) e o futuro do lamento (v. 12) desenha um arco narrativo em que a sabedoria se oferece hoje para impedir que a voz que ressoa amanhã seja apenas de remorso (WILSON, ibid., 2018, p. 99). Ternamente, porque o mesmo Deus que aqui é pressuposto como pedagogo, que disciplina por meio de pais, mestres e repreensões, é aquele que, noutros textos, toma o filho pela mão quando este se volta e aceita, enfim, aquilo que antes desprezou (Provérbios 3:11–12; Hebreus 12:5–11).

Na escuta rabínica, esta frase (hb.: wĕʾāmartā ʾêk śānēʾtî mûsār — “e dirás: ‘Como odiei a disciplina’”) é quase um solilóquio tardio, a confissão amarga de quem só descobre o valor do mûsār quando já não há tempo de aprendê-lo. A página de Mikraot Gedolot para Provérbios 5:12 reúne a tradição clássica e fixa o texto de forma enfática em dois hemistíquios: “wĕʾāmartā ʾêk śānēʾtî mûsār / wĕtôkaḥat nāʾaṣ libbî”, como se o próprio corte do versículo pedisse uma pausa meditativa entre o ódio ao ensino e o desprezo pela repreensão (Mishlei 5:12). Ralbag, citado na mesma página, lê “Como odiei a disciplina” como um reconhecimento explícito: trata-se da Torá que foi rejeitada, e “o meu coração desprezou a repreensão da Torá”; o versículo é, então, o discurso de um homem que olha para trás e admite que desprezou justamente o ensino que o teria preservado (Ralbag citado em MG Mishlei 5:12). Malbim aprofunda essa análise em seu comentário: ele distingue cuidadosamente entre mûsār e tôkaḥat. Mûsār, diz ele, é a disciplina “por meio de golpes ou temor do castigo”, e é isso que o insensato confessa ter odiado de forma absoluta; ele fugia de qualquer correção que doesse, qualquer limite que viesse com peso de sanção (Malbim sobre Provérbios 5:12). O mesmo Malbim, no Be’ur ha-millôt para este versículo, remete a Provérbios 3:11, onde “não rejeites, meu filho, o mûsār do Senhor” já marcava a disciplina como caminho de vida; aqui, a mesma palavra volta na boca de quem, ao fim, confessa: “eu a odiei” (Malbim Beur Hamilot sobre Provérbios 5:12).

Livros de Mussar tomam esta exclamação como chave de leitura para o fim da vida. Reshit Chokhmah, no “Portão do Temor”, pinta a cena do ímpio depois da morte: os pecados estão “gravados em seus ossos”, ele sente a dor da decomposição como agulha em carne viva e, nesse contexto, o autor cita Provérbios 5:11–12 para explicar que “então compreenderás o sentido de ‘e gemerás no teu fim… e dirás: Como odiei a disciplina’”, isto é, só quando o invólucro de carne se desfaz a alma percebe quanto resistiu à correção (Reshit Chokhmah, Gate of Fear 11). Maʿavar Yabboq, obra devocional sobre morte e luto, coloca nos lábios do moribundo a mesma frase — “Como odiei a disciplina e o meu coração desprezou a repreensão; e não ouvi a voz dos meus mestres” — para mostrar que, na hora do acerto de contas, muitas pessoas percebem que passaram a vida inteira esquivando-se justamente das palavras que as teriam levado ao arrependimento (Maʿavar Yabboq, Siftei Renanot 33). Halakhot Gedolot, ao comentar o trecho citado na Guemará Moed Katan 27a, junta Provérbios 5:12–14 como um bloco de confissão: “Como odiei o mûsār… não ouvi a voz dos meus mestres… quase fui a todo mal”, e aplica isso àquele que, só à beira da morte, reconhece que zombou da correção e quase derrubou o último véu da vergonha (Halakhot Gedolot 76:6; ver também Moed Katan 27a com Halakhot Gedolot).

Outros textos rabínicos exploram o contraste entre odiar o mûsār e amá-lo. Menorat HaMaor, na seção sobre “repreensões”, cita Provérbios 5:11–12 lado a lado com Provérbios 9:8 e 25:12 para dizer que, se alguém rejeita as admoestações, vai terminar dizendo “Como odiei o mûsār…”, mas “aquele que ama as repreensões e as aceita e faz teshuvá” é comparado a um pendente de ouro em ouvido atento (Menorat HaMaor, On Repentance, Reprovement 11). Em Yein Levanon sobre Pirkei Avot 1:6, o autor volta a este versículo para exortar o discípulo a “adquirir para si um mestre”: ele diz que quem habitua o coração a rejeitar mûsār terminará repetindo a confissão de Provérbios 5:12, enquanto quem se submete à orientação de “mestres da Torá que mostram o caminho da vida” evita esse lamento tardio (Yein Levanon on Avot 1:6:8). Até mesmo ensaios contemporâneos, como um estudo de palavra em Wikitext sobre “tokhaḥat”, reúnem Provérbios 5:12 com outros textos de Provérbios que falam da disciplina (6:23; 9:7–8; 12:1; 13:18) para mostrar que o ódio ao mûsār é marca do insensato, enquanto o amor a ele é marca de quem ama o conhecimento (Biur “yôkiaḥ” em Wikitext).

A segunda cláusula (hb.: wĕtôkaḥat nāʾaṣ libbî — “e a repreensão o meu coração desprezou”) estreita o foco: já não é apenas o mûsār externo que foi odiado, mas a tôkaḥat, a palavra argumentativa que busca convencer pela razão, e essa foi “desprezada” por dentro, no coração. Malbim insiste nessa diferença: em seu comentário, ele explica que tôkaḥat é “o que se discute com a pessoa para trazê-la de volta ao bem por meio de provas do intelecto”, e acrescenta que essa forma de correção “ele não odiou” de modo consciente, mas o seu coração a “nāʾaṣ”, isto é, considerou-a algo vil, digno de desprezo (Malbim sobre Provérbios 5:12). A raiz nʾṣ, como lembra Metzudat Tsion, é usada para designar escárnio e desdém: ele remete a Provérbios 1:30, “kol tokhaḥtî nāʾāṣû — desprezaram toda a minha repreensão”, para mostrar que não se trata de uma simples resistência, mas de uma rejeição ativa carregada de zombaria (Metzudat Tsion sobre Provérbios 5:12, em M"G Mishlei 5:12). Metzudat David comenta de forma breve e cortante: “naʾaṣ libbî — o meu coração a desprezou para aviltá-la”, isto é, o centro da pessoa fez da repreensão algo sem valor, quase um objeto de chacota interior (Metzudat David sobre Provérbios 5:12, em MG Mishlei 5:12).

Por isso, muitos mestres de Mussar veem nessa cláusula o retrato de uma surdez cultivada. Reshit Chokhmah, no mesmo capítulo citado acima, costura Provérbios 5:11–13 para dizer que o ímpio primeiro se recusa a ouvir a repreensão, depois o seu coração passa a desprezá-la, e, por fim, ele confessa: “Não ouvi a voz dos meus mestres, nem inclinei o meu ouvido aos meus instrutores”; o desprezo interno pela tôkaḥat é o que, no fim, o separa de qualquer possibilidade de correção (Reshit Chokhmah, Gate of Fear 11). Maʿavar Yabboq ecoa essa leitura quando coloca na boca do moribundo não só o lamento pela disciplina odiada, mas também a confissão de que o coração “desprezou a repreensão” e que, por isso, ele quase caiu “em todo mal, no meio da congregação”, isto é, quase perdeu até o freio do pudor público (Maʿavar Yabboq, Siftei Renanot 33). Em Eretz Ḥemdah sobre a parashá Kedoshim, o autor retoma este versículo para descrever o drama espiritual de quem, enquanto estava “revestido da matéria”, tinha os ouvidos bloqueados para a voz que o chamava de cima; só depois que a crosta material se desfaz, diz o texto, “a alma ouvirá os chamados que nunca cessaram” e então dirá: “Como odiei o mûsār e como o meu coração desprezou a tôkaḥat” (Eretz Ḥemdah, Kedoshim 8).

Até comentários mais breves, como um ensaio em Wikitext sobre a palavra “yôkiaḥ”, usam este versículo como eixo: ali, o autor mostra como a Escritura fala de quem “odeia a tôkaḥat” (Provérbios 12:1), de quem a “abandona” (10:17; 13:18) e do sábio que “ama” o repreensor (9:8); no centro dessa constelação, Provérbios 5:12 aparece como o momento em que o coração reconhece que passou a vida inteira na categoria errada — não entre aqueles que acolhem a correção, mas entre os que a ridicularizam (Biur “yôkiaḥ” em Wikitext). Em Ohel Yaʿakov sobre a porção Kedoshim, a mesma fórmula reaparece: o autor pergunta se existe, em nossos dias, quem ainda “receba tôkaḥat”, e responde citando de novo Provérbios 5:11–13 para ilustrar o risco de uma geração em que todos falam, mas quase ninguém suporta ser corrigido (Ohel Yaʿakov on Torah, Kedoshim 11).

Aqui, a sabedoria coloca na boca do pecador seu próprio sermão. O homem que um dia zombou das exortações agora prega contra si mesmo. “Odiei a instrução”: não é que ele não a tenha entendido, é que ele a rejeitou afetivamente, a achou amarga demais para seu paladar acostumado ao doce do mel ilícito. “Desprezei a repreensão”: não apenas suportou mal a correção, mas a tratou como lixo, como coisa indigna de respeito. Em Provérbios 1:7, o livro já havia declarado que “os insensatos desprezam a sabedoria e a instrução”; aqui, o insensato amadurecido repete a tese, mas na primeira pessoa. A disciplina que outrora o pai pediu que não fosse desprezada — “Filho meu, não rejeites a disciplina (mûsār) do Senhor” (Provérbios 3:11) — é exatamente a que ele confessa ter odiado.

Essa confissão dialoga diretamente com Hebreus 12:5–11, onde o autor cita Provérbios 3 e exorta os leitores a não desprezarem a disciplina do Senhor, porque é “ao filho que ama que ele corrige”. A disciplina é o carinho severo de um Pai que se recusa a deixar seus filhos caminharem para o abismo. O homem de Provérbios 5:12, no entanto, agora percebe que, ao rejeitar a disciplina, rejeitou o próprio gesto do amor divino. Em termos evangélicos, é como se tivesse vivido toda a vida dizendo “Não aceito a cruz” e, no fim, descobrisse que sem cruz não há ressurreição. A repreensão que vem pela Palavra, pelos pais, pelos mestres, pela consciência, é a mão que puxa de volta; desprezá-la é bater na mão que tenta nos salvar. A cena lembra também o contraste entre dois ladrões ao lado de Jesus: um deles, mesmo no fim, insiste na zombaria; o outro, no limite da carne consumida, acolhe a repreensão e diz: “Nós, na verdade, com justiça recebemos o que os nossos feitos merecem” (Lucas 23:41). A diferença não está no histórico, mas no que o coração faz com a verdade quando ela, enfim, o alcança.

Provérbios 5:13

Não dei ouvidos à voz dos meus mestres... (Hb.: wĕlōʾ šāmaʿtî beqōl môray — “e não escutei a voz dos meus mestres”). O wĕlōʾ (“e não”) continua a confissão. Šāmaʿtî (perfeito de šāmaʿ, “ouvir, obedecer”) aqui é “não ouvi” no sentido forte de não acolher, não obedecer. Beqōl (“à voz”) e môray (“meus mestres, meus instrutores”) apontam para um plural de figuras de autoridade: pai, sábios, mestres. Sintaticamente, a frase especifica o conteúdo do ódio à disciplina do versículo anterior: odiar a disciplina é, concretamente, tapar o ouvido para vozes conhecidas. A cláusula reconhece que houve uma rede de ensino disponível; a queda não se deveu a falta de luz, mas ao fechamento deliberado dos ouvidos. A sabedoria bíblica sempre associa “ouvir” com obedecer; confessar que “não ouvi” é admitir que se caminhou em surdez escolhida.

A literatura rabínica lê essa primeira cláusula como um gemido tardio de quem desprezou não apenas conselhos abstratos, mas uma cadeia concreta de mestres de carne e osso, dados por Deus como guarda-corpo da alma. Immanuel de Roma comenta que o pecador confessa ter tratado a instrução dos mestres como se não a tivesse sequer ouvido, “como se não tivesse escutado a sua voz quando me instruíam”, sublinhando que a culpa não está na obscuridade do ensino, mas na recusa voluntária em recebê-lo (Immanuel de Roma sobre Provérbios 5:13). A tradição do Ralbag (Gershonides) segue a mesma linha: ele explica que “não ouvi a voz dos meus mestres” significa recusar-se a atender o chamado a afastar-se daquelas paixões que os mestres advertiam como destrutivas; o arrependido reconhece que a função do mestre era afastá-lo “daquelas concupiscências”, e que o desastre presente é fruto direto de ter ignorado essa voz (Ralbag sobre Provérbios 5:13). Em termos de linguagem, Metzudat Tsion nota que “mestres” corresponde ao hebraico mōray (“meus mestres”), ligado à raiz de hôrāʾāh (“instrução”, “direção”), aproximando os mestres de quem dá torah, isto é, direção normativa para o caminho da vida; não são amigos ocasionais, mas figuras investidas de autoridade formadora (Metzudat Zion sobre Provérbios 5:13:1).

O Malbim, comentando “wĕlōʾ šāmaʿtî beqōl mōray” (“e não ouvi a voz dos meus mestres”), reforça esse tom de ingratidão culpada, lembrando que o verbo “ouvir” aqui é mais do que percepção acústica: é submissão prática. Ele lê a confissão como o reconhecimento de que o pecador tratou a musar (mūsar, “disciplina”) como ruído de fundo: ouviu com os ouvidos, mas não deixou que a palavra se fizesse carne em escolhas, e por isso agora retrocede, na memória, a cada advertência de que zombou (Malbim sobre Provérbios 5:13). A versão targúmica em aramaico, preservada e explicada em Jastrow, reforça essa dimensão de culpa consciente ao traduzir que ele “não ouviu a voz de seus mestres” e “não inclinou seus ouvidos” — duplicando a ideia de que a falha não foi de acesso à verdade, mas de vontade de ouvir (Jastrow, Mar IV 1 – Targum to Proverbs 5:13).

Essa primeira meia-frase, à luz dos comentadores, é o retrato de alguém que olha para trás e percebe que os “mestres” eram, em última instância, a presença de Deus na forma de vozes humanas: pai, ḥakham, rabino, a tradição que vinha de longe. Por isso, Immanuel de Roma sublinha que o verbo está no passado perfeito: ele não começa agora a desobedecer; ele colhe, no presente, a colheita madura de uma longa série de recusas acumuladas (Immanuel de Roma sobre Provérbios 5:13). Em “Gan Naul”, um tratado ético cabalístico moderno, o autor retoma exatamente Provérbios 5:11-13 para descrever o lamento do homem que chega ao fim da vida e, finalmente, entende que todos os sofrimentos eram avisados de antemão: ele cita “veʾamarta ekh sanēti mūsar… wĕlōʾ šāmaʿtî beqōl mōray wĕlimlammeday lōʾ hiṭṭîtî ʾoznî” (“e dirás: como odiei a disciplina… e não ouvi a voz dos meus mestres, e aos que me ensinavam não inclinei o ouvido”), para mostrar que a dor tardia é inseparável do desprezo anterior à instrução (Gan Naul, vol. 1, p. 11–12). Assim, a primeira cláusula torna-se, na leitura rabínica, um espelho tardio: a voz dos mestres era, na verdade, o eco da própria sabedoria divina, e ignorá-la é reescrever retroativamente toda a história da vida como uma sucessão de avisos zombados.

...nem inclinei os meus ouvidos aos meus professores (Hb.: ûlĕmĕlammĕḏay lōʾ hiṭṭîtî ʾoznî — “e aos meus que ensinavam não inclinei o meu ouvido”). Lĕmĕlammĕḏay vem de lāmad (“ensinar”), em particípio plural com sufixo de 1ª sg.: “os que me ensinavam continuamente”. Hiṭṭîtî (hifil de nāṭâ, “inclinar”) descreve um gesto deliberado de se curvar, de aproximar o ouvido. ʾOznî (“meu ouvido”) torna a imagem corporal. Sintaticamente, temos paralelismo sintético com a primeira metade do versículo: não ouvir e não inclinar o ouvido são duas maneiras de dizer a mesma teimosia, uma mais objetiva, outra mais imagética. Exegesemente, a cláusula fecha o arco da primeira rodada: o adultério narrado no capítulo não brota de repente, ele é o fruto de anos de resistência à voz que ensinava. O coração que odeia disciplina produz ouvidos que não se inclinam. O texto faz o leitor ouvir, na boca do velho arrependido, uma espécie de liturgia negativa: confissão de que a ruína exterior (honra perdida, anos entregues, trabalho desviado, corpo consumido) começou com uma decisão interior de não inclinar o ouvido.

Toy destaca que, em Provérbios, o sábio fala “em seu próprio nome, sem apelar para inspiração divina ou para qualquer livro como autoridade”, e que a “lei” de que fala é a “lei da própria consciência e razão” (TOY, 1899, p. xv). Isso significa que os “mestres” aqui não são profetas extáticos, mas especialistas em vida, gente que observou a realidade e sistematizou sabedoria. O insensato, ao confessar que não lhes deu ouvidos, admite ter rejeitado uma espécie de “ciência da vida” acumulada por gerações. Murphy, ao conceber o livro como produto de escolas de moralistas num período de alta cultura moral (descrição que Toy também usa para caracterizar a autoria de Provérbios: TOY, 1899, p. xi), reforça que a recusa da instrução é também recusa de uma tradição intelectual. No plano histórico-sociocultural, essa rejeição pode significar isolamento: o discípulo que zomba dos mestres perde o acesso às redes de conselho e de apoio que, numa sociedade sem sistemas previdenciários modernos, eram vitais para sobreviver a crises, negócios malfeitos, enfermidades (BAKKER, The Semantics of Strangeness, 2024, p. 28).

Se a primeira cláusula olha para os mestres (mōray), a segunda aprofunda a culpa ao falar dos professores (melammeday). Malbim insiste que não se trata de simples paralelismo decorativo: ele distingue “mestre” de “professor”, dizendo que o mestre é aquele que mostra uma vez o caminho, enquanto o professor é aquele que, pacientemente, repete, explica, argumenta e “ensina em forma intelectual” — e, ainda assim, o pecador confessa que nem a esse ensino reiterado inclinou o ouvido (Malbim Beur Hamilot sobre Provérbios 5:13). A imagem é delicada: Deus não ofereceu apenas um aviso pontual, mas toda uma pedagogia continuada, e a culpa do discípulo é tanto mais grave quanto mais pacientes e numerosos foram os seus melammedim. Ralbag, no mesmo versículo, reforça que “não inclinar o ouvido” descreve uma recusa obstinada, não um mal-entendido honesto: os professores esforçavam-se por enraizar a prudência, mas ele “não curvou” o ouvido, como quem mantém o pescoço ereto em desafio (Ralbag sobre Provérbios 5:13).

Immanuel de Roma, comentando a segunda meia-frase, explicita que esses “professores” são especialmente aqueles que o ensinaram “moral e sabedoria” — a arte de viver de modo ordenado —, de modo que a confissão “aos meus professores não inclinei o meu ouvido” significa que ele desdenhou não só de proibições, mas também de toda uma disciplina positiva, de um projeto de vida sábia que poderia tê-lo poupado da ruína (Immanuel de Roma sobre Provérbios 5:13). A tradição meticulosa de Metzudat Tsion volta a comentar o vocabulário, lembrando que o termo “mori” é construído a partir de uma raiz que evoca “apontar o caminho”, enquanto “melammeday” vem da raiz de “ensinar” (lamad), reforçando que há aqui uma gradação: primeiro, quem aponta a direção; depois, quem acompanha passo a passo o aprendizado; rejeitar ambos é fechar-se totalmente ao processo educativo, do primeiro sinal ao acompanhamento paciente (Metzudat Zion sobre Provérbios 5:13:1).

O Targum aramaico traduz a segunda cláusula de forma paralela à primeira: “e aos meus professores não inclinei meus ouvidos”, mantendo a ênfase na corporeidade do ato de ouvir — o ouvido que se recusa a curvar-se é metáfora de um coração que não consente; o corpo participa da rebeldia, endurecendo gestos que deveriam ser de docilidade (Jastrow, Mar IV 1 – Targum sobre Provérbios 5:13). Em “Gan Naul”, quando o autor retoma o bloco de Provérbios 5:11-13, ele comenta que esses gemidos de fim de vida — “veʾamarta ekh sanēti mūsar… wĕlimlammeday lōʾ hiṭṭîtî ʾoznî” — mostram que o juízo divino se manifesta, muitas vezes, na consciência que acorda tarde demais: o indivíduo descobre que Deus o cercou de mestres e professores, mas ele preferiu cercar-se de cúmplices; por isso, a confissão enfatiza o corpo (“o ouvido inclinado”) que nunca se inclinou, a postura que sempre permaneceu ereta contra a palavra (Gan Naul, vol. 1, p. 11–12).

O lamento atinge aqui seu ponto mais humano. A sabedoria não fala de anjos ou de revelações diretas; fala de “mestres” e “professores”, gente de carne e osso que Deus colocou no caminho para ensinar, exortar, chamar de volta. Pais, líderes, amigos piedosos, comunidade — todos esses foram, ao longo da vida, vozes que repetiam o mesmo refrão: “Afasta-te do seu caminho, não te aproximes da porta”. Ao dizer “não dei ouvidos”, o pecador admite que a culpa não foi de falta de acesso à verdade, mas de soberba que fechou os ouvidos. “Nem inclinei os meus ouvidos”: a imagem é corporal, e por isso tão forte. Ouvir, na linguagem bíblica, é inclinar-se, é curvar a nuca, é admitir que o outro tem algo a ensinar. Ele manteve a cabeça erguida, não em dignidade, mas em orgulho; e, por isso, agora o pescoço se dobra, não em docilidade, mas em vergonha.

Essa ingratidão ecoa no Novo Testamento quando Estêvão, diante do Sinédrio, acusa a geração que rejeitou o Cristo: “Vós sempre resistis ao Espírito Santo” (Atos 7:51). Desde Moisés, diz ele, Deus lhes enviara profetas, e eles sempre os perseguiram; agora, rejeitam também o Justo. A história do jovem de Provérbios 5 é uma miniatura dessa história maior: uma sucessão de mestres que ele não quis ouvir, uma sequência de professores a quem ele não quis inclinar o ouvido. Em Hebreus 13:7, o autor pede aos crentes que se lembrem dos seus guias, considerando “qual tenha sido o fim da sua vida” e imitando a fé deles. O adúltero de Provérbios faz o contrário: esquece o fim dos seus mestres e imita, em vez disso, o caminho da estranha. Por isso, quando chega o próprio fim, ele não tem testemunho que o sustente, apenas o eco da sua recusa.

Provérbios 5:14

Como uma criança pequena, fui todo malvado no meio da assembleia e da multidão. (Hb.: kimʿaṭ hayîtî bekhol-rāʿ betôk qāhāl wĕʿēdâ — “quase cheguei a estar em todo mal, no meio da congregação e da assembleia”). O advérbio kimʿaṭ (“quase, por pouco”) indica que o eu lírico está descrevendo um ponto-limite, um precipício moral em que faltou pouco para a ruína total; não é uma lembrança de um deslize isolado, mas o reconhecimento de que esteve “à beira” de ser definido por “todo mal”. A expressão bekhol-rāʿ (“em todo mal”) traz “mal” no singular com o quantificador “todo”, sugerindo o conjunto da maldade como um domínio, não apenas atos pontuais → o sujeito quase passou a integrar o campo dos maus como categoria. O verbo hayîtî (pretérito Qal de hāyâ, “ser/estar”) é existencial: “eu era / eu me encontrava”; o hebraico não diz apenas “fiz coisas más”, mas “eu era quase em todo mal”, tocando a identidade. A locução betôk qāhāl wĕʿēdâ junta dois termos de assembleia: qāhāl (“congregação”, muitas vezes com tonalidade cultual e oficial) e ʿēdâ (“multidão, comunidade reunida”), reforçando a ironia: o eu poético quase se perdeu “no meio” do povo reunido, no lugar onde deveria ouvir instrução e repreensão. Sintaticamente, o versículo funciona como uma oração temporal-condicional ligada ao que vem antes: “e (agora) dirás… eu quase estive em todo mal”, completando o quadro de arrependimento dos vv. 11–13. Hermeneuticamente, a imagem contrasta a visibilidade social com a cegueira interior: mesmo estando “no meio da assembleia”, sob a luz da instrução pública, o coração podia caminhar secretamente em direção ao abismo. A metáfora da “criança pequena” na sua formulação portuguesa transmite o pathos: alguém que, olhando para trás, vê a própria história como infantilidade moral, como se confessasse: “eu era imaturo e rebelde mesmo estando sentado no banco da congregação”; a exegese hebraica, porém, sublinha mais o “quase” (limite de destruição) do que a idade, sugerindo um ponto de não-retorno que por misericórdia não foi atravessado.

Quando a fala arrependida chega a este verso, ela já percorreu o caminho inteiro da rebeldia: odiar a disciplina, desprezar a repreensão, tapar os ouvidos para mestres e instrutores. Esta parte desloca o foco do “interior psicológico” para a cena pública: o pecado que parecia íntimo e escondido agora ameaça explodir “no meio da congregação e da assembleia”, diante da comunidade inteira. Toy insiste que a expressão “quase caí em todo mal” não descreve apenas a queda moral já consumada em 5:12–13, mas um passo além, um mal de outra ordem: a “desgraça oficial”, o castigo público. Para ele, “evil” aqui assume o sentido de sofrimento imposto pela autoridade, “official punishment”, e “congregação e assembleia” deixam de ser uma multidão qualquer para designar a comunidade em sua forma organizada, o ajuntamento judicial em que o transgressor é exposto, julgado e condenado (TOY, ibid., 1899, p. 110). Nesse quadro, a voz do versículo fala como alguém que já desceu, sim, “às profundezas do mal moral” — adultério, infidelidade de coração, rebelião contra a instrução — mas que quase foi além: quase viu a sua vida triturada pela máquina da disciplina comunitária, banido, envergonhado, talvez economicamente arruinado, diante de um tribunal local ou de uma assembleia de anciãos. A pequena partícula kimʿat (“quase”, “por um triz”) ganha, então, a gravidade de um fio de navalha: não é um “quase pequei”, e sim um “quase fui esmagado sem remédio”, um “por pouco não fui destruído” quando a comunidade, reunida em sua assembleia, se volta contra aquele cujos pecados secretos vieram à tona (nota lexical em Provérbios 5:14, que explica kimʿat como “quase” aplicado a uma ação não realizada, e bekhol-raʿ como “completa ruína”, realçando ainda o paralelismo em que “congregação e assembleia” formam uma só ideia: “todo o ajuntamento”; GOLDINGAY, “Proverbs V and IX”, Revue Biblique, 84, 1977, pp. 80–93, citado na nota estrutural de Provérbios 5 na NET Bible).

Nessa leitura, o hebraico bekhol-raʿ deixa de ser apenas “em todo mal” no sentido moral abstrato e passa a sugerir a totalidade de um desastre: a vida em ruínas, o nome destruído, os bens comprometidos, a saúde consumida, “a carne e o corpo” em declínio, como o versículo anterior já antecipava. A escolha entre entender “mal” como culpa ou como desgraça não é arbitrária; Toy argumenta a partir do encadeamento: em 5:12–13 o personagem confessa pecados interiores e atitudes de recusa (“odiei a disciplina… não escutei meus mestres”), ao passo que em 5:14 ele olha para o que quase lhe aconteceu como consequência externa, e isso se harmoniza com outros usos de raʿ no Antigo Testamento em que a palavra nomeia calamidade, opressão ou punição, não apenas culpa subjetiva (TOY, ibid., 1899). A imagem da “assembleia” nesse contexto é, portanto, densa: não se trata só do constrangimento social de ser comentado na praça, mas da possibilidade de ser levado ao fórum da cidade, à porta onde os anciãos se sentavam, e ali ver todo o seu caso exposto, com testemunhas, acusações e sentença. O adultério em Israel não era um “pecado romântico”, mas uma violação grave da aliança comunitária e, em certas situações, podia envolver sanções severas previstas na Torá; mesmo quando a pena máxima não era aplicada, a marca social do escândalo era devastadora.

Goldingay, ao estudar a arquitetura de Provérbios 5, ressalta que 5:9–14 formam, depois da advertência inicial, um bloco que desenha justamente esse desenlace de ruína e vergonha: o jovem que entrega “a outros a sua honra”, vê “estranhos se fartarem de seu poder”, consome a própria carne e pão, até que, neste clímax, reconhece o seu quase aniquilamento “no meio da congregação inteira”. O versículo 14, portanto, é como o último degrau de uma escada descendente, o lugar onde o discípulo, em retrospecto, percebe a extensão da catástrofe evitada por pouco, ou, em alguns casos, sofrida em parte (GOLDINGAY, “Proverbs V and IX”, Revue Biblique, 84, 1977, pp. 80–93, utilizado pela NET Bible para descrever a estrutura do capítulo como exortação → prevenção → ruína evitada/experimentada → retorno ao lar conjugal). O peso dessa análise estrutural é que ela mostra como o Pai de Provérbios não ameaça com um juízo vago, mas com algo quase palpável: a cena forense em que o transgressor deixa de ser apenas “filho” para se tornar “réu”. O texto literário, trabalhado com esses ecos judiciais, faz da assembleia não só um público, mas um espelho: o povo reunido é o teatro em que a tolice se desmascara.

A duplicação “qahal vaʿedah” (“congregação e assembleia”) também ganha, na leitura combinada de Toy e da exegese moderna, valor retórico: não é apenas repetição ornamental, mas uma maneira de abranger todo tipo de ajuntamento público, desde a assembleia local até a comunidade mais ampla. A nota da NET Bible interpreta as duas palavras como hendiadis, “uma única ideia: toda a assembleia”, reforçando que o arrependido quase foi esmagado em frente a todo mundo, sem refugio na obscuridade (nota em Provérbios 5:14, que descreve “congregation and assembly” como um hendiadis e ecoa a tradição exegética que vê aqui um cenário formal, não apenas um ajuntamento casual). Toy aprofunda esse ponto observando que, em outros textos, os mesmos termos podem designar o Israel inteiro em sua forma política, ou um conselho representativo, o que se adequa bem à ideia de um tribunal de cidade ou de um conselho de anciãos reunido para tratar de casos de infidelidade conjugal ou desordem grave (TOY, ibid., 1899). O versículo nos coloca, assim, nas portas da cidade, onde homens respeitáveis sentam-se para julgar e onde o nome de alguém pode ser preservado ou definitivamente quebrado.

Quando se recolhe o fio dessas leituras, a imagem ganha contornos ainda mais dramáticos. A metáfora da “criança pequena” pode ser vista, à luz dessa segunda rodada, como o reconhecimento da imaturidade que conduziu a uma situação de adulto: o menino interior que brincou com fogo sexual agora se vê diante do fogo da justiça pública. O que Toy lê como “quase em toda desgraça” e Goldingay situa como clímax de um bloco de ruína aproxima-se, em termos hermenêuticos, da confissão de quem percebe que comportou-se como um pequeno tolo em um mundo de consequências adultas; a assembleia e a multidão não o tratam como criança, mas como responsável. A delicada partícula kimʿat torna-se um suspiro: não é apenas “quase” no sentido de que nada aconteceu, mas “quase” porque as feridas já são reais, embora uma catástrofe ainda maior tenha sido evitada pela última hora da consciência ou por uma intervenção da graça.

Aqui em Provérbios 4:14 fala alguém que acordou tarde, mas ainda acordou; não é o discurso frio de um juiz, é o soluço de quem percebe que viveu como menino teimoso dentro de um templo. Ele não diz “longe” da assembleia, diz “no meio” dela. O corpo esteve sempre ali, entre o povo, mas o coração longe, como Israel em Isaías 29:13, que honra com os lábios enquanto o coração está distante. A expressão “como uma criança pequena” pinta o retrato interior: um adulto nascido, mas uma alma que ainda brinca com brasas como se fossem brinquedos, sem medir a queimadura. É o eco do filho pródigo que, só quando a fome o aperta, “caindo em si”, reconhece a loucura em que vivia (Lucas 15:17); e, como ele, este personagem olha para trás e percebe que quase se perdeu “em todo mal”, não nos becos da cidade, mas debaixo do som da Palavra, entre cânticos e orações. A assembleia e a multidão evocam tanto o culto de Israel, as festas em que o povo sobe para adorar, quanto qualquer comunidade de fé onde se ouve a Escritura; e o texto confessa: é possível atravessar anos no meio desse povo e, ainda assim, ser “todo malvado”, alinhando risos, flertes, transgressões secretas, enquanto por fora se mantém a aparência de piedade. Esse versículo é um espelho para quem prega, canta, serve, escreve, mas mantém na sombra “a estranha” do capítulo, quaisquer que sejam os seus rostos hoje. É um aviso manso e terrível: Deus não está iludido pela geografia do nosso corpo na assembleia; ele olha as veredas invisíveis que percorremos por dentro. E, ainda assim, o verbo vem na beira do abismo — “por pouco não estive” — como se a graça, mesmo tardia, ainda abrisse uma fresta: enquanto alguém é capaz de dizer isso, enquanto admite “fui todo malvado”, o caminho do retorno não está fechado. O mesmo Deus que expõe o engano no meio da congregação, chama: “Vinde, e arguí-me” (Isaías 1:18), e em Cristo recebe pecadores que um dia também foram “todo mal” no meio dos outros, mas aprenderam, feridos, a chorar entre os bancos da assembleia e a deixar que essa confissão se transforme em começo de arrependimento verdadeiro.

Provérbios 5:15

Bebe água da tua própria cisterna, água corrente do teu próprio poço. (Hb.: šĕteh mayim mibôrĕḵā wĕnōzĕlîm mitôk bĕʾērĕḵā — “bebe água da tua própria cisterna e águas que escorrem do teu próprio poço”). O imperativo šĕteh (2ª pessoa masc. sing. de šātâ, “beber”) abre uma seção de imagens hídricas que reconfiguram o tema da sexualidade; “beber” torna-se metáfora de desfrutar, e a ordem é dativa: “tu mesmo, bebe”, não terceiriza esse ato. O substantivo bôr (“cisterna”) designa, em geral, um reservatório escavado, fechado, que recolhe e guarda água; já bĕʾēr (“poço”) remete a fonte mais viva, perfurada no solo, muitas vezes associada a encontros e alianças (como em Gênesis 24). A justaposição mibôrĕḵā / mitôk bĕʾērĕḵā (“da tua cisterna / de dentro do teu poço”) cria um paralelismo sintático em que a repetição do sufixo possessivo de 2ª pessoa (-ḵā) martela o tema da pertença: é daquilo que é teu que deves beber. Os dois substantivos estão em forma com sufixo pronominal, estreitando o vínculo entre o sujeito e a fonte. A tradição reconhece aqui uma metáfora da fidelidade conjugal: a “cisterna” e o “poço” apontam para a esposa e, mais amplamente, para o espaço do casamento, como se o sábio dissesse: canaliza teu desejo para o leito que Deus te deu, não para as águas roubadas da estranha. A referência a “águas que escorrem” (nōzĕlîm) sugere fluxo contínuo, prazer legítimo, dinamismo que nasce da própria casa; hermeneuticamente, a imagem trabalha com um contraste: cisterna/poço próprio → intimidade exclusiva, segura, que dá vida; águas alheias (implícitas) → furtivas, sem direito de posse, que acabam contaminando. Como em Jeremias 2:13, onde o Senhor é “a fonte de água viva” e o povo cava “cisternas rotas que não retêm água”, aqui o coração é chamado a reconhecer onde está a verdadeira fonte: não na novidade sedutora, mas no dom já dado da aliança.

A imagem da “cisterna” e do “poço” ergue diante do leitor um cenário de intimidade doméstica e de recurso reservado: em um mundo em que a água não era luxo, mas condição de sobrevivência, a cisterna de uma casa representava um bem precioso, protegido, que não se expunha levianamente à rua. Ao dizer “bebe água da tua própria cisterna”, o texto convoca o ouvinte a perceber a própria esposa como esse reservatório de vida, de frescor e de alegria, e não como se fosse um recipiente qualquer entre muitos; Goldingay observa que aqui o livro, que tantas vezes adverte contra a mulher alheia, pela única vez se detém em recomendar positivamente a atenção à própria esposa, sublinhando a dimensão sexual e fecunda dessa relação, em contraste com a aridez e o perigo do adultério (GOLDINGAY, Proverbs, 2023, p. 108). A metáfora é deliberadamente enigmática, porque transforma o leito conjugal em poesia de água: o esposo é convidado a “pensar” o corpo da esposa como poço vivo, e não como tanque imóvel; a linguagem, assim, afasta a relação da crueza de um uso funcional e a envolve em reverência e delicadeza, como quem se aproxima de uma nascente em dia de sede.

Quando o versículo acrescenta “água corrente do teu próprio poço”, intensifica o movimento: não se trata apenas de água parada, acumulada, mas de “nōzĕlîm”, águas que escorrem, que se derramam. Essa corrente sugere vitalidade, fluxo, dinâmica, ecoando o contraste entre cisterna e fonte que Goldingay destaca ao notar que o verso seguinte eleva a metáfora: a esposa não é apenas reservatório estático de chuva, mas “poço de água viva”, algo que jorra e responde, não um objeto mudo a ser consumido (GOLDINGAY, ibid., 2023). A poesia não está interessada em anatomia, mas em relação: quem bebe dessa água o faz por entrega, proximidade e constância. Em vez de “caçar” fora, o homem é chamado a descobrir a profundidade do que já possui, a transformar o casamento em lugar de saciedade e não em sala de espera para aventuras.

Longman acentua que esse chamado a beber do “próprio poço” é um movimento estratégico dentro da unidade 5:15–23: o pai deixa de apenas gritar “foge da mulher estranha” e passa a construir a defesa positiva, isto é, o melhor antídoto contra a sedução externa é uma relação conjugal vital, alegre e erotizada com a “mulher da tua mocidade”; por isso ele lê as imagens da cisterna e do poço como “altamente eróticas”, remetendo a um vocabulário de desejo semelhante ao de Cântico dos Cânticos (LONGMAN, Proverbs, 2006, p. 175). Isto significa que a sabedoria aqui não é mero moralismo frio; ela reconhece a força do eros e, em vez de demonizá-lo, lhe aponta um leito legítimo, como um rio que, canalizado, irriga o campo, mas, se rompe margens, devora plantações e casas.

Na estrutura maior de Provérbios 5, o versículo 15 funciona como dobradiça: até o versículo 14, a cena é sombria, com o jovem à beira da ruína, lembrando o “quase” desastre de ter dado ouvidos à adúltera; a partir de 5:15, o discurso se reorienta, não mais descrevendo o abismo, mas abrindo uma fonte. É como se o pai dissesse: “há outro modo de viver o desejo, que não conduz à vergonha pública e à perda de bens, mas à bênção”. Goldingay chama atenção para o contexto socioeconômico pressuposto: um mundo sem contracepção confiável, em que relações extraconjugais tendem a produzir filhos que pertencem a outra casa e drenam recursos de quem cedeu à sedução; nesse cenário, “espalhar” a água fora de casa é literalmente desperdiçar o futuro, enquanto concentrar-se na “fonte” doméstica significa que os filhos — frutos dessa água — serão bênção para o próprio lar (GOLDINGAY, ibid., 2023, p. 108). A poesia, portanto, não é ingênua: ela liga desejo, procriação e economia em uma única imagem líquida.

Longman acrescenta um detalhe que ajuda a ver a delicadeza da metáfora: o campo semântico da água se duplica entre feminino e masculino. A cisterna e o poço, nesse versículo, remetem à esposa; mas logo a seguir, a fonte e o manancial são aplicados ao marido, com uma ambiguidade intencional, pois “fonte” pode designar tanto a emissão do sêmen quanto o órgão feminino, e o texto joga com essa oscilação para falar de um encontro em que ambos são fonte e ambos recebem, um regando o outro (LONGMAN, ibid., 2006). Assim, “bebe água” não é ordem de consumo unilateral, mas convite a circularidade: um corpo sacia e é saciado, e nesse vaivém, a fidelidade deixa de ser apenas proibição negativa e se torna festa disciplinada.

Quando o versículo insiste em “tua própria cisterna” e “teu próprio poço”, a repetição do possessivo não é mero detalhe de estilo: ela marca a exclusividade da aliança, da mesma forma que o casamento bíblico é descrito como pacto em que dois se pertencem mutuamente. O hebraico reforça essa nuance por meio dos sufixos pronominais em bborĕkā (“teu poço”) e bĕʾērĕkā (“teu poço, tua fonte”), indicando que não se trata de qualquer fonte, mas de uma cuja história está enraizada no compromisso, na juventude e na promessa, como o versículo 18 explicitará ao falar da “esposa da tua mocidade”. Goldingay observa que o texto não enxerga o cônjuge primordialmente como “alma gêmea” romântica, mas como parceiro concreto de vida, com quem se compartilham cama, filhos e futuro; nesta chave, a fidelidade sexual é expressão concreta de lealdade de vida, não apenas de controle de impulso (GOLDINGAY, ibid., 2023). A poesia, apesar de delicada, é profundamente pragmática: se você desperdiça seu desejo fora, desperdiça junto sua história.

A literatura rabínica toma esta imagem doméstica, tão concreta no contexto de fidelidade conjugal do capítulo, e a faz desdobrar-se em múltiplas direções: a água torna-se Torá, a cisterna torna-se o mestre próximo, o poço torna-se a própria vocação de Israel, e o cuidado em não beber de águas alheias converte-se em advertência contra doutrinas estranhas, heresias e amores ilegítimos. O ponto de partida é a leitura clássica preservada em compilações como o “Biur” de Mishlei, que vê no versículo, em primeiro plano, o convite à alegria exclusiva com a esposa da aliança e, em segundo plano, o chamado a permanecer fiel à Torá recebida de Deus, sem cobiçar “águas” de povos e sabedorias estrangeiras, interpretando a “mulher estranha” do contexto como metáfora tanto da paixão carnal quanto da idolatria. Nesse horizonte, o versículo deixa de ser apenas conselho de prudência moral e torna-se um símbolo de lealdade: beber do que é teu, do dom que o próprio Deus colocou em tuas mãos, em vez de violar cisternas alheias — quer se trate da esposa do próximo, quer se trate de tradições espirituais que não pertencem à aliança de Israel.

Midrash Mishlei (edição Buber) sobre este versículo condensa essa expansão num único traço agudo: “Se alguém deseja aprender Torá, não diga: ‘Aprenderei primeiro do distante e depois do próximo’, mas aprenda primeiro do que está próximo e só depois do distante”.(Midrash sobre Provérbios (Buber) 55) A frase reorienta o fluxo da imagem: o convite não é a um nomadismo intelectual seduzido pelo exótico, mas a um enraizamento paciente. A tua “cisterna” são os mestres, a comunidade, a tradição que Deus pôs ao alcance da tua mão; o “poço” é aquele foco de ensino a partir do qual a água, aos poucos, se torna corrente e transborda. Assim, no interior da metáfora conjugal de Provérbios 5, a literatura rabínica lê também uma ética da aprendizagem: antes de ir beber a grandes distâncias — filosofias estranhas, mestres longínquos, experiências espirituais mais espetaculares — recebe, até o fim, a água que brota ao pé da tua casa, na tua cidade, na tua sinagoga. O mesmo gesto de fidelidade que te impede de tomar a esposa alheia é o que te impede de roubar também os “poços” de outros, como os filisteus roubavam as fontes de Abraão e Isaque em Gênesis 21 e 26, associação sublinhada pelos intérpretes ao aproximarem as lutas por poços das lutas pelo vínculo conjugal.

Avot deRabbi Natan desenvolve essa linha de forma ainda mais pedagógica. Em um dos seus desenvolvimentos (capítulo 3 na edição usual), o tratado cita explicitamente “Bebe água da tua própria cisterna, água que flui do teu próprio poço” para ensinar que cada pessoa deve vincular-se a mestres concretos de Torá, e não dissipar-se em mil vozes dispersas. A nota, preservada em edições acessíveis via Sefaria (Avot DeRabbi Natan 3), descreve a obrigação de “aprender de sábios” e de se apegar a eles de modo ordenado, como quem bebe de uma fonte definida. É como se a tradição dissesse: não transformes a Torá numa feira de degustação em que sorves um gole aqui, outro ali, sem jamais deixar que a água se acumule em ti; ao contrário, deixa que a mesma fonte te sacie a ponto de te transformar num pequeno poço, de onde outros também possam beber. O jogo entre “cisterna” — reservatório que recolhe a água — e “poço” — abertura por onde a água sobe e corre — torna-se, assim, uma alegoria do discípulo que primeiro recolhe, depois transborda.

Midrash Tannaim sobre Deuteronômio 32:2 pega esse fio e o entrelaça ainda mais com Provérbios 5:15. Comentando “caia como chuva a minha doutrina”, o midrash diz, numa imagem que ecoa diretamente o nosso versículo: se a pessoa aprende Torá como quem recolhe a chuva em cisternas, fossos e cavernas, chegará o momento em que ela própria “se tornará um gotejar que irriga outros”, como está escrito: “e águas fluentes do teu poço”. Nas palavras do Midrash Tannaim (Midrash Tannaim sobre Deuteronômio 32:2), a água do versículo já não é apenas consolo conjugal, mas a própria Torá, que passa de chuva difusa a reservatório interno, e deste a corrente viva que sai de ti em direção a outros. Percebe-se como a literatura rabínica explora, sem violentar o contexto, a plasticidade da metáfora: a fidelidade à própria esposa converte-se em fidelidade à própria porção de Torá; o cuidado em não buscar águas em cisternas alheias converte-se em advertência contra a tentação de abandonar o campo de estudo que Deus te confiou para perseguir as últimas modas espirituais.

Sifrei Devarim 48, por sua vez, insiste na geografia dessa fidelidade. Ali, Rabi Shimon ben Yochai comenta que “Bebe água da tua própria cisterna” significa: aprende primeiro com quem está na tua cidade, e só depois te separa e viaja a outros lugares, e vincula esse conselho à imagem da mulher valente que “é como navios mercantes” em Provérbios 31:14. Nas coleções rabínicas (ver Sifrei Devarim 48), a economia doméstica da esposa que abastece a casa torna-se espelho da economia espiritual do discípulo que organiza bem suas fontes: primeiro a cisterna da própria cidade, depois os mares distantes. De novo, a metáfora conjugal e a metáfora da aprendizagem se iluminam mutuamente: assim como o marido é chamado a alegrar-se com a esposa da sua mocidade, sem transformar o mundo inteiro em mercado de afetos, assim também o discípulo é chamado a alegrar-se com a Torá tal como a recebeu de mestres concretos, sem transformar o mundo inteiro em mercado de opiniões religiosas.

Comentários mais recentes, como a página de “Biur: Mishlei 5:15” em Wikitext, recolhem essa tradição e distinguem vários “andares” de sentido: no nível literal, o versículo fala de água concreta, bem escasso em terras áridas, e recomenda investir nas próprias fontes em vez de roubar fontes alheias; no nível imediato do contexto, fala de fidelidade matrimonial; em outro plano, lê a “mulher estranha” como metáfora das paixões e da idolatria; e, finalmente, à maneira de derash, aplica “Bebe água da tua própria cisterna” ao universo do estudo: se aprendeste de um mestre, não digas “basta”, mas vai também a outro sábio, porém sem correr atrás de “todos”, e sim daqueles que estão legitimamente próximos de ti, como ensina Avot deRabbi Natan. A mesma página recorda Isaías 11:9 (“a terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar”), reforçando a associação entre água e conhecimento, entre cisternas e mestres, entre poços e comunidades que se tornam canais de Torá.

Se voltamos então a Provérbios 5:15 dentro do seu próprio capítulo, o quadro rabínico nos ajuda a ver mais fundo o drama que o pai descreve ao filho. A mulher estranha de Provérbios 5 não é apenas uma figura de sedução erótica; em leituras como as de Rashi e de Maimônides, ela pode representar tanto as tentações do corpo quanto as doutrinas que afastam Israel do Deus único. Beber da própria cisterna é, nesse sentido, permanecer dentro da aliança: conservar o coração, o corpo e a inteligência fiéis à fonte em que Deus te colocou. Quando os rabinos dizem “aprende primeiro do que está perto”, não estão defendendo uma ignorância provinciana, mas uma ordem de fidelidade: primeiro deixa que a água encha o teu reservatório; só depois, com o coração firmado em tua casa, estarás em condições de acolher, discernir e purificar outras fontes.

Sob a luz da literatura rabínica, “Bebe água da tua própria cisterna, água corrente do teu próprio poço” torna-se, assim, uma espécie de eixo do capítulo todo: o pai adverte o filho contra dispersar-se em leitos estranhos e, ao mesmo tempo, a tradição adverte o discípulo contra dispersar-se em ideias estranhas; o texto sapiente pede ao marido que não faça do corpo da esposa um bem descartável e, ao mesmo tempo, a derash pede ao leitor que não trate a Torá como mercadoria peregrina, provando-a de mão em mão sem jamais deixar que ela penetre fundo. E, como lembram as leituras rabínicas que aproximam este versículo das narrativas dos poços de Abraão e Isaque em Gênesis 21 e 26, quem fere o poço do outro, quem toma posse das águas do outro, não hesitará em ferir também os laços matrimoniais do outro. O conselho é um só, em todas as camadas: guarda a fonte que te foi confiada, investe nela com confiança, bebe dela até a saciedade — porque é dessa fidelidade humilde, e não da curiosidade voraz por “águas” alheias, que brotam rios que finalmente regam o mundo. )

Há ainda uma ressonância mais ampla com o restante das Escrituras quando olhamos esse provérbio. Em Cântico dos Cânticos, o corpo da mulher amada é descrito como “jardim fechado” e “fonte selada”, imagens que ecoam a cisterna protegida de Provérbios (Cântico dos Cânticos 4:12–15). Lá, como aqui, o erotismo é cantado não na chave da conquista aleatória, mas na intimidade de um espaço cercado, onde o acesso é sinal de pacto e confiança. A metáfora de “água corrente” se aproxima também da linguagem de bênção de Salmos 1: o justo é “como árvore plantada junto a ribeiros de água, que dá seu fruto na estação própria”; aquela água silenciosa que corre junto às raízes é o contrário da torrente momentânea que arrasta tudo. Provérbios 5:15, então, coloca o eros debaixo da mesma lógica: o homem sábio não é a enxurrada que devasta, mas o rio que fertiliza sempre o mesmo terreno, ano após ano.

Há uma linha de leitura teológica que vê, nessa imagem, um reflexo da própria maneira como Deus ama: ele não é de amores dispersos, nem de afetos episódicos, mas de aliança tenaz. O mandamento “bebe água da tua própria cisterna” pode ser lido como miniatura dessa fidelidade divina: assim como o Senhor escolhe um povo e com ele firma um pacto exclusivo, chamando-o de sua “porção”, “herança” e “vinha”, o marido é chamado a ser, na esfera do matrimônio, um eco desse amor exclusivo, que prefere aprofundar o poço que recebeu a sair furando buracos no deserto. A sabedoria, aqui, é pedagoga do desejo: em vez de sufocá-lo, ensina-o a permanecer, como um curso de água que não se cansa de regar o mesmo jardim, até que a terra seca do coração se torne, de fato, lugar habitável.

Depois do gemido de quem quase se perdeu na assembleia, vem uma ordem terna e firme: volta para casa, volta para a tua fonte. A imagem é de uma ternura antiga: uma cisterna é o lugar em que a água é guardada, protegida, cercada por pedra; um poço é o buraco profundo que toca o lençol vivo. Na superfície, ela parece imóvel; nas profundezas, ela pulsa. Assim é a aliança conjugal e, por extensão, toda relação legítima que Deus te deu: ela nem sempre brilha como as águas furtadas da rua, mas é ali que a sede encontra descanso. O texto fala do casamento, sim: “bebe da tua própria cisterna” é, em primeiro lugar, um apelo ao marido seduzido pela mulher estranha para que volte o corpo e o desejo à esposa da juventude, à “corça de amores e gazela de graça” do versículo seguinte. O leito conjugal não é esmola, é manancial: Deus o pensou como lugar onde eros e fidelidade se abraçam, onde o corpo é acolhido, não explorado. Quando alguém, impaciente com a “cisterna”, sai a beber nas poças da rua, experimenta a doçura breve das águas clandestinas, mas depois descobre o gosto de lama, vergonha e vazio. Jeremias ouviu de Deus a mesma acusação contra Israel: “a mim, o manancial de águas vivas, eles me deixaram, e cavaram cisternas rotas, que não retêm água” (Jeremias 2:13). O adultério, aqui, é uma parábola encarnada dessa loucura espiritual: abandonar a fonte viva (Deus, a aliança, a esposa, a comunidade) para sorver, apressado, de buracos rachados que prometem água e entregam sede redobrada. Por isso, este versículo toca tanto o coração conjugal quanto o coração da fé. No Novo Testamento, aquele que se senta junto ao poço de Jacó não é por acaso chamado a dar “água viva” (João 4:10): ele é o Poço que não seca. À mulher samaritana, que tivera cinco maridos e vivia numa relação irregular, Jesus não só revela o poço rachado em que ela bebe, como oferece um outro: “a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salta para a vida eterna” (João 4:14). O convite de Provérbios ecoa ali, transfigurado: deixa as fontes alheias, bebe Daquele que o Pai te deu como Esposo da alma. E, por causa dele, volta também à tua esposa, ao teu esposo, ao teu compromisso, como quem volta, com reverência, a um poço cavado pela própria mão de Deus na história. Quando o texto manda beber, não está propondo um ascetismo seco, mas um prazer disciplinado: desfruta, sim, da água, mas da água que te foi confiada; goza, sim, do amor, mas do amor que não precisa ser escondido na escuridão. Assim como o povo no deserto vivia porque a rocha ferida vertia água (Números 20; 1 Coríntios 10:4), assim também o coração que se deixa ferir pela Palavra — que renuncia às águas furtadas e volta à sua cisterna — descobre que a mesma aliança que parecia estreita é, na verdade, a única que se abre em profundidade interminável.

Provérbios 5:16

Espalhem-se as tuas fontes, ribeiros de águas em lugares amplos. (Hb.: yāp̄ûṣû maʿyĕnāyḵā ḥûṣâ bĕrĕḥōbôt pālĕgê-māyim — “espalhem-se as tuas fontes para fora, em praças, ribeiros de água”). O verbo yāp̄ûṣû é forma jussiva (3ª masc. pl. de pūṣ, “espalhar-se, derramar-se”), o que dá à frase a nuance de desejo ou exortação: “que se espalhem…”, mas muitos intérpretes, considerando o contexto, entendem como pergunta retórica implícita: “devem, porventura, espalhar-se…?”, transformando a jussiva em ironia. O substantivo maʿyān (“fonte, manancial”) aparece novamente com sufixo possessivo plural (maʿyĕnāyḵā — “tuas fontes/mananciais”), reforçando a ligação do fluxo com o sujeito. O advérbio ḥûṣâ (“para fora”) e o substantivo rĕḥōbôt (“largos espaços, praças”) desenham um movimento do íntimo para o público: aquilo que deveria correr no sigilo da casa começa a jorrar pelas ruas. Pālĕgê-māyim (“ribeiros de águas”) é uma expressão que em outros textos evoca irrigação ordenada, benéfica (como em Salmos 1:3), mas aqui assume cor ambígua: os “ribeiros” da intimidade foram canalizados para fora dos limites, irrigando terras alheias. Sintaticamente, o versículo pode ser lido como continuação da metáfora do v. 15: depois de mandar beber da própria cisterna, pergunta-se (ou deseja-se, com ironia) se seria o caso de espalhar essas águas em praça pública. A hermenêutica do capítulo aponta para a crítica à promiscuidade → as “fontes” são as energias afetivo-sexuais do homem, talvez também a sua descendência; espalhá-las “lá fora” significa perder controle sobre aquilo que deveria ser cuidado como jardim cercado (cf. a imagem do “jardim fechado, fonte selada” em Cântico dos Cânticos 4:12). A tensão exegética reside justamente em se o versículo é promessa positiva (filhos numerosos abençoando o mundo) ou advertência contra a dissipação; dentro do tom admoestatório do contexto imediato (vv. 15–20), o peso recai sobre a advertência: não derrames nas ruas o que foi feito para o claustro da aliança.

A paisagem em que Provérbios 5:16 nasce é um mundo de sede: em Israel antigo, água não é pano de fundo, é questão de sobrevivência. A mesma voz paterna que antes comparara a mulher estranha a líquidos ambivalentes — mel e óleo, doces e letais — muda agora o elemento, mas não a intensidade: “a imagem líquida continua aqui, mas já não é mel e óleo”, e passa a ser água em suas várias formas, cisterna, poço, fonte e ribeiros, um vocabulário inteiro de reservatórios e fluxos reunido para descrever a esposa como “fonte de alegria e satisfação” (YODER, Proverbs, 2009, pp. 89–90). No horizonte social da Palestina, essa linguagem não é decorativa: água é primeva, ligada à criação (Gênesis 1–2), é o agente mais eficaz para matar a sede e limpar o corpo, e, justamente por isso, é limitada e preciosa; as disputas ferozes por poços e cisternas em Gênesis e Números, e os salmos que celebram Deus como aquele que faz brotar fontes no deserto, testemunham quanto um lençol freático ou uma nascente podiam reconfigurar a vida de famílias inteiras. Beber “da própria cisterna” era imagem de prosperidade protegida e silenciosa, como sentar à sombra da própria vide e da própria figueira; deixar a água correr para a rua seria, economicamente, um absurdo, quase um ato de auto-sabotagem (YODER, ibid, 2009, p. 90).

Dentro desse cenário, o pai sabedor pega o universo hídrico que sustenta a aldeia e o converte numa parábola do corpo. A esposa é redescrita como um conjunto de “obras d’água”: cisterna que recolhe, poço que acessa lençóis profundos, nascente que irrompe à superfície, fonte que jorra e talvez, num segundo plano, até fluxo menstrual e sangue de parto, isto é, a própria capacidade reprodutiva da mulher. Esse entrelaçamento entre água e feminino não é idiossincrasia de Provérbios: o amado do Cântico chama sua amada de “cisterna fechada”, “fonte lacrada”, “fonte de águas vivas e ribeiros do Líbano” (Cântico dos Cânticos 4:12–15), imagens que combinam desejo, exclusividade e proteção, enquanto a Instrução egípcia de Anii descreve a mulher estranha como “água profunda de curso desconhecido”, perigosa exatamente porque não se sabe onde deságua. No pano de fundo bíblico e do antigo Oriente Próximo, encontrar uma futura esposa junto a um poço — Rebeca, Raquel, Zípora, a samaritana que se encontra com Jesus — é quase um motivo literário: o lugar em que água e promessa de vida se cruzam. Quando o pai diz ao filho que suas “fontes” podem se espalhar para fora, “ribeiros de águas em lugares amplos”, ele está mexendo nesse imaginário inteiro: a sexualidade, masculina e feminina, é um sistema de águas que pode ser cuidadosamente represado para dar vida à casa, ou desperdiçado nas ruas até virar lama anônima (WILSON, Proverbs: An Introduction and Commentary, 2018, p. 102).

O versículo 15 já havia convidado o filho a “beber água da própria cisterna” e “gotejantes águas do próprio poço”, delineando a esposa como o lugar legítimo do desejo. A sequência de imagens leva a que a água se torne, explicitamente, metáfora para a sexualidade: um comentarista lembra que o efeito cumulativo do parágrafo é mostrar que a água (isto é, a sexualidade) é altamente valorizada, e que a lição é deleitar-se em expressar a própria sexualidade somente no contexto dado por Deus, o casamento (“tua própria cisterna... teu próprio poço... tuas fontes”), havendo ao mesmo tempo restrição (apenas no casamento) e forte encorajamento para ver a atividade sexual como uma das melhores ideias de Deus. Dentro desse quadro, o v. 16 funciona como dobradiça: ou as fontes do homem, isto é, sua energia sexual, permanecem ligadas à cisterna doméstica, ou se espalham pelos espaços públicos, nos “largos”, metáfora dos encontros ilícitos e das relações que extrapolam os limites da casa. As “tuas fontes” e os “teus ribeiros” não são rios anônimos: pertencem a alguém, carregam nome, genealogia, herança. Espalhá-los em praça pública é expor intimidade, procriar fora dos laços previstos, deixar que filhos, afetos e bens escorram para leitos alheios.

O hebraico de 5:16 permite, inclusive, que o verso seja lido tanto como afirmação quanto como pergunta, porque não traz uma partícula interrogativa explícita, dependendo do tom e do contexto para ser ouvido como exortação (“as tuas fontes se espalharão...”) ou censura retórica (“devem as tuas fontes espalhar-se...?”). Alguns intérpretes preferem ouvir ali uma promessa: a sexualidade bem ordenada se tornaria fonte de alegria transbordante, como águas que, sem deixar de ser da casa, alargam a vida ao redor. Outros, porém, sublinham o elo imediato com o v. 17 (“sejam para ti só, e não para estranhos contigo”) e entendem o v. 16 como advertência: não permitas que o que é teu se torne de todos, que tua intimidade se torne espetáculo, que o dom sexual, pensado para a esposa da tua juventude, vire veneno comunitário (YODER, Proverbs, 2009, p. 91; WILSON, Proverbs: An Introduction and Commentary, 2018, p. 102). Nesta linha, ganha força a leitura que vê a imagem da água saindo da esfera privada para a praça como figura de adultério, de filhos gerados fora do lar, de vínculos que fragmentam o patrimônio e diluem a responsabilidade paterna. A ambiguidade poética é intencional: como toda boa parábola proverbial, o versículo deixa o leitor ruminar se está diante de um aviso sobre desperdício ou de uma promessa de abundância, e acaba mostrando que, sem a moldura dos vv. 17–19, ambas as coisas se confundem.

Quando se desloca a lente do indivíduo para a comunidade, o peso social da metáfora se torna ainda mais nítido. A mesma seção de Provérbios 5 já havia descrito o destino do homem que se entrega à mulher estranha em termos públicos: ele termina em “ruína total na congregação e na assembleia”, imagem que ecoa a prática de expor pecados graves num fórum comunitário onde honra, bens e futuro eram decididos diante de testemunhas (YODER, Proverbs, 2009, pp. 88–89). Estudos que situam Provérbios 1–9 no período persa mostram como esses avisos ressoam com as campanhas de Esdras e Neemias contra os casamentos mistos, em que chefes de família eram convocados publicamente para confessar se haviam tomado esposas de fora do grupo, sob pena de expulsão e confisco de propriedades; “ruína total na assembleia” torna-se, assim, uma imagem condensada para exclusão, perda de bens e dissolução de laços (YODER, ibid., p. 89). Nesse cenário, “fontes” que se espalham pelos largos podem ser lidas também como sangue, descendência e recursos que saem da órbita da casa para fortalecer outras casas, outros clãs, talvez outras lealdades religiosas. A sexualidade masculina, se não for disciplinada, não ameaça apenas o coração do indivíduo, mas também as fronteiras econômicas e identitárias da comunidade inteira (YODER, ibid., 2009, pp. 89–91).

Além disso, em uma sociedade em que não há contracepção confiável, relação sexual e potencial de gravidez caminham lado a lado. O mesmo parágrafo que fala das fontes e ribeiros lembra que seria tolice gerar filhos com outra mulher “que nunca fará parte de tua família e cujo filho jamais integrará os teus recursos”, reforçando que o horizonte aqui não é apenas moral, mas patrimonial: cada gravidez fora do matrimônio reorganiza heranças, redistribui trabalho e desgasta vínculos (GOLDINGAY, Proverbs, 2023, p. 108). Nesse sentido, a ordem para que as fontes sejam “para ti só” (v. 17) não é apenas possessividade patriarcal, mas uma tentativa — dura, marcada por assimetrias de gênero — de preservar a coesão do lar num contexto em que a segurança está ligada à continuidade da terra, do nome e da linhagem. O pai, ao falar de águas na praça, está dizendo: se tu espalhares teu corpo e teu sêmen sem discrição, estarás também espalhando tua honra, teu tempo de trabalho, tua velhice, talvez até tua terra.

Contudo, tanto o comentário devocional quanto o técnico insistem que o tom aqui não é apenas repressivo. A mesma passagem que circunscreve a sexualidade ao casamento afirma com entusiasmo que a água-sexualidade é “uma das melhores ideias de Deus” e conclama o jovem a alegrar-se com a esposa da sua juventude, a deixar-se embriagar continuamente por seu amor, a ver o próprio corpo dela como fonte abençoada (WILSON, Proverbs: An Introduction and Commentary, 2018, p. 102). A restrição — não derramar as fontes nos largos — é o verso em sombra de uma afirmação luminosa: dentro do espaço da aliança, a água pode jorrar à vontade. A imagem que se forma, então, para a segunda rodada histórica-sociocultural é a de uma sociedade agrícola que sabe o valor de cada gota, que se organiza em torno de poços disputados e cisternas cavadas a pulso e que, justamente por isso, ousa dizer ao jovem: trata tua sexualidade como tratas tua água. Guarda-a onde ela dá vida, não a despejes onde ela apenas escorre e some. O versículo 16 paira sobre esse mundo como um quadro: ou as fontes correm pelos canais estreitos que irrigam a vinha da própria casa, ou se espalham nas praças até se perderem, deixando para trás uma terra rachada e um coração arrependido.

A leitura rabínica percebe aqui o momento em que a intimidade do versículo anterior transborda para a praça pública: o que era “cisterna” e “poço” guardados em casa (Provérbios 5:15) começa agora a jorrar para fora, como se o amor legítimo e a Torá fiel fossem, por natureza, expansivos. Os comentaristas eabinos ligam o versículo a uma expansão de bênção e ensino. Rashi, comentando “yāfutsû maʿyenōteka ḥûtsāh”, abandona por um instante a imagem conjugal estrita e ouve, por trás das fontes, o mestre que amadureceu na disciplina e agora se torna fonte para outros: “Sof shetikneh talmidim, vetoreh hora’ot barabbim, veyêtse lekha shem” — “No fim, adquirirás discípulos, ensinarás decisões em público e sair-te-á um nome”. A água que escorria entre quatro paredes transforma-se em corrente de ensino que percorre as ruas; a intimidade bem guardada, longe de gerar claustrofobia, torna-se matriz de fecundidade pública.

Midrash Mishlei (edição Buber) sobre este versículo condensa essa intuição numa sentença de Rabi Elazar: “Se vires uma geração que é amada pelos assuntos da Torá, ‘espalhem-se as tuas fontes para fora’; se não, ‘sejam para ti somente, e não para estranhos contigo’ (Provérbios 5:17)”. O midrash lê, entre 5:16 e 5:17, uma tensão viva: há tempos em que a geração está sedenta, e então o justo é convocado a deixar que suas fontes se derramem nas ruas, ensinando em público, fazendo correr ribeiros de palavra e de exemplo; há tempos em que a geração não ama a Torá, e então a ordem é recolher, “guardar para ti”, não por egoísmo, mas para preservar a pureza da fonte. O mesmo verso, lido nessa chave, se torna uma espécie de barômetro espiritual do tempo: “espalhar-se para fora” é privilégio de gerações que acolhem a água; quando o solo está endurecido, o sábio é chamado a proteger o manancial até que volte a estação da sede.

Midrash Tannaim sobre Deuteronômio 11:22 costura explicitamente o nosso versículo à exortação de “apegar-se ao Senhor”. Ali, Rabi Shimon ben Yochai comenta: “Está dito: ‘Bebe água da tua própria cisterna’ e ‘espalhem-se as tuas fontes para fora’ (Provérbios 5:15–16): bebe daqueles que estão contigo na cidade, e depois separa-te e espalha-te por todo lugar”. A imagem ganha, assim, um movimento em duas etapas: primeiro, beber até a saciedade da fonte mais próxima — o mestre, a comunidade, a tradição imediata — até que essa água se torne tua; depois, o próprio discípulo é enviado para fora, tornando-se ele mesmo um “ribeiro de águas em lugares amplos”. Não se trata de proibir a expansão, mas de ordenar o seu tempo: o verso 16 não anula o 15, mas o supõe; só quem aprendeu a ser fiel à sua cisterna pode deixar que suas fontes se espalhem sem perder a identidade.

Um eco dessa tensão aparece em Midrash Shmuel sobre Pirkei Avot 2:5, quando o autor cita juntos Provérbios 5:16–17 e joga com o aparente contraste: “‘Espalhem-se as tuas fontes para fora’ e, noutro lugar, ‘sejam para ti somente’; como conciliar? Se há quem as espalhe, junta (as águas, organiza-as); se não há quem as espalhe, ‘espalhem-se as tuas fontes para fora’”. Aqui, “fontes” já são os sábios e seus ensinamentos: se a geração está cheia de mestres, a tarefa do discípulo pode ser recolher, sistematizar, condensar; se a geração carece de mestres, então precisamente ele é chamado a ir “para fora”, a encher as ruas com as águas que recebeu. A metáfora conjugal permanece em pano de fundo — a exclusividade do amor — mas se abre para um princípio de responsabilidade comunitária: a vida que brota do vínculo fiel não pode permanecer eternamente confinada; em algum momento, ela é chamada a tornar-se dom público, sem perder, porém, a marca de sua origem.

As leituras rabínicas também deslizam da água para a carne, das fontes para a descendência. Coleções de comentário, como as reunidas em Daat e no “[Biur] sobre Provérbios 5:16”, lembram que o mesmo vocabulário de fontes e ribeiros aparece em Salmos 68:26 e 128:3, onde a “fonte de Israel” e os filhos como rebentos em torno da mesa figuram a fecundidade de um povo fiel. Em alguns intérpretes, a frase “espalhem-se as tuas fontes” torna-se, então, desejo de filhos e alunos — descendência física e espiritual — que se espalham pelas praças como cursos d’água, dando testemunho público da bênção que começou num leito bem guardado e numa Torá bem recebida. O perigo implícito, à luz do contexto de Provérbios 5, é óbvio: se o homem entrega suas fontes à mulher estranha, se deita em leitos alheios, essa água já não corre como bênção, mas como desperdício; filhos e frutos se espalham, sim, mas sem raiz clara, misturados em casas de “estranhos”, como o próprio capítulo adverte (Provérbios 5:9–10). A mesma imagem da água, portanto, pode designar tanto a expansão abençoada da fidelidade quanto a dispersão caótica de uma vida dividida.

Séculos mais tarde, a tradição chassídica retomará nosso versículo como um dos lemas de sua própria vocação. Textos ligados ao dia 19 de Kislev — “Rosh Hashaná da Chassidut” — descrevem a libertação do Alter Rebe como o início histórico do grande movimento de “yafutzu maʿayanotecha ḥûtsāh”, “espalhem-se os teus mananciais para fora”: os ensinamentos interiores, antes guardados em círculos muito restritos, deveriam agora alcançar até mesmo quem se encontra no “chutza”, na periferia espiritual do povo. Um exemplo é a referência recorrente em coleções de sichot e cartas do Rebe e em textos ligados ao 19 de Kislev em Chabad.org, onde Provérbios 5:16 é citado como prova de que os “mananciais” da sabedoria interna devem sair dos limites do “poço” e chegar a toda a nação. Em um desses discursos, explica-se que justamente o “lado de fora” — o lugar mais escuro — exige que os “mananciais” saiam da reclusão: quando a noite é mais cerrada, é necessário que a luz venha de dentro e transborde para as ruas. Nessa leitura, o versículo de Provérbios torna-se quase um programa missionário: a água não pode contentar-se em murmurar dentro do poço; é preciso que se transforme em ribeiros que cruzam “lugares amplos”, levando o segredo da intimidade com Deus até as bordas do mundo.

Ao cruzar essas vozes, a frase “Espalhem-se as tuas fontes, ribeiros de águas em lugares amplos” ganha o peso de uma parábola total: no nível imediato, continua sendo um chamado à alegria exclusiva com a esposa, de modo que o vigor sexual não se desperdice em leitos estranhos; no plano derásh, torna-se chamado à fidelidade à porção de Torá recebida, ao enraizamento em mestres concretos, antes de se tornar mestre de outros; no plano comunitário, é promessa de descendência — filhos e discípulos — que irradiam, nas praças, a marca da aliança que os gerou. A literatura rabínica insiste em que o movimento para fora não é negação da intimidade, mas seu desdobramento natural: a água que não corre apodrece; a que corre sem fonte se perde; só a água que brota de um poço verdadeiro e, a seu tempo, se derrama pelas ruas, conserva ao mesmo tempo frescor e identidade. É essa dialética delicada — entre guardar e espalhar, entre “para ti somente” e “em lugares amplos” — que o versículo desenha, enquanto o capítulo inteiro alerta que, se esse transbordamento não for regido pela fidelidade, ele se torna vazamento, e não missão.

Provérbios 5:17

Sejam elas para ti, para ti mesmo, e não para estranhos contigo. (Hb.: yihyû lĕḵā lebaddêḵā wĕʾên lĕzārîm ʿimmāḵ — “sejam para ti, só para ti, e não para estranhos contigo”). O verbo yihyû (3ª pl. impf./jussiva de hāyâ) continua o tom volitivo: “que sejam…”. A expressão lĕḵā lebaddêḵā é intensiva: “para ti, só para ti”, com o advérbio bad (“sozinho, separado”) em forma estendida (lebaddêḵā), sublinhando exclusividade. Do outro lado, zārîm (“estranhos, forasteiros”) é plural que, em Provérbios, frequentemente indica aqueles que não pertencem ao círculo da aliança, tanto no plano étnico quanto moral; ʿimmāḵ (“contigo”) sugere convivência íntima, alguém “ao teu lado”. A sintaxe do versículo fecha o argumento de 16: se lá se falou de fontes espalhadas “para fora”, aqui se delimita o círculo legítimo dessas fontes → o “para ti” e o “não para estranhos” funcionam como cerca verbal, estabelecendo que a energia e o fruto da intimidade não devem ser compartilhados com terceiros. Exegesemente, a linha é clara: o amor conjugal é um bem de exclusividade, não produto de consumo coletivo. Hermeneuticamente, esse versículo é quase um comentário poético ao mandamento “não adulterarás”: aquilo que a lei enuncia como norma jurídica, aqui é trazido em forma de imagem — fontes que pertencem a um só, e não a um mercado. Em chave canônica, há um eco da relação entre Deus e Israel: como o Senhor reivindica Israel como “propriedade peculiar” entre os povos (Êxodo 19:5), assim também, por analogia, a esposa da mocidade é “para ti, só para ti”, e o marido é chamado a honrar essa exclusividade como reflexo do mistério maior, que no Novo Testamento se explicita no vínculo Cristo–igreja (Efésios 5:25–32).

A frase hebraica aperta o foco da imagem hídrica de todo o trecho: depois da cisterna e do poço, depois das fontes que correm para as ruas, agora o versículo se detém no pronome, quase martelado: “para ti… para ti sozinho… não para estranhos”. O advérbio lĕbaddekā (“a ti sozinho”) estreita o círculo até o íntimo, como se o pai tomasse a água que ameaçava escapar pelas praças e a recolhesse de volta para o quintal, fechando a torneira do desejo no perímetro do pacto conjugal. Koptak observa que a ideia de “teu/teu próprio” é repetida e especialmente acentuada em 5:15 e 17, de modo que o poema faz da posse exclusiva — não no sentido de objeto, mas de vínculo — o eixo da argumentação sobre a sexualidade.

No plano, histórico e social, a metáfora só revela sua força quando é ouvida com os ouvidos de um aldeão israelita. Em um mundo sem água encanada, a cisterna escavada na rocha, o poço aberto até o lençol freático, as fontes que brotam do chão eram o coração da sobrevivência. Quem possuía um ponto de água possuía vida, gado, plantio, futuro. Não se desperdiça água no deserto, não se derrama uma fonte na rua. A imagem é deliberadamente “econômica”: assim como a água é um bem limitado, que não se reparte com qualquer um, assim a energia sexual e afetiva do homem deve ser canalizada para um leito só, o da aliança com a esposa. Quando o texto diz que essas águas devem ser “para ti” e “não para estranhos”, desenha um mapa de propriedade simbólica: a sexualidade não é um rio público, mas um aqueduto interno da casa, que irriga apenas aquele pequeno jardim chamado casamento.

Koptak lembra que o leitor antigo já conhecia toda uma tradição de advertências contra a mulher promíscua, pois “alertas contra mulheres promíscuas” faziam parte das instruções sapienciais dirigidas a jovens no antigo Oriente Próximo (KOPTAK, Proverbs, 2003, p. 168). Mas, ao lado desse pano de fundo cultural mais amplo, o público de Provérbios também trazia na memória o sétimo mandamento e a pregação profética que transformava o adultério em metáfora da infidelidade da aliança. Nesse cenário, reservar as “fontes” para si é mais que uma prudência privada: é participar de uma pedagogia da fidelidade, em que o leito conjugal espelha, em miniatura, o pacto entre Deus e o seu povo. Assim como Israel é chamado a ser um povo exclusivo do Senhor, não se espalhando em alianças com “estranhos” e “deuses outros”, o filho é chamado a guardar seu corpo e seu desejo dentro da circunferência estreita de um compromisso.

O termo zārîm (“estranhos”) carrega essa ambiguidade entre o social e o religioso. Designa tanto quem não pertence ao círculo familiar ou clânico quanto, em muitos contextos, quem se situa fora da comunidade da aliança. Quando o pai diz que as águas não são “para estranhos contigo”, ele fala, ao mesmo tempo, de rivais sexuais e de concorrentes religiosos, de homens que tomariam a mulher e, com ela, parte da herança, mas também de forças que diluiriam a identidade do povo. A infidelidade conjugal é, aqui, uma espécie de micro-idolatria: tira o corpo do lugar consagrado e o joga na praça, entre qualquer um; transforma o que é “para ti sozinho” em algo consumido e repartido por muitos. A casa, que deveria ser como um jardim fechado, vira poça na rua, pisada por pés anônimos.

Dentro da unidade poética 5:15–19, esse versículo funciona como resposta implícita à pergunta de 5:16. Ali, as “fontes” pareciam espalhar-se fora, “ribeiros de água nas praças”; aqui, o pai corrige o movimento, quase como se invertesse o curso de um rio. A pergunta de 5:16, lida como questão retórica, deve ser respondida com um “não” silencioso; e 5:17 traduz esse “não” em forma positiva: as águas devem pertencer ao círculo estreito do casal. Koptak nota que o uso das perguntas retóricas em 5:16 e, depois, em 5:20, tem a função de envergonhar a fantasia de dispersão, obrigando o rapaz a ver o absurdo de entregar sua própria fonte a gente de fora (KOPTAK, ibid., p. 176). A beleza da imagem não é meramente estética: ela é pedagógica, trabalha pela via da vergonha e do encanto ao mesmo tempo, para que a exclusividade pareça não apenas correta, mas desejável.

O grande tema de Koptak é que toda essa água remete ao próprio vínculo conjugal, não apenas ao ato sexual isolado: o casamento é o manancial de onde brotam prazer, frescor, descendência e continuidade de vida. Nessa leitura, “Sejam elas para ti, para ti mesmo” não versa sobre um direito de posse frio, mas sobre um chamado a cuidar da relação como quem guarda um lençol de água subterrâneo: se o dono abandona o poço, outros o ocuparão; se negligencia a cisterna, ela racha, infiltra, perde. Na economia social israelita, a esterilidade, a perda de filhos, a dilapidação da herança eram desastres concretos; por isso, a metáfora sugere que derramar a sexualidade “nas ruas” é também deixar a família sem futuro, como alguém que despeja suas reservas de água no pó.

Quando Koptak passa da explicação à ponte com os leitores de hoje, ressalta que os sábios “dizem aos que são casados ou serão: ‘beba da sua própria fonte’” como convite a uma fidelidade cultivada, intencional, que exige trabalho paciente para construir um casamento sólido (KOPTAK, ibid., p. 187). A imagem da fonte exclusiva desmonta uma das grandes mentiras da cultura contemporânea, segundo a qual a intensidade do desejo se mede pela quantidade de parceiros. À luz do versículo, multiplicar parceiros é precisamente desperdiçar pressão e profundidade: quanto mais se abrem derivação atrás de derivação, mais fraca fica a veia d’água central. O texto afirma o contrário do imaginário da variedade ilimitada: é a constância em uma só nascente que concentra, aprofunda, torna mais nítida a alegria do eros.

Há ainda um traço psicológico importante: Koptak observa que o acento do trecho cai sobre os pronomes de segunda pessoa — “sua cisterna, seu poço, suas nascentes, seus riachos, sua fonte” — não como legitimação de propriedade egoísta, mas como lembrete de responsabilidade pessoal na parceria exclusiva (KOPTAK, ibid., p. 188). O “para ti” não diz: “ela é tua coisa”, e sim: “este vínculo é teu encargo”; não autoriza domínio, mas exige cuidado. Em termos modernos, seria como dizer que a intimidade conjugal não é um recurso de consumo — um bem no supermercado do desejo —, mas uma usina que precisa de manutenção, investimento, tempo. O jovem é chamado a entender que cada gesto de olhar, cada flerte fora do pacto, abre uma rachadura na parede da cisterna; e que, se não vigiar, acordará um dia com o reservatório vazio, as águas já longes, correndo na vida de “estranhos contigo”.

Se pensarmos o versículo como cena, ele mostra um pai ensinando o filho a imaginar seu próprio desejo como água que escolhe seu leito. Em vez de ser arrastado por impulsos que correm soltos, o jovem é convidado a tornar-se jardineiro da própria sexualidade, escavando, canalizando, cercando, para que o eros se torne rio que fertiliza um pedaço de terra, e não enchente que devasta a aldeia. No horizonte maior de Provérbios 1–9, a escolha entre “fonte exclusiva” e “águas espalhadas” espelha a escolha entre abraçar a Sabedoria ou seguir a Loucura: ou a vida se concentra em um caminho que dá fruto, ou se dispersa em mil ruas, até que nada reste senão lama. Nesta linha, “Sejam elas para ti, para ti mesmo, e não para estranhos contigo” é o verso em que o poema interrompe a vertigem da dispersão e, como uma mão firme sobre a borda do poço, diz ao coração do discípulo: volta, recolhe-te, guarda a tua fonte.

A tradição rabínica vê aqui a fronteira sagrada entre a partilha e o profanamento. Rashi, comentando este versículo, explica que “elas” — as fontes e as águas — representam tanto os filhos da aliança quanto as palavras da Torá que brotam do justo; estas devem ser dedicadas “para ti”, isto é, a serviço de Deus e de Israel, não desperdiçadas entre “estranhos” (zārîm) que zombam da instrução (Rashi sobre Provérbios 5:17). Midrash Mishlei amplia: o homem que ensina Torá a quem não tem o temor do Céu é como quem derrama água pura sobre lama, porque o coração ímpio não a retém (Midrash Mishlei 5). Mas, no sentido literal, o texto também aponta para a fidelidade conjugal: as fontes são os filhos que não devem ser “de estranhos contigo”, advertindo o homem a guardar a integridade da linhagem, como o Targum traduz, “para que teus filhos sejam teus e não de outros” (Targum Mishlei 5:17). No ensino rabínico, o lar é microcosmo do pacto de Deus com Israel: assim como o Santo, bendito seja, não divide Sua glória com outro, o marido não divide o amor que lhe foi confiado. Essa exclusividade é sinal da pureza das águas; águas que correm por muitos canais perdem a força, mas as que se guardam num só leito mantêm o vigor e irrigam o futuro.

Aqui a Palavra fecha a porta por dentro, não por ciúme mesquinho, mas por zelo santo. As águas, as fontes dos versículos anteriores, são os fluxos da tua vida: o corpo, o leito, os filhos, a ternura, a palavra que te sai da boca. E o texto diz: que tudo isso tenha dono, que tudo isso tenha endereço, que não se torne praça pública onde qualquer estranho entra, bebe, suja, risca o nome e se vai. O coração moderno gosta da ideia de ser “de todos”, de distribuir presença e afeto como quem reparte folhetos de propaganda; mas a sabedoria de Deus responde com esse advérbio breve e cortante: “para ti, só para ti”. Em Isaías 42:8, o Senhor declara: “Eu sou o Senhor; este é o meu nome; a minha glória, pois, a outrem não darei”; e aqui ecoa esse mesmo ciúme limpo: assim como Deus não partilha sua glória com ídolos, o marido e a esposa não foram feitos para dividir, com estranhos, esse segredo de corpo e alma que Deus colocou entre ambos. “Estranhos contigo” não são apenas corpos alheios, são também olhares acolhidos, mensagens nutridas, fantasias alimentadas, memórias que deixam o coração dividido. Quando Jesus diz “não deis aos cães o que é santo, nem lanceis as vossas pérolas diante dos porcos” (Mateus 7:6), ele fala de doutrina, mas o princípio atravessa o texto: há coisas diante das quais o próprio Deus manda fechar a mão. Tua aliança é pérola; tua casa, altar; teu leito, mesa consagrada. Se transformas isso em esmola para estranhos, não é só a honra que se perde, é a fonte que se turva. E, assim como Israel foi chamado “povo de propriedade exclusiva” (1 Pedro 2:9), também este versículo te convida a viver a exclusividade não como prisão, mas como privilégio: ser de alguém, e ter alguém que é teu, é a forma mais alta de liberdade que o amor conhece.

Provérbios 5:18

Seja bendita a tua fonte... (Hb.: yĕbōrāḵ mĕqōrĕḵā — “seja abençoada a tua fonte”). O verbo yĕbōrāḵ é forma passiva/jussiva (Nifal de bāraḵ, “abençoar”), com valor de desejo: “seja abençoada”. O substantivo mĕqôr (“fonte, nascente”) retoma e concentra todas as imagens anteriores: cisterna, poço, fontes, ribeiros convergem aqui em uma só palavra que, em outros contextos, pode referir-se ao “manancial de vida” (Salmos 36:9) mas também à fonte de sangue ou de sêmen (Levítico 12; 15), carregando assim conotações ao mesmo tempo físicas e simbólicas. Com o sufixo possessivo (mĕqōrĕḵā — “a tua fonte”), o texto fala da realidade íntima que é própria daquele homem: sua vida sexual e reprodutiva, o leito conjugal, talvez até o conjunto da sua casa. Sintaticamente, a bênção aqui é desejo performativo: é quase uma oração, pedindo que Deus mesmo faça dessa fonte algo frutífero, puro, guardado. Exegesemente, o versículo desloca o tom do mero “não faças isso” para o “que assim seja para o bem” → não só se proíbe a dissipação; se deseja positivamente uma fonte que floresça, que gere vida, alegria, prosperidade sob o olhar divino. A hermenêutica cristã verá facilmente aqui o princípio de que a sexualidade, longe de ser maldita em si, é chamada a ser “fonte abençoada” quando vivida no perímetro estabelecido por Deus; há uma afinidade fina com Hebreus 13:4: “digno de honra entre todos seja o matrimônio e o leito sem mácula”, em que o leito conjugal é explicitamente honrado como lugar de bênção.

Os rabinos interpretam “fonte” como símbolo da esposa fiel e da sabedoria divina. Midrash Rabba sobre Gênesis refere-se à mulher virtuosa como maʿyan ḥayyim (“fonte de vida”), de cuja pureza o lar de Israel recebe bênção (Bereishit Rabba 17:8). Rashi, em paralelo, comenta que a fonte “bendita” é o ventre fértil que dá continuidade à aliança; a bênção é a fecundidade que vem da fidelidade, não da aventura. (Rashi sobre Provérbios 5:18). Mas o Talmude, em Yevamot 62b, oferece um segundo sentido: “quem ama a sua esposa como a si mesmo, e a honra mais do que a si mesmo, sobre ele está escrito: ‘seja bendita a tua fonte’”. Assim, a bênção da fonte é o reflexo da honra que o homem concede à mulher; a água permanece límpida quando o poço é guardado com reverência. Além disso, o Midrash Tehillim (128:3) compara a esposa à “videira frutífera nos recantos da casa”, ecoando a mesma metáfora: a mulher que teme o Senhor transforma o lar em jardim irrigado. Essa bênção, porém, também é espiritual: a “fonte” pode ser a própria Torá em quem se medita. Avot de-Rabbi Natan ensinou que “quem faz brotar novas interpretações da Torá, nele se cumpre ‘seja bendita a tua fonte’, pois faz correr rios de sabedoria do seu coração” (Avot de Rabbi Natan 1). Assim, tanto no matrimônio quanto no estudo, a fonte abençoada é aquela que não se contamina: água fiel, palavra fiel.

A fonte aqui tem rosto: é a esposa, é o vínculo que te foi dado por Deus, é o lugar ao qual tua sede deve retornar. A Palavra não pede apenas que toleres essa fonte; pede que a declares bendita, que a vejas como milagre, não como obrigação. Desde o Éden, quando Deus apresenta a mulher ao homem e ele exclama “esta, afinal” (Gênesis 2:23), há uma benção implicada no encontro: uma boca que se abre para dizer “esta veio de ti, Senhor; esta é dom, não acaso”. Quando o texto ora “seja bendita a tua fonte”, está chamando o marido a alinhar seu olhar com o do Criador: não ver a esposa como peso, nem como objeto de consumo, mas como nascente que Ele mesmo cavou na tua história. Malaquias 2:14 acusa o homem que trai a “mulher da sua mocidade” e lembra: “ela é tua companheira e a mulher da tua aliança”. Benção, então, é reconhecer isso e tratá-la como tal. No Novo Testamento, quando Paulo diz: “maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela” (Efésios 5:25), ele está ensinando o crente a tornar esta fonte verdadeiramente bendita: regando-a com sacrifício, com renúncia, com honra. Fonte bendita é fonte protegida: não se joga lixo onde se quer beber, não se abre sulcos paralelos no chão enquanto se reclama que a nascente é pouca. A vida conjugal se torna seca não porque Deus retirou a água, mas porque nós, com palavras duras, descuidos, comparações e segredos, fomos entulhando o poço. O versículo te convida a fazer o oposto: abençoa com a boca, limpa com gestos, cerca com fidelidade; pede a Deus que volte a cantar, sobre a tua fonte, o “muito bom” que ele pronunciou sobre o primeiro casal. E crê: o Senhor que transformou água em vinho nas bodas de Caná (João 2:1–11) não desaprende o caminho de tua casa; se o convidares de novo para o teu casamento, até as talhas mais vazias podem voltar a transbordar.)

Não basta conservar; é preciso alegrar-se. O texto não diz “tolera-a”, “suporta-a”, “acostuma-te com ela”; diz “alegra-te”. Há casamentos que não quebraram no papel, mas apodreceram no espírito porque trocaram o verbo: onde Deus escreveu “alegrar”, nós escrevemos “aguentar”. A “esposa da tua mocidade” é aquela que caminhou contigo quando nada havia ainda, quando as rugas eram poucas, o dinheiro curto, os sonhos compridos. Nela se escondem memórias de primeiras vezes: o primeiro “sim”, o primeiro teto partilhado, o primeiro filho, as primeiras dores suportadas juntos. O coração cansado, porém, esquece; prefere fantasiar outras juventudes, outros corpos que parecem eternamente novos porque não trazem consigo o peso da história. Este versículo é um chamado à memória convertida: volta a lembrar quem ela foi e quem ela é contigo. Em Eclesiastes 9:9, o Pregador aconselha: “Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida fugaz”; é como se ecoasse Provérbios 5:18–19, dizendo: não desperdices o pouco tempo que te dou com fastio e amargura. No Novo Testamento, Hebreus 13:4 declara que “digno de honra entre todos seja o matrimônio e o leito sem mácula”; honra e alegria caminham juntas. Não te alegres apenas naquilo que ela te dá — o cuidado, a casa, o corpo —, alegra-te nela: na pessoa, na alma, na amiga que Deus pôs ao teu lado. Se um dia teu coração começar a olhar para fora, lembra-te que Deus, que te conhece desde a juventude, te perguntará: por que desprezaste, no outono da vida, a primavera que eu mesmo te concedi? O evangelho, porém, ainda tem poder de restaurar essa alegria: Cristo não abandona a “esposa” quando ela envelhece na fé; ele a purifica, renova, “para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa” (Efésios 5:27). Deixa que esse Cristo te ensine a ver tua esposa, não com olhos cansados, mas com olhos lavados pela graça.

...e alegra-te por causa da esposa da tua mocidade, (Hb.: ûśĕmaḥ mēʾēšet nĕʿûrêḵā — “e alegra-te com a esposa da tua mocidade”). O verbo śĕmaḥ é também forma jussiva (de śāmaḥ, “alegrar-se”), indicando exortação: “que te alegres”, “alegra-te”. A preposição min aqui contrai-se em mē- (“a partir de, por causa de / com”), podendo ser entendida como “regozija-te com” ou “regozija-te por causa de”. A expressão ʾēšet nĕʿûrîm (“esposa da mocidade”) é conhecida em textos sapienciais e proféticos (cf. Isaías 54:6); nĕʿûrîm é plural abstrato de “juventude”, evocando o tempo da força e do primeiro amor. Morfologicamente, a construção em estado construto (literalmente, “esposa da tua mocidade”) amarra a identidade da mulher à história do marido: ela é aquela com quem ele partilhou o início da vida adulta, a quem se ligou quando o corpo era forte e o futuro estava aberto. Sintaticamente, esta cláusula explica o que significa ter a “fonte abençoada”: é alegrar-se não com uma sucessão de rostos, mas com a mulher com quem se começou; a bênção do v. 18a desdobra-se concretamente em alegria conjugal fiel. Hermeneuticamente, esse comando é antídoto contra a nostalgia adulterada que idealiza sempre “o que está fora”: o texto não diz apenas “tolera” ou “suporta” a esposa da tua mocidade; diz “alegra-te”. Em Cântico dos Cânticos, o amor conjugal é cantado como jardim e banquete; aqui, a sabedoria recolhe esse cântico e o coloca na boca do pai que instrui o filho: teu refúgio contra a mulher estranha não é só a disciplina fria, é também a alegria calorosa com a esposa que Deus te deu. No horizonte neotestamentário, essa alegria conjugal é ancora de uma realidade mais alta: Paulo, em Efésios 5, vê no amor sacrificial do marido pela esposa um espelho do amor de Cristo pela igreja; alegrar-se com a “esposa da mocidade” é, então, uma pequena parábola vivida da alegria de Cristo com a sua noiva, que Ele sustenta desde o início da sua história.

A imagem de Provérbios 5:18 se ergue de um mundo em que a água não é detalhe de paisagem, mas fronteira entre vida e morte. Ter uma “fonte” própria é possuir um espaço resguardado de vida, um bem precioso cercado de muro, como um pequeno Éden doméstico em meio à aridez do campo. É nesse cenário que o sábio diz: que essa fonte seja “bendita” — isto é, que a intimidade conjugal, figurada como nascente de águas, seja vivida debaixo da aprovação de Deus e das normas da comunidade, em contraste com os encontros furtivos e clandestinos com a mulher estranha do início do capítulo. Crawford H. Toy observa que, na sequência de Provérbios 5:15–20, a metáfora das águas — cisterna, fonte, ribeiros — converge para uma única realidade: a esposa legítima, cuja presença torna a casa um lugar de alegria e não de culpa (TOY, ibid., 1899, p. 112).

Quando o versículo pede que a “fonte” seja bendita, o comentário de Toy salienta que o foco não recai sobre filhos ou descendência, mas sobre a própria experiência do prazer conjugal: a esposa é apresentada não como mera geradora de prole, mas como “fonte de deleite físico” para o marido, em oposição aos prazeres fragmentados e destrutivos da prostituição (TOY, ibid., 1899, pp. 114–115). A bênção, então, não é um selo mágico, mas o reconhecimento de que esse prazer encontra o seu lugar justo quando flui dentro dos limites da aliança. O mesmo Deus que amaldiçoa o adultério abençoa a alegria erótica entre marido e mulher; o mesmo Deus que adverte contra a mulher alheia, chama aqui o homem a celebrar a fonte que lhe foi dada, não a cavar cisternas rachadas em terreno proibido. A poesia do texto abraça o corpo sem pudor, porque o situa dentro de um pacto.

Toy nota ainda que a expressão “seja bendita” talvez não seja a forma mais esperada, e discute a leitura grega que poderia ser traduzida como “seja tua, somente tua, a tua fonte”, reforçando a ideia de exclusividade e fidelidade. Ainda assim, ele reconhece que a leitura massorética, com o pedido de bênção, combina bem com a linha seguinte, em que o homem é convocado a alegrar-se na esposa da mocidade, e não a buscá-la apenas como objeto ou propriedade (TOY, ibid., 1899, pp. 114–115). A bênção, nesse quadro, funciona como um arco: parte de Deus, passa pelo marido, repousa sobre a esposa e retorna para Deus como gratidão. A conjugalidade não é vista como tolerada a contragosto, mas como um dom que merece ser nomeado com palavras litúrgicas. O leito conjugal torna-se, por assim dizer, um pequeno altar onde o corpo aprende a agradecer.

A segunda metade do versículo amplia o quadro: “alegra-te por causa da esposa da tua mocidade”. A expressão ecoa outros textos em que a “esposa da mocidade” é o rosto concreto de uma aliança, como em Malaquias 2:14, onde o profeta denuncia o homem que trai a mulher com quem fez pacto, a mesma com quem um dia sonhou, pobre e jovem, ante o olhar de Deus como testemunha. O contraste é nítido: de um lado, o marido de Provérbios é chamado a permanecer, a alegrar-se de novo na mesma mulher, como quem retorna ao poço antigo e descobre que a água ainda corre fresca; de outro, os homens de Malaquias abandonam a esposa da juventude para buscar alianças mais vantajosas. O sábio se insere nesse segundo cenário como voz preventiva: antes que o coração se canse da familiaridade, ele convida a redescobrir o encanto do rosto conhecido, a alegria de uma história compartilhada.

No pano de fundo histórico, Toy lembra que, entre os antigos povos do entorno, o casamento era visto como um dever social e religioso; a união precoce, “na mocidade”, era norma mais do que exceção, e o celibato era fenômeno raro (TOY, ibid., 1899, p. 115). A “esposa da mocidade” não é, portanto, ideal abstrato, mas a jovem com quem o homem entrou na vida adulta, com quem partilhou a construção da casa, o receio da pobreza, o peso dos primeiros trabalhos. Em termos socioculturais, trata-se da companheira que, muitas vezes, suportou anos de precariedade antes que qualquer estabilidade fosse alcançada. Alegra-te com ela, diz o texto, como quem diz: não traias justamente aquele amor que carregou contigo a cruz dos começos. Estudos sobre idade matrimonial e expectativas sociais no antigo Israel sugerem esse pano de fundo em que a família é núcleo econômico e religioso, e o casamento precoce integra o tecido da vida comunitária.

A literatura rabínica irá intensificar esse acento sobre a fidelidade à esposa da juventude. Em Yevamot 63a, citando Malaquias 2, os sábios falam da “esposa da sua mocidade” como a primeira esposa, aquela à qual o homem é ligado por uma proximidade quase visceral; divorciá-la sem justa causa é descrito como ato que provoca a ira de Deus, e alguns textos chegam a dizer que o altar derrama lágrimas quando um homem se desfaz assim da mulher com quem celebrou seu primeiro pacto. A imagem se aproxima de Provérbios 5:18: a fonte bendita é justamente essa esposa primeira, que a tradição rabínica cercará de honra e cuidado. Quando o versículo manda alegrar-se nela, a tradição lê nisso não apenas liberdade de prazer, mas dever de lealdade, de não trocar o antigo amor por fascinações mais recentes. A esposa da mocidade torna-se espelho de uma fidelidade que Deus mesmo exerce para com seu povo.

Ao lado dessa leitura conjugal literal, correntes rabínicas também espiritualizam a expressão, vendo na “esposa da juventude” uma figura da Torá: assim como o marido é chamado a voltar-se continuamente à esposa amada, o discípulo é chamado a renovar seu amor pela Palavra que abraçou quando jovem, sem deixá-la envelhecer em seus olhos. Essa dupla leitura — literal e alegórica — não anula a dimensão corpórea do texto, mas a expande: o mesmo coração que aprende a permanecer fiel à esposa aprende também a permanecer fiel à revelação de Deus; a mesma fonte bendita que sacia a sede do corpo torna-se símbolo da fonte espiritual que sacia a sede da alma. Em ambos os casos, o movimento é o mesmo → resistir à tentação do novo que brilha, e cultivar a alegria naquilo que foi recebido em aliança.

Os sábios associam este mandamento à alegria do ʿoneg Shabat: como o Shabat é memorial do pacto entre Deus e Israel, a esposa é memorial da juventude da aliança, quando o amor ainda era puro. (Pirkei Avot 5:21 com comentários). Rashi afirma que a “esposa da juventude” é aquela com quem o homem cresceu em graça e fidelidade, e que a verdadeira alegria está em permanecer com ela até a velhice. Midrash Mishlei nota que o versículo fala em “alegra-te”, não em “sacia-te”, para lembrar que o prazer legítimo nasce da gratidão e não da cobiça (Midrash Mishlei 5). O Talmud Yerushalmi (Ketubot 1:5) diz que o marido deve ser sempre como um noivo e a esposa como uma noiva; esse é o segredo da longevidade do amor. O versículo torna-se, assim, fundamento ético: a alegria no casamento é serviço a Deus, pois espelha o deleite de Israel em sua aliança com o Altíssimo, como está dito em Isaías 62:5 — “assim como o noivo se alegra com a noiva, assim teu Deus se alegrará contigo”.

Provérbios 5:19

...corça de amores e gazela de graça! Que os seus amores te satisfaçam em todo o tempo; engrandece-te continuamente no seu amor. (Hb.: ʾayyélet ʾahavîm wĕ-yaʿălat ḥēn; daddêhā yĕrawwûḵā beḵol-ʿēt; beʾahăbātāh tišgeh tāmîd — “gazela de amores e corça de graça; que os seus seios te saciem em todo o tempo; no amor dela sejas sempre arrebatado”). A primeira metade do versículo é uma cadeia de substantivos poéticos em justaposição: ʾayyélet é o feminino de ʾayyāl, “gazela/cerva”, animal leve, esquivo, associado tanto à graça visual quanto à agilidade dos pés (como em Habacuque 3:19, onde Deus “faz os pés como os da corça”, imagem de firmeza e destreza na caminhada), e aqui, no feminino, perfuma a figura da esposa com esse brilho de movimento e delicadeza; esse termo vem acompanhado de ʾahavîm, plural de ʾahavah (“amor”), um plural que pode ser entendido como plural de intensidade ou de manifestações, “amores”, sugerindo a multiplicidade de gestos afetivos e eróticos que emanam dela, não um único ato isolado, mas um campo inteiro de afeição. Em paralelo, yaʿălat deriva de yaʿēl/yaʿălāh, “cabrita do deserto, corça das rochas”, provavelmente ligado à ideia de subir (yʿl, “elevar-se”), evocando um animal que salta pelos rochedos com elegância; ela é chamada “yaʿălat ḥēn”, literalmente “corça de graça”, onde ḥēn (“graça, favor, encanto”) carrega na literatura sapiencial o sentido de beleza que atrai e agrada (como em Provérbios 3:4; 31:30), de modo que a esposa é descrita, num paralelismo sinônimo, como criatura de amores e de encanto, dois eixos do eros conjugal: ardor e encantamento. Sintaticamente, essas expressões formam um bloco nominal em aposição à “esposa da tua mocidade” do versículo anterior (Provérbios 5:18): o texto não está falando de qualquer mulher, mas da esposa legítima, nomeada agora em metáforas animais, como acontece em Cântico dos Cânticos 2:9, 2:17, 8:14, onde o amado é descrito como um gamo ou filhote de gazela, e em 4:5 e 7:3, onde os seios da amada são comparados a filhotes gêmeos de gazela; esse entrelaçamento intertextual mostra que o imaginário poético de Israel recorre repetidamente à gazela para falar de beleza, vivacidade e sedução legítima no contexto do amor pactuado, de modo que Provérbios 5:19 se insere na mesma tradição: a esposa é o campo permitido da fantasia e do desejo.

A segunda linha introduz o primeiro verbo: daddehā yĕrawwûḵā bĕḵol ʿēt. O sujeito é daddehā, plural de dad (“seio”), com sufixo de 3ª pessoa feminina singular (“seus seios”); é um plural que pode ser entendido como dual concreto (“seios” enquanto par), mas formalmente aparece como plural masculino com sufixo feminino, um modo hebraico de tratar certas partes do corpo em forma plural. O verbo yĕrawwûḵā é um imperfeito piel de rāwâ (“beber, irrigar, saciar”), com sufixo de 2ª pessoa masculina singular (“que te saciem / te inebriem”); o binyan piel aqui reforça a intensidade: não é apenas matar a sede, mas saturar, encharcar, deixar transbordando. A expressão bĕḵol ʿēt (“em todo tempo”) é um complemento adverbial que amplia o horizonte temporal: não se trata de um ímpeto ocasional, mas de uma satisfação recorrente, ao longo das estações da vida. Sintaticamente, temos uma oração desejativa (“que os seus seios te saciem”), que dá continuidade ao tom imperativo/jussivo do contexto (“bebe água da tua própria cisterna”, “alegra-te com a esposa da tua mocidade”): o pai não apenas tolera o prazer conjugal, mas o deseja ativamente para o filho; quer que o corpo do filho encontre saciedade no corpo da esposa, e só nele. A escolha de rāwâ para o efeito dos seios ecoa o campo semântico da água, dominante desde o v. 15: cisterna, poço, fontes, ribeiros; a mulher é, por metonímia, fonte que sacia a sede sexual e afetiva, e os seios são como taças que derramam contentamento, como em Cântico dos Cânticos, onde o vinho e o leite do peito se misturam em imagens de deleite (Cântico dos Cânticos 1:2; 4:10–11). A exegese, portanto, não permite neutralizar a carga erótica do texto: ele fala de prazer corporal explícito, centrado nos seios da esposa, mas inserido no quadro ético da fidelidade conjugal, em contraste com a mulher estranha do início do capítulo.

O hemistíquio final, beʾahăbātāh tišgeh tāmîd, retoma e intensifica a imagem do êxtase. Temos a preposição + ʾahăbātāh (“em seu amor”), novamente o substantivo ʾahavah (“amor”) com sufixo de 3ª pessoa feminina singular (“o amor dela”), seguido do verbo tišgeh, imperfeito qal 2ª pessoa masculina singular de šāgâ (“errar, desviar-se, cambalear, enlouquecer”), que em outros contextos descreve o animal que se perde, o bêbado que cambaleia, ou ainda o pecador que se afasta do caminho (por exemplo, em Deuteronômio 27:18; Ezequiel 34:6 e em Provérbios 5:20, logo adiante); aqui, porém, o verbo é usado de modo paradoxal, quase redentor: “ser arrebatado, enlouquecer” não no pecado, mas no amor legítimo, isto é, ser tomado, perder o juízo no sentido de abandonar-se, não a uma paixão proibida, mas ao vínculo que Deus aprovou. O advérbio tāmîd (“continuamente, para sempre, de modo constante”) repete o eco de permanência de bĕḵol ʿēt: não se trata de um impulso pontual, mas de um estado habitual de encantamento; o marido é chamado a viver “enlouquecido” pelo amor da esposa, do mesmo modo que, em outros textos, Israel é chamado a “amar o Senhor teu Deus de todo o coração” (Deuteronômio 6:5) — o verbo é outro, mas o total envolvimento é semelhante. Há, aqui, um jogo teológico discretíssimo: o mesmo livro que condena a embriaguez literal (Provérbios 20:1; 23:29–35) usa um verbo de desvario para abençoar a embriaguez metafórica no amor conjugal; e isso se harmoniza com a sabedoria bíblica mais ampla, em que o amor humano fiel pode tornar-se ícone do amor divino (como Efésios 5:25–33 fará ao aproximar o amor do marido da entrega de Cristo à igreja).

Do ponto de vista sintático, o versículo como um todo é composto por uma sequência de aposto qualificativo (“corça de amores, gazela de graça”), seguido de dois desejos jussivos que se reforçam: “que os seus seios te saciem” e “no amor dela sejas sempre arrebatado”. Ambos têm o filho como sujeito gramatical (o destinatário dos verbos) e a esposa como fonte; a construção sublinha que o eros do marido é, sim, intenso, mas é centrípeto, girando em torno de um único polo. A combinação de lexemas — animais sensuais (ʾayyélet, yaʿălat), vocábulos de graça (ḥēn), seios (daddehā), verbo de saturação (rāwâ), verbo de desvario (šāgâ) e advérbios de permanência (bĕḵol ʿēt, tāmîd) — compõe um relevo semântico em que a alegria sexual é vista como dádiva contínua, não como aventura episódica. Linguisticamente, o mesmo campo de “caminho/desvio” que domina o capítulo (veredas que descem ao Sheol, pés que se afastam do caminho da vida) é reaproveitado: o verbo de desvio é reaplicado, aqui, para dizer que a única “loucura” autorizada é a de manter-se fascinado pelo amor da esposa; todo outro desvario, fora desse amor, será condenado logo no v. 20, quando a mesma raiz é retomada para falar do desvio com a estranha. Intertextualmente, isso dialoga com Eclesiastes 9:7–9, onde o pregador, apesar de toda a vaidade do mundo, recomenda: “goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida fugaz”, frase que converge com Provérbios 5:19 ao apresentar o amor conjugal como parte do quinhão dado por Deus “debaixo do sol”; e com Cântico dos Cânticos, que, em sua própria gramática poética, celebra o êxtase amoroso entre marido e esposa como algo a ser desfrutado “até que o dia desperte e as sombras fujam” (Cântico dos Cânticos 2:17), sem culpa, mas dentro dos muros de um “jardim fechado” (Cântico dos Cânticos 4:12). Exegeticamente, tudo isso se condensa no contraste que percorre Provérbios 5: ou o filho se deixa saciar e enlouquecer pelo amor da “corça de amores e gazela de graça” que é a sua própria esposa, ou buscará essa mesma embriaguez nos braços da mulher estranha; o hebraico, com suas imagens densas e seus verbos escolhidos, não deixa dúvida sobre qual caminho é sabedoria e qual é loucura.)

Em Provérbios 5:19 o pai, que já falou da “fonte” e dos “ribeiros” em Provérbios 5:15–18, prolonga a mesma paisagem simbólica e passa da água que irriga a terra para os animais esguios que correm pelos outeiros, para dizer ao filho que o desejo não deve ser extinto, mas domesticado, canalizado, educado para encontrar sua plenitude na esposa da juventude. No mundo antigo, corças e gazelas eram imagens espontâneas de graça, leveza e fecundidade: animais de olhos grandes, movimentos rápidos, beleza quase dançante, que aparecem recorrentemente na poesia amorosa do Oriente Próximo como metáforas para a atração erótica e a vitalidade da vida. Quando o texto fala em “corça de amores” e “gazela de graça”, ele não descreve um zoológico, mas um olhar: a forma como o marido é chamado a ver a própria esposa, não como rotina, mas como encanto; não como posse muda, mas como presença que desperta admiração e ternura ao mesmo tempo.

Esse retrato se torna ainda mais nítido quando colocamos Provérbios ao lado de Cântico dos Cânticos, como o faz o comentário que reúne os três livros — Provérbios, Eclesiastes e Cântico — em um mesmo arco sapiencial. Garrett observa que, nesse conjunto, Cântico dos Cânticos é “talvez o mais desesperadamente necessário” dos livros de sabedoria, porque, num tempo em que escândalos, promiscuidade e infidelidade corroem o testemunho cristão, ele apresenta o amor entre homem e mulher “em toda a sua alegria, santidade e riqueza”, ensinando ao povo de Deus o verdadeiro sentido de sua sexualidade (GARRETT, Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs, 1993, p. 12) . Lido nesse horizonte, o versículo não é um escapismo romântico em meio a uma seção moralista, mas o cume positivo de toda a exortação contra a adúltera: o pai não quer apenas afastar o filho da cama proibida, quer conduzi-lo até o leito conjugal como lugar de festa e não de tédio, como Cântico faz ao longo de seus cânticos, quando o corpo da amada é comparado a filhotes de gazela e o amado é descrito como um gamo que salta pelos montes (Cântico dos Cânticos 2:9; 2:17; 4:5; 7:3; 8:14).

No ambiente social de Israel, a palavra dirigida ao “filho” pressupunha um matrimônio muitas vezes arranjado pelas famílias, com forte expectativa de descendência e de continuidade do clã. Ainda assim, o livro não trata a esposa apenas como útero que gera herdeiros, mas como companheira que pode e deve ser fonte de alegria sensorial. A justaposição entre “fonte bendita” (Provérbios 5:18) e “corça de amores” (Provérbios 5:19) mostra como a linguagem da fertilidade (água, semente, ribeiros) se entrelaça com a linguagem do prazer: a mesma fonte que garante vida à terra também sacia a sede do corpo e da alma. A metáfora dos seios que “saciam” em todo o tempo, e do amor no qual o marido é chamado a “enlouquecer” ou “embriagar-se”, retoma o mundo do vinho e da embriaguez, tão frequente na poesia antiga, para redefini-lo: o êxtase permitido, o “delírio” legítimo, é o da fidelidade, não o da aventura ilícita. Do ponto de vista histórico-sociocultural, isso é contracultural, porque a norma tácita das sociedades patriarcais do entorno concedia ao homem respeitável uma margem de liberdade sexual maior do que à mulher; aqui, porém, é precisamente o homem que é chamado a restringir o seu olhar, a fixá-lo numa única mulher, a disciplinar o próprio desejo para que se concentre nela como num foco de luz, em vez de dispersar-se em múltiplas conquistas.

O próprio comentário ressalta que os livros de sabedoria formam um conjunto que combate, por diferentes ângulos, as distorções da experiência humana: Provérbios insiste na vida correta, disciplinada, atenta às consequências; Eclesiastes expõe a vaidade de buscar sentido último no prazer, no trabalho ou no acúmulo; Cântico dos Cânticos, por sua vez, mostra o amor erótico não como ídolo, mas como dom exuberante dentro da aliança. Assim, quando Provérbios 5:19 manda que os amores da esposa “satisfaçam em todo o tempo”, o texto não promete que eros, por si só, dará sentido à existência (isso Eclesiastes desmonta), mas o coloca como parte do “quinhão” que Deus concede ao homem sob o sol: alegria legítima, intensa e limitada, que não substitui o temor do Senhor, mas o encarna no cotidiano do corpo (Eclesiastes 9:7–9). A imagem da corça e da gazela, então, é ao mesmo tempo encantamento e limite: encantamento, porque permite que o marido veja na esposa uma beleza sempre renovada; limite, porque circunscreve esse encantamento ao espaço da aliança matrimonial, como o jardim fechado de Cântico (Cântico dos Cânticos 4:12).

A expressão final, “engrandece-te continuamente no seu amor” — ou, de maneira mais literal, “sê sempre tresloucado com o seu amor” — vem do verbo que descreve alguém que cambaleia, que perde o prumo, como bêbado que já não caminha em linha reta. O mesmo livro que, em outros contextos, adverte contra a embriaguez literal (Provérbios 20:1; 23:29–35) ousa usar esse vocabulário para falar do amor conjugal, como se dissesse: há um único delírio que não destrói, uma única perda de juízo que não nos rebaixa, mas nos humaniza, que é o abandono confiante ao amor da aliança. Na moldura da cultura israelita, em que a fidelidade do marido não era algo óbvio, essa ordem de “embriagar-se” com o amor da esposa funciona como antídoto, deslocando o eixo do desejo masculino da novidade clandestina para a constância conhecida, transformando hábito em maravilha, rotina em rito. E, quando lembramos que esse mesmo comentário vê na crise sexual contemporânea um espelho sombrio das infidelidades antigas, a força desse imperativo se acentua: a recuperação de uma visão alta, alegre e exclusiva do amor conjugal é condição para que a comunidade de fé volte a ter palavra crível num mundo saturado de erotização mercantilizada (GARRETT, Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs, 1993, p. 12) .

Sob esse ângulo, a “corça de amores” não é um código secreto de ascetismo disfarçado, mas um convite a recuperar a delicadeza na vida conjugal: a ternura do toque, a paciência do olhar, a capacidade de maravilhar-se com a mesma pessoa ao longo dos anos. A cultura antiga, como a nossa, conhecia o casamento transformado em mera instituição econômica, em pacto de conveniência, em obrigação social; o provérbio resiste a isso e pinta o casamento como liturgia do corpo, em que o marido cultiva o desejo pela esposa com a mesma atenção com que cuida da fonte que não pode secar. Ao mesmo tempo, a associação com os animais selvagens lembra que o eros tem algo de indomesticável, e que a tarefa da sabedoria não é castrá-lo, mas ensiná-lo a correr dentro de fronteiras: como uma gazela no alto das colinas, livre e, ainda assim, pertencente a uma casa, a um rebanho, a um nome.

Quando a segunda metade do versículo insiste em “todo o tempo” e “continuamente”, não se trata de uma exigência irreal de intensidade emocional permanente, mas de um horizonte ético: em todas as estações da vida — juventude e velhice, saúde e doença, fartura e aperto — o marido é chamado a reescolher a mesma mulher como lugar de alegria, a reencontrar nela a corça e a gazela dos primeiros dias. Essa perseverança amorosa faz eco à insistência de Provérbios em “guardar o coração” (Provérbios 4:23) e em trilhar o caminho da aliança com estabilidade; aqui, o coração guardado é, paradoxalmente, o coração que se deixa arrebatar sempre de novo pela mesma pessoa. O resultado histórico-sociocultural dessa visão é uma comunidade na qual o erotismo não é nem tabu silencioso nem produto exposto à venda, mas arte delicada de fidelidade, na qual os corpos se tornam sacramento de uma promessa e, por isso mesmo, lugar de louvor ao Criador que, em sua sabedoria, vinculou deleite e compromisso, prazer e palavra dada, corça e fonte, olhos que brilham e alianças que não se quebram.)

O Midrash Rabba sobre Cântico dos Cânticos 2:9 explica que a “corça” e a “gazela” simbolizam o amor divino que é veloz e gracioso: “assim como a corça, quando dorme, abre um olho e fecha o outro, assim o Santo, bendito seja, vela por Israel mesmo quando eles dormem”. (Shir HaShirim Rabba 2:9). No Talmude Berakhot 10a, Davi é comparado à corça porque seu amor por Deus jamais se esgota; ele suspira continuamente como o cervo que anseia pelas águas (Salmos 42:1). Aplicando essa imagem ao lar, os sábios dizem que o amor conjugal deve imitar esse anseio incessante: mesmo depois de anos, que o esposo ainda se “embriague” no amor da esposa, como um cervo que nunca se sacia da fonte. Rashi destaca que o verbo tišgê (“embriagar-se”) é o mesmo usado para o vinho, mostrando que o prazer, quando santificado, é permitido e até bendito, desde que mantido no recinto da aliança (Rashi sobre Provérbios 5:19). Midrash Tanchuma (Pekudei 3) associa o versículo ao amor da Torá: “Seus amores te saciarão em todo o tempo” — quem se embriaga das palavras da Torá não procura outras mulheres nem outros deuses (Tanchuma Pekudei 3). Assim, os mestres unem corpo e espírito: o amor legítimo no lar é sinal visível do amor invisível entre Deus e Seu povo. Por isso, a “gazela de graça” é também metáfora da Shechiná — a presença divina graciosa e ligeira que visita os lares puros, tornando o leito conjugal uma pequena tenda de encontro. A alegria do versículo não é lascívia, é liturgia: o amor que permanece terno é um cântico contínuo ao Criador, eco do primeiro Éden onde homem e mulher estavam nus e não se envergonhavam.

Agora o texto ousa a poesia. A esposa da mocidade é vestida de metáfora: não é objeto, é criatura viva, leve, graciosa, como a corça que salta pelos montes em Cântico dos Cânticos 2:9, 2:17, 8:14. A Bíblia não tem medo da beleza nem do encanto; o que ela teme é o encanto sem promessa, a beleza sem aliança. Chamar a esposa de “corça de amores” é reconhecer que, dentro de um pacto, o eros é dom de Deus, não concessão do diabo. Quando o amado de Cântico dos Cânticos vê a amada como “gazela” e “cerva”, ele não a reduz a animalidade, ele celebra a vivacidade, a rapidez com que aquele amor corre ao encontro, a delicadeza dos movimentos, a ternura dos olhos. Este versículo convida o marido a ver em sua mulher algo mais do que a rotina deixou visível: há nela uma graça que o tempo não roubou, apenas escondeu sob camadas de tarefas, dores, filhos, cansaços. Pede a Deus olhos de cervo para ver de novo. No Antigo Testamento, Habacuque 3:19 fala do Senhor que faz “os meus pés como os da corça, e me faz andar sobre as minhas alturas”; a corça é imagem de quem caminha firmemente onde outros escorregam. Talvez o texto também sussurre isso: a tua esposa, com toda a fragilidade que tem, foi muitas vezes os teus “pés de corça”, sustentando a casa quando tu vacilavas. “Gazela de graça” lembra ainda que o encanto verdadeiro não é só forma, é favor: ḥēn, graça, é aquilo que não se compra, que não se cobra. Quando tratas tua esposa como corça e gazela — não como peso, mas como milagre —, tu mesmo te tornas mais homem, porque te aproximas do olhar do Deus que vê beleza onde o mundo só vê desgaste.)

A Escritura, aqui, fala sem rubor: menciona seios, fala de embriaguez, invoca arrebatamento. Mas o cenário é o leito da aliança, não o quarto clandestino. O que ela proíbe no capítulo — embriagar-se com a mulher estranha — ela aqui ordena, com santa ousadia: embriaga-te, sim, mas com o amor da tua esposa; perde o juízo, sim, mas dentro dos muros que Deus ergueu para te proteger. A imagem do vinho corre por toda a Bíblia: ele alegra, aquece, cura; mas fora da medida, destrói. Paulo dirá: “não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito” (Efésios 5:18). Aqui, porém, é como se o Espírito dissesse: “enche-te, sim, do amor que Eu mesmo te dei como taça legítima”. O adultério é buscar vinho em copo roubado; o casamento é taça que Deus te entrega, gravada com o nome do outro. Em Cântico dos Cânticos 5:1, o Amado diz: “Comi o meu favo com o meu mel; bebi o meu vinho com o meu leite; comei, amigos; bebei, embriagai-vos de amores” — é quase o comentário poético deste versículo. A tradição cristã viu ali um vislumbre da comunhão de Cristo com a sua igreja; aqui, vê-se o eco, em escala doméstica, da mesma verdade: o amor verdadeiro é banquete, não migalha. “Em todo tempo” e “sempre” lembram que esta embriaguez não é capricho ocasional; é um estilo de olhar. Mesmo quando o corpo da esposa envelhecer, quando a doença a tornar lenta, quando as lágrimas dos anos sulcarem o rosto, o texto te chama a permanecer arrebatado: não pelo ideal que tinhas aos vinte, mas pela pessoa real que Deus te foi revelando ao longo do caminho. O amor de Cristo pela igreja não diminui com as rugas da história; ele a amou “até o fim” (João 13:1). Quem bebe desse Cristo aprende a beber também, com reverência, da esposa que lhe foi dada: deixa-se saturar pelos “amores” dela — a paciência, a palavra doce, o perdão, o abraço, o corpo entregue —, e recusa-se a procurar essa embriaguez em outro lugar. Se hoje teu coração sente mais sede do que saciedade, este versículo não te condena, mas te chama: volta à fonte, pede perdão a Deus e à tua esposa, rompe com os “estranhos contigo” que ocupavam espaço demais na tua imaginação, e roga ao Senhor que faça de novo este milagre: que os amores dela te satisfaçam, e que tu aprendas, no rastro de Cristo, a te perder — não na loucura do pecado, mas na sabedoria de amar até o fim quem Ele te confiou.)

Provérbios 5:20

E por que te engrandeces, filho meu, com uma estranha? (Hb.: ûlammâ tišgeh bĕzārâ bĕnî — “E por que te extraviarás com uma mulher alheia, meu filho,...”). O hebraico começa com ûlammâ (“e por que”), partícula interrogativa que não pede informação, mas sacode a consciência: é uma pergunta de espanto, quase um lamento, como se o pai dissesse “que sentido isso faz?”. O verbo tišgeh vem da raiz šāgâ, que em muitos contextos significa “errar, desviar-se, tresmalhar-se, cambalear como bêbado”; é o mesmo universo semântico dovelho animal que sai do caminho e se perde, ou do coração que anda tonto. A ideia não é de “engrandecer-se”, mas de perder o rumo, “enlouquecer” no mau sentido, deixar-se arrastar por um fascínio que tira do eixo. O complemento bĕzārâ (“com uma estranha”) traz o substantivo zārâ, feminino de zār (“estranho, alheio, de fora”), que em Provérbios designa aquela mulher que não pertence ao círculo da aliança e que encarna um modo de vida, de culto e de valores diferente, incompatível com a sabedoria do pai. Por fim, bĕnî (“meu filho”) fecha a cláusula e dá o tom: não é um tratado abstrato, é a voz de um pai que apela, afetivamente, à identidade do discípulo (“meu filho”) para mostrar o absurdo do desvio. Sintaticamente, temos uma pergunta retórica estruturada com verbo no imperfeito (tišgeh), que pode ser lido como futuro (“desviarás”) ou como presente habitual, mas aqui funciona como “futuro de advertência”: se tu cederes à estranha, o resultado inevitável será esse desvio enlouquecido. O peso da frase está no contraste com os versículos anteriores: quem foi convidado a “enlouquecer” (šāgâ) no amor da esposa (v. 19) é agora confrontado com a possibilidade de usar o mesmo impulso para se perder com a estranha; a mesma raiz verbal aparece em dois cenários opostos, e essa repetição faz ouvir a pergunta como um juízo sobre a direção do desejo: por que canalizar tua loucura para quem não é tua? O hebraico, com a carga de šāgâ e zārâ, pinta o adultério não como aventura grandiosa, mas como desorientação voluntária com alguém que não pertence ao teu mundo de fé.

Na tradição rabínica, a figura da iššâ zārâ não fica aprisionada ao retrato de uma prostituta qualquer; ela se torna um rosto múltiplo, onde a carne e a doutrina se misturam. Em Midrash Mishlei sobre o mesmo capítulo, quando comenta “Porque os lábios da mulher estranha destilam mel” (Provérbios 5:3), o midrash adverte de forma direta: “meu filho, toma cuidado com a mulher prostituta”, interpretando essa estranheza primeiro no plano literal, como a figura da meretriz cujo falar sedutor é veneno adoçado, e cuja aproximação corrompe o discípulo da sabedoria (Midrash Mishlei 5:2). Mas a mesma tradição, quando se desloca para o Talmud, abre um segundo horizonte: em Avodah Zarah 17a os sábios tomam outra referência à “mulher estranha”, em Provérbios 2:19, e dizem que essa “mulher estrangeira” é um eufemismo para a heresia (minut), aquela sedução intelectual que afasta para sempre dos “caminhos de vida” — “nenhum dos que a ela se chegam volta, nem tornam a alcançar as veredas da vida” (Provérbios 2:19), lido como um aviso sobre a dificuldade quase irreversível do retorno de quem se deixa fascinar por doutrinas que dissolvem o temor de Deus. Assim, quando o versículo pergunta “por que te engrandeces... com uma estranha?”, a literatura rabínica faz ressoar por trás da “estrangeira” tanto a mulher da esquina quanto a doutrina alheia à Torá: a prostituta dos becos e a ideia sedutora que parece sofisticada, mas conduz a um beco sem saída espiritual. Em leituras posteriores, como em Likutei Moharan 62:2, essa intuição se aprofunda: ali, a advertência de Provérbios 2:19 é aplicada ao homem que se abandona ao próprio intelecto e se perde em questões que a razão sozinha não pode resolver; a “mulher estranha” torna-se imagem das especulações que fazem o coração girar sobre si mesmo, sem pouso, até que o caminho de volta parece inalcançável. À luz desse coro rabínico, a pergunta “por que te engrandeces...?” deixa de ser apenas um “por que te exaltas?” no plano da vaidade erótica, e se torna uma interpelação mais funda: por que te julgas forte o bastante para brincar com aquilo que a própria Tradição chama de força irrecuperável — seja o prazer ilícito, seja a heresia que esvazia a fé? O “desvario” de tišgeh ecoa o desvio do discípulo que abandona o caminho seguro de Torá para experimentar o sabor exótico da “estrangeira”, e os sábios leem essa escolha como uma troca de alianças: sair do abrigo da sabedoria e se colocar voluntariamente na órbita de um fascínio que tende a não devolver quem o abraça. Nessa chave rabínica, o pai de Provérbios ergue a voz como um mestre de beit midrash que, vendo o aluno fascinado por discursos sedutores e por uma liberdade sem limites, o chama de volta: “filho meu, por que te glorias de aproximar-te do que a tradição inteira assinala como ponto de não retorno?”. A retórica do versículo é de espanto e lamento: é como se a pergunta carregasse em si o choro contido de Midrash Mishlei 5, que vê a “mulher estranha” rondando os limites do povo da Aliança e sussurrando um convite que é, ao mesmo tempo, sedução sexual e desvio espiritual. Nesse cenário, o coração do discípulo é o campo em disputa, e a literatura rabínica insiste que não se trata de curiosidade inocente, mas de um flerte com forças que, uma vez acolhidas, tendem a reclamar a casa inteira. A pergunta do versículo corta como um protesto amoroso: por que negociar a tua identidade de filho com aquele que, por definição, não pertence à casa — seja a prostituta literal, seja a doutrina estranha que, com fala açucarada, esvazia a santidade da vida?

Aqui não fala um juiz impassível, fala um pai com a voz embargada. Esse “por que” não é de filósofo, é de pai que vê o filho caminhar para o precipício de mão dada com alguém que não o ama como ele deveria ser amado. “Estranha” é aquela que não pertence à casa, não partilha a aliança, não conhece o Deus que sustenta o casamento. No livro de Oséias, Deus chama Israel de esposa infiel porque corre atrás de outros deuses (Oseias 2:5), e a pergunta de Provérbios 5:20 é irmã da pergunta divina: por que trocar a fidelidade que te deu nome por um colo que te rouba a alma? Jesus radicaliza isso quando diz que “todo aquele que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração já adulterou com ela” (Mateus 5:28). A “estranha” pode ter rosto nas esquinas, nas telas, nas conversas secretas, nas memórias não confessadas; pode ser pessoa, imagem, fantasia, ideologia. O verbo hebraico traz a ideia de enlouquecer, de se deixar perder o equilíbrio. Em 5:19, a sabedoria havia mandado o filho “embriagar-se” no amor da esposa; agora pergunta: por que gastar essa mesma capacidade de arrebatamento com quem não é tua, com quem não te foi dada pelo Senhor? É como se o pai dissesse: se queres ser louco, sê louco na direção certa; perde a cabeça por quem Deus te entregou, não por quem te arrasta para longe dele. No Antigo Testamento, Esaú vende sua primogenitura por um prato de lentilhas (Gênesis 25:34); aqui o homem vende a própria aliança por uma noite, por um segredo, por um elogio. E o céu pergunta: “por quê?”, não porque precise da resposta, mas para que o filho se ouça e perceba que não há resposta que não seja vergonha. A graça, porém, está no “filho meu”: mesmo sujo, mesmo dividido, ele ainda é chamado de filho. O Deus que, em Lucas 15, deixa o pródigo ir, é o mesmo que corre quando ele volta. Este versículo é o grito antes da queda: por que te desvias com a estranha, se tens uma casa, um nome, um Pai e uma aliança?

E abraças o seio de uma mulher estranha? (Hb.: ûteḥabbēq ḥēq nokrîyâ — “e abraçarás o seio de uma mulher estrangeira?”). A segunda pergunta retoma o û (“e”) não apenas como ligação, mas como intensificação: é o segundo passo do mesmo desvio, agora descrito em termos físicos. O verbo teḥabbēq vem de ḥāvaq, “abraçar, apertar junto ao peito”, aqui no imperfeito piel 2ª pessoa masc. sing. — “tu abraçarás / tu te enlaçarás”; o piel sugere ação intensa, deliberada, não um tropeço involuntário, mas um gesto decidido de envolver o corpo da outra. O objeto é ḥēq, “seio, colo, regaço”, substantivo que indica aquela parte do corpo onde se acolhe alguém junto ao peito — filho, amigo, amante — e que em textos bíblicos se torna eufemismo para a intimidade sexual, o espaço onde o corpo do outro repousa. Em seguida, a expressão nokrîyâ (“mulher estrangeira”) retoma outra palavra técnica de Provérbios: nokrî designa o “forasteiro”, o de outra terra, outro povo, outra fé; no feminino, nokrîyâ aponta para alguém que, existencialmente, não pertence ao círculo da casa e da aliança, mesmo que esteja geograficamente próximo. Assim, a sequência zārâ / nokrîyâ reforça o caráter “não-pertencente” dessa mulher sob dois ângulos: ela é alheia e é de outro mundo. Sintaticamente, a pergunta ecoa e completa a anterior, mas agora desce da esfera da “loucura” ao gesto concreto: o pai não pergunta apenas “por que te desvias?”, mas “por que te deixas enlaçar no colo de quem é de fora?”. Exegeticamente, é como se o texto abrisse o coração do gesto: abraçar o seio é encenar, no corpo, uma intimidade que pertence por direito somente à esposa da mocidade, a “corça de amores” do versículo 19. O paralelismo com essa imagem é nítido: os seios da esposa são fonte de saciedade contínua; o seio da estranha é, por contraste, emboscada, promessa oca. A gramática poética liga, assim, o vocabulário do abraço e do colo à escolha de leito: o mesmo verbo de abraçar pode ser bênção (nos braços da esposa) ou ruína (no regaço da estranha), e a pergunta retórica força o filho a enxergar o segundo cenário como algo sem sentido à luz do primeiro.

A pergunta explode como um sobressalto depois da ternura nupcial dos versículos anteriores: quem já foi convidado a beber da própria cisterna e a alegrar-se na esposa da mocidade (Provérbios 5:15–19) sabe, agora, que qualquer fascínio por uma mulher “estranha” não é neutro, mas um desvio, uma embriaguez moral. O verbo tišgeh (“desviar-se”, “tresmalhar-se”) pinta o filho como uma ovelha que se deixa levar por pastagens enganosas, encantado com o brilho da novidade, mas sem perceber que caminha para o penhasco. A “estranha” (zārâ/nokrîyâ) não é apenas alguém de fora da família; é alguém de outro mundo espiritual, que sustenta um “outro” sistema de valores, antagônico à sabedoria do pai e à aliança do Senhor, como observa o comentário ao dizer que ela “segura um outro modo de ver o mundo, distinto da família do pai” (WALTKE, ibid., 2004, p. 438) . Dentro dessa moldura, a retórica do versículo é ao mesmo tempo lógica e afetiva: depois de descrever a esposa como “corça de amores e gazela de graça” (Provérbios 5:19), o pai pergunta, quase com espanto: se Deus já te deu uma fonte límpida, por que escolher um poço envenenado; se te concedeu braços que te esperam em fidelidade, por que abraçar um colo que te leva à ruína?

A imagem do “abraço” é densa: o verbo ûteḥabbēq sugere um enlace em que mãos e braços se fecham em torno do corpo do outro; o substantivo ḥēq (“seio”, “colo”) indica o lugar onde se acolhe um filho, um cordeiro, um cônjuge, o espaço de calor e pertença. O comentário nota que esse “dar-se ao seio” funciona, no Antigo Testamento, como eufemismo para relações sexuais, espaço íntimo em que se aninha tanto o filho quanto a amante (WALTKE, ibid., 2004) . A pergunta, então, não é apenas por que olhar, mas por que entregar o corpo inteiro — braços, tórax, respiração — a alguém que não te pertence e a quem tu não pertences em aliança. Nesse contraste, o pai desenha duas liturgias do corpo: a liturgia da fidelidade, em que cada gesto adensa a história de um casal diante de Deus, e a liturgia da infidelidade, em que os mesmos gestos se tornam paródias da aliança, encenação vazia de um amor que não tem promessa nem futuro.

Há ainda um jogo de ironia na tradução que verte o início como “por que te engrandeces?” em vez de “por que te desvias?”. O hebraico fala de errância, não de grandeza; e, no entanto, o movimento psicológico do adúltero costuma ser exatamente este: ele imagina estar se afirmando, experimentando, “vivendo intensamente”, quando, na verdade, está se diminuindo, vendendo caro sua liberdade por uma hora de prazer. A sabedoria joga com esse autoengano: tu chamas de autoafirmação aquilo que, na gramática de Deus, é apenas extravio. Assim, quando Waltke observa que o versículo completa um quadro em que a amante é o “líquido alternativo, nocivo e intoxicante” que substitui a água pura do próprio poço (WALTKE, ibid., 2004) , ele está descrevendo esse falso engrandecimento: a alma chama de liberdade aquilo que, afinal, é apenas trocar vinho pela poça lamacenta de um beco escuro.

Num pano de fundo histórico-sociocultural, a pergunta “por que?” pressiona também a consciência social do filho. Em Israel, adultério não era apenas um pecado privado, mas um crime contra a comunidade, que podia ser punido com a morte (Levítico 20:10; Deuteronômio 22:22). O mesmo comentário lembra que, enquanto a prostituição, embora detestável, não era em si pena capital, o adultério feria a aliança do povo com Deus e exigia, em princípio, a eliminação dos culpados, justamente porque contaminava a terra e ameaçava o vínculo dos justos com o Senhor (WALTKE, ibid., p. 340). Quando o pai pergunta “por que?”, ele está evocando esse horizonte: por que escolher um caminho que, mais cedo ou mais tarde, faz o corpo cair debaixo da pedra da justiça divina ou humana? A pergunta não é puramente moralista; é uma tentativa de acordar o filho para o custo existencial e social da sua fantasia.

Aqui o versículo se levanta como o fecho histórico-existencial de todo o discurso de Provérbios 5: o pai não está falando no vácuo, mas dentro de um mundo concreto, de casas pequenas e pátios compartilhados, de famílias que vivem lado a lado em vilas densas, onde a intimidade conjugal é tesouro raro e o corpo do outro é, ao mesmo tempo, dom e fronteira. O capítulo inteiro é um “sermão” cuidadosamente arquitetado, abrindo com o perigo da mulher “estranha” e concluindo com a alternativa da alegria conjugal, num movimento que alterna o negativo (sexo proibido e suas consequências) e o positivo (sexo permitido, celebrado no casamento). A própria estrutura retórica de todo o bloco 5:1–23, como observa Fox, gira em torno de palavras-tema: zārāh (“estranha”) marca a abertura e o fecho, enquanto o verbo šāgâ (“desviar-se”, “embriagar-se”) é trabalhado para descrever diferentes modos de “perder-se” — seja na alegria legítima da esposa, seja na perdição com a adúltera (FOX, Proverbs 1–9, 2000, pp. 132–135).

Neste cenário, o chamado “filho” não é apenas um adolescente ainda solteiro, mas também — pelo menos em parte — um homem já casado, ou às portas do casamento, que vive num mundo em que a sexualidade está profundamente amarrada à honra da casa e à estabilidade econômica do clã. O mesmo discurso que convida à fruição do amor da “mulher da tua mocidade” nos versículos anteriores (“seja bendita a tua fonte e alegra-te com a mulher da tua mocidade”, Provérbios 5:18; “os seus seios te saciem em todo tempo; embriaga-te sempre com o seu amor”, Provérbios 5:19) ecoa imediatamente no versículo 20 para perguntar por que esse mesmo homem iria, agora, entregar o seu corpo e o seu nome a uma mulher que não lhe pertence. A tensão entre um “filho” ainda aprendendo e um homem que já deveria estar estabelecido no casamento não é acidental: o livro de Provérbios faz do aluno um sujeito liminar, ao mesmo tempo aprendiz e responsável, alguém que precisa ouvir advertências típicas de jovens, mas já responde, socialmente, por suas alianças e pelo uso do seu corpo (FOX, Proverbs 1–9, 2000, pp. 132–135).

Dentro desse horizonte, a “estranha” não é, em primeiro lugar, uma figura exótica de terras distantes, mas uma mulher socialmente “de fora” em relação ao círculo do filho. A dupla terminologia zārāh / nokrîyāh aponta tanto para um estatuto de alteridade quanto para um vínculo já assumido com outro homem. Ela é “estranha” porque não é a esposa do aluno; é “estrangeira” porque pertence a outro domínio, a outro “seio”, a outra casa. Fox insiste que esta mulher é, em termos realistas, uma mulher casada que se entrega a relações ilícitas; a sua estranheza não é mística, mas social: ela é “de outro”, e é o fato de ser “de outro” que transforma o encontro em adultério (FOX, Proverbs 1–9, 2000, pp. 132–135). Esse ponto é decisivo para a rodada histórico-sociocultural: o texto não está descrevendo uma prostituta cultual em um templo distante, nem uma alegoria abstrata do pecado, mas uma mulher concreta, inserida numa malha de relações familiares, cujo corpo é parte de alianças e heranças.

O “seio” que o versículo menciona é mais do que um detalhe erótico: no mundo bíblico, o ḥēq é imagem da intimidade máxima, lugar do acolhimento e da pertença. A Torá fala da “mulher do teu seio” como aquela que ocupa o espaço mais próximo de ti, tanto no afeto quanto no pacto (Deuteronômio 13:6), e o salmista descreve o “seio” como o colo onde se embalam os filhos ou se guardam os tesouros. Abraçar o “seio” de uma mulher “estranha” significa, portanto, invadir um espaço que não é teu, colocar-se no lugar de outro marido, penetrar no recinto simbólico de outra casa. Numa sociedade em que o casamento é, ao mesmo tempo, vínculo afetivo e eixo econômico — envolvendo dotes, terras e descendência — o adultério não é apenas uma falha moral privada, mas uma agressão à estrutura de propriedade e de herança da comunidade. A pergunta “por que…?” leva o filho a confrontar o absurdo histórico de desestabilizar o tecido da aldeia por alguns instantes de prazer furtivo (FOX, Proverbs 1–9, 2000, pp. 135–138).

Ao mesmo tempo, o texto deixa claro que o perigo não se reduz ao impulso sexual. A palavra escolhida para o desvio do filho, tišgeh, ecoa a ideia de estar “embriagado”, “enfeitiçado”, “perdido”, e o capítulo já tinha usado a mesma raiz para dizer que o homem deve “embriagar-se” no amor da própria esposa (Provérbios 5:19). O jogo retórico é agudo: a mesma energia de encantamento que deveria ser derramada no vínculo legítimo é agora desperdiçada numa relação que corrompe. Estudos modernos sublinham que a sedução da mulher “estranha” não funciona apenas pelo apelo do corpo, mas também pelo apelo ao ego masculino: ela lisonjeia, faz o homem sentir-se desejável, poderoso, capaz de transgredir as fronteiras que os outros respeitam. Nesta chave, o comentário de Fox sobre a raiz šāgâ e sobre a “licentious woman” que conduz à perda de si mesmo reforça que a embriaguez aqui descrita é moral, não apenas sensorial (FOX, Proverbs 1–9, 2000, pp. 132–135).

No horizonte sociocultural da época, um homem que “se engrandece” com uma estranha pode sentir, por um momento, que afirma a própria virilidade; mas o texto desmonta esse engano, mostrando que, na prática, ele só se torna pequeno, vulnerável, exposto ao juízo divino e ao escárnio público. O pai que fala em Provérbios 5 conhece muito bem o jogo de forças entre o interior da casa e o espaço da rua. A mulher “estranha” é, em larga medida, uma figura de rua: aparece nas esquinas, nas praças, circula onde os jovens passam, como se vê também em Provérbios 7. A esposa, ao contrário, é figura de interior, de fonte, de poço, de leito. Num mundo em que a distinção entre dentro e fora marca a honra, o versículo 20 é uma convocação para que o filho escolha o seu lugar: ou permanece no círculo da fonte, das águas suas, do seio da esposa; ou se lança na rua, em abraços que não lhe pertencem, abraçando, na verdade, a própria ruína (FOX, ibid., p. 155).

Pesquisas sobre o motivo feminino em Provérbios 1–9 mostram como esse contraste é central: cerca de metade do espaço desses capítulos é ocupado por figuras femininas, positivas e negativas, e o capítulo 5, em particular, é quase totalmente dominado pelo tema da mulher sedutora contra a alegria conjugal, com a porcentagem de versos ligados a essa figura chegando a mais de noventa por cento. Isso significa que, sociologicamente, o livro de Provérbios está usando a problemática da sexualidade para encarnar, no nível mais sensível da vida cotidiana, a grande disputa entre sabedoria e insensatez, exatamente como Fox descreve a “Strange Woman” como tipo feminino negativo em contraposição à esposa e à Senhora Sabedoria (FOX, ibid., pp. 176–179).

Não é por acaso que a tradição posterior, em Qumran, vai reler a “estranha” de Provérbios como uma figura simbólica do mal, como vemos em 4Q184, onde a mulher sedutora encarna a maldade estrutural que desvia os justos. Essa releitura apocalíptica só foi possível porque, já no texto antigo, a personagem é mais do que um indivíduo isolado: ela representa um modo de vida que rompe alianças, mina casas, transforma leitos em armas. Porém, Fox adverte com razão contra reduzir a mulher apenas a símbolo: antes de ser metáfora da impiedade, ela é uma pessoa de carne e osso, que responde por suas escolhas e cujas ações têm efeitos jurídicos, econômicos e religiosos dentro de uma comunidade concreta (FOX, ibid., pp. 176–179).

A segunda rodada do olhar, portanto, precisa manter os dois planos: a mulher como personagem social, inscrita em relações de poder, e a mulher como figura pedagógica que encarna o caminho da tolice. O versículo toca, ainda, numa ferida sensível da cultura patriarcal: a assimetria entre a liberdade de movimento do homem e a vulnerabilidade da mulher. A “estranha” depende, em parte, da circulação masculina; é o homem que atravessa a noite, que se aproxima da sua porta, que entra em sua casa. O texto não absolve a mulher — pelo contrário, ela é retratada como agente ativa na sedução ao longo do capítulo — mas não permite que o homem se veja como vítima inocente. A pergunta “por que…?” desloca o foco: a responsabilidade não está no poder de sedução dela, mas na decisão dele de abraçar o seio que não é seu.

No mundo israelita, esse abraço ilícito coloca ambos sob o risco de sanções severas, que vão desde a desonra e a perda de bens até, em contextos legais mais rígidos, a pena de morte (Levítico 20:10; Deuteronômio 22:22). Historicamente, portanto, o adultério não era uma “aventura amorosa”, mas um crime contra a casa alheia, e o pai apela à consciência do filho lembrando-lhe o custo social de um gesto que talvez pareça, num primeiro momento, revestido de glória viril. Ao ecoar o verbo šāgâ (“desviar-se”, “embriagar-se”) dos versículos anteriores, o versículo 20 coloca frente a frente duas embriaguezes possíveis: a embriaguez da fidelidade e a embriaguez da traição. No plano sociocultural, isso significa que o livro de Provérbios não demoniza o desejo, mas o situa. A alegria erótica dentro do casamento é vista como força que consolida a casa, reforça alianças, gera descendência legítima; o mesmo desejo, quando deslocado para o “seio” da estranha, transforma-se em dinamite colocada na base da comunidade (FOX, ibid., pp. 135–138, 176–179).

E é significativo que a tradição cristã, ao retomar o tema da sexualidade, siga uma linha semelhante: quando Paulo pergunta aos coríntios como podem unir os membros de Cristo a uma prostituta (“Tomarei eu os membros de Cristo e os farei membros de uma prostituta?”, 1 Coríntios 6:15), ele ecoa, em chave cristológica, a mesma perplexidade de Provérbios 5:20. O escândalo não está apenas no ato físico, mas no absurdo de profanar um corpo que já está vinculado a outro. Lido nesse horizonte, o versículo torna-se um espelho incômodo para qualquer época. O mundo mudou — não vivemos mais em aldeias muradas, nem em clãs agrícolas —, mas a lógica de “estranheza” permanece: há pessoas, telas, corpos, abraços que não nos pertencem, e a cultura continua a vender a ilusão de que “engrandece” aquele que transgride, aquele que se prova desejável em muitos braços.

A antiga pergunta, porém, esvazia essa vanglória: “por que te engrandeces…?”, por que chamar de grande aquilo que, na realidade, encolhe a alma, fragiliza a casa, rompe laços e nos arranca do lugar onde deveríamos estar? Historicamente, Provérbios 5:20 nasce no cruzamento de famílias, leitos e alianças; socioculturalmente, ele expõe o adultério como gesto que não cabe na economia da sabedoria. O pai fala ao filho, mas fala também ao homem já feito, ao leitor de qualquer tempo: na encruzilhada entre a esposa e a estranha, entre o seio que é pacto e o seio que é invasão, a escolha nunca é apenas privada; é sempre uma escolha de mundo, uma opção por que tipo de comunidade se quer habitar e por que tipo de honra se deseja carregar no próprio corpo.

A imagem se intensifica: já não é apenas “desviar-se” em direção à estranha, mas envolver-se com ela no gesto mais íntimo, abraçar o seu colo. A literatura rabínica, ao ler o capítulo como unidade, põe essa pergunta em contraste com o convite positivo do mesmo contexto: “Bebe a água da tua própria cisterna, e as correntes do teu próprio poço” (Provérbios 5:15). Em Midrash Mishlei 5:15, preservado na edição de Buber, essa metáfora da água é tomada como retrato do estudo da Torá: “Se um homem quiser aprender Torá, não diga ‘aprenderei do distante e depois do próximo’; antes, aprenda do próximo e depois do distante”, de modo que a “tua cisterna” seja a porção da Torá e o mestre que Deus te deu, e não uma fonte qualquer, anônima, lá fora (Texto hebraico em Buber). Avot deRabbi Natan retoma esse mesmo versículo para aconselhar o discípulo a buscar primeiro um mestre próximo, fiel, e só então ampliar o círculo, pois “bebe água da tua cisterna” se torna uma parábola sobre manter-se enraizado em um campo de verdade, em vez de saltar de um “poço” a outro por mera curiosidade (Avot de Rabbi Natan 3). Lido à luz desse entrelaçamento, “abraçar o seio da estranha” é o reverso sombrio de “beber da tua cisterna”: é entregar intimidade, tempo, imaginação e afeto a uma fonte que não te pertence — seja uma relação sexual que rompe a aliança matrimonial, seja um magistério espiritual que não nasce da Torá, mas de campos estrangeiros. O Talmud, ao identificar a “mulher estranha” de Provérbios 2:19 com a heresia, sugere que esse abraço ao “seio” da estrangeira é, em nível simbólico, um acolhimento caloroso daquilo que mina por dentro a fidelidade a Deus, até tornar o retorno dolorosamente improvável (Avodah Zarah 17a). O seio, lugar de consolo e nutrição, torna-se aqui metáfora de uma nutrição envenenada: a alma passa a alimentar-se de discursos e práticas que parecem confortar, mas que destroem o vínculo com a sabedoria do Altíssimo. Nas leituras rabínicas que aproximam sexualidade ilícita e culto idólatra, o corpo da “mulher estranha” funciona como ícone de toda forma de prazer que se oferece como substituto da intimidade com Deus; abraçar seu seio é talhar um novo altar no próprio peito, onde se queimam incensos a um outro senhor. E, como lembram as derashot que veem em Provérbios 5 uma pedagogia sobre o estudo da Torá, cada abraço dado a essa “mãe estrangeira” é um abraço que deixa de ser dado à “mãe” legítima, a Torá que amamenta Israel com a sabedoria de Deus (Proverbs 5 com Midrash). A pergunta, portanto, é pintada em cores de ciúme santo: por que colar o teu peito ao de quem não te gerou, de quem não te fez povo, quando o colo da tua própria Aliança continua estendido? À luz da literatura rabínica, o versículo mostra que ninguém abraça o seio da “mulher estranha” de forma neutra: quem a acolhe ao nível do colo — lugar de repouso e pertencimento — consentiu em fazer morada em terra alheia. O pai de Provérbios, ecoando a voz dos sábios, interpela o leitor como um mestre que vê o aluno trocar o beit midrash por outras salas cheias de luzes brilhantes, mas sem Torá: “por que, filho, emprestas o calor do teu peito ao ensino que não é o teu, à intimidade que te afasta da casa?”. Nessa terceira tessitura, o versículo deixa de ser só um aviso moral contra o adultério e se torna uma parábola sobre fidelidade de estudo, de culto e de coração: ou abraçamos o seio da Sabedoria que Deus nos deu, ou, inevitavelmente, iremos deitar a cabeça no colo de uma “estranha”, cuja ternura inicial esconde um exílio prolongado da vida verdadeira.)

O versículo coloca o leitor diante do espelho. Cada vez que o coração flerta com a “estranha” — que, em nossa cultura, pode assumir a forma de uma tela, de um chat, de um romance clandestino — a mesma pergunta ressoa: se já tens uma fonte em casa, por que mendigar água em portas alheias? Se o Senhor decidiu ligar prazer e compromisso, por que aceitar a caricatura de um prazer sem promessa? A imagem do “abraço” ajuda aqui: o corpo não abraça sozinho; ele é arrastado por um coração que já se abraçou interiormente com uma possibilidade, que já ensaiou o gesto no teatro da imaginação. O versículo, então, convida a quebrar o abraço no nível da fantasia, a desfazer o enlace antes que os braços se cruzem de fato. A poesia da sabedoria é, ao mesmo tempo, um freio e uma promessa: se houver renúncia à “estranha”, não se perde o amor, apenas se devolve o corpo ao abraço para o qual ele foi criado.

Se na primeira linha o pai vê o caminho, aqui ele desce ao gesto. “Abraçar o seio” é a imagem mais concreta da intimidade; não é apenas desejo, é o corpo inteiro dizendo “eu me dou”, ainda que mentindo, porque não pretende dar nada além daquele instante. O texto não pergunta: “e tocarás?”, mas “abraçarás”: envolverás, acolherás junto ao peito, farás do teu peito travesseiro daquilo que Deus te mandou evitar. Paulo, ao tratar da prostituição, pergunta algo semelhante: “Ou não sabeis que o que se une à prostituta faz-se um corpo com ela? Porque, como se diz, serão os dois uma só carne” (1 Coríntios 6:16). O abraço não é neutro; o corpo não é ferramenta descartável. O seio que tu abraças fora da aliança é altar estranho em que ofereces o teu próprio coração em sacrifício. Em Cântico dos Cânticos, os braços e o peito são território sagrado da amada: “o seu estandarte sobre mim era o amor” (Cânticos 2:4); aqui, o Eterno pergunta por que usas esse mesmo símbolo — o abraço, o peito, o calor — para selar um pacto que Ele jamais reconheceu. Cada toque fora do lugar é um versículo reescrito de Gênesis 2:24: “se unirá a sua mulher, e serão ambos uma só carne”. No adultério, tu te unes sem te dares; fazes uma só carne sem quereres ser um só destino, um só Deus, uma só história. Por isso a Escritura não chama isso de romance, chama de “seio de uma estranha”. Em tempos em que o corpo é mercadoria e o abraço é moeda de troca, este versículo é contracultural: ele insiste que o peito humano é tabernáculo, não balcão; que o toque que Deus abençoa é o que se faz sob juramento, não o que se busca no intervalo das mentiras. E, no entanto, mesmo quando essa pergunta nos acusa, ela ainda é convite: enquanto Deus ainda pergunta, ainda há tempo de tirar os braços de onde não deviam estar e dobrá-los de novo no altar do arrependimento.

Provérbios 5:21

Porque diante dos olhos do Senhor estão os caminhos de cada um... (Hb.: kî nēgēd ʿênê YHWH darkê ʾîš — “porque diante dos olhos do Senhor estão os caminhos de um homem”). A conjunção (“porque”) introduz a base teológica de tudo o que foi dito: por trás dos apelos afetivos e das advertências prudenciais, está esta razão última. A locução nēgēd ʿênê YHWH une nēgēd (“diante, em frente, diretamente à vista”) com ʿênê (“olhos”), e compõe a imagem de algo que está permanentemente “no campo visual” do Senhor; não é um olhar lateral ou distraído, mas foco direto. O nome divino YHWH insere o Deus da aliança — o mesmo que exige fidelidade no casamento como sinal de fidelidade a Ele — no centro da cena. O sintagma seguinte, darkê ʾîš, traz derek (“caminho”) no plural construto, “os caminhos”, ligado a ʾîš (“homem”), aqui em sentido genérico, “a pessoa, o ser humano”: são as trajetórias de vida, os percursos, os modos habituais de agir. Do ponto de vista sintático, essa primeira cláusula é uma afirmação universal: não diz “os caminhos do adúltero”, mas “os caminhos do homem”, qualquer homem. O versículo retira o tema do adultério do gueto moral e o coloca dentro de uma visão mais ampla: todos os caminhos humanos — inclusive, mas não apenas, os da sexualidade — estão expostos ao olhar avaliador de YHWH. A metáfora do “caminho”, que percorre Provérbios inteiro, aqui se densifica: cada escolha que parecia apenas “um caso”, “um encontro”, “um deslize” é, na verdade, um passo em uma trilha que corre permanentemente diante dos olhos de Deus. E a combinação de nēgēd com ʿênê sugere que não há zonas de sombra, nem espaços de anonimato moral: mesmo o abraço clandestino no seio da estranha acontece, na gramática hebraica, “bem na frente” dos olhos do Senhor.

A literatura rabínica lê essa frase como um golpe direto contra a ilusão de anonimato do pecador. O Midrash Mishlei sobre este versículo adverte: não diga “irei e cometerei uma transgressão, pois o Santo, bendito seja Ele, não a vê, porque Ele está nos céus e eu na terra”; ainda assim, “nokhaḥ ʿênê YHWH darkê ʾîš” (“diante dos olhos do Senhor estão os caminhos do homem”) — nada do que se passa nas trilhas secretas do desejo escapa ao olhar divino. Essa leitura midráshica se encaixa exatamente no contexto de Provérbios 5: o jovem que se imagina escondido, envolto na penumbra dos encontros ilícitos, é puxado de volta à luz de um olhar que o cerca por todos os lados. Comentários rabínicos posteriores, ao discorrerem sobre este versículo, deixam claro que “darkê ʾîš” (darkê — “caminhos”; ʾîš — “homem”) não são apenas atos externos, mas a rota inteira da pessoa, com suas intenções, hesitações e pretextos, tudo exposto como se estivesse em plena praça pública. A exegese tradicional nota que o verbo “estar diante” (nokhaḥ) cria a imagem de alguém constantemente colocado face a face com Deus: o homem caminha, mas o seu percurso inteiro permanece como que suspenso diante dos olhos do Altíssimo, que não se deixam distrair pela distância entre céu e terra.

A mesma linha é reforçada quando coleções rabínicas ligam este versículo ao famoso ensino de Pirkei Avot 2:1: “Sabe o que há acima de ti: um olho que vê, um ouvido que ouve, e todos os teus atos estão escritos num livro” (“da ma lemaʿalah mimmecha: ʿayin roʾeh, weʾozen shomaʿat, wekhol maʿasekha basefer nikhtavim”). A tradição homilética lê Provérbios 5:21 como o fundamento bíblico dessa máxima: se “diante dos olhos do Senhor” estão os “caminhos de cada um”, a vida inteira se converte numa espécie de manuscrito vivo, continuamente escrito sob a vigilância desse olhar. A advertência contra a mulher estranha em Provérbios 5, então, se transforma numa pedagogia da consciência: mesmo quando nenhum ser humano observa, o discípulo é chamado a viver como se estivesse de pé diante do trono, porque, de fato, está.

Os mestres da ética judaica ampliam essa imagem em direções inesperadas. O tratado Chagigá 16a, partindo exatamente do perigo de alguém dizer “já que ajo em segredo, quem testemunhará contra mim?”, responde: as pedras da casa e as vigas do teto testemunharão; a própria alma testemunhará; os membros do corpo testemunharão. Quando esse ensino é lido à luz de Provérbios 5:21, o quadro se adensa: não apenas os caminhos visíveis do homem, mas o espaço em que ele se enclausura para pecar — o quarto, a casa, o corpo — se tornam palco de testemunho. Aquilo que ele julgava parede opaca torna-se vitral translúcido diante de Deus. Assim, a promessa enganosa da mulher estranha (“ninguém nos verá”) é desmascarada como fantasia: o ambiente inteiro participa como testemunha do ato, porque o olhar divino envolve todas as coisas e convoca a criação a testemunhar.

Outra vertente rabínica, representada, por exemplo, no Menorat HaMaor, aproxima Provérbios 5:21 de Provérbios 15:3: “Em todo lugar estão os olhos do Senhor, vigiando os maus e os bons”. A partir dessa justaposição, o autor conclui que a consciência de estar sempre “diante dos olhos do Senhor” deve despertar no homem um pudor profundo: o corpo não é abandonado à exposição descuidada, pois a Shekhinah, a presença divina, paira sobre ele como testemunha silenciosa. A advertência contra a prostituta, portanto, não se limita ao momento do ato, mas se estende ao modo como o discípulo se porta em sua própria carne, lembrando que até as zonas que ele considera íntimas são vividas perante um olhar mais íntimo do que ele mesmo. Em chave sapiencial, “darkê ʾîš” se torna tudo aquilo que o homem faz “com o corpo” e “no corpo”, e a literatura rabínica insiste: não há território corporal que possa ser declarado neutro ou invisível, porque o próprio corpo é lugar de encontro (ou de ruptura) com o Deus que vê.

Por fim, alguns comentários tradicionais, como os reunidos em coleções de exegese clássica (por exemplo, Rashi e Ralbag), insistem que essa presença visual de Deus implica também um juízo contínuo: o olhar divino não é olhar frio de câmera de vigilância, mas olhar que pesa, discerne e avalia cada trilha interior e exterior, preparando já no presente o fruto futuro das escolhas. Lida nessa chave rabínica, a frase “porque diante dos olhos do Senhor estão os caminhos de cada um” não é mera ameaça, mas convite à lucidez: o jovem é chamado a caminhar como quem sabe que cada passo é observado por um Juiz que também é Pai, que vê a tentação e a luta, o desvio e o arrependimento, e que transformará esse conjunto de passos numa história coerente de salvação ou de ruína.

Aqui a cena muda: sai o quarto escuro, entra o olhar que tudo atravessa. Os “caminhos” são mais do que trajetos externos; são as linhas de intenção, as rotas secretas, os atalhos do coração. Salmos 139 canta: “Tu conheces o meu assentar e o meu levantar; de longe entendes o meu pensamento... e são conhecidas todas as minhas veredas” (Salmos 139:2–3). E Hebreus 4:13 ecoa: “e não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas”. O adultério se alimenta da ilusão do anonimato: hotéis, conversas apagadas, perfis ocultos, histórias contadas “só para os íntimos”. O texto rasga esse véu: “diante dos olhos do Senhor” não é metáfora piedosa, é realidade nua. Cada caminho — o da casa, o da rua, o do navegador, o da imaginação — está sempre sobre a mesa do olhar divino. Isso não é apenas ameaça, é também consolo: nada do que fazes em fidelidade, nada do que suportas em silêncio, nenhuma luta honesta contra o pecado, nenhum “não” dito com lágrimas, passa despercebido. Quando José foge da mulher de Potifar dizendo “como, pois, cometeria eu tamanha maldade e pecaria contra Deus?” (Gênesis 39:9), ele está justamente se lembrando deste versículo: diante dos olhos do Senhor estão os caminhos de cada um. Não é só a cama alheia que Ele vê; Ele vê também o quarto em que tu, sozinho, decides honrá-lo. O mesmo Deus que observa o adultério no escuro é o que vê a fidelidade na solidão. O olhar que pesa é o mesmo olhar que guarda.

A tragédia aqui não é apenas morrer, todos morremos; é morrer “sem mûsār”, isto é, sem ter deixado que a correção de Deus nos educasse. No próprio capítulo, o homem lamenta: “como aborreci a instrução, e desprezou o meu coração a repreensão!” (Provérbios 5:12). Oseias 4:6 põe na boca de Deus um lamento parecido: “O meu povo é destruído, porque lhe falta o conhecimento”. Não se trata de falta de informação, mas de falta de ouvido. Quantos sermões, quantas conversas, quantos avisos, quantas lágrimas ele ignorou até chegar aqui? Provérbios 1:24–26 diz que a Sabedoria clamou, estendeu a mão, e eles não quiseram; por isso, quando vier o dia da angústia, ela já não responderá. No Novo Testamento, Paulo fala de uma geração que “não acolheu o amor da verdade para ser salva” (2 Tessalonicenses 2:10). A morte deste homem é o selo dessa recusa: não quis aprender enquanto havia tempo. É possível atravessar a vida inteira em bancos de igreja e, mesmo assim, morrer “sem instrução”, porque a Palavra nunca passou do ouvido ao osso, da mente à prática. Este versículo é um alerta para quem coleciona aulas, livros, podcasts, mas foge da disciplina concreta: de confessar, de pedir ajuda, de cortar o mal que ainda lhe é doce. O evangelho oferece uma outra morte: “fostes sepultados com ele no batismo” (Colossenses 2:12). Aquele que morre com Cristo, morre com instrução, morre já sabendo que a velha vida foi crucificada; o que morre sem Cristo, morre abraçado às cordas que se recusou a entregar.

...e na abundância da sua loucura se engrandece a si mesmo! (Hb.: ûbĕrōb ʾiwaltô yišgeh — “e na abundância da sua loucura se desvia/enlouquece”). A ironia é amarga: ele morre sem instrução, mas não sem opinião; perece, mas perece cheio de si. “Abundância de loucura” é um mundo interior saturado de justificativas, sofismas, narrativas em que ele é sempre vítima ou herói. Romanos 1:22 fala de gente que, “dizendo-se sábios, tornaram-se loucos”. É isso: a loucura aqui não é falta de QI, é excesso de autoconfiança. Enquanto Deus chama, ele responde com risos; enquanto a consciência fala, ele aumenta o volume da festa. E quanto mais se aproxima da ruína, mais insiste: “eu sei o que estou fazendo”, “comigo é diferente”. Em 5:19, a sabedoria convidara o homem a “embriagar-se” no amor da esposa; aqui, ele se embriaga em sua própria loucura, como quem bebe da própria arrogância até cambalear. O Novo Testamento descreve uma geração “amante de si mesma” (2 Timóteo 3:2); este homem é ícone desse tempo, mas foi desenhado séculos antes. Ele se “engradece” na loucura: se acha mais esperto do que os pais, do que a esposa, do que a igreja, do que a Escritura. No fim, porém, o texto não diz que ele vence; diz que ele morre. A grandeza que ele buscou era inflar-se como sapo diante do oceano de Deus; um dia, o sopro orgulhoso se desfaz, e a alma vê, tarde, que não era mar, era gota. A graça, para quem ainda lê estes versículos em vida, é perceber isso antes: admitir que a “abundância” do nosso juízo é, na verdade, miséria; que as histórias em que nos pintamos como protagonistas absolutos são máscaras de quem tem medo de ouvir “filho meu, por que te desvias?”. O Cristo que entrou em Jerusalém humilde, montado num jumentinho (Mateus 21:5), mostra o caminho oposto: ao invés de se engrandecer na própria loucura, esvaziou-se (Filipenses 2:7). Quem o segue desata, uma a uma, as cordas, abre mão das estranhas, volta à esposa, volta à casa, volta ao Pai, e aprende, enfim, a morrer antes de morrer, para que, quando a morte chegar, não o encontre embriagado de si, mas sóbrio na graça daquele que conhece todos os seus caminhos e, ainda assim, o chama de filho.

...e ele contempla todas as suas veredas. (Hb.: wĕkol-maʿgĕlōtāyw mĕpallēs — “e todas as suas trilhas ele pesa/examina”). A conjunção (“e”) liga esta metade à anterior, aprofundando a ideia: não só os caminhos estão diante dos olhos do Senhor, como Ele também os avalia. O sintagma kol-maʿgĕlōtāyw une kol (“todas”) a maʿgāl (“trilha, carreiro, rota circular, vereda”), aqui no plural com sufixo de 3ª pessoa masc. sing. (“suas veredas”). Se derek designa o grande caminho, a rota global, maʿgāl foca nas trilhas menores, nas pegadas concretas do dia a dia, nos movimentos repetidos que vão sulcando a terra — as pequenas escolhas, os trajetos secretos. O verbo mĕpallēs vem de pālas, cujo campo semântico inclui “pesar, avaliar, tornar reto, nivelar”; na forma piel participial/imperfetal aqui, ele significa algo como “está constantemente avaliando, ponderando, medindo”. A forma verbal sugere ação habitual, contínua: não é uma inspeção ocasional, mas uma balança sempre ativa. Sintaticamente, essa cláusula funciona como coordenação explicativa da anterior: o que significa estarem os caminhos diante dos olhos do Senhor? Significa que cada trilha, cada rodeio, cada passo é pesado por Ele. O versículo desenha um universo moral em que não existe “detalhe neutro”: o ir e vir do homem — onde entra, de quem se aproxima, a quem abraça — está sob um juízo silencioso e constante. A imagem das “veredas” também ecoa o capítulo: logo antes, as veredas da mulher estranha descem ao Sheol e são trilhas que ela mesma “não conhece” (Provérbios 5:5–6); aqui, ao dizer que todas as veredas do homem são pesadas, o texto corrige a ilusão da clandestinidade: a amante pode não perceber para onde vão seus passos, mas o Senhor sabe. A gramática da frase, com kol (“todas”) reforçando o alcance total e mĕpallēs exprimindo a ação avaliadora de Deus, costura o tema do adultério à teologia da retribuição sábia: o pecado não é apenas visto, é medido, e o caminho escolhido traz em si mesmo, na própria estrutura, as sementes da colheita futura.

Se o versículo anterior se dirige ao afeto (“por que?”), este desce ao fundamento: “porque”. O pai não se contenta com razões utilitárias — evitar doenças, preservar reputações, proteger patrimônios —; ele ainda diz, ecoando o comentário, que “por trás de todos os argumentos utilitários há, em última análise, uma razão religiosa: o Senhor onisciente sustenta uma ordem moral na qual o pecado traz consigo mesmo o castigo; a pessoa colhe o que semeia” (WALTKE, ibid., 2004, p. 439) . A fidelidade conjugal não é apenas uma boa estratégia de vida; é uma forma de alinhar os passos com uma ordem invisível em que o olhar de Deus acompanha cada trilha, e em que cada semente moral, boa ou má, encontra o seu fruto.

O vocábulo darkê ʼîš (“os caminhos de um homem”) amplia o alcance: não se trata mais só do adúltero, mas de “cada um”, de todos os caminhos, como o próprio comentário ressalta ao notar que a expressão expande o ensino a cada indivíduo, enquanto o “todas” do segundo hemistíquio estende a vigilância a todo tipo de comportamento. A metáfora é de estrada: o homem escolhe uma rota, traça seu itinerário, pisa uma sucessão de passos que, juntos, formam “caminhos”. Mas, no vocabulário de Provérbios, esse léxico é carregado de densidade existencial: caminhos são estilos de vida, projetos, hábitos repetidos que formam sulcos na alma e no mundo.

A palavra nōkaḥ (“diante”, “bem no foco”) diz que esses caminhos não correm nas periferias da percepção divina; estão diretamente “em frente” dos olhos do Senhor. O olhar de Deus não é o de um fiscal burocrático, mas o de uma presença que envolve o andar inteiro da criatura. O comentário indica que essa metonímia, “diante dos olhos”, significa tanto presença quanto avaliação, juízo: o mesmo Deus que está presente observa e pesa. Aqui entra a segunda imagem: mĕpallēs, “ele pondera, ele examina”, verbo que descreve a ação constante de Deus, como se o caminho humano fosse posto numa balança em movimento, cada passo sendo aferido em tempo real. A expressão “todas as suas veredas” (kol-maʿgĕlōtāyw) retoma o vocabulário das trilhas da adúltera em Provérbios 5:6, e, com isso, fecha um arco: o jovem acha que certas escapadas acontecem “no escuro” (cf. Provérbios 7:9–10), mas, na realidade, essas trilhas secretas são precisamente aquelas sobre as quais a atenção de Deus mais repousa.

Essa onisciência não é uma curiosidade fria; ela se integra ao tecido de um universo moral onde causa e consequência são entrelaçadas. O mesmo trecho lembra que, para o sábio, não há tensão entre o Senhor que sustenta a ordem moral e a própria ordem de ato e consequência; é no próprio caminho que o pecador encontra, por assim dizer, o seu castigo, como alguém enredado por cordas que ele mesmo desenrolou (WALTKE, ibid., 2004). É por isso que o texto acumula referências bíblicas àquele que vê tudo: o Deus cujos olhos percorrem toda a terra (2 Crônicas 16:9), que vê os passos humanos (Jó 34:21), que observa do céu o coração dos mortais (Salmos 33:13–15), que pesa as obras em Provérbios 15:3; 24:12 e que, em Jeremias 16:17; 32:19, declara ter diante de si todos os caminhos dos filhos de Adão. O filho é colocado dentro dessa nuvem de testemunhas: não existe “motéis espirituais” fora do radar divino.

Numa leitura devocional, esse versículo transforma a paranoia em descanso. Para quem quer furtar-se à luz, o fato de que todos os caminhos estão diante de Deus é ameaça; para quem luta por fidelidade, é consolo: ninguém anda sozinho, e nenhum esforço secreto de santidade é esquecido. Há algo de profundamente pastoral na forma como o comentário, ao falar desse texto e de outros afins, sugere que o ato de “percorrer nossos próprios caminhos” à luz desse olhar é a melhor escola de autoconhecimento; aquilo que parece apenas vigilância externa torna-se, pela graça, espelho curador da alma. A consciência de que Deus acompanha cada vereda não serve apenas para amedrontar o filho quando pensa em abraçar o seio de uma estranha; ela o chama, sobretudo, a viver seus passos ordinários — o olhar, o clique, a conversa, o deslocamento pela cidade — como quem caminha sob um céu atento, onde nada é indiferente, e onde até o desvio mais oculto é, antes de tudo, um desvio de um rosto que ama e de uns olhos que, desde sempre, o vigiavam para o bem.

Não se trata apenas de um Deus que assiste; trata-se de um Deus que avalia, que pesa, que mede. As “veredas” são os caminhos menores, os carreiros do dia a dia: aquela mensagem respondida rápido demais, aquele elogio aceito com gosto, aquele encontro “inocente” que se repete, aquele pensamento guardado como brasa no seio. Aos nossos olhos, são detalhes; aos olhos de Deus, são veredas que convergem para algum lugar. Jesus falou de dois caminhos — um largo, outro estreito (Mateus 7:13–14) —, mas entre esses dois grandes eixos há uma infinidade de trilhas que o coração escolhe todos os dias; e este versículo diz que nenhuma delas é neutra, nenhuma passa despercebida, nenhuma é tão miúda que escape à balança divina. Em Apocalipse 2:23, o Cristo ressuscitado diz às igrejas: “Eu sou aquele que sonda rins e corações; e vos darei a cada um segundo as vossas obras”. É o mesmo verbo espiritual de “ponderar veredas”. Isso nos humilha, porque descobrimos que não há “zona cinzenta” moral tão cinzenta assim; mas também nos desperta: se o Senhor pesa minhas veredas, então cada pequeno desvio é chamado de volta, cada pequeno passo pode ser corrigido antes que se torne estrada. A graça, aqui, está em perceber que Deus não pesa as veredas apenas no fim, como juiz distante; ele as pesa agora, como Pai que chama, como Pastor que, vendo a ovelha começar a sair da trilha, assobia e puxa o cajado. Ignorar esse pesar é caminhar rumo ao versículo 22; escutá-lo é deixar que o próprio olhar de Deus seja cerca que nos protege do abismo.

A segunda metade do versículo (hb.: wekol maʿgelotāw mepallēs — “e ele mede/pesa todas as suas veredas”), à luz da literatura rabínica, aprofunda a primeira: não basta dizer que Deus vê; é preciso dizer que Ele “pesa” (mepallēs), que Ele mede, avalia, endireita. Alguns comentadores clássicos, cuja voz é preservada em compilações rabínicas, interpretam que o Senhor “pesa todas as veredas para dar a cada um segundo os seus caminhos e segundo o fruto de seus feitos”: o vocabulário é de balança, não de mera observação. Aqui, “maʿgelotāw” (maʿgelot — “veredas em círculo, caminhos sinuosos”) sugere rotas oblíquas, contornadas — exatamente o tipo de itinerário que o adúltero traça para ocultar o que faz. A tradição midráshica insiste que até esses desvios “circulares” são medidos com precisão pela balança divina, de modo que nem a astúcia nem a autoenganosa “complexidade” da vida conseguem escapar do juízo.

O Midrash Mishlei sobre nosso versículo oferece uma segunda interpretação que se concentra justamente nessa parte: “Se o homem vai para uma coisa de mandamento, contam-lhe o caminho; se vai para uma coisa de transgressão, contam-lhe como transgressão. ‘E todas as suas veredas ele pesa’”. Nesse quadro, a caminhada já é parte da obra, e não apenas o ato final. O jovem que cruza a cidade rumo à casa da mulher estranha acumula, passo a passo, uma contabilidade de culpa; o discípulo que se dirige à casa de estudo ou a um ato de misericórdia acumula, passo a passo, uma contabilidade de mérito. A metáfora do caminho, tão central em Provérbios, ganha aqui espessura rabínica: não há “território neutro” entre o bem e o mal; a própria deslocação do coração e do corpo já é inscrita na balança divina.

Essa mesma ideia se costura com o ensino já citado de Pirkei Avot 2:1, que conclui: “e todos os teus atos estão escritos num livro”. Se a primeira cláusula de Provérbios 5:21 fornece a imagem do olhar (“diante dos olhos do Senhor”), a segunda sugere o gesto de registrar e pesar: o livro em que os atos são inscritos é a balança que mede “todas as veredas”. Por isso, intérpretes rabínicos posteriores — como os compilados em comentários éticos medievais — veem aqui um poderoso antídoto contra o autoengano: o homem imagina que apenas grandes atos contam, mas o texto insiste que “todas as suas veredas” (kol maʿgelotāw) são medidas, inclusive as pequenas concessões que o vão empurrando, em círculos, para o abraço da mulher estranha que o capítulo descreve.

Em outra chave, a tradição associada a Chagigá 16a desenvolve o tema da contabilidade moral ao imaginar o pecador perguntando: “Quem testemunhará contra mim?”. A resposta é severa: as pedras da casa, as vigas, a própria alma, os membros do corpo testemunharão, cada qual trazendo à luz o que parecia esquecido. Frente a esse cenário, “e ele contempla todas as suas veredas” ressoa como o veredito final de um Juiz que não apenas viu o caminho utilizado para chegar ao pecado, mas escuta as paredes que guardaram o segredo, lê o corpo que participou do ato, pesa os silêncios e as oportunidades desprezadas de voltar atrás. A literatura rabínica não deixa espaço para a fantasia de uma “aventura isolada”: cada trilha pegajosa rumo ao adultério é uma linha no livro, uma marca na arquitetura da casa, um sulco na própria alma.

Por fim, alguns comentaristas rabínicos, como o Malbim, ressaltam que “caminho” (derekh) e “vereda circular” (maʿgal) não se opõem como bem e mal, mas como linha reta e curva: às vezes, para alcançar uma justiça mais alta, é preciso fazer curvas — agir “além da letra da lei”, ou lidar com situações de exceção, como o profeta Elias no monte Carmelo. Mesmo esses “círculos” legítimos, porém, são “pesados” por Deus: o mesmo olhar que desmascara o desvio adúltero acompanha também o desvio santo, o gesto radical que rompe rotinas para servir a Deus. No contexto de Provérbios 5, isso significa que o aluno é convidado a deixar que o Senhor pese não só os pecados cometidos em segredo, mas também cada ousadia de fidelidade, cada curva difícil feita para fugir do pecado e aprender a sabedoria. “E ele contempla todas as suas veredas”: na leitura rabínica, cada passo, cada desvio, cada retorno, tudo é inscrito, pesado e transfigurado pelo olhar daquele que, desde o início do capítulo, se apresenta como a única testemunha que nunca se ausenta.

Provérbios 5:22

As suas próprias iniquidades prendem o ímpio (Hb.: ʿăwōnōtāw yilkĕdunnô ʾet-hārāšāʿ — “as suas iniquidades o prenderão, a ele, o ímpio”). O sujeito da cláusula é ʿăwōnōtāw (“as suas iniquidades”), plural absoluto feminino de ʿāwōn (“culpa, torção moral, perversidade”), com sufixo pronominal de 3ª pessoa masculina singular (-āw, “suas”), indicando o conjunto de transgressões que lhe pertencem, como um patrimônio moral às avessas. O verbo yilkĕdunnô é qal imperfeito 3ª pessoa comum plural de lāḵaḏ (“capturar, prender, apanhar”), com sufixo de 3ª pessoa masculina singular (-nô, “a ele”); morfologicamente, temos um imperfeito qal (prefixal yi-, radical lkd, vogal temática reduzida ĕ, sufixo verbal plural -ûnn- com enclave do sufixo pronominal) que aqui assume valor futuróide/resultativo: “acabam por prendê-lo”, não tanto num futuro distante, mas como consequência certa de um processo em curso. O grupo ʾet-hārāšāʿ traz a partícula acusativa ʾet, marcando o objeto direto explícito, seguida de hārāšāʿ, artigo definido ha- + substantivo rāšāʿ (“ímpio, culpado, injusto”) no masculino singular absoluto: não se trata de um inocente aprisionado por forças externas, mas de alguém cuja identidade já é descrita como “o ímpio”, aquele cuja vida se constituiu em oposição à sabedoria. Sintaticamente, o versículo organiza um paralelismo interno entre sujeito moral e objeto humano: o que age, gramaticalmente, são as iniquidades; o que sofre a ação é o próprio ímpio. O efeito exegético é forte: o texto não atribui a prisão a demônios, rivais ou acaso, mas às próprias torções morais do sujeito, que se voltam contra ele como caçador que cai no laço que armou. Dentro do contexto de Provérbios 5, essas “iniquidades” são principalmente o adultério e a recusa da disciplina, mas o plural permite incluir todo o feixe de rebeldias que, somadas, formam as cordas que o laçam; cada escolha contra a sabedoria é mais um nó no laço que, cedo ou tarde, se fecha.

Nesta cláusula do versículo, o foco se desloca da anatomia das palavras para o cenário moral e existencial que o versículo desenha. A imagem é simples e brutal: o ímpio não é capturado primeiro por guardas invisíveis de um tribunal celeste, mas por aquilo que ele mesmo tece com as próprias mãos. Murphy chama atenção para esse ponto: a sentença de 5:22 funciona como aplicação do grande princípio de retribuição que atravessa a literatura sapiencial, a “conexão ato-consequência” que faz o pecado voltar sobre a cabeça do pecador (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 33). O professor de sabedoria, nesse quadro, não descreve um raio caindo do céu, mas uma rede sendo puxada pelo próprio pescador, até o momento em que ele percebe que está dentro da trama, e não fora dela.

A literatura rabínica lê esta frase como uma lei espiritual que se cumpre por si, quase como se o pecado tivesse gravidade própria: o mal puxa para baixo quem o pratica. No comentário atribuído a Rashi sobre o versículo, a forma “ʿawonōtāw” é escutada como plural cheio: não um erro isolado, mas um acúmulo de culpas que, somadas, montam a armadilha em que o ímpio cai. Essa mesma ideia aparece quando o nome do “ímpio” se torna quase redundante: qualquer homem, diz a tradição, é finalmente preso pelas suas próprias transgressões, de modo que o verso pode ser lido como axioma universal. Avot deRabbi Natan 9 desenvolve essa lógica com imagens concretas: ao comentar o perigo de um “mau vizinho”, o texto cita Provérbios 5:22 (“o ímpio será preso pelas suas iniquidades”) para ensinar que os sofrimentos vêm primeiro sobre a casa do malvado, mas acabam atingindo também o justo que mora ao lado. A cena é vívida: a lepra na parede do ímpio obriga a derrubar a parede comum, e assim a casa do justo sofre por causa do pecado alheio; é o momento em que o provérbio se condensa na fórmula amarga: “Ai do ímpio, ai de seu vizinho” (Avot DeRabbi Natan 9). A expressão “as suas próprias iniquidades” ganha, então, um halo mais amplo: não são apenas culpas interiores, mas forças que se projetam para fora, atingem a casa, a vizinhança, o tecido comunitário, e, ao fazê-lo, voltam como laço sobre o próprio autor. Quando o pai de Provérbios adverte o filho contra o fascínio da mulher estranha, os sábios leem por trás da metáfora conjugal a lógica de qualquer infidelidade à Torá: cada transgressão é um fio lançado no mundo, que mais cedo ou mais tarde se entrelaça em rede ao redor daquele que o lançou.

Nessa chave, o verbo “prender” não é apenas jurídico, é quase físico: o homem pensa estar montando uma estratégia, mas é a estratégia que o encaixota. Avot deRabbi Natan insiste nesse ponto ao falar da necessidade de afastar-se do mau vizinho e de não se associar ao ímpio, porque a justiça divina percorre caminhos invisíveis e, quando chega, alcança todo o entorno. O versículo torna-se, assim, uma espécie de comentário sapiencial à teologia da medida-por-medida: aquilo que o homem faz retorna a ele, não porque o universo seja impessoalmente “mágico”, mas porque Deus conhece todos os seus caminhos e permite que as consequências naturais de suas práticas o alcancem. A tradição rabínica, ancorada em textos como este e em sua leitura de Provérbios 5 no todo (Provérbios 5 com Talmude e Comentários), insiste que a verdadeira tragédia do ímpio é precisamente esta: ele se torna vítima de sua própria obra. O pai, ao chamar o jovem a fugir da sedução da estranha, é lido como quem avisa: “não brinques com forças que não conseguirás mais soltar”, porque o fio que hoje parece frágil pode tornar-se amanhã uma rede inquebrável.

...e com as cordas do seu pecado ele fica retido. (Hb.: ûbĕḥablê ḥaṭṭāʾtô yittāmēk — “e com as cordas do seu pecado ele será amarrado/sustido”). A cláusula começa com ûbĕḥablê, conjunção û (“e”) ligada à preposição (“em/com”) e ao plural construto ḥablê, de ḥéḇel/ḥéḇel (“corda, cordel, laço, vínculo”), formando “com/as cordas de...”, vocabulário típico de enredar, laçar, amarrar. O genitivo que completa a expressão é ḥaṭṭāʾtô, substantivo feminino ḥaṭṭāʾt (“pecado, ofensa, culpa”) com sufixo de 3ª pessoa masculina singular (“seu pecado”), aqui provavelmente com nuance coletiva: não apenas um ato isolado, mas o conjunto dos pecados como força que constrói o laço. O verbo yittāmēk é nifal imperfeito 3ª pessoa masculina singular de tāmaḵ (“sustentar, segurar, amparar”), forma nifal (prefixo yi-, vogal temática a, redução interna, dagesh característico) com sentido passivo/reflexivo: “ser segurado, ser mantido preso, ficar retido”. Morfologicamente, temos um imperfeito nifal, 3ª masc. sing., com valor resultativo: “acabará ficando preso/segurado”. Sintaticamente, o sujeito subentendido é o mesmo do hemistíquio anterior (o ímpio), e a expressão preposicional ûbĕḥablê ḥaṭṭāʾtô funciona como instrumento ou circunstância: é “por meio das cordas do seu pecado” que ele se vê retido. Exegeticamente, a metáfora muda do vocabulário da caça (lāḵaḏ, capturar) para o vocabulário da amarração (ḥéḇel, corda), mas o efeito é o mesmo: o pecador, especialmente o adúltero de todo o capítulo, descobre que os gestos com que imaginava “afrouxar” a rigidez da sabedoria são, na realidade, voltas de corda que se apertam ao redor de si mesmo. O nifal de tāmaḵ é irônico: o verbo, em outras passagens, pode descrever o apoio positivo de Deus (“sustentar” o justo), aqui descreve o “sustentar negativo” das consequências — é o próprio pecado que o segura, como estaca que o impede de andar. A imagem, somada ao v. 22a, oferece uma teologia da retribuição imanente: o castigo não vem apenas “de fora”; está enrolado nas cordas do próprio ato, que, como laço, prende aquele que o teceu.

A segunda metade do versículo retoma a metáfora e a aprofunda. Murphy observa que há uma tensão literária intencional entre a afirmação do versículo seguinte — o olhar penetrante do Senhor — e a descrição de 5:22: por um lado, Deus vê e julga; por outro, é o próprio pecado que estreita o laço em torno do ímpio (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 33). O provérbio se recusa a escolher entre “Deus pune” e “o pecado se pune a si mesmo”: ele entrelaça as duas coisas. O Deus que tudo vê governa um mundo em que os atos humanos carregam, em si mesmos, uma carga de retorno, como se cada transgressão fosse uma semente com o seu próprio espinho.

As “cordas do pecado” fazem lembrar o jovem de 5:3–14, cuja vida vai sendo esvaziada enquanto ele persegue clandestinamente o prazer proibido. No início, são fios quase invisíveis: uma conversa mais ousada, um olhar que demora, um encontro marcado “sem testemunhas”. Com o tempo, esses fios se tornam laços de dependência, dívida, vergonha, chantagem, adoecimento emocional. Murphy sugere que a imagem se alinha com a grande ênfase do livro na auto-destruição da insensatez: é a própria escolha imprudente que arma a armadilha, até que o sujeito se descobre prisioneiro de padrões que já não controla (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 33).

As “cordas” aqui são o contrário das cordas de amor de Oséias 11:4, com que Deus puxa Israel para perto de si; são as cordas que o próprio homem lançou ao redor do pescoço. Vícios de anos, relacionamentos clandestinos, ciclos de pornografia, flertes alimentados, ressentimentos guardados — tudo isso são fibras que torcemos até virar corda. Sansão dormiu no colo de Dalila achando que sempre romperia qualquer laço (Juízes 16); um dia acordou e “não sabia que já o Senhor se tinha retirado dele” (Juízes 16:20). As cordas do pecado são assim: no começo, brincadeira; depois, adorno; depois, costume; por fim, grilhão. Paulo, em Romanos 6, fala de uma obediência que liberta: “libertados do pecado, vos tornastes servos da justiça” (Romanos 6:18). Antes desse ponto, porém, há um estágio em que o homem é “retido” — não consegue mais amar a esposa sem trazer para o leito as imagens da estranha, não consegue mais olhar para as pessoas sem erotizá-las, não consegue mais adorar a Deus sem ouvir, no fundo da alma, o tilintar das cordas que ele mesmo apertou. Este versículo não foi escrito para que nos resignemos à prisão, mas para que reconheçamos a natureza da prisão: não é destino, é teia. E toda teia pode ser rasgada por mãos mais fortes do que as nossas. Quando Jesus entra na sinagoga de Nazaré e lê Isaías 61 — “enviou-me a proclamar libertação aos cativos” (Lucas 4:18) —, as cordas do pecado tremem. Aquele que nunca se amarrou a pecado algum tem poder de soltar quem se amarrou a todos. Mas Ele não desfaz o nó de quem ainda brinca com a corda.

Os rabinos se detêm na imagem das “cordas” para mostrar a progressão silenciosa do pecado. Em outros textos, a palavra “cordas” (ḥavlîm) aparece associada ao arrastar da iniquidade, como em Isaías 5:18: “Ai dos que puxam a iniquidade com cordas de vaidade, e o pecado como com cordas de carroça” (Isaiah 5:18). A partir desse versículo, o Talmude, em Sanhedrin 99b, cria a famosa imagem do yetser haraʿ, a inclinação má, que no início é “como um fio de fiar, fino como teia de aranha”, mas, à medida que é alimentado, torna-se “como a corda grossa de um carro” (Sanhedrin 99b; cf. também Sukkah 52a). Essa metáfora, aplicada ao nosso versículo, faz brilhar a pedagogia contida na expressão “cordas do seu pecado”: ninguém começa preso por correntes de ferro; tudo começa por fios quase imperceptíveis — concessões pequenas, racionalizações suaves — que, tecidas dia após dia, viram cabos capazes de arrastar uma carroça.

A literatura rabínica gosta de aproximar essas “cordas de pecado” das “cordas de amor” de Oséias 11:4, onde Deus diz que atraiu Israel “com cordas de homem, com laços de amor” (Oseias 11:4; cf. Rashi sobre Oseias 11:4). A mesma imagem — a corda — pode amarrar para o bem ou para o mal; tudo depende de quem tece e de que fibras usa. Em Provérbios 5:22, o quadro é sombrio: não são os laços de Deus, mas as cordas que o próprio pecador fiou. Sanhedrin 99b, ao comentar Isaías 5:18, descreve como Manassés começou por zombar de alguns poucos versículos e terminou transgredindo toda a Torá; o caminho entre o fio e a corda passa justamente pela repetição: um pecado acena para outro, depois para outro, até que a pessoa se vê arrastada por aquilo que antes julgava controlar. Lido à luz desse ensinamento, o “ser retido” de Provérbios não é uma prisão arbitrária: é o momento em que o conjunto dos fios se revela como cabo, e o homem descobre que já não dispõe de liberdade para se mover como antes.

O eco de Provérbios 5:22 em textos éticos posteriores reforça esse ponto. Obras de musar que meditam sobre o poder do hábito retomam a linguagem das cordas para explicar como pensamentos, olhares e pequenas concessões tecem o laço que, mais tarde, parece inquebrável. Uma sheet de estudo em Sefaria, por exemplo, ao comentar o episódio de Raabe e a corda escarlate em Josué 2, usa precisamente a linguagem da “corda que nasce do linho” para mostrar como um pensamento insistente pode ser fiado em ação e, finalmente, em estilo de vida — retomando o motivo talmúdico do fio de aranha que termina como corda de carroça (Haftorah Shelach, Josué 2, com Midrash). Quando a tradição joga essa luz sobre Provérbios 5:22, o pecado já não é apenas um ato pontual de adultério, mas o processo inteiro de tecer, dia após dia, as cordas com que o coração será suspenso. A advertência do pai ao filho ganha um tom quase implorante: não brinques com fios que, mais tarde, poderão te arrastar para onde já não queres ir.

Assim, a cláusula “com as cordas do seu pecado ele fica retido” torna-se, no olhar rabínico, a descrição final de um percurso: primeiro, o homem se permite caminhar para a “estranha”; depois, insiste; depois, normaliza; por fim, descobre que não sabe mais viver sem aquilo que o destrói. As cordas são a própria biografia torcida, agora voltada contra seu autor. E, na medida em que Isaías 5:18 denuncia aqueles que “puxam a iniquidade” como quem puxa um carro, a tradição enxerga em Provérbios 5:22 o reverso dessa mesma imagem: aquilo que o ímpio julgava arrastar atrás de si — seu pecado como carga — passa a puxá-lo, como se ele estivesse atado à traseira da carroça que ajudou a encher. O pai de Provérbios, a esse respeito, está perfeitamente alinhado com os sábios: o verdadeiro terror do pecado não é apenas o castigo futuro, mas o presente em que o próprio fio que o homem fiou amarra seus passos, até que sua vida, como dirá o versículo seguinte, se apaga “por falta de disciplina” e “na abundância de sua loucura”.

Provérbios 5:23

Ele morre sem instrução,... (Hb.: hûʾ yāmût bĕʾên mûsār — “ele morrerá por falta de disciplina”). O pronome independente hûʾ (“ele”) em posição inicial dá ênfase ao sujeito: esse mesmo homem, o ímpio enredado por seus pecados, é o foco da sentença final. O verbo yāmût é qal imperfeito 3ª pessoa masculina singular de mût (“morrer”), aspecto prefixal com valor futuróide, podendo ser tomado tanto como previsão (“morrerá”) quanto como axioma proverbial (“morre assim quem...”), em qualquer caso descrevendo o desfecho do caminho. A expressão bĕʾên mûsār une a preposição (“em/pela”) ao substantivo negativo ʾên (“não há, ausência”) e a mûsār (“disciplina, correção, instrução formativa”), termo-chave de Provérbios para a educação moral que molda o caráter. Morfologicamente, mûsār é um substantivo masculino singular derivado de yāsar (“disciplinar, corrigir”), frequentemente associado à correção paterna e à instrução divina. Sintaticamente, bĕʾên mûsār funciona como complemento circunstancial de causa (“por falta de disciplina”, “por ausência de correção”), não apenas como ambiente em que a morte acontece, mas como razão profunda dela. A frase condensa o drama sapiente: não se trata apenas de morte física, embora essa possa estar no horizonte, mas de um fim existencial que é fruto de uma vida sem mûsār. Desde o início do livro, o filho foi chamado a ouvir a disciplina do pai e da mãe (Provérbios 1:8; 4:1), e a recusa dessa disciplina foi apresentada como porta para a ruína; aqui, o quadro se fecha: aquele que rejeitou a correção não morre “por azar”, mas precisamente “por falta de instrução”. Na lógica interna de Provérbios, viver sem mûsār é viver sem freios, sem ajustes, sem espelhos; por isso, o desfecho natural é a morte, como árvore que nunca foi podada e acaba tombando sob o peso dos próprios galhos.

Quando o versículo seguinte declara que esse homem “morre sem instrução”, não está descrevendo apenas o momento fisiológico da morte, mas o percurso inteiro que conduz a ela. Murphy observa que 5:23, embora esteja em harmonia com a generalização de 5:22, também ecoa o lamento do jovem em 5:11–14: ali, ele já se via à beira da ruína, reconhecendo que desprezara a disciplina (mûsār) e a correção (MURPHY, Proverbs, 1998, p. 33). A morte aqui é, ao mesmo tempo, biográfica e espiritual. É a morte lenta de quem resistiu sistematicamente a qualquer voz que o chamasse de volta.

O vocábulo “instrução” remete a todo o projeto pedagógico de Provérbios 1–9: o pai, a mãe, a sabedoria personificada chamam o filho para um caminho em que conhecer é viver. Desprezar essa instrução é escolher caminhar com os olhos fechados em direção ao precipício. A segunda rodada permite ver isso historicamente: Israel recebia sua identidade não apenas por ritos, mas por uma tradição de ensino — Torá, profetas, sábios — que formava gerações. Morrer “sem instrução” é romper com esse fio de transmissão. No contexto do capítulo, é o retrato de alguém que, tendo sido alertado contra a mulher estranha, faz da sua surdez uma bandeira, e só desperta quando já está tarde demais para reconstruir as pontes que queimou.

Esse morrer “sem instrução” também desmonta uma ilusão moderna: a de que conhecimento e caráter podem ser dissociados. Provérbios insiste que informação sem atenção obediente não é sabedoria, e a segunda rodada expõe o rosto trágico desse divórcio. O homem de 5:23 talvez tenha acumulado experiências, tenha ouvido conselhos, tenha frequentado assembleias; mas, na hora de escolher, manteve-se intocado pela palavra. O texto diz: isso é morrer. A vida, na gramática bíblica, não é mero funcionamento biológico, mas resposta à voz de Deus. Onde a instrução é rejeitada, a morte já começou, ainda que o peito continue a subir e descer.

...e na abundância da sua loucura se engrandece a si mesmo! (Hb.: ûbĕrōb ʾiwaltô yišgeh — “e na abundância da sua loucura ele se extravia/é arrebatado”). A conjunção û (“e”) mantém o paralelismo com a primeira metade: temos um segundo motivo/desdobramento da morte. A expressão bĕrōb vem da preposição (“em”) + substantivo rōb (“abundância, muito, grande quantidade”), formando “em (meio à) abundância de...”; o genitivo ʾiwaltôé substantivo feminino ʾiwwelet (“insensatez, tolice”) com sufixo de 3ª pessoa masculina singular (“sua insensatez/loucura”). Em termos morfológicos, ʾiwaltô apresenta a raiz ʾ-w-l (“ser tolo, ser insensato”), que em Provérbios designa não mera falta de inteligência, mas disposição moral obstinada, recusa da sabedoria; é a loucura como modo de ser, não um momento de distração. O verbo yišgeh é qal imperfeito 3ª pessoa masculina singular de šāgâ (“errar, desviar-se, cambalear, enlouquecer”), a mesma raiz encontrada em 5:19–20: lá, o filho era chamado a “enlouquecer” no amor da esposa; aqui, o ímpio “se desvia” ou “anda cambaleante” por causa da própria insensatez. Sintaticamente, ûbĕrōb ʾiwaltô é sintagma preposicional que funciona como complemento circunstancial de ambiente/causa (“em razão da grande quantidade de sua loucura”), e o predicado verbal yišgeh retoma o sujeito implícito (ele, o mesmo do hemistíquio anterior). A tua tradução “se engrandece a si mesmo” captura parcialmente a ideia de se lançar, ir longe; mas, no hebraico, o foco não é exaltação, e sim desvio: ele “sai da rota”, “se perde”, “cambaleia”, tragado pela massa de sua própria insensatez. Exegeticamente, há um jogo irônico com o campo lexical de šāgâ: esse verbo, que em 5:20 já nomeava o “engrandecer-se” com a estranha (no sentido de extraviar-se com ela), agora é recolhido como veredito final — o homem que recusou disciplina e escolheu a estranha “termina” no mesmo movimento de desvario, só que agora sem o brilho ilusório do prazer, apenas como diagnóstico da sua ruína. Ao dizer que isso ocorre “na abundância de sua loucura”, o texto sugere que não foi um ato isolado que o matou, mas um acúmulo: a loucura se multiplicou, criou volume, peso, até tornar-se ambiente permanente, atmosfera em que ele respira; e é dentro dessa nuvem densa que ele finalmente se perde. A primeira metade do versículo mostrou a ausência de mûsār como causa da morte; a segunda mostra a presença maciça de ʾiwwelet como o clima em que esse fim acontece. Entre “falta de disciplina” e “abundância de loucura”, o destino do adúltero e do insensato está traçado: ele morre, amarrado por seu próprio pecado e embriagado pela própria tolice, caminhando, até o último passo, fora da trilha que a sabedoria lhe havia desenhado.

O versículo é a última batida do martelo em um discurso inteiro contra o adultério, mas a conclusão escapa do caso concreto para enunciar um princípio teológico geral: não é apenas o adúltero que morre; é todo aquele que se recusa ao mûsār (“disciplina”, “correção”) e cultiva a ʾiwwelet(“loucura”, não no sentido clínico, mas moral) que caminha, de dentro para fora, em direção à própria ruína. Michael Fox observa que 5:21–23 formam uma conclusão composta de três ditos que, juntos, lembram ao ouvinte que Deus é onisciente e garante justiça, sendo o terceiro verso um remate que afirma explicitamente: o pecador é autodestrutivo (FOX, Proverbs 1–9, 2000, p. 182) . Assim, a teologia de 5:23 não é apenas a de um castigo vindo de fora, mas de uma vida que se dobra sobre si mesma, até se romper.

Quando o versículo declara que o homem “morre sem instrução”, a teologia de Provérbios inteiro se acende por trás dessa fórmula. O mûsār é, desde 1:7, o caminho da vida: “os loucos desprezam a sabedoria e o mûsār”. Desprezar correção não é apenas ignorar conselhos prudenciais; é rejeitar o modo como Deus governa e educa o mundo. Em 5:23, Fox nota que a conclusão da perícope eleva o tema para o nível da generalização teológica: é função da conclusão resumir “no plano da generalização teológica” aquilo que o caso concreto do adultério apenas ilustra (FOX, ibid., 2000) . A morte aqui é o fim daquele que, repetidamente, manda calar todas as vozes de correção — a voz do pai, da esposa legítima, da Sabedoria personificada e, por trás de todas elas, a voz do próprio Senhor.

A expressão “sem instrução” sugere não tanto uma carência neutra, como se o indivíduo fosse uma vítima inocente da ignorância, mas uma ausência construída, uma falta escolhida. Ao longo dos capítulos 1–9, o pai insiste: “ouve”, “inclina o ouvido”, “não desprezes a disciplina do Senhor”, desenhando o mûsār como convite e oferta. Aquele que “morre sem instrução” é, portanto, alguém que foi cercado de apelos e mesmo assim os rejeitou; sua morte é coroamento de uma pedagogia frustrada, não de um silêncio divino. Em termos teológicos, a pedagogia da sabedoria é graça preveniente: Deus se adianta com instrução; a morte em 5:23 é o cenário em que essa graça foi sistematicamente repelida.

O segundo hemistíquio, “na abundância da sua loucura se engrandece a si mesmo” (ou, mais literalmente, “na abundância de sua insensatez ele se extravia”), revela a outra metade do quadro teológico: o acúmulo da ʾiwwelet. Em Provérbios, ʾiwwelet não é mera ingenuidade; é o endurecimento da vontade contra a ordem moral do mundo. Fox, em seu estudo sobre as “palavras para loucura”, mostrou como ʾiwwelet designa um padrão de caráter, um tipo moral que persiste em agir como se não houvesse Deus que veja, avalie e retribua (FOX, ibid., 2000, p. 183) . A teologia de 5:23, portanto, afirma que a morte não vem apenas “por falta de algo” (instrução), mas também “por excesso de algo”: um coração saturado de insensatez, até transbordar.

Na leitura de Fox, a conclusão 5:21–23 articula um duplo eixo: de um lado, Deus que vê todos os caminhos, pesa todas as veredas e garante justiça; de outro, o pecador que se enreda nas próprias iniquidades, impondo a si mesmo o jugo que o estrangulará. O autor “não explica o mecanismo da retribuição divina. Basta afirmar que Deus está intimamente e diretamente envolvido na totalidade da vida humana, de modo que as consequências naturais de cada ação são o próprio agir de Deus” (FOX, ibid., 2000). Teologicamente, 5:23 está no ponto exato em que “lei natural” e “juízo divino” se encontram: aquilo que parece apenas consequência psicológica e social — o adulto arruinado por seus hábitos — é, a partir do olhar de fé, a mão de Deus deixando que o homem colha o que semeou.

É aqui que o versículo se conecta ao grande tema que Fox chama de “nexo ato–consequência” (deed-consequence nexus). Trabalhando sobre o ensaio clássico de Klaus Koch, ele reconhece o abuso de uma fórmula mecânica, mas insiste que é inegável, no corpus sapiencial, uma forte tendência a apresentar a retribuição como algo intrinsecamente ligado ao próprio ato do indivíduo: o iníquo cai na cova que cavou, a pedra que lançou volta sobre sua cabeça, a rede que estendeu o captura (FOX, ibid., p. 54) . Em 5:23, o mesmo princípio assume forma existencial: o homem que se recusa a ser corrigido cria, com seus próprios gestos, o ambiente que o devorará.

Essa autodestruição, porém, não elimina Deus da equação; ao contrário, a intensifica. Em 5:21, “os caminhos do homem estão perante os olhos do Senhor, e ele avalia todas as suas veredas”; em 5:22, “as iniquidades do ímpio o prenderão, e pelas cordas do seu pecado será detido”. Fox sublinha que a consciência de que Deus vê tudo é precisamente o que permite enxergar as consequências naturais como juízo, e não como mero acaso moral (FOX, ibid., p. 182) . Assim, 5:23 declara a morte do insensato tanto como fruto do seu caminho quanto como expressão da justiça de Deus que governa esse caminho.

No contexto mais amplo de Provérbios, 5:23 dialoga claramente com 1:32: “porque o desvio dos simples os matará, e a prosperidade dos loucos os destruirá”. Em ambos, a linguagem é passiva apenas na superfície; o verdadeiro agente da morte é o próprio caminho escolhido. Em 10:17, “o que guarda a instrução (mûsār) está no caminho da vida, mas o que rejeita a repreensão (tôkeḥâ) erra”. Em 15:10, “a disciplina (mûsār) é má para aquele que abandona o caminho, e o que odeia a repreensão morrerá”. Teologicamente, 5:23 é o nó em que estes fios se entrelaçam: desprezo à disciplina, ódio à repreensão, abandono do caminho, abundância de loucura; tudo converge para um fim chamado “morte”. Dentro de Provérbios, esta morte é, em primeiro plano, morte prematura, violenta, “morte antes do tempo”, como Fox enfatiza em outros textos, distinguindo-a da morte serena do justo (FOX, ibid., p. 53) .

Quando olhamos para o restante do Antigo Testamento, 5:23 ressoa fortemente em Deuteronômio 30:15–20. Ali, Moisés coloca diante de Israel “a vida e o bem, a morte e o mal”, e a chave para escolher a vida é “amar o Senhor, teu Deus, obedecer à sua voz e apegar-se a ele”. A estrutura é a mesma: há um caminho de vida, sustentado pela escuta obediente, e um caminho de morte, caracterizado pela recusa em ouvir. “Morrer sem instrução” em Provérbios é, teologicamente, a versão sapiencial de “perecer por não ouvir à voz do Senhor” em Deuteronômio. Oséias 4:6 dá outra formulação dramática: “o meu povo é destruído porque lhe falta conhecimento (daʿat)”; e, no próprio livro, a falta não é neutra, mas nasce do fato de o povo ter rejeitado o conhecimento.

Em chave canônica, o Novo Testamento prolonga essa lógica. Tiago 1:14–15 retrata o processo interno: “cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz; então a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, consumado, gera a morte”. A mesma sequência se desenha em Provérbios 5: o desejo mal orientado, a recusa da disciplina, a fixação na insensatez, e, por fim, a morte. Paulo, em Romanos 6:23, condensa o quadro: “o salário do pecado é a morte”; em Gálatas 6:7–8, a linguagem do “semear” e “ceifar” sublinha a conexão intrínseca entre o ato e o resultado: quem semeia na carne, da carne ceifará corrupção. Provérbios 5:23 é, portanto, uma expressão anterior da mesma gramática teológica: a vida moral não é um jogo sem consequências; há uma lei de colheita embutida na própria criação.

Em termos de antropologia teológica, o versículo faz um retrato sombrio, mas realista, do coração humano. Não se trata de um erro pontual; é “abundância de loucura”. Cada repreensão rejeitada é um tijolo a mais no muro que separa o indivíduo da voz de Deus; cada “não” dito à disciplina é um fio a mais na corda que o prenderá. O homem de Provérbios 5:23 não é alguém que “por azar” caiu em adultério; é alguém que, ao longo do tempo, cultivou uma postura de autossuficiência que o impede de ser corrigido. A teologia implicada é dura: Deus não precisa descer com raios para julgá-lo; basta deixá-lo seguir adiante no caminho que escolheu, e esse caminho o levará ao abismo.

Finalmente, o contraste com a metáfora conjugal da perícope ilumina o versículo. Durante todo o capítulo, o pai contrasta a mulher estranha, sedutora e mortal, com a esposa legítima, fonte de alegria e vida. O filho pode “abastecer-se” no próprio poço ou desperdiçar-se em cisternas alheias. 5:23 revela que, no fundo, o perigo maior não é a mulher em si, mas o tipo de coração que ela encontra: um coração incapaz de receber mûsār, enamorado da própria ʾiwwelet. Por isso, a advertência final não menciona mais a mulher; menciona apenas ele e sua recusa. Teologicamente, o foco se desloca das circunstâncias externas para a interioridade: o verdadeiro adultério começa quando a alma se separa da Sabedoria e se une à própria insensatez.

Dentro do modelo teológico de Provérbios, então, 5:23 é como um espelho colocado no fim do corredor: o jovem que ouviu toda a argumentação sobre adulterar ou não adulterar, sobre entregar-se ou não à estranha, vai enxergar no espelho não apenas uma escolha sexual, mas o retrato de um destino espiritual. Morre aquele que já está, por dentro, morrendo; perde-se aquele que já fez da própria loucura a sua glória. E, como Fox insiste, essa é uma lei não apenas para a sexualidade, mas para “todo pecado, não só o adultério”: em qualquer área da vida em que o mûsār é rejeitado e a ʾiwwelet se torna abundante, a morte se insinua como desfecho possível (FOX, ibid., p. 182).

A tradição rabínica lê Provérbios 5:23 como o desfecho inevitável de toda a caminhada descrita no capítulo: quem recusa o mûsār (disciplina, correção, Palavra de Deus) termina enredado pelas próprias escolhas, até que a própria vida se extingue não por um decreto arbitrário, mas por um processo. Em Midrash Mishlei (edição Buber), a sentença é direta: “‘Ele morrerá sem disciplina’ — ele morrerá em seu pecado, porque não escutou palavras de disciplina” e “‘e na grandeza de sua insensatez se extraviará’ — não quis se extraviar nas palavras da Torá, como está escrito no versículo 19 ‘por seu amor sejas tu sempre arrebatado’, agora, na grandeza de sua insensatez, é que se extravia” (Midrash Mishlei (Buber) 5:22–23). O midrash enxerga na primeira cláusula o veredito: a morte “em seu pecado” nasce da surdez teimosa frente ao chamado da correção divina; na segunda, ele vê uma ironia dolorosa: o verbo “yišgeh” ecoa o “tishgeh tamid” de Provérbios 5:19, onde o sábio deveria ser “arrebatado” de amor pela esposa/torá. O homem de 5:23 se recusa a deixar-se “embriagar” pela Torá, e por isso acaba embriagado pela própria loucura.

A pequena palavra “sem” (beʾên) se torna, então, um abismo. Rashi, comentando o versículo, reduz a explicação a um fio cortante: “‘Ele morrerá sem disciplina’ — porquanto não tomou disciplina” (Rashi sobre Provérbios 5:23). Não é falta de oportunidade, nem ignorância inocente; é recusa. A morte aqui é lida pelos rabinos não apenas como cessação biológica, mas como colapso espiritual de alguém que, tendo sido exortado, escolheu permanecer surdo. A disciplina (mûsār) é apresentada, em toda a tradição sapiencia,l como o abraço firme que impede o filho de cair no precipício; rejeitá-la é soltar-se das mãos que sustentam.

Um midrash de Shemot Rabbah retoma exatamente este versículo para desenhar uma parábola luminosa. Em um sheet de estudo em Sefaria baseado em Shemot Rabbah 36:3, o texto compara a Torá a um lampião na mão de alguém caminhando numa noite sem lua: quem não se ocupa com a Torá tateia na escuridão, tropeça em pedras, cai em valas, fere o rosto no chão. A explicação culmina assim: “o indivíduo comum que não tem Torá em si encontra um pecado, tropeça e morre, pois o Espírito Santo clama: ‘Ele morrerá sem instrução’ (Provérbios 5:23); e ‘instrução’ significa Torá, como está dito: ‘apega-te à disciplina, não a largues’ (Provérbios 4:13). Ele morre porque não conhece a Torá e vai e peca, como está dito: ‘O caminho dos ímpios é como a escuridão; não sabem em que tropeçam’ (Provérbios 4:19)” (Tetzaveh: Torah, G'milut Chasadim, and Living a Moral Life — citando Shemot Rabbah 36:3; Shemot Rabbah 36:3). Aqui, Provérbios 5:23 é inserido num mosaico maior: falta de mûsār = ausência de Torá; ausência de Torá = caminhar em trevas; caminhar em trevas = morte. A morte é o fruto maduro de uma longa estação de negligência.

Se a primeira cláusula descreve o colapso, a segunda mostra o clima em que ele floresce: “e na abundância da sua loucura se engrandece a si mesmo”. O hebraico ûḇerōv ʾiwaltô yišgeh associa quantidade (rōv, “abundância”) e qualidade (ʾiwwelet, “insensatez”) a um movimento de extravio (yišgeh). O midrash buberiano percebe o jogo interno com Provérbios 5:19: ali, o homem é convidado a ser “arrebatado” (tishgeh) pelo amor à “mulher da aliança” (lida pelos rabinos como esposa legítima e, por extensão, como a própria Torá); aqui, ele é arrebatado pela própria loucura, porque recusou ser “louco” por Deus. No comentário de Rashi a Provérbios 5:19, preservado também em Wikitext, “tishgeh” é explicado com base em um ensinamento de Eruvín 54b: um sábio tão absorto na Torá que se esquece de seus negócios, a ponto de deixar seus pertences expostos enquanto ensina, protegido pela providência que vela sobre quem ama a instrução (Rashi sobre Provérbios 5:19). A partir disso, os rabinos criam um contraste: há uma “loucura santa”, ser arrebatado pela sabedoria de Deus, e uma loucura profana, ser arrastado pelos próprios impulsos.

Midrash Mishlei explicita esse contraste: o pecador de 5:23 “não quis se extraviar nas palavras da Torá” — não quis deixar que o texto divino reordenasse seus afetos, prioridades, desejos — “agora, na grandeza de sua insensatez, é que se extravia” (Midrash Mishlei (Buber) 5:22–23). A mesma energia que poderia tê-lo lançado no amor fiel se converte em vertigem autodestrutiva. A imagem rabínica é quase dramática: a alma humana é feita para “se perder” em alguma coisa; se recusa a perder-se em Deus, se perderá em algo menor, até a morte.

Os comentaristas tradicionais recolhidos em compilações como o Biur (Wikitext) ajudam a ancorar esse movimento na linha literal do texto: “ele morrerá porque não tomou disciplina; porque não aceitou ouvir palavras de correção que o teriam trazido de volta”. Assim, Provérbios 5:23 é lido como a síntese de tudo o que o pai vem dizendo desde o início do capítulo: os caminhos da adúltera, da “mulher estranha”, são, na superfície, doces e sedutores, mas terminam em morte (Provérbios 5:3–5); o único antídoto é apegar-se ao ensino recebido, beber das próprias cisternas (Provérbios 5:15–20). Recusar a disciplina é escolher explicitamente a rota da morte. (Biur: Mishlei 5:23).

O eco com outros textos rabínicos é forte. No mesmo sheet de Sefaria onde Shemot Rabbah 36:3 é citado, aparecem Pirkei Avot 1:2 e o comentário de Maimônides, dizendo que o mundo se sustenta sobre três colunas: Torá, serviço (culto) e atos de bondade; e que na sabedoria da Torá, nas virtudes e na observância dos mandamentos está o “ajuste contínuo do mundo” (Pirkei Avot 1:2, Rambam sobre Pirkei Avot 1:2). Se a própria estrutura do mundo depende dessa tríade, então “morrer sem disciplina” é afastar-se justamente da coluna que mantém o mundo e a própria vida em coesão. Na leitura rabínica, o ímpio de Provérbios 5:23 não cai num vácuo neutro, mas se afasta do eixo que sustenta a criação.

Há ainda um fio que liga Provérbios 5:23 ao versículo anterior, 5:22, na tradição midráshica: “‘Suas iniquidades prendem o ímpio’ — assim como alguém arma uma rede e captura peixes do mar, assim suas iniquidades estendem uma rede para capturá-lo; ‘e com as cordas do seu pecado ele fica retido’ — como uma mulher cujas dores de parto fazem lembrar seus pecados, assim os pecados do homem são lembrados quando ele chega às dores do Sheol” antes de citar “Ele morrerá sem instrução...” (Midrash Mishlei (Buber) 5:22–23). A morte, portanto, não é um raio vindo de fora, mas o nó final de cordas que o próprio homem apertou ao redor de si — pecados que armam laços, laços que se tornam dores de parto, dores que desembocam no Sheol. No centro disso, está a recusa do mûsār: se tivesse escutado, os laços seriam cortados antes de o apertarem até o pescoço.

À luz de toda essa literatura rabínica, Provérbios 5:23 se torna quase uma fotografia final: um rosto marcado pela escuridão de quem andou sem lâmpada, um coração inflado pela própria insensatez, um corpo preso em cordas que ele mesmo teceu. Mas a mesma tradição que lê aqui a morte também aponta, com a outra mão, para a possibilidade oposta: “apega-te à disciplina, não a largues” (Provérbios 4:13), porque a mesma energia de “extravio” pode ser consagrada ao amor por Deus e por sua sabedoria, tornando-se arrebatamento de vida em vez de vertigem de morte.

II. Devocional de Provérbios 5

Provérbios 5 se destaca como um solene e urgente alerta paternal contra as seduções da imoralidade sexual. Em seu estilo didático e poético, o capítulo desvela as facetas enganosas do pecado e as consequências devastadoras que inevitavelmente acompanham a infidelidade. A mensagem central é um chamado à pureza, à disciplina e à valorização do relacionamento conjugal legítimo como a fonte de verdadeira satisfação e proteção.

O pai, agindo como um mentor, não apenas adverte sobre os perigos, mas também oferece o caminho da retidão, contrastando a ruína do desvio com a bênção da fidelidade. É uma lição profunda sobre discernimento moral, a necessidade de autocontrole e a soberania de Deus que observa todos os caminhos do homem, garantindo que a escolha pela sabedoria traga vida, enquanto a tolice leva à perdição.

A. Provérbios 5:1-6 (O Apelo Inicial à Sabedoria e o Alerta sobre a Mulher Adúltera)

Este bloco inicia com um apelo direto e sério do pai, que busca a atenção do filho para a sabedoria e o discernimento. O propósito é claro: capacitar o jovem a guardar o juízo e a expressar conhecimento com seus lábios. Imediatamente após essa introdução, o texto mergulha na descrição vívida e traiçoeira da mulher adúltera. Seus lábios são doces como mel e sua fala mais suave que o azeite, mas essa sedução inicial esconde um fim amargo como absinto e afiado como uma espada. Seus caminhos não levam à vida, mas, de forma enganosa, descem à morte e ao abismo, sem que a vítima perceba a real direção.

Aplicação Prática: Entenda que a sabedoria divina é sua principal defesa contra as tentações, especialmente as de cunho sexual, que muitas vezes se apresentam de forma atraente. 1 Pedro 5:8 alerta: “Sejam sóbrios e vigiem. O Diabo, o inimigo de vocês, anda a seu redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar.” Isso significa filtrar cuidadosamente o conteúdo que consome (mídias, redes sociais, conversas) e evitar ambientes que possam ser porta para a tentação. Por exemplo, desativar notificações de conteúdo online que possam te levar a sites pornográficos ou a interações imorais, mesmo que a curiosidade seja grande.

Preste atenção aos conselhos de seus pais sobre moralidade e relacionamentos, pois eles geralmente possuem uma visão mais madura dos perigos. Provérbios 1:8 diz: “Meu filho, ouça a instrução de seu pai e não despreze o ensino de sua mãe.” Seus pais podem alertá-lo sobre amizades ou situações que parecem inocentes, mas que podem levá-lo a caminhos perigosos. Ouça com humildade, mesmo que a “doçura” da tentação seja forte.

Seja claro e específico ao alertar seus filhos sobre os perigos da imoralidade, não apenas com regras, mas explicando as consequências a longo prazo. Provérbios 22:6 instrui: “Ensina a criança no caminho em que deve andar, e até quando envelhecer não se desviará dele.” Tenha conversas abertas sobre sexualidade, os perigos da pornografia e a importância de escolher parceiros com integridade, mostrando a eles que as “palavras doces” do pecado levam à ruína, e que a pureza é o caminho da verdadeira alegria.

A “doçura” da tentação não se restringe à imoralidade sexual; pode se manifestar em propostas ilícitas ou atalhos desonestos no trabalho. Mantenha seu discernimento moral aguçado. Colossenses 3:23 diz: “Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não para os homens.” Se uma oferta de lucro fácil ou uma oportunidade de fraude surgir, use a sabedoria para ver além da aparência atraente e reconhecer a destruição que se segue.

Discernir entre ensinamentos que parecem “doces” e modernos, mas que desvirtuam a verdade bíblica sobre moralidade. 2 Timóteo 4:3-4 adverte: “Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, sentindo coceira nos ouvidos, juntarão para si mestres segundo os seus próprios desejos. Desviarão os ouvidos da verdade e se voltarão para os mitos.” Seja vigilante contra mensagens que suavizam o pecado ou justifiquem a imoralidade, pois elas são tão perigosas quanto as palavras da adúltera.

A sabedoria cívica envolve discernir propostas populistas ou aparentemente benéficas que escondem uma agenda destrutiva para a sociedade. Provérbios 14:12 afirma: “Há um caminho que parece certo ao homem, mas no final conduz à morte.” Esteja atento a discursos que prometem soluções fáceis para problemas complexos ou que incentivam a corrupção e a imoralidade em nome de uma falsa liberdade. A sabedoria o ajudará a ver além do “mel” da retórica política enganosa.

B. Provérbios 5:7-14 (A Advertência e as Consequências da Imoralidade)

Neste segmento, o pai lança um apelo veemente e direto: “Agora, pois, filhos, ouçam-me e não se desviem das palavras da minha boca.” Ele descreve as consequências devastadoras de seguir o caminho da adúltera: a perda da honra e da reputação, o desperdício dos melhores anos de vida e a espoliação de todos os bens por estranhos. O resultado final é um lamento amargo, onde o enganado se lamenta pela ruína física e moral, reconhecendo tardiamente sua insensatez por ter desprezado a instrução e a correção de seus mestres, chegando à beira da ruína pública.

Aplicação Prática: As consequências do pecado sexual são múltiplas e dolorosas, afetando não apenas a vida espiritual, mas também a honra, os relacionamentos e os recursos. 1 Coríntios 6:18 instrui: “Fujam da imoralidade sexual. Todos os outros pecados que alguém comete, fora do corpo os comete; mas quem peca sexualmente, peca contra o seu próprio corpo.” Isso significa reconhecer que ceder à tentação traz perdas irreversíveis, como a vergonha para a sua família e a igreja, e o desperdício de talentos e recursos em vícios ou relacionamentos ilícitos.

A desobediência aos conselhos paternos sobre pureza pode resultar em perdas profundas e duradouras, tanto materiais quanto emocionais. Provérbios 28:7 diz: “Quem obedece à lei é filho sensato, mas quem anda com glutões envergonha a seu pai.” Envolver-se em relacionamentos imorais pode levar à perda de reputação na escola, a problemas com os pais, a gravidezes indesejadas, a doenças sexualmente transmissíveis ou ao desperdício de recursos que poderiam ser usados para o futuro.

É fundamental alertar os filhos sobre as consequências diretas e a longo prazo da imoralidade, usando exemplos práticos e mostrando como a desobediência traz sofrimento. Gálatas 6:7-8 afirma: “Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará. Quem semeia para a sua carne, da carne colherá corrupção.” Fale abertamente sobre os custos financeiros, emocionais, físicos e espirituais de escolhas erradas, para que eles compreendam a seriedade da questão e o valor da pureza.

As ações imorais, mesmo que pareçam “fora do trabalho”, podem ter consequências severas para a vida profissional. A perda de honra pode significar a perda de um emprego, de promoções ou de confiança. Efésios 5:3 diz: “Entre vocês não deve haver nem sequer menção de imoralidade sexual nem de qualquer impureza ou cobiça, porque essas coisas não são próprias para os santos.” Um escândalo pessoal ou um comportamento antiético (como assédio) pode destruir uma carreira promissora e manchar a reputação, fazendo com que “seus anos” sejam desperdiçados e “seus bens” comprometidos.

A imoralidade dentro da comunidade de fé traz escândalo, tristeza e enfraquece o testemunho do Corpo de Cristo. 1 Coríntios 5:1 adverte contra a imoralidade sexual entre os crentes. Aquele que ignora a disciplina e persiste no pecado pode trazer desonra para a igreja, perder a comunhão e a influência espiritual, e sofrer as consequências disciplinares, como a exclusão, levando a um “lamento” público pelo prejuízo causado.

A imoralidade generalizada em uma sociedade leva à desordem, à corrupção e à decadência. Provérbios 14:34 diz: “A justiça exalta uma nação, mas o pecado é uma desgraça para os povos.” Quando líderes ou cidadãos se entregam à imoralidade, a honra da nação é comprometida, recursos são desviados e a estrutura social se corrói, levando ao lamento coletivo pelas consequências do desrespeito às leis morais.

C. Provérbios 5:15-20 (A Sabedoria da Fidelidade Conjugal)

Em contraste com a destruição da imoralidade, este bloco apresenta o caminho da verdadeira satisfação e bênção: a fidelidade conjugal. A metáfora de “beber água da sua própria cisterna” e de desfrutar de suas “águas puras” representa a alegria e a exclusividade do relacionamento com a esposa legítima. Há um convite para “bendizer a sua fonte” e se alegrar com a mulher da sua juventude, descrevendo-a como uma gazela amorosa e uma corça graciosa, cujo amor deve saciar e cativar constantemente. O texto questiona a insensatez de buscar fora do casamento o que a união lícita pode oferecer.

Aplicação Prática: A fidelidade conjugal é um reflexo do compromisso de Cristo com a Igreja e um testemunho da santidade. Hebreus 13:4 diz: “O casamento deve ser honrado por todos, e o leito conjugal conservado puro, pois Deus julgará os imorais e os adúlteros.” Celebre e invista em seu casamento, cultivando a intimidade e a exclusividade com seu cônjuge, vendo-o como um presente de Deus e um refúgio de satisfação. Por exemplo, dedique tempo de qualidade para o seu cônjuge, invista na vida sexual dentro do casamento e resolvam conflitos com amor e paciência, priorizando a união.

Honrar os futuros relacionamentos e o casamento como um compromisso sagrado, praticando a pureza e a fidelidade desde a juventude. 1 Timóteo 4:12 exorta: “Ninguém o despreze pelo fato de você ser jovem, mas seja um exemplo para os fiéis na palavra, no procedimento, no amor, na fé e na pureza.” Isso significa evitar a promiscuidade, respeitar o corpo do outro e do próprio, e buscar um relacionamento com base em princípios bíblicos, preparando-se para um futuro casamento saudável e abençoado.

Modele a fidelidade e o amor no casamento para seus filhos. Eles aprendem mais com o que veem do que com o que ouvem. Efésios 5:25 diz: “Maridos, amem suas mulheres, assim como Cristo amou a igreja e entregou-se por ela.” Demonstre afeto, respeito e lealdade ao seu cônjuge diariamente. Ensine seus filhos sobre a beleza e a importância do casamento exclusivo, mostrando-lhes que a verdadeira alegria e segurança estão na fidelidade, e não na busca por prazeres fora do lar.

A fidelidade em seus compromissos e relações pessoais impacta sua credibilidade profissional. Colossenses 3:5 instrui: “Fugam da imoralidade sexual, da impureza, da paixão, da má concupiscência e da avareza, que é idolatria.” Um funcionário que demonstra fidelidade em seu casamento é visto como mais confiável e estável no ambiente de trabalho. Isso significa não se envolver em flertes inapropriados no trabalho, não ceder a pressões para sair com colegas de forma inadequada, e manter limites claros entre a vida profissional e a pessoal, honrando seu compromisso familiar.

A fidelidade conjugal é um pilar do testemunho da igreja. Tiago 1:27 descreve a religião pura e imaculada como “visitar os órfãos e as viúvas em suas aflições e guardar-se da corrupção do mundo.” Promova e celebre a santidade do casamento na comunidade, encorajando casais a investirem em seus relacionamentos e oferecendo apoio àqueles que lutam. A infidelidade de um membro pode desonrar o nome de Cristo e a igreja.

A valorização e a prática da fidelidade conjugal são a base para famílias fortes e, consequentemente, para uma sociedade saudável. Gênesis 2:24 fala sobre a união de um homem e uma mulher, deixando pais e mães. Promova valores que apoiam a estabilidade familiar e a monogamia como a norma social, pois famílias estáveis contribuem para a redução da criminalidade, para o bem-estar social e para o desenvolvimento de crianças mais seguras.

D. Provérbios 5:21-23 (A Vigilância Divina e as Consequências Inevitáveis)

O capítulo conclui com um lembrete solene da onipresença e onisciência de Deus. Os caminhos do homem estão constantemente diante dos olhos do Senhor, que observa todas as suas veredas. Esta vigilância divina garante que o ímpio será pego em sua própria iniquidade, aprisionado pelas cordas de seus próprios pecados. Sua morte é a consequência inevitável da falta de disciplina e da grande tolice de suas escolhas, reiterando que ninguém escapa das consequências das suas ações quando se desvia da sabedoria.

Aplicação Prática: Viver sabendo que Deus vê tudo o que fazemos, mesmo em segredo. Gálatas 6:7 diz: “Não se deixem enganar: de Deus não se zomba. Pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará.” Isso deve motivá-lo a viver com integridade constante, não apenas quando está sob os olhos de outros. Por exemplo, ao invés de ceder à tentação de pecar “escondido” (como em pornografia ou mentiras), lembre-se que seus caminhos estão sempre diante do Senhor, e escolha a retidão que traz liberdade, não a escravidão do pecado.

Acreditar que seus atos, mesmo os escondidos, têm consequências e que nada escapa ao conhecimento de Deus e, eventualmente, dos pais. Números 32:23 adverte: “Estejam certos de que o seu pecado os encontrará.” Isso o incentiva a ser honesto em todas as situações, sem tentar enganar ou esconder erros, pois a verdade sempre vem à tona e a tolice sempre traz consequências.

Ensine seus filhos sobre a onisciência de Deus e a inevitabilidade das consequências do pecado, não como uma ameaça, mas como um princípio de justiça divina. Provérbios 22:8 diz: “Quem semeia a injustiça colhe a desgraça.” Ajude-os a entender que suas escolhas moldam seu destino e que a disciplina é necessária para evitar a “morte” espiritual e moral. Por exemplo, ao corrigir um filho que mentiu, explique que a verdade sempre aparece e que a desonestidade, mesmo que traga um alívio temporário, causará problemas maiores no futuro.

A integridade profissional é uma garantia contra ser “apanhado” em suas próprias iniquidades. Provérbios 10:9 afirma: “Quem anda em sinceridade anda seguro, mas o que perverte os seus caminhos será descoberto.” Trabalhe com a consciência de que suas ações, mesmo quando ninguém parece estar olhando, são vistas por Deus. Não falsifique documentos, não desvie recursos, e não trapaceie, pois a verdade sempre prevalece e as consequências da desonestidade são inevitáveis e prejudiciais à carreira.

A disciplina e a correção dentro da igreja, embora dolorosas, são meios de Deus para evitar que o pecado leve à ruína completa. 1 Coríntios 11:32 diz: “Quando somos julgados pelo Senhor, estamos sendo disciplinados, para que não sejamos condenados com o mundo.” Reconheça que a persistência no pecado, sem arrependimento e busca de disciplina, levará à ruína espiritual. Viva uma vida que honre a Deus publicamente e em secreto, sabendo que Ele vê tudo e que a verdadeira liberdade está na obediência.

Compreender que a justiça é um princípio fundamental da sociedade e que a impunidade não dura para sempre. Provérbios 11:21 afirma: “É certo que o perverso não ficará impune, mas a descendência dos justos será libertada.” Isso deve motivá-lo a apoiar a aplicação da lei, a não compactuar com crimes ou corrupção, e a confiar que, no longo prazo, a justiça prevalecerá. Suas ações, sejam boas ou más, têm impacto na sociedade e as consequências são inevitáveis, moldando o destino coletivo.
Implicações Teológicas

Esta passagem contém o primeiro de três (ver também 6:20–35 e 7:1–27) ensinamentos estendidos do pai ao filho sobre o assunto de relacionamentos íntimos com mulheres. O simples fato de um ensino tão extenso indica a importância do tema. O pai reconhece que o sexo é uma grande tentação na vida de um jovem e representa uma tremenda ameaça à possibilidade de uma união sexual legítima na forma de casamento. No entanto, provavelmente mais do que a ética sexual está envolvida na preocupação do pai. Como será expandido abaixo, a relação entre o filho e a esposa de sua juventude reflete a relação que o pai deseja que ele desenvolva com a Mulher Sabedoria. Por outro lado, o pai quer que ele evite a mulher “estranha” ou “estrangeira” da mesma forma que ele quer que ele evite a Mulher Loucura.

As duas mulheres nesta seção são descritas como a “esposa de sua juventude”, por um lado, e a “estranha” ou “mulher estrangeira”, por outro. A primeira é facilmente compreendida como simplesmente uma mulher com quem o filho assumiu um compromisso legal. É nessa esfera de compromisso que o pai encoraja o filho a gastar suas energias sexuais. Quando a intimidade conjugal é encorajada, a motivação que é dada tem a ver com o prazer sensual, não com a progênie. Pode ser que a bênção do v. 18a (“seja abençoada a tua fonte”) implique descendência, mas mesmo isso é especulativo. Ao ensinar como temos neste capítulo (assim como no Cântico dos Cânticos), observamos a atitude muito positiva da Bíblia em relação à sensualidade e sexualidade, quando desfrutadas no contexto do casamento. Isso, sustentamos, remonta a Gênesis 2:23-25, que fornece a base para o casamento. Quando Eva é criada, ouvimos Adão exclamar:

“Ela agora é osso dos meus ossos e carne da minha carne; ela será chamada de ‘mulher’, porque ela foi tirada do homem”. Por esta razão, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne. O homem e sua esposa estavam nus e não sentiam vergonha. (New International Version)

Aqui, Deus ordena o abandono das lealdades primárias familiares anteriores, uma tecelagem conjunta, culminada por uma clivagem que atinge seu ápice no ato da relação conjugal.

A ameaça a esse relacionamento vem da tentação da mulher “estranha”. Concluímos que a mulher é “estranha” no sentido de estar fora da lei e do costume. Ela é uma parceira sexual ilegítima porque o sexo acontece fora dos atos formais de compromisso.

O extenso e consistente ensino sobre o mal do contato sexual extraconjugal leva a questionamentos sobre a natureza do provérbio e sua relação com os materiais jurídicos. Em outro lugar (veja “Gênero” na introdução), notamos que a forma do provérbio não comunica inerentemente uma instrução que seja universal e sempre válida. O provérbio é uma forma sensível ao tempo e às circunstâncias. No entanto, o ensinamento sobre como evitar a “mulher estranha” é sempre e sem exceção verdadeiro. Não há fatores atenuantes que o tornem um comportamento aceitável. Não se pode imaginar o pai dizendo ao filho: “Não vá à casa da mulher ‘estranha’, a menos que sua esposa não responda”. Nesta linha de ensino, o livro de Provérbios é consistente, eu argumentaria, porque a Torá não permite margem de manobra aqui. Aqui simplesmente reafirmo o que já dissemos sobre a relação entre lei e sabedoria.

Até aqui, falamos sobre ética, mas não sobre teologia propriamente dita. É verdade que Yahweh é mencionado apenas uma vez no capítulo. Ele é descrito como sempre observando o comportamento humano para motivar o filho a permanecer no caminho certo (v. 21). No entanto, a relação entre o filho e sua esposa e a mulher “estranha” ou “estrangeira”, quando lida no contexto de todo o livro, reflete a relação do filho com a Mulher Sabedoria e a Mulher Loucura. O argumento exegético ainda está por vir (ver caps. 8 e 9), mas veremos que a Sabedoria da Mulher representa a sabedoria de Yahweh e, finalmente, o próprio Yahweh, enquanto sua contraparte sombria, Folly, representa o caminho dos falsos deuses e deusas e, em última análise, estes próprias divindades. Em toda a Bíblia, a metáfora do casamento é usada para o relacionamento com Deus. O ponto comum de referência é que eles são os dois únicos relacionamentos mutuamente exclusivos que os humanos desfrutam. Um tem mais de um pai e pode ter vários filhos, amigos e assim por diante, mas apenas um cônjuge e um Deus: Javé.

Talvez o aspecto mais difícil do ensino do livro sobre relações sexuais ilegítimas tenha a ver com a perspectiva masculina e a descrição da mulher estranha. Em uma palavra, o livro aqui e em outros lugares (6:20-35; 7:1-27) descreve a mulher como uma predadora sexual, à espreita para capturar o jovem involuntário. Embora seja difícil negar que essas mulheres existiram ou existem, a experiência da maioria das pessoas hoje sugere que os machos são mais frequentemente predadores do que as fêmeas. Em resposta, fazemos bem em lembrar que o livro foi escrito para homens, e não apenas para todos os homens, mas também para homens que estavam no caminho que leva à sabedoria. Não foi dirigido a tolos. Esses jovens que eram os destinatários dos ensinamentos do sábio podiam passar da condição de sábios para tolos tornando-se predadores sexuais, mas por enquanto, na imaginação do discurso, não eram.

Além disso, em virtude da inclusão do livro no cânone, bem como no prólogo do livro, sugerimos que as leitoras transformem a linguagem para se adequar ao seu contexto. Em outras palavras, em vez de uma mulher de lábios de mel seduzindo um leitor do sexo masculino, eles deveriam ler em termos de um homem de fala doce tentando seduzi-los para a cama.

III. A Septuaginta e o Texto Hebraico

A tessitura grega de Provérbios 5, quando colocada ao lado do hebraico, é como ouvir a mesma melodia em dois timbres diferentes: a linha da sabedoria é a mesma, mas cada língua desloca o peso das notas, ilumina outros contornos do perigo e da fidelidade.

Logo na entrada, a LXX conserva com grande fidelidade a moldura sapiencial hebraica de pai e filho. O hebraico abre com o apelo “Meu filho, atende à minha sabedoria; inclina o teu ouvido ao meu entendimento; para que guardes o bom conselho, e os teus lábios guardem o conhecimento” (tradução de A. Cohen). O texto grego, tal como estabelecido no Vaticano B e vertido por Wolters, mantém a mesma cadência imperativa: “huie, emē sophia proseche, emoīs de logois paraballe son ous, hina phylaxēs ennoian agathēn; aisthēsis de emōn cheileōn entelletai soi”. A sintaxe grega reproduz o paralelismo hebraico por meio de dois imperativos (“proseche… paraballe”) seguidos de uma cláusula final com hina (“para que guardes…”), mas desloca discretamente o foco: no hebraico, os “teus lábios” guardam o conhecimento; no grego, a “percepção dos meus lábios” te dá ordens. O sujeito da ação passa das faculdades do discípulo para a voz do mestre. Essa escolha sintática, ao mesmo tempo fiel e interpretativa, já mostra o estilo do tradutor: ele não apenas verte, mas explicita o lugar da autoridade — é a boca do mestre que comanda, e a sabedoria é algo que se insere no ouvido do discípulo.

Quando o discurso se volta para a mulher sedutora, a divergência lexical entre hebraico e grego torna-se decisiva. O hebraico fala da “mulher estranha” (’iššāh zārāh) e — em outros contextos estreitamente relacionados — da “estrangeira” (nokrîyāh), termos carregados de ressonâncias de alteridade cultual e de fronteira de aliança. A tradução de Cohen preserva essa linha: “Porque os lábios de uma mulher estranha destilam mel, e sua boca é mais suave que o óleo; mas o seu fim é amargo como o absinto, agudo como espada de dois gumes.” A LXX, porém, abre o versículo com um imperativo mais frontal, e com um vocabulário que já embute juízo moral: “mē proseche phaulē gynaiki; meli gar apostazei apo cheileōn gynaikos pornēs, hē pros kairon lipainei son pharygga”. Em vez de “estranha” ou “estrangeira”, a mulher é “phaulē gynē” (“mulher de má qualidade”, “mulher vil”) e “gynē pornē” (“mulher prostituta”). Wolters observa que phaulos é um adjetivo depreciativo que, no grego comum, designa algo de baixa qualidade, indigno ou moralmente inferior, o que desloca o eixo da alteridade étnico-covenantal para a esfera da inferioridade ética e social (WOLTERS, Proverbs: A Commentary Based on Paroimiai in Codex Vaticanus, 2020, p. 150).

Além disso, o tradutor grego desenvolve a metáfora dos lábios com um detalhe imagenicamente ousado: a mulher “unge a tua garganta” (lipainei son pharygga). O hebraico fala da suavidade da boca; o grego, segundo Wolters, recorre ao verbo lipainō para criar o efeito de alguém cujos beijos “untam” ou “engordam” a garganta, algo que ele sugere traduzir, em inglês, como “beijo francês”, para marcar a intensidade física da cena (WOLTERS, ibid.). A escolha de pharynx, em vez de boca ou língua, é tipicamente grega e pouco idiomática em outras línguas; Wolters nota, aliás, que em outro contexto parecido (Provérbios 8:7) ele traduz “o meu pharynx dirá a verdade” literalmente como “a minha garganta falará”, mostrando que para o tradutor o “ponto de emissão” da fala é um lugar teológico: o mesmo órgão que pode ser beijado para sedução é aquele por onde passam palavras verdadeiras ou falsas (WOLTERS, ibid., p. 172). Em termos exegéticos, isso ajuda a perceber que, para a tradição grega, o pecado sexual é também pecado de palavra: o beijo e o discurso brotam da mesma garganta.

Nos versículos seguintes, a LXX continua a seguir de perto a linha hebraica, mas com um olhar próprio sobre o “caminho” da mulher. O hebraico diz que “os seus pés descem à morte; os seus passos se firmam no Sheol; ela não pondera a vereda da vida, as suas trilhas são errantes e ela não o sabe” (cf. a tradução e nota em COHEN, Proverbs: Hebrew Text & English Translation with an Introduction and Commentary, 1985, p. 47). Wolters mostra que o grego realça essa mesma ideia de descida com uma formulação que introduz a figura abstrata da mōria ou “loucura/insensatez”: segundo sua tradução, “os pés da loucura conduzem aqueles que a usam para o Hades com a morte, e os seus passos não são firmes; pois ela não caminha nas veredas da vida, e os seus caminhos são errantes e não conhecidos” (WOLTERS, ibid., 2020, p. 38). A “mulher estranha” hebraica torna-se, na versão grega, personificação de uma “insensatez” que é ao mesmo tempo mulher concreta e figura da loucura; e o verbo usado para os homens que se aproximam dela, chrāomai (“usar”), reforça a nuance de “usar seus serviços” com conotação sexual, como o próprio Wolters sublinha ao comentar “tous chrōmenous autē” como “os que a usam”, isto é, os que usufruem dela sexualmente (WOLTERS, 2020, p. 150). Assim, o grego torna ainda mais claro que o texto fala de homens que “consomem” a mulher como um serviço, e que precisamente esse uso utilitário os arrasta para o Hades.

No plano estrutural, tanto o hebraico quanto a LXX preservam um desenho que alterna advertência negativa e convite positivo. Cohen intitula o capítulo “Um apelo à castidade” e observa que o mestre retoma, com ênfase redobrada, sua admoestação contra a sedução da imoralidade, com especial preocupação pelos jovens. A sequência hebraica passa do apelo à escuta (vv. 1–2), à descrição sedutora e mortal da mulher (vv. 3–6), à ordem de dela se afastar (vv. 7–9), à advertência contra entregar “a outros a tua honra” e “os teus anos ao cruel” (vv. 9–14), culminando enfim na imagem das águas e da esposa legítima como fonte de alegria (vv. 15–19) e na descrição do fim trágico do adúltero (vv.20–23). A LXX segue esse arco, mas, como nota Wolters, faz escolhas sintáticas e lexicais que, sem romper a estrutura, sublinham certos nós teológicos (WOLTERS, ibid., 2020, p. 36).

Um exemplo expressivo disso aparece na secção central em que a LXX retoma o tema da mulher “alheia” no vocabulário de allotrios. Wolters lembra que allotrios é um adjetivo que pode significar tanto “estranho” quanto, em seu sentido mais básico, “pertencente a outrem”, o que é crucial para textos como 5:20 e outros em Provérbios (WOLTERS, ibid., 2020, p. 118). Quando o tradutor adverte: “mēde sy polus isthi sy pros allotrian” (mēde sy polus isthi sy pros allotrian), ele não está apenas repetindo a ideia de “mulher estranha”, mas explicitando que se trata de uma “mulher de outro”, isto é, uma esposa que pertence a outro homem. Cohen, ao explicar a expressão “não sejam estranhos contigo”, interpreta “estranhos” como filhos de paternidade duvidosa, filhos de adultério (COHEN, ibid., 1985, p. 47). O hebraico e o grego, lidos em conjunto, revelam assim o duplo horizonte do pecado: é, ao mesmo tempo, transgressão da fronteira da aliança (“estranha/estrangeira”) e violação da casa de outro homem (“alheia”).

A famosa seção das “águas” — “Bebe águas da tua cisterna, águas correntes do teu poço” (v. 15) — ganha, na interpretação de Cohen, um sentido abertamente conjugal: a linguagem é simbólica da relação íntima com a esposa; o “poço” é a mulher, e os “ribeiros de água” são imagem de numerosa descendência, infância brincando nas ruas, filhos legítimos, não filhos de estranhos. A LXX recolhe o mesmo simbolismo, mas reformula a sintaxe de modo que a imagem se abre sobre o espaço público da cidade. Segundo a tradução de Wolters para 5:16–18, o texto grego diz: “Que as tuas fontes não se espalhem para fora, nem as tuas águas em praças; sejam elas para ti sozinho, e nenhum estranho participe contigo; que a tua fonte seja benvinda, e alegra-te com a esposa da tua juventude” (WOLTERS, ibid., p. 38). O tradutor trabalha com dois movimentos: primeiro, impede que as “águas” saiam, em imagem de desperdício; depois, permite que elas “percorram as tuas praças”, onde se vêem filhos brincando — um eco visual da descrição de Cohen de crianças espalhadas pelas ruas da cidade. A conjugalidade não é apenas intimidade privada; é o modo como a fidelidade fecunda a polis, preenche as praças com vida.

No versículo 19, a LXX introduz ainda outra nuance: “en gar tē tautēs philia symperipheromenos pollostos esē” (en gar tē tautēs philia symperipheromenos pollostos esē). Wolters observa que symperipheromenos traz a ideia de “acomodar-se, ajustar-se” no convívio, e que o raro adjetivo pollostos é melhor entendido aqui como “muito envolvido, plenamente entregue” do que em termos temporais (“por muito tempo”) ou de família numerosa (WOLTERS, ibid., 2020, p. 118). Em vez de ler o versículo apenas como promessa de muitos filhos, a LXX sugere que, na amizade amorosa com a esposa, o marido se torna “muito” — grande em entrega, grande em ajustamento. Lido à luz do hebraico, esse deslocamento lexical ajuda a perceber que o ideal não é só um lar fecundo em filhos, mas um coração plenamente conformado à alegria da esposa da juventude.

Quando a perícope se aproxima do desfecho, o grego e o hebraico convergem de novo na visão de Deus como testemunha invisível dos caminhos do homem, mas o fazem com ritmos distintos. O hebraico afirma que “os caminhos do homem estão diante dos olhos do Senhor, e Ele pesa todas as suas veredas” (v. 21). A LXX, segundo a explicação de Wolters, retoma essa ideia, mas organiza a frase de modo a fazer da própria “vida” o lugar onde o juízo já acontece: os laços do pecado prendem o ímpio, ele é “lançado para fora da plenitude de sua vida” (exerriphē ek tēs plērotētos tēs biotētos autou), “ele pereceu em sua indisciplina e morre na loucura de sua própria vida” (WOLTERS, ibid., 2020, p. 120). O uso de aoristos com força gnômica — “foi lançado”, “pereceu” — faz do versículo menos uma previsão e mais uma sentença proverbial: é assim que, sempre, a história termina quando alguém se entrega à insensatez sexual. Já o hebraico, com seus imperfeitos e particípios, deixa entrever o prolongamento da trajetória: o ímpio “será preso”, “andará” longe da disciplina. A LXX, portanto, cristaliza em um quadro mais condensado o que o hebraico descreve como processo.

Finalmente, vale notar como a tradução grega, ao longo de todo o capítulo, acentua a responsabilidade ativa do discípulo por meio de escolhas verbais fortes. Em 5:9, por exemplo, quando o hebraico adverte para não “dar” a outros a própria honra, o tradutor usa o meio de proiēmi — “para que não desperdices a tua vida com outros” (hina mē proē allois zōēn sou), tornando mais vívida a ideia de jogar fora a existência (WOLTERS, ibid., 2020, p. 150). A imagem hebraica da dissipação de bens e vigor torna-se, em grego, uma espécie de lançamento da vida ao lixo, algo que, lido ao lado da insistência do hebraico em “não dar” a glória a outrem, revela a natureza sacrificial e autodestrutiva do adultério: o homem não apenas peca contra Deus e contra o próximo, mas de fato se esvazia de vida.

Assim, quando se deixa que o hebraico e o grego de Provérbios 5 dialoguem, descobre-se que a LXX não é apenas espelho, mas também lente. Ela conserva a estrutura exortativa do discurso sapiencial e a alternância entre sedução e fidelidade, mas afia as bordas do texto hebraico com um vocabulário que insiste na vileza (phaulē gynē), na prostituição (gynē pornē), no caráter “alheio” da mulher (allotria), no desperdício da vida (proiēmi), na garganta que se deixa untar e que, ao mesmo tempo, deveria proclamar a verdade. O hebraico, com sua insistência na “mulher estranha”, na metáfora da água conjugal e na presença silenciosa de Deus medindo as veredas, oferece o cenário da aliança; a LXX, com seus verbos de uso, de desperdício e de acomodação amorosa, colore esse cenário com a linguagem moral e existencial do mundo helenista. Quando as duas vozes se ouvem juntas, Provérbios 5 deixa de ser apenas um grito contra o adultério e aparece como um chamado límpido para que toda a vida — garganta, passos, fontes, praças — seja guardada na fidelidade à sabedoria e à esposa, sob o olhar atento de Deus que pesa, como ourives, os caminhos do coração.

A. A LXX e o Novo Testamento

Há alguns pontos bem nítidos em que o léxico grego de Provérbios 5 se encaixa diretamente no vocabulário do Novo Testamento, como se o capítulo fosse um pequeno laboratório onde certas palavras são treinadas para o uso posterior dos escritores cristãos.

Em primeiro lugar, o eixo da sexualidade: a LXX de Provérbios 5 fala da gynē pornē (“mulher prostituta”) e da sedução ligada a ela. O substantivo pornē (“prostituta”) é precisamente a base de porneia (“imoralidade sexual”) e porneuō (“prostituir-se”), termos que no Novo Testamento designam de modo amplo todo tipo de conduta sexual ilícita (por exemplo, em Mateus 5:32; 19:9; 1 Coríntios 6–7). Estudos específicos mostram que porneia deriva de pornē e que, no grego bíblico, passou a ser um termo abrangente para fornicação, adultério e práticas sexuais fora da aliança do casamento, não apenas prostituição formal. A cena de Provérbios 5, com a “mulher prostituta” que atrai e destrói, fornece exatamente o campo semântico e moral que reaparece quando Paulo, por exemplo, denuncia a porneia em comunidades cristãs gregófonas.

Depois, o vocábulo Hadēs (“Hades”), que na LXX traduz sistematicamente o hebraico Sheol (o “mundo dos mortos”), é usado em Provérbios 5:5 para dizer que os pés da mulher levam o homem “até o Hades”. Essa escolha lexical passa diretamente para o Novo Testamento, onde Hadēs designa o estado/intermédio dos mortos (por exemplo, Mateus 11:23; 16:18; Atos 2:27, 31; Apocalipse 1:18). A imagem sapiencial — o adultério conduzindo “para o Hades” — prepara, em grego bíblico, o uso neotestamentário em que Hades é o horizonte de juízo e perda para quem rejeita o caminho de Deus.

Um terceiro ponto importante é phaulos (“mau, vil, sem valor”), termo que, segundo a crítica de vocabulário do NT, significa sobretudo algo “moralmente sem valor, desprezível”, em contraste com agathos (“bom”). Esse adjetivo aparece na LXX em contextos sapienciais como rótulo ético forte, e no Novo Testamento é usado para qualificar “as obras más” que serão manifestas no juízo (João 3:20; 5:29; Romanos 9:11; 2 Coríntios 5:10; Tiago 3:16). A estrutura de Provérbios 5 — em que a “mulher vil” e o caminho dela são apresentados como realidade “sem valor” que consome a vida — está em linha com essa polarização moral que o NT herdará: não há zona neutra entre o bem e o “phaulos”.

A própria linguagem de sophia (“sabedoria”) em Provérbios 5 contribui para o pano de fundo sobre o qual o Novo Testamento vai trabalhar o contraste entre “sabedoria” e “loucura” (moria). Em textos como 1 Coríntios 1–2, sophia ainda carrega o peso veterotestamentário de uma sabedoria moral, que orienta a vida e protege contra a sedução, enquanto moria designa o desdém orgulhoso pela cruz. Quando Paulo contrapõe a “sabedoria deste mundo” à sabedoria de Deus, ele fala numa língua já educada por capítulos como Provérbios 5: sabedoria é o caminho da fidelidade à aliança, insensatez é deixar-se arrastar pela voz doce que conduz ao Hades. Nesse sentido, o léxico de Provérbios 5 na LXX não apenas reaparece no vocabulário do NT; ele já molda, em grego, o imaginário ético no qual o anúncio cristão vai se inscrever.

IV. Intertextualidade com o Antigo e Novo Testamento

Provérbios 5 é como um pequeno drama em que a casa de Israel, o lar humano e o coração individual se refletem uns nos outros. Quando o capítulo fala do jovem diante da “mulher estranha” e da “esposa da sua mocidade”, ele alinha, numa mesma linha de horizonte, a aliança conjugal, a sabedoria e a própria relação com Deus. É nesse ponto que o texto começa a dialogar de maneira intensa com todo o Antigo Testamento e depois com o Novo Testamento.

Dentro do próprio livro de Provérbios, o capítulo 5 é um trecho central do bloco 1–9, em que duas figuras femininas dominam a cena: a Sabedoria personificada e a Mulher Estranha/Folly. Lindsay Wilson mostra que as advertências contra essa mulher em Provérbios 1–9 são desproporcionalmente numerosas em relação ao resto do livro; isso indica que ela representa mais do que um perigo sexual pontual, funcionando também como encarnação da própria loucura que conduz à morte. Nili Shupak, examinando o vocabulário hebraico (zārâ, nokhrîyâ), argumenta que, em Provérbios 2, 5, 6 e 7, a figura é primeiramente “a mulher de outro homem”, uma adúltera, mas que sua imagem é ampliada até tornar-se símbolo de uma ameaça à comunidade inteira, como se vê também no texto de Qumran 4Q184. Essa duplicidade — real e simbólica — já prepara o terreno para os usos teológicos posteriores da metáfora do adultério em todo o cânon.

Do ponto de vista legal e ético, Provérbios 5 conversa diretamente com a legislação da aliança. Tremper Longman nota que o ensino concentrado sobre a “mulher estranha” é um desenvolvimento sapiencial do sétimo mandamento — “não adulterarás” — e que a própria forma em que o pai fala ao filho deixa claro que aqui não se trata de uma máxima circunstancial, mas de uma exigência incondicional do pacto. A sabedoria não substitui a lei, mas a traduz em termos de caráter e consequência: ao invés de simplesmente repetir a proibição, o capítulo dramatiza as perdas de honra, de bens, de saúde e, por fim, de vida, para mostrar que o adultério é uma espécie de suicídio moral que prende o homem nas cordas de seu próprio pecado (Pv 5:22–23). John Goldingay vai na mesma linha ao observar que a condenação de adultério em Provérbios se apoia na função social da família: a fidelidade conjugal garante a clareza da descendência, a responsabilidade pelos filhos e o tecido de confiança que sustenta a comunidade; por isso, quebrar essa fidelidade é, ao mesmo tempo, estupidez social e afronta a Deus.

Essa ética remonta ao início da história bíblica. Longman lê o elogio da alegria sexual com a “mulher da tua mocidade” (Pv 5:15–19) à luz de Gênesis 2:23–25: o homem que deixa pai e mãe para unir-se à mulher e tornar-se “uma só carne” encontra nessa união o ápice da fidelidade, físico e afetivo, que Deus abençoa desde a criação. O convite a “embriagar-se” sempre nos carinhos da esposa (Pv 5:19) é ecoado pelo Cântico dos Cânticos, onde o amor é melhor do que o vinho e o deleite conjugal é celebrado como dom divino, não como concessão culpada. Assim, Provérbios 5 se coloca entre Gênesis e o Cântico: tomando a estrutura criacional do casamento e antecipando a poesia erótica consagrada, ele afirma que o desejo não é inimigo da santidade, mas precisa ser moldado pelo pacto.

No outro extremo do Antigo Testamento, os profetas usam o adultério como metáfora para a idolatria e a infidelidade de Israel. Estudos sobre as imagens conjugais em Oséias, Jeremias e Ezequiel mostram como a relação Deus–Israel é narrada como casamento, e a idolatria, como prostituição adúltera. Nesse pano de fundo, a escolha do jovem entre a esposa e a mulher estranha em Provérbios 5 pode ser lida como miniatura da escolha de Israel entre Yahweh e os falsos deuses. Longman sublinha que, dentro do conjunto 1–9, a relação do filho com a sua esposa é paralela à relação com a Mulher Sabedoria, enquanto a sedução da Mulher Estranha espelha o fascínio da Mulher Tola e, por extensão, dos deuses rivais. Wilson reforça que, por trás do enredo sexual, está sempre o contraste entre o “caminho da vida” e o “caminho da morte”: quem se deixa enredar por essa mulher escolhe a rota para o Sheol, como quem abandona a Sabedoria abraça a morte. O capítulo, assim, fica suspenso entre Deuteronômio (“escolhe, pois, a vida”) e os profetas que denunciam a “prostituição” de Israel com outros deuses: em cada abraço proibido, há um eco de apostasia.

Essa conexão intertextual se adensa quando se percebe que a “mulher estranha” não é apenas uma figura isolada, mas parte de uma constelação feminina em Provérbios 1–9. A pesquisa de Shupak sobre a imagética feminina mostra que a Mulher Estranha e Senhora Loucura formam um par antitético de da Senhora Sabedoria, tal como a esposa fiel espelha a Sabedoria no nível doméstico. A casa da mulher adúltera desce às câmaras da morte (Pv 7:27), enquanto a casa da Sabedoria, em Provérbios 9, é lugar de banquete e vida. Essa polarização se aproxima da linguagem dos profetas, em que Jerusalém adúltera é contraposta à futura noiva restaurada, pura e ornada para o seu marido, e prepara a simbologia nupcial retomada no Novo Testamento.

Quando o olhar se desloca para o Novo Testamento, a ética de Provérbios 5 reaparece, ao mesmo tempo contínua e radicalizada. Jesus, no Sermão do Monte, retoma o sétimo mandamento — “Não adulterarás” — e o expande para o nível do desejo: quem olha com cobiça já cometeu adultério no coração (Mateus 5:27–30). Estudos sobre essa passagem mostram como Jesus se insere tanto no ambiente sapiencial judaico quanto em debates éticos helenistas ao insistir que o mal não está só no ato externo, mas no movimento interno do desejo que romperia a aliança se pudesse. Provérbios 5 já sugeria a importância dos “olhos” e dos “caminhos” — onde o jovem olha, por onde ele anda — como pontos de vulnerabilidade; Jesus leva essa intuição ao extremo paroxístico da hipérbole (“se teu olho te faz tropeçar, arranca-o”), a fim de revelar que a luta contra a sedução passa pelo governo dos afetos e imaginações.

A teologia paulina da sexualidade dialoga com Provérbios 5 ao rearticular o tema em chave cristológica e pneumatológica. Em 1 Coríntios 6:12–20, Paulo ordena: “Fugi da imoralidade sexual”; o verbo não é contemplativo, mas urgente, como o conselho de Provérbios 5:8 — “afasta o teu caminho dela, não te aproximes da porta da sua casa”. Tanto o sábio quanto o apóstolo insistem que o caminho da sedução não se combate pelo flerte com o perigo, mas pela distância deliberada. Estudos sobre 1 Coríntios 6 mostram como Paulo une motivos sapienciais, legais e cultuais: o corpo pertence ao Senhor, é templo do Espírito, foi comprado por preço, e por isso não pode ser entregue à prostituição. A lógica é paralela à de Provérbios: o corpo não é domínio neutro, mas lugar de aliança — no Antigo Testamento, com a esposa e com Deus; no Novo, com Cristo e sua comunidade.

Em 1 Tessalonicenses 4:3–7 e Hebreus 13:4 ressoa a mesma cadência: santificar-se é “abster-se da imoralidade sexual”, “manter o leito sem mácula”, porque “Deus julgará os adúlteros”. A diferença é que, se Provérbios 5 tipicamente enfatiza consequências “naturais” — pobreza, vergonha, doenças, morte — como expressão da ordem criada, o Novo Testamento torna explícito o horizonte escatológico e forense: a infidelidade conjugal, como forma de porneía, será julgada na vinda do Senhor. Essa intensificação não rompe com a ética de Provérbios, mas a leva ao ponto em que cada ato de infidelidade aparece como escolha entre dois senhores: permanecer na aliança com Deus ou entregar o corpo e o coração a outro domínio. Uma leitura canônica, como a de Richard Hays ao articular a “visão moral” do Novo Testamento, mostra que a sexualidade é sempre tratada em relação à comunidade e à nova criação, e não como esfera isolada. Nisso, Paulo e Provérbios caminham juntos: ambos veem no adultério uma agressão contra o corpo social e contra o projeto de Deus para sua família.

Há ainda um diálogo mais profundo, de textura simbólica, em que Provérbios 5 antecipa o uso cristão da imagem matrimonial para falar da relação Cristo–Igreja. Longman ressalta que, em Provérbios 1–9, a Sabedoria personificada, que acolhe na sua casa e oferece banquete, representa em última instância o próprio Deus, ao passo que a mulher tola encarna os caminhos dos falsos deuses. Estudos sobre a recepção neotestamentária da Sabedoria mostram como o Novo Testamento identifica Cristo com essa Sabedoria eterna, fonte de vida, que convida os simples para a mesa (1 Coríntios 1:24, 30). Se a união com a “mulher da tua mocidade” simboliza o apego fiel à Sabedoria de Deus, a infidelidade com a Estranha torna-se figura de uma apostasia cristológica: trocar a intimidade com Cristo por amores rivais. Não é por acaso que, em Apocalipse, a grande meretriz Babilônia, com seu vinho e seus luxos sedutores, retoma e amplia o arquétipo da mulher que conduz os homens à ruína, enquanto a Nova Jerusalém desce adornada “como noiva para o seu marido”: duas mulheres, dois banquetes, dois destinos, como em Provérbios 9.

É também significativo que Tiago fale de “adúlteros” ao censurar aqueles que fazem amizade com o mundo (Tiago 4:4), retomando a tradição profética em que a infidelidade religiosa é adultério espiritual. Essa linguagem é uma espécie de eco tardio das advertências de Provérbios 5: quem se entrega à sedução alheia “abandona a companhia da sua mocidade” — seja o cônjuge, seja o Deus da aliança — e se encaminha, encantado, para a casa da morte. As malhas dessa intertextualidade vão atando Provérbios 5 a Gênesis, aos profetas, aos evangelhos, às cartas e ao Apocalipse, de modo que o capítulo deixa de ser apenas um conselho prudencial sobre sexo e torna-se um espelho onde se vê, ao mesmo tempo, o drama da casa, de Israel e da Igreja.

Nesse panorama, Provérbios 5 aparece como uma encruzilhada narrativa e ética: nele, o jovem é chamado a ouvir a voz do pai e da Sabedoria, a alegrar-se sem vergonha com a esposa, a manter distância da sedução que conduz à morte, e assim, sem o saber, a representar em miniatura o próprio povo de Deus em sua história. A escolha entre os braços da mulher estranha e os braços da esposa torna-se figura da escolha entre a loucura e a sabedoria, entre os ídolos e o Deus vivo, entre um prazer breve que corrói a alma e um amor exclusivo que floresce em vida. O Antigo Testamento prepara essa música, o Novo acrescenta novos instrumentos e um tom escatológico; mas o tema melódico continua o mesmo: fidelidade de coração e de corpo, porque o Deus da aliança é ciumento em amor e deseja que o seu povo, no leito e no altar, lhe pertença por inteiro.

V. Teologia de Provérbios 5

Quando a teologia se debruça sobre Provérbios 5, ela não está lidando apenas com “ética sexual” ou “sabedoria prática”, mas com um capítulo que encena, no corpo e na casa, um drama inteiro sobre Deus, criação, desejo e caminho de vida ou de morte. Katharine J. Dell insiste, nos dois livros que você enviou, que Provérbios como um todo é profundamente teológico: Deus é apresentado como Criador, e a Sabedoria como mediadora, no centro de uma relação densa entre Deus e a humanidade, mesmo quando o nome divino quase não aparece na superfície do texto (DELL, The Theology of the Book of Proverbs, 2023, p. 1). Em sua obra sobre o contexto social e teológico, ela também afirma que Provérbios teve “um propósito teológico desde a sua concepção”, com a criatividade de Deus como tema integral do livro, não como acréscimo tardio (DELL, ibid., pp. 3–4). Assim, antes mesmo de olhar para os detalhes de Provérbios 5, Dell nos convida a enxergar cada advertência, cada imagem, cada contraste entre leito conjugal e rua, como um modo concreto de falar do Deus que cria, ordena, limita e chama o ser humano a viver dentro de um cosmos moralmente estruturado, onde a sabedoria é a arte de habitar a criação de Deus.

Nesse horizonte, Provérbios 5 aparece como a “oitava instrução” de Provérbios 1–9, um discurso paterno dirigido a um jovem que já é, de modo surpreendente, casado, o que colore todo o capítulo com um tom nitidamente conjugal. A sequência se organiza em quatro blocos: o chamado inicial à atenção (versículos 1–2), a reaparição da “mulher solta” ou sedutora nos versículos 3–14, a virada positiva para a “esposa da tua mocidade” nos versículos 15–19 e, por fim, um fecho mais geral sobre as consequências do pecado nos versículos 20–23 (DELL, ibid., pp. 40–41). Dell sublinha que o professor fala aqui em primeira pessoa – “minha sabedoria”, “meu entendimento” – de forma incomum em relação a outras instruções, o que confere ao discurso um tom de responsabilidade pessoal e quase de testemunho, como se ele dissesse: “eu mesmo aprendi, no corpo e na história, o que estou te ensinando agora”. A teologia do capítulo, assim, nasce não de formulações abstratas, mas da encenação de uma pedagogia: um pai sábio, um filho vulnerável, duas figuras femininas em tensão, e Deus presente como aquele que estruturou o mundo de tal modo que certos caminhos inevitavelmente desembocam em vida e outros em ruína.

O coração poético e teológico de Provérbios 5, na leitura de Dell, é o contraste entre a mulher sedutora e a esposa legítima. No plano terminológico, a sedutora é parte do conjunto de figuras que Dell chama, no outro volume, de “Mulher Loucura”, descrita nas diversas passagens de Provérbios 5–7 como “mulher estranha” e “mulher estrangeira”, com termos que se alternam entre zārâ ʾiššâ (“mulher estranha”) e nokrîyâ (“estrangeira”), figuras plásticas que oscilam entre uma mulher de fora e uma adúltera de dentro da comunidade (DELL, ibid., p. 74). 

A doçura inicial encobre a amargura final: logo em seguida ela se revela “amarga como absinto”, com um caminho que conduz a Sheol, isto é, um modo de vida cuja lógica interna leva à morte, mesmo que o cenário imediato seja apenas o quarto escondido de uma aventura. O pai aconselha, não tanto a “resistir” heroicamente, mas a não se aproximar da porta da casa dela, sublinhando uma teologia da prudência: evitar a ocasião é já uma forma de temor do Senhor, porque reconhece a própria fragilidade e o poder da ordem moral que Deus inscreveu no mundo (Provérbios 5:8).

No livro sobre o contexto social, Dell aprofunda essa mesma linha, mostrando que a metáfora dos “lábios que gotejam mel” retoma, de propósito, a doçura erótica de Cântico dos Cânticos 4:11, mas agora num registro invertido, em que a doçura se torna armadilha. Os versículos 9–10 são lidos por ela como um catálogo teológico de perdas: reputação e saúde, depois riqueza e forças, até que o discípulo se veja “no caminho inevitável da morte e destruição, lamentando sua falta de disciplina” (DELL, The Book of Proverbs in Social and Theological Context, 2006, p. 41). A cena do versículo 14, em que o homem se percebe à beira de ser exposto “na assembleia pública”, é entendida como um raro vislumbre de fórum cívico em Provérbios, uma espécie de praça ou conselho de cidadãos onde a vergonha privada se torna escândalo público, ligando o pecado sexual a uma quebra de coesão social e comunitária. Assim, teologicamente, o adultério não é só ofensa íntima, mas fratura da vida em comum diante de Deus.

É também nesse capítulo que Dell percebe uma tensão entre “fora” e “dentro” que tem peso teológico. De um lado, a sedutora circula por “ruas e praças”, espaço aberto, anônimo, onde a intimidade é banalizada e transformada em mercadoria ou em jogo de poder; de outro, a esposa é associada à casa, ao poço próprio, à cisterna fechada. Quando o texto convida o marido a beber “água da própria cisterna” e não deixar que suas fontes corram pelas ruas (Provérbios 5:15–16), Dell lê isso como uma metáfora sexual com forte subtexto teológico: o corpo é um terreno confiado por Deus, a fertilidade é dom e responsabilidade, e o casamento é espaço protegido onde esse dom é honrado. O contraste, portanto, não é apenas entre duas mulheres, mas entre dois modos de lidar com um bem que, em última instância, pertence a Deus: a energia vital, a “fonte” da vida. Por isso, ela observa que a “esposa da juventude” em Provérbios 5:18 assume funcionalmente o lugar que em outras instruções é ocupado por Sabedoria, por Yahweh ou pelo “caminho” correto: ela é personificação doméstica da fidelidade à ordem de Deus, antídoto concreto contra a dispersão do desejo (DELL, ibid., 2006, pp. 40–41).

No fecho do capítulo, Dell chama atenção para o vocabulário de “iniquidades” e “pecado” aplicado ao próprio transgressor em Provérbios 5:22, termos raros em Provérbios 1–9 e, por isso mesmo, marcados de peso religioso. Em sua leitura, esses termos funcionam como um zoom teológico: aquilo que parecia apenas imprudência sexual é reconfigurado como ato que se coloca sob a lógica da retribuição divina, inserindo as aventuras do leito na mesma gramática de justiça que governa toda a literatura sapiencial. O homem é retratado como enredado pelas próprias transgressões, “laçado com as cordas do seu pecado”; o laço aqui não é um castigo arbitrário imposto de fora, mas a própria estrutura do ato que, deformado, passa a prender quem o praticou (DELL, ibid., 2006, pp. 41–42). Nesse sentido, a teologia de Provérbios 5 articula a doutrina da criação com uma doutrina muito concreta do pecado: Deus fez o mundo de tal forma que desrespeitar os limites do outro – do corpo do outro, da casa do outro, do leito do outro – gera automaticamente redes de perda, vergonha e morte.

Quando Dell amplia o foco para a teologia global de Provérbios, ela mostra que esse capítulo se encaixa no grande tema do “caminho da vida”. Em outro lugar, ao tratar dos provérbios de caminho, ela observa que a imagem do percurso, dos passos, dos pés que se desviam, serve para organizar a experiência moral como uma jornada na presença de Deus, em que escolhas aparentemente pequenas vão acumulando direção (DELL, ibid., 2023, p. 141). Provérbios 5 participa precisamente desse imaginário: a sedutora oferece um atalho saboroso, mas o texto insiste que seus pés descem para a morte e que o jovem, se a seguir, acabará vindo a público como exemplo negativo. Dell nota que não é simples separar o “social” do “teológico” nesse livro: a mesma ordem divina que estrutura o cosmos dá o contorno dos caminhos humanos, de modo que o campo da moralidade sexual não é um apêndice “profano”, mas expressão concreta da fé no Criador que ordena o mundo com sabedoria (DELL, ibid., 2006, p. 8). Assim, a teologia de Provérbios 5 não se limita a dizer “não adulteres”; ela pinta, com imagens vívidas, o mapa de uma existência que ou flui como um rio canalizado para dentro da aliança, ou se derrama sem leito pelas ruas, desperdiçando a água e ferindo a terra.

Quando se pergunta como tudo isso contribui para a teologia cristã como um todo, o caminho que Dell abre é o da continuidade da tradição sapiencial. No volume teológico, ela dedica espaço à “vida posterior” de Provérbios em outros escritos bíblicos e indica que sua teologia da sabedoria – centrada em Deus como Criador e na Sabedoria como mediadora – é retomada e reelaborada em textos posteriores, inclusive no Novo Testamento (DELL, ibid., 2023, p. 2). Se Provérbios 5 mostra o corpo e a cama como lugares onde se decide o “caminho da vida”, o cristianismo herdará essa intuição e a relerá à luz de Cristo como Sabedoria encarnada, na qual se cruzam criação, desejo e redenção. A lógica de que “o pecado amarra o pecador” ressoa, por exemplo, em leituras cristãs que enxergam, em 1 Coríntios 6, o corpo como templo e a união sexual como participação existencial, não apenas como ato isolado – e Dell, ao destacar o caráter relacional e comunitário das advertências de Provérbios 5, fornece o pano de fundo veterotestamentário para esse tipo de leitura. O contraste entre a mulher sedutora e a esposa da juventude, por sua vez, afina o ouvido do leitor para os grandes contrastes neotestamentários entre dois “senhores”, dois “caminhos”, dois “amores” que disputam o coração humano, de modo que a fidelidade conjugal se torna ícone da fidelidade da Igreja ao seu Senhor.

A teologia de Provérbios 5 é uma teologia da criação ordenada, do desejo disciplinado e da retribuição inscrita na própria tessitura da realidade. Ao colocar a sexualidade sob a luz do Deus Criador e do temor do Senhor, o capítulo antecipa temas que a teologia cristã desenvolverá em chave cristológica e eclesial: o corpo como lugar de aliança, o casamento como figura de um amor fiel maior, o pecado como autoaprisionamento e o caminho da sabedoria como resposta agradecida à estrutura amorosa do mundo de Deus. Nesse sentido, Provérbios 5 não é apenas um pedaço moralista do Antigo Testamento, mas um pequeno poema dramático no qual o Deus da vida educa seus filhos a transformar o próprio desejo em fonte de bênção e não de destruição – uma educação que, para a fé cristã, encontra seu ápice na figura daquele em quem a Sabedoria se fez carne e habitou entre nós.

VI. Análise e Estrutura Literária

Provérbios 5 se ergue como um único poema instrucional, a oitava grande “lição de sabedoria” do conjunto 1–9, mais longa do que qualquer outra até então, com exceção do capítulo 2, e inteiramente organizada em torno do perigo da mulher alheia e da beleza da fidelidade conjugal (CLIFFORD, Proverbs, 1999, p. 66). A voz do pai reaparece com o conhecido apelo “meu filho”, mas agora o cenário é mais denso: o capítulo retoma a ameaça apenas esboçada em Provérbios 2:16–19 e prepara o terreno para o desenvolvimento pleno do tema em Provérbios 6:20–35 e 7:1–27, onde a figura feminina sedutora se tornará quase narrativa (CLIFFORD, ibid., pp. 66–67; LONGMAN, Proverbs, 2006, pp. 133–134). John Goldingay resume bem essa função quando organiza o capítulo sob o título “Infidelidade e Fidelidade Conjugal”, dividindo-o em quatro movimentos: sabedoria e infidelidade (5:1–6), o que se segue ao adultério (5:7–14), o que se segue à fidelidade (5:15–19) e a conexão final entre infidelidade e estupidez (5:20–23) (GOLDINGAY, Proverbs, 2023, p. 9). A própria forma do capítulo, portanto, já anuncia seu tema: não é uma coleção de provérbios soltos, mas um discurso contínuo que constrói, verso após verso, uma escolha de caminhos e de amores.

A primeira cena (5:1–6) trabalha sobretudo com o ouvido e com a imaginação: o pai chama o filho a “atentar” e a “inclinar o ouvido”, para que seus lábios guardem conhecimento; em contraste, os lábios da mulher estranha destilam mel e o seu paladar é mais suave que o óleo, mas o fim é amargo como o absinto, afiado como espada de dois gumes (CLIFFORD, ibid., pp. 66–70). Stuart Weeks nota que, já aqui, a mulher estrangeira aparece como contrafigura de Sabedoria: uma voz persuasiva, que oferece caminhos, mas conduz para longe da “vereda da vida” (WEEKS, Instruction and Imagery in Proverbs 1–9, 2007, pp. 142–143). Clifford observa que a mulher é descrita de modo impressionista, quase despersonalizada: ela é toda “lábios” e “pés”; define-se apenas pela capacidade de falar e de caminhar, e ambos os movimentos conduzem à morte, pois suas palavras e seus passos guiam os incautos para o Sheol (CLIFFORD, Proverbs, 1999, p. 70). A poesia marca a alma justamente nesse contraste: a doçura inicial da fala e o abismo para o qual os pés descem; o leitor vê o brilho do mel na boca e, ao mesmo tempo, o escuro da cova debaixo dos pés.

No nível lexical, os termos que qualificam a mulher – frequentemente vertidos como “estranha” e “estrangeira” – carregam um peso decisivo. Weeks lembra que os vocábulos hebraicos zārā e nokriyā aparecem em pares (2:16; 5:3, 20; 6:24; 7:5), compondo a imagem de alguém “de fora”, um terceiro elemento que rompe alianças e invade o espaço íntimo (WEEKS, ibid., p. 143–144). Tremper Longman insiste que essa “estranheza” não deve ser entendida primeiro como etnia, mas como transgressão de limites morais e de aliança: ela é “estrangeira” porque age fora das fronteiras da lei, violando o compromisso com o “companheiro da juventude” e com a aliança do seu Deus, o que a mostra como uma adúltera israelita, e não simplesmente uma mulher não israelita (LONGMAN, ibid., pp. 133–134). Nili Shupak, examinando a imagem feminina em Provérbios 1–9, reforça esse ponto: em todas as ocorrências, a “mulher estranha” é, antes de tudo, “mulher de outro homem”, aquela que não é “tua”, cujo fascínio destrói o tolo que aceita ser conduzido para sua casa (SHUPAK, “Female Imagery in Proverbs 1–9”, 2011, p. 313). O texto, assim, desenha a figura de uma alteridade sedutora que invade e corrói a intimidade alheia.

A estrutura interna de Provérbios 5 acentua o contraste de caminhos por meio de repetições e enlaces lexicais. Clifford chama atenção para a cadeia de termos que costuram o poema: “meu filho” ou “meus filhos” aparece nos versículos 1, 7 e 20; o verbo “inclinar o ouvido” liga os versículos 1 e 13; a designação “mulher proibida/estrangeira” se repete nos versículos 3, 10, 17 e 20; a ideia de “fim/resultado” volta em 4 e 11; a raiz “tomar/segurar” reaparece em 5 e 22; “ver” e “caminho” conectam 5:6 com 5:21; “casa” e “disciplina” recobrem as duas partes; e o verbo que descreve estar “embriagado/perdido” associa 19, 20 e 23 (CLIFFORD, ibid., p. 70). Weeks observa ainda o lugar de Provérbios 5 na macroestrutura 4:20–7: seção em que a imagem do “caminho” domina (4:26–27; 5:6, 8, 21; 6:23; 7:8), e a advertência contra a mulher estrangeira é montada justamente como um desvio dessa rota (WEEKS, ibid., p. 185–187). Em termos literários, o capítulo inteiro é um drama de movimento: lábios que destilam, pés que descem, caminhos que se desviam, águas que escorrem para fora ou permanecem dentro, e, ao fundo, o olhar de Deus que “vê” todos os circuitos do coração humano.

O segundo bloco (5:7–14) intensifica o tom de urgência. O vocativo muda de “meu filho” para “filhos”, alargando o horizonte da exortação e sugerindo que a história contada é exemplar, quase paradigmática para toda a comunidade (LONGMAN, Proverbs, 2006, p. 174). O pai manda o ouvinte manter o caminho “bem longe” da mulher, não se aproximar da porta da sua casa, para não entregar a outros o vigor, os anos, as forças e o fruto do trabalho (Provérbios 5:8–10). Longman nota a mudança do singular “mulher estranha” para o plural “estranhos”, identificando possivelmente homens que exploram a situação – cúmplices ou estruturas sociais que se aproveitam do desvario sexual do tolo (LONGMAN, ibid., p. 174–175). O desfecho desse bloco é um lamento em primeira pessoa (5:12–14), no qual a personagem reconhece retrospectivamente que rejeitou a disciplina e agora se encontra “à beira da ruína completa, no meio da congregação e da assembleia”. Weeks percebe aqui um ponto literário importante: o arruinado não está confinado a uma vergonha secreta, mas sua desgraça acontece “no coração da comunidade”, invertendo a ilusão de um prazer secreto sem consequências sociais (WEEKS, ibid., 2007, p. 209).

A passagem mais célebre, no entanto, é provavelmente o conjunto de imagens de água em 5:15–19. Weeks observa que o contraste central não é apenas sexual, mas espacial: água “dentro” e água “fora”. Poços e cisternas são fontes fechadas, privadas, em oposição às fontes e canais que correm pela rua e se dispersam (WEEKS, ibid., pp. 209–210). Para ele, essa metáfora remete ao interior da comunidade de Israel, o espaço onde o jovem deve buscar esposa, em vez de dispersar seus recursos com “estranhos”. Bruce Waltke, por sua vez, lê o trecho como uma alegoria cuidadosamente construída da relação sexual: a linguagem quase esgota o vocabulário de fontes de água (“cisterna”, “poço”, “fontes”, “canais”), e o paralelo explícito com “a esposa da tua mocidade” em 5:18 indica que a água simboliza o prazer erótico legítimo, comparável à saciedade de quem mata a sede em fontes frescas (WALTKE, Proverbs 1–15, 2004, pp. 432–433). Longman vai ainda mais longe, aproximando a imagem da linguagem amorosa do Cântico e de paralelos do Antigo Oriente Próximo, e interpretando poço e cisterna como metáforas discretas, mas claras, da genitália feminina, de modo que “beber água da tua própria cisterna” significa encontrar satisfação sexual exclusivamente na própria esposa (LONGMAN, ibid., p. 175).

Nesse ponto, a literatura secundária converge na leitura do contraste entre a “mulher estranha” e “a esposa da tua mocidade” como eixo literário do capítulo. Clifford sintetiza esse quadro em uma passagem que ajuda a perceber o entrelaçamento entre realismo ético e simbolismo espiritual:

“O contraste também pode ser expresso entre os perigos externos (representados pela mulher “estrangeira” que rouba a força e os recursos do homem) e a segurança interna (representada pela esposa que protege o amor e a descendência do homem). Em ambas as representações, a linguagem é realista: descreve o que pode acontecer no adultério. O adultério pode levar à perda da saúde (v. 9), da riqueza familiar (v. 10), da reputação (v. 14) e tornar-se a causa de um profundo arrependimento. As perdas podem ser irreparáveis ​​(vv. 11–13). O remédio é igualmente pragmático e objetivo: valorizar a própria esposa. Além disso, a instrução possui um nível metafórico, estabelecido na descrição inicial da mulher proibida: Seus lábios destilam mel e seus pés conduzem à morte. A busca pela verdadeira sabedoria, que começa com a atenção às palavras do mestre, pode ser arruinada pelo engano alheio e pelas próprias paixões descontroladas.” (CLIFFORD, Proverbs, 1999, p. 70).

Shupak desenvolve a mesma antítese com foco na imagética feminina: a “mulher estranha” é uma caçadora de vidas, que traz pobreza e morte, enquanto a “esposa da mocidade” é poço que transborda vida, fertilidade e prazer, com imagens de corça e gazela próximas às do Cântico dos Cânticos (SHUPAK, “Female Imagery in Proverbs 1–9”, 2011, pp. 313–314). Assim, Provérbios 5 não é apenas um aviso contra uma amante específica, mas um retrato poético de dois modos de relação: um que rouba e esvazia, outro que sacia e faz florescer.

Os versículos finais (5:20–23) recolhem todos esses fios numa conclusão que é ao mesmo tempo extremamente concreta e profundamente teológica. Weeks destaca o jogo com o verbo que pode significar “embriagar-se” e “desviar-se” (šāgāh): o marido é convidado a “embriagar-se” no amor da esposa (5:19), mas é advertido a não se “embriagar” com a estranha (5:20); no fim, o insensato “morrerá por falta de disciplina e, na grandeza da sua loucura, se desviará”, trabalhando o mesmo campo semântico de perda de controle e desorientação (WEEKS, ibid., pp. 209–210). Aqui, o jogo literário reforça a ironia espiritual: quem se entrega a uma falsa embriaguez acaba atolado numa embriaguez de culpa da qual não consegue sair. A imagem do caminho volta com força: os “caminhos do homem estão perante os olhos do Senhor, que examina todas as suas veredas” (5:21), retomando a teologia dos caminhos opostos de Provérbios 2 e 4 (LONGMAN, ibid., pp. 133–135). Não há, portanto, “amores escondidos” literariamente neutros: todo desejo é um passo em alguma estrada, e essa estrada é vista.

Dentro do todo de Provérbios 1–9, o capítulo 5 se encaixa num mosaico em que a sabedoria é personificada como mulher que chama das encruzilhadas, enquanto a insensatez também ganha rosto feminino e voz sedutora. Weeks mostra que a “mulher estrangeira” funciona como contraponto narrativo de Sabedoria, culminando na “mulher da loucura” de Provérbios 9:13–18, que ecoa seus traços de sedução e morte (WEEKS, ibid., pp. 142–143). Longman, do lado exegético, une esses fios ao notar que o duelo entre a mulher estranha e a esposa fiel reflete o duelo entre Mulher Sabedoria e Mulher Insensatez: duas mesas, duas casas, dois convites, dois fins (LONGMAN, ibid., pp. 133–137). Goldingay reforça essa leitura ao intitular Provérbios 7 “The Fatal Attraction” e Provérbios 9 “The Choice”, mostrando que a trama iniciada em Provérbios 5 desemboca numa grande cena de decisão existencial (GOLDINGAY, Proverbs, 2023, p. 10–11). O capítulo 5, assim, é como um ensaio geral do drama: nele já ressoam a voz da sedutora, o convite da fidelidade, a estrada que desce à morte e a vereda da vida vigiada pelo olhar de Deus.

Lido desse modo, o texto literariamente não se reduz a um código moral frio, mas é uma peça poética que trabalha com imagens sensoriais para catequizar o coração: lábios que pingam mel, espada que corta, passos que descem, água que mata a sede, corça graciosa, olhares de Deus que atravessam as sombras. A estrutura coesa, a rede de repetições, o uso de corpos e caminhos, o paralelismo entre duas mulheres e dois destinos – tudo conduz o leitor a entender que a sabedoria bíblica não separa sexualidade de espiritualidade, nem romance de justiça. O jovem interpelado pelo pai é convidado a escrever essa poesia com a própria vida: fugir de amores que esvaziam, cultivar amores que alimentam, beber da própria cisterna, caminhar sob o olhar daquele que conhece cada vereda, e deixar que o próprio coração se torne, pela fidelidade, uma fonte que não se derrama em becos escuros, mas irriga um jardim inteiro.

VII. Contexto Histórico Sociocultural

O quadro histórico e sociocultural por trás de Provérbios 5 é um mundo em que o leito conjugal é nervo exposto de toda a estrutura social: casa, herança, honra, linhagem, deuses e terra. O capítulo fala com a voz terna de um pai, mas por trás dessa voz doméstica ressoam tribunais mesopotâmicos, escribas egípcios e os juízes de Israel, todos concordando que o adultério é um fogo que queima muito além do quarto onde começa. Nesse sentido, Provérbios 5 não é um meteorito isolado, mas parte de uma constelação de advertências sapienciais e leis que atravessam o Antigo Oriente Próximo.

O trecho abaixo condensa bem o tom prático desses textos:

A sabedoria egípcia e mesopotâmica desaconselha dormir com uma mulher que não seja a esposa, seja ela casada ou prostituta. Assim como os Provérbios, esse conselho emana de considerações práticas, não de qualquer lei (veja abaixo). Ou seja, o adultério traz mais dor do que prazer. Segue abaixo uma amostra dos ensinamentos de outras fontes de sabedoria do antigo Oriente Próximo (veja também a referência a Any no comentário sobre 2:16):

Não fale com uma garota, se você for casado; a calúnia é forte.

Meu filho, não se sente sozinho num quarto com a mulher de outro homem. (Shuruppak ll. 33–34, 49. Veja B. Alster, The Instructions of Shuruppak (Mesopotamia 2; Copenhagen: Akademisk Forlag, 1974), 37.)

Não tomes para ti uma mulher cujo marido esteja vivo, para que ele não se torne teu inimigo. (8.12)

Quando um homem cheira a mirra, sua esposa é como uma gata diante dele. (14.11)

Não violentas uma mulher casada. (21.18)

Aquele que violenta uma mulher casada na cama terá sua esposa violentada no chão. (21.19)

Aquele que se deita com uma prostituta terá sua bolsa cortada de lado. (22.6) [AEL, 3:166, 171, 177, 178.]

Essas máximas egípcias e mesopotâmicas funcionam exatamente como Provérbios 5: não apresentam um “mandamento divino” em forma de lei, mas esboçam as consequências sociais, econômicas e morais de se deitar com a mulher errada. Em Shuruppak, o pai adverte o filho a não se sentar a sós com a esposa de outro; o risco central não é um decreto abstrato, mas a “calúnia” e a inimizade que se levantam contra ele (ALSTER, The Instructions of Shuruppak: A Sumerian Proverb Collection, 1974, p. 37). Do lado egípcio, os trechos preservados em Ancient Egyptian Literature de Miriam Lichtheim mostram que a sabedoria tardia insiste em que violar uma mulher casada significa abrir a própria casa ao colapso: quem toca a esposa de outro verá a sua violada “no chão”, quem se deita com uma mulher da rua terá a bolsa rasgada. (LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature. Volume III: The Late Period, 1980, pp. 166, 171, 177–178).

No pano de fundo de Provérbios 5, portanto, há duas camadas que se entrelaçam: uma camada sapiencial, que persuade pelo cálculo de perdas e ganhos, e uma camada jurídica, que declara o adultério um crime de morte. A literatura de sabedoria – egípcia, mesopotâmica e israelita – prefere a linguagem do “caminho que conduz à morte” e do “fogo que consome o peito” (como em Provérbios 6:27–29), ao passo que as coleções legais – em Israel e na Mesopotâmia – descrevem pena capital e sanções rituais. Raymond Westbrook mostrou que, em todo o espectro de leis do Antigo Oriente Próximo (Ur-Nammu, Eshnunna, Código de Hamurabi, leis assírias e hititas), o adultério é tipicamente tratado como delito contra o marido e sua “casa”, não como um pecado “romântico” entre dois indivíduos (WESTBROOK, “Adultery in Ancient Near Eastern Law”, Revue Biblique 97, 1990, p. 542–580). Martha Roth, reunindo esses códigos, mostra que, já em Ur-Nammu §6 e Eshnunna §26, a relação com a esposa de outro homem pode implicar morte de ambos os parceiros, ou, em certos casos, ser comutada por acordo entre o marido lesado e o rei, preservando sempre o foco no dano ao “proprietário” da casa (ROTH, Law Collections from Mesopotamia and the Mediterranean, 1997, pp. 17, 63, 106, 157–158).

Essas leis ajudam a entender por que, no comentário que você citou, se afirma que “Having sexual relations with another man’s wife was punishable by death in both the biblical and the ancient Near Eastern codes. The Egyptian Tale of Two Brothers calls it a ‘great crime’ that is not to be considered by an honest man or woman.” A narrativa egípcia de “Os Dois Irmãos”, preservada em papiro do Reino Novo, descreve a falsa acusação de adultério da esposa mais velha e, quando o engano é desmascarado, classifica o adultério verdadeiro como um “grande crime” que um homem honesto não deve sequer considerar, ecoando o horror jurídico e social que o mundo israelita também pressupõe (LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature. Volume II: The New Kingdom, 1976, pp. 204–211).

Nili Shupak, ao comparar Provérbios 1–9 com fontes egípcias, observa que a advertência contra a “mulher estranha” em Provérbios 5 se insere num padrão já bem estabelecido na sabedoria egípcia: os livros de instrução tratam de forma recorrente da mulher casada que tenta seduzir o jovem, apresentando-a como perigo tanto moral quanto social para a família e para a reputação do rapaz (SHUPAK, “Female Imagery in Proverbs 1–9 in the Light of Egyptian Sources”, Vetus Testamentum 61, 2011, pp. 316). Nos Ensinamentos de Ptahhotep, por exemplo, o discípulo é advertido a não “se aproximar de uma mulher casada”, pois “a morte vem para quem se envolver com elas” e “nenhum dos seus assuntos prosperará” – exatamente a mesma combinação entre erotismo momentâneo e ruína prolongada que vemos em Provérbios 5 (DEPLA, “Women in Ancient Egyptian Wisdom Literature”, em Women in Ancient Societies: An Illusion of the Night, ed. L. J. Archer, S. Fischler, M. Wyke, 1994, pp. 24–52.).

Os textos de Ankhsheshonqy e do Papiro Insinger, traduzidos por Lichtheim, aprofundam essa lógica. Quando se diz: “Quando um homem exala perfume de mirra, sua esposa é como uma gata diante dele.” (AEL 3:171), o quadro que emerge é de uma sensualidade masculina que, perfumada e embriagada, tende a desprezar a esposa legítima em favor de outras mulheres. Mas as máximas seguintes introduzem uma retribuição quase talional: “Aquele que violentar uma mulher casada na cama terá sua esposa violentada no chão... Aquele que fizer amor com uma prostituta terá sua bolsa cortada na lateral.” (AEL 3:177–178). A esposa desprezada torna-se vulnerável, a bolsa rasgada representa perda econômica, e o jogo erótico, como em Provérbios 5, vira moeda de desgraça. (LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature. Volume III: The Late Period, 1980, pp. 166, 171, 177–178).

Eyre, num estudo clássico sobre “Crime and Adultery in Ancient Egypt”, mostra que os registros judiciais confirmam esse pano de fundo: em alguns casos, a mulher adúltera é tratada com dureza – mutilação, morte, expulsão – enquanto o homem pode sofrer apenas sanções econômicas ou corporais mais leves, revelando uma assimetria de gênero que também aparece no imaginário de muitos textos de sabedoria (EYRE, “Crime and Adultery in Ancient Egypt”, Journal of Egyptian Archaeology 70, 1984, pp. 92–105). Galpaz-Feller, estudando os mesmos documentos, nota que o adultério é visto simultaneamente como pecado contra a ordem moral e como delito contra o corpo cívico, merecendo censura pública que ultrapassa o âmbito doméstico (GALPAZ-FELLER, “Private Lives and Public Censure: Adultery in Ancient Egypt and Biblical Israel”, Near Eastern Archaeology 67, 2004, pp. 153–161). Esse horizonte ajuda a perceber que o pai de Provérbios 5 fala a um filho que sabe muito bem que adulterar é mexer na costura visível da honra familiar, não apenas cometer uma falta “privada”.

Do lado mesopotâmico, a combinação de advertência sapiencial e sanção jurídica é igualmente forte. As Instruções de Shuruppak – uma das mais antigas coleções de sabedoria suméria, possivelmente remontando ao terceiro milênio – alertam o filho a não sentar-se com a esposa de outro em um quarto fechado, e a não tomar para si “uma mulher cujo marido ainda está vivo” para não fazer de si um inimigo (ALSTER, The Instructions of Shuruppak, 1974, pp. 35–37). Já as leis, como as de Ur-Nammu e Eshnunna, especificam, por exemplo, que um homem que dormir com a esposa de outro pode ser morto juntamente com ela ou lançado ao rio para julgamento divino, dependendo do acordo e do estatuto social envolvido (ROTH, Law Collections from Mesopotamia and the Mediterranean, 1997, pp. 17, 63, 106, 157–158). Estudos comparativos recentes sobre casamento e divórcio no Egito e na Mesopotâmia confirmam essa lógica: em geral, a esposa adúltera sofre pena mais dura – inclusive morte – enquanto o marido adúltero pode escapar com multa ou acordo, revelando uma visão do adultério como violação de propriedade masculina e perigo para a certeza de paternidade (ALI, “Marriage and Divorce in Ancient Egypt and Ancient Iraq (Mesopotamia): A Comparative Study”, Journal of the General Union of Arab Archaeologists 2, 2017, pp. 117–121).

Quando o comentário que você citou afirma que o adultério “era um ataque à casa de um homem, roubando seus direitos de procriar e pondo em risco a transmissão ordenada de seu patrimônio”, está retomando precisamente a análise de Westbrook: o adultério coloca em dúvida a legitimidade dos herdeiros e, portanto, todo o futuro da família. (WESTBROOK, A History of Ancient Near Eastern Law, 2003, pp. 84–88). É esse pano de fundo que ilumina o vocabulário econômico e genealógico de Provérbios 5: o jovem é advertido a não entregar a “outros” a sua honra, a não deixar que “estranhos se fartem do seu trabalho” e a não ver “seus anos” caírem “nas mãos de homens cruéis” (Provérbios 5:9–10). Aquilo que em Shuruppak e em Insinger aparece como perda da bolsa, da casa ou da esposa, em Provérbios 5 se torna perda de honra, riqueza e futuro – o caminho para a ruína social que se estende muito além da noite de prazer.

Nesse contexto, a figura da “mulher estranha” em Provérbios 5 ganha uma nitidez ainda maior. Shupak mostra que a iconografia e a linguagem sapienciais egípcias contrastam duas imagens femininas: a esposa fiel, associada à casa, à estabilidade e à prosperidade, e a sedutora perigosa, frequentemente casada, que ameaça a ordem doméstica (SHUPAK, “Female Imagery…”, 2011, pp. 316–318). Em Provérbios 5, o pai exorta o filho a alegrar-se com “a mulher da sua mocidade”, a ver nela uma fonte de prazer contínuo, enquanto descreve a estranha como lábios que pingam mel, mas cujo fim é amargura e espada de dois gumes. Essa polarização espelha os manuais egípcios e mesopotâmicos: de um lado, a esposa legítima como “cisterna” e “poço” de água limpa; de outro, a estranha como torrente descontrolada que leva o homem à morte e à exposição pública. Carole Fontaine, refletindo sobre as metáforas de água em Provérbios 5:15–20, mostra como, num contexto agrário em que cada fonte e cisterna era vital para a subsistência, associar o corpo da esposa a uma “cisterna própria” e os impulsos masculinos a “fontes” e “ribeiros” que não devem se derramar nas praças é transformar a ética sexual em questão de sobrevivência econômica e ecológica, não apenas de moral privada (FONTAINE, “Visual Metaphors and Proverbs 5:15–20: Some Archaeological Reflections on Gendered Iconography”, em TROXEL et al. (eds.), Seeking Out the Wisdom of the Ancients, 2005, pp. 198–201).

Por fim, a articulação entre sabedoria e lei em Provérbios 5 fica mais clara à luz desses paralelos. A Torá de Israel já havia declarado: “Não adulterarás” (Êxodo 20:14; Deuteronômio 5:18), estipulando morte para os adúlteros em Levítico 20:10 e Deuteronômio 22:22–27. Os códigos mesopotâmicos e as narrativas egípcias, como vimos, caminham na mesma direção. No entanto, o sábio de Provérbios não se limita a repetir a lei: ele entra no terreno das motivações, mostra que o adultério é um “grande crime” não apenas porque a lei o diz, mas porque destrói o corpo, a casa, o nome, o bolso e o futuro. Estudos recentes sobre a ética sexual em Israel e no Antigo Oriente Próximo insistem exatamente nesse ponto: tanto em Israel quanto entre seus vizinhos, a proibição do adultério é um ponto em que teologia, direito e prudência cotidiana convergem, e a literatura sapiencial funciona como ponte que traduz a seca formulação legal em imagens vivas de sedução e ruína (GALPAZ-FELLER, “Private Lives and Public Censure…”, 2004, p. 153–161; RICHTER, “Rape in Israel’s World… and Ours”, Journal of the Evangelical Theological Society 64, 2021, p. 67).

Lido nesse horizonte, Provérbios 5 deixa de ser apenas um sermão moralista e se torna um mapa social: o pai israelita está ensinando ao filho como navegar num mundo em que o leito de uma mulher casada é cruzamento de forças econômicas, jurídicas e religiosas. A linguagem das fontes egípcias e mesopotâmicas mostra que o autor de Provérbios 5 não fala no vácuo, mas dialoga com uma tradição ampla que sabia, pela experiência amarga das cidades e tribunais, que “adulterar” é brincar com o próprio futuro – e, por isso, o convida a saciar a sede apenas na água limpa da sua própria cisterna.

Bibliografia

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GALVÃO, Eduardo. Provérbios 5: Significado, Explicação e Devocional. In: Biblioteca Bíblica. [S. l.], abr. 2013. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].

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