Provérbios 7: Significado, Explicação e Devocional
Provérbios 7
Provérbios 7 adverte contra os perigos da tentação sexual e do adultério. O capítulo conta a história de um jovem que é seduzido por uma mulher adúltera e as consequências que se seguem. Provérbios 7 começa com uma introdução na qual o autor incita o leitor a prestar atenção e seguir seus ensinamentos. Ele então descreve uma mulher sedutora que está vestida com roupas provocantes e à procura de um jovem para atrair para sua cama. O seu significado central, é um conto de advertência que adverte contra os perigos da tentação sexual e a importância de evitar comportamentos imorais. Enfatiza a necessidade de sabedoria e autocontrole para resistir à tentação e seguir o caminho da retidão.Observação: O capítulo 7 constitui um ensinamento separado, mas no tema está intimamente ligado a 5:1-23 e 6:20-35, pois contém uma advertência do pai ao filho para evitar um relacionamento íntimo com uma mulher que não seja a esposa. De muitas maneiras, o presente capítulo destaca aspectos do ensino das duas passagens anteriores. O pai descreve o forte fascínio de tal relacionamento e, em particular, adverte o filho a tomar cuidado com a bajulação da mulher (5:3). Além disso, descreve o engano que está envolvido em tal relacionamento. E, finalmente, e talvez o mais importante, lembra o filho das horríveis consequências que aguardam aqueles que cedem à tentação. O que é único sobre esse ensino é seu apelo à observação. O sábio conta a história de um “jovem sem coração” que cedeu à tentação. A história narra suas ações tolas, bem como as consequências negativas que surgiram delas.
I. Explicação de Provérbios 7
Provérbios 7:1
Filho meu, guarda as minhas palavras, e entesoura contigo os meus mandamentos (Hb.: bənî šĕmōr ʾămāray ûmiṣwōtāy tiṣpōn ʾittāḵ — “meu filho, guarda as minhas palavras, e os meus mandamentos tu os esconderás contigo”). Aqui o versículo se abre com bənî (“meu filho”), vocativo no singular, que marca o tom de intimidade pedagógica de um pai-mestre que se inclina para o discípulo. O verbo šĕmōr vem de šāmar (“guardar, vigiar, observar”), em qal imperativo, 2ª pessoa masculina singular, funcionando como ordem direta para uma guarda ativa, não meramente passiva; não é apenas lembrar, é vigiar a própria vida para que ela se alinhe àquilo que foi dito. O objeto direto, ʾămāray (“as minhas palavras”), traz o sufixo de 1ª pessoa, indicando que não são “ideias gerais”, mas palavras concretas que saem da boca do sábio. Em seguida, ûmiṣwōtāy tiṣpōn ʾittāḵ combina o substantivo miṣwōtāy (“os meus mandamentos”) com o verbo tiṣpōn (de ṣāpan, “esconder, guardar, entesourar”), no imperfeito qal 2ª masc. sing., com valor volitivo, descrevendo o estado contínuo que deve caracterizar o discípulo: viver como quem acumula, como quem guarda tesouros em um cofre interior. A preposição ʾittāḵ (“contigo”) sugere que esses mandamentos não são depositados em um armazém externo, mas carregados na esfera íntima da vida. Sintaticamente, temos uma frase de vocativo (“meu filho”), seguida de dois predicados coordenados imperativados (šĕmōr / tiṣpōn), que vão do ouvir à interiorização. O versículo corrige a ideia de que mandamentos são fardos exteriores: aqui, são riquezas a serem entesouradas, como quem guarda algo precioso junto ao peito; por isso, a tradução “te convêm” não traduz bem o hebraico, pois enfraquece a imagem de tesouro guardado, onde o texto aponta para o ato de esconder e acumular cuidadosamente esses mandamentos dentro de si, como capital espiritual que sustentará o leitor no restante do capítulo.
A literatura rabínica lê esse apelo como algo muito mais denso do que um simples conselho moral: é a voz da Torá personificada, chamando Israel a uma intimidade de aliança. Em Midrash Mishlei a respeito de seções sapienciais como esta, o livro de Provérbios é visto tão perigoso e tão santo que, em Avot deRabbi Natan, conta-se que houve quem quisesse “guardar” Mishlei, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes no sentido de escondê-los, por medo de serem mal compreendidos, até que os homens da Grande Assembleia explicaram seu verdadeiro sentido e “tranquilizaram” o povo, citando justamente a cena do jovem seduzido em Provérbios 7 como exemplo de leitura que exige maturidade (Avot deRabbi Natan 1). Assim, o “filho meu” não é apenas um indivíduo genérico, mas o discípulo que entra numa tradição interpretativa; “guardar” as palavras é acolhê-las de tal modo que, quando surgirem textos ambíguos ou perigosos, ele esteja resguardado por uma escuta profunda da Torá e de seus sábios.
Provérbios 7:2
Guarda os meus mandamentos e vive, e a minha lei como a pupila dos teus olhos (Hb.: šĕmōr miṣwōtāy weḥyê, wĕtōrātî kəʾîšōn ʿênêḵā — “guarda os meus mandamentos e vive, e a minha lei como a pupila dos teus olhos”). O versículo retoma o imperativo šĕmōr (“guarda”) em paralelo com o v. 1, reforçando a continuidade da exortação: o mesmo verbo qal imperativo 2ª masc. sing. enfatiza uma guarda vigilante. O complemento miṣwōtāy mantém o plural com sufixo de 1ª pessoa, marcando que a vida do discípulo é moldada por um conjunto de mandamentos, não por um conselho ocasional. O verbo seguinte, weḥyê (“e vive”), é qal imperativo ou jussivo 2ª masc. sing. de ḥāyâ (“viver”), de modo que a frase inteira adquire coloração promissiva: guardar os mandamentos não mata a vitalidade, mas a preserva e aprofunda. A segunda metade introduz tōrāh com o pronome possessivo (tōrātî, “a minha lei/ensino”), integrando a ideia de instrução didática ao conjunto de mandamentos. A expressão kəʾîšōn ʿênêḵā (“como a pupila dos teus olhos”) é uma metáfora delicada e profundamente concreta: ʾîšōn, literalmente “homemzinho”, designa a figura minúscula que vemos refletida na pupila, o centro negro do olho, a parte mais sensível e protegida do corpo, conforme explicam os comentaristas judaicos tradicionais. Assim, a imagem é de extremo cuidado: instintivamente defendemos a pupila de qualquer agressão; da mesma forma, a tōrāh deve ser protegida contra qualquer coisa que a fira, distorça ou contamine. A sintaxe é simples e enfática: dois imperativos (“guarda... vive”), seguidos de um comparativo introduzido por kə- (“como”) que liga a lei à pupila. O texto afirma que a verdadeira vida emerge da observância da instrução divina, e que a relação com a lei não é de aridez, mas de ternura: ela se torna aquilo que o olhar protege com reflexo quase instintivo, como se a própria visão do mundo dependesse dessa instrução guardada.
Aqui convém ajustar ligeiramente a tradução: em vez de “e viva”, a forma hebraica indica “e viverás”, promessa de vida alargada, e “Torá” é mais preciso do que “lei” em sentido jurídico estreito. O comentarista Malbim, num espírito próximo ao midráshico, observa que os miṣwōt (“mandamentos”) são o que o homem “faz e vive neles”, ao passo que a Torá é “a luz dos olhos” pela qual enxerga o caminho; por isso o texto compara a Torá à pupila, que precisa ser guardada de qualquer dano, pois é o “olho intelectual” pelo qual o ser humano vê a luz de Deus (Folha de estudo que cita Malbim em Mishlei 7:2). Os rabinos, ao ecoarem essa imagem em suas homilias, deixam claro que a Torá não é um peso externo, mas a delicadíssima zona de visão da alma: quem a fere, cega-se espiritualmente; quem a guarda junto ao coração, “vive”, não apenas no sentido biológico, mas na qualidade de vida que a sabedoria confere.
Provérbios 7:3
Ata-os aos teus dedos, escreve-os na tábua do teu coração (Hb.: qašrēm ʿal ʾeṣbaʿōteḵā, kaṯvēm ʿal lûaḥ libbeḵā — “ata-os aos teus dedos, escreve-os na tábua do teu coração”). O imperativo qašrēm vem de qāšar (“amarrar, atar”), qal imperativo 2ª masc. sing. com sufixo de 3ª masc. pl. (“ata-os”), remetendo à prática de atar algo ao corpo como lembrete constante. Os ʾeṣbaʿōteḵā (“teus dedos”, plural com sufixo de 2ª masc. sing.) evocam a parte do corpo que age, trabalha, escreve e toca; amarrar os mandamentos aos dedos significa integrar a instrução à prática, de modo que toda ação manual seja orientada pela sabedoria. Na segunda metade, kaṯvēm (imperativo de kātav, “escrever”, com sufixo de 3ª masc. pl.) desloca a imagem para dentro: a superfície agora é lûaḥ libbeḵā (“a tábua do teu coração”), onde lûaḥ designa uma placa de escrita, como as tábuas de pedra da aliança. O coração, lēb, no hebraico bíblico não é mero centro emotivo, mas a sede da mente, da vontade e da decisão; por isso, escrever ali equivale a inscrever a Palavra na instância mais profunda da pessoa. Sintaticamente, os dois imperativos em paralelo, ligados por assonância (qašrēm/kaṯvēm), criam um paralelismo sinfônico: primeiro o gesto externo (dedos), depois o gesto interno (coração), num movimento que vai da prática visível à motivação invisível. O versículo denuncia a insuficiência de uma religiosidade apenas exterior — amuletos, símbolos, gestos — e aponta para uma interiorização radical: é preciso que aquilo que a mão faz e aquilo que o coração deseja estejam escritos pela mesma mão divina, de modo que o jovem não se deixe levar pelo fascínio da mulher adúltera descrita mais adiante, porque o próprio coração já traz gravada uma outra escritura.
A tradução está essencialmente correta. O Talmud toma esse versículo como chave para a intenção com que se estuda Torá: em Nedarim 62a, uma baraita adverte que ninguém deve dizer “vou estudar para que me chamem sábio, rabino, ancião”, mas sim “aprende por amor, e o prestígio virá depois”, e então cita exatamente “ata-os aos teus dedos, escreve-os na tábua do teu coração”, seguido de “os seus caminhos são caminhos de delícias” e “árvore de vida é para os que dela lançam mão” (Provérbios 3:17–18) para mostrar que a Torá atada aos dedos e gravada no coração é obra de amor e não de vaidade (Nedarim 62a). Os “dedos” tornam-se símbolo do agir: a Torá deve entrar nos gestos mais cotidianos, enquanto a “tábua do coração” é o centro das decisões. No imaginário rabínico, isso prepara, inclusive, a linguagem dos tefilin amarrados no braço e sobre a cabeça: o dedo que escreve, o braço que age, o coração que decide, todos marcados pela Palavra, até que o discípulo se torne, ele mesmo, uma espécie de rolo vivo da Torá.
Provérbios 7:4
Dize à sabedoria: Tu és minha irmã; e ao entendimento chama: Parente! (Hb.: ʾĕmōr laḥoḵmā ʾăḥōtî ʾat, ûmōdāʿ labbînâ tiqrāʾ — “dize à sabedoria: minha irmã és tu; e a familiaridade chama entendimento”). O imperativo ʾĕmōr (“dize”), qal 2ª masc. sing. de ʾāmar (“dizer”), introduz um discurso direto que modela a confissão do discípulo; ele deve literalizar sua relação com a sabedoria. O substantivo ḥoḵmā (“sabedoria”) aparece com o artigo implícito na preposição la- (“à sabedoria”), como se fosse uma personagem. A expressão ʾăḥōtî ʾat (“minha irmã és tu”) é sintagma nominal com sufixo possessivo e pronome independente, construindo um laço de parentesco íntimo, mas puro: a irmã, na cultura israelita, é alguém da própria casa, próxima, protegida, mas proibida como objeto de desejo erótico. O paralelismo intensifica a imagem com ûmōdāʿ labbînâ tiqrāʾ: mōdāʿ vem de yādaʿ (“conhecer”), e aqui significa “parente íntimo, conhecido, familiar”, enquanto bînâ (“entendimento, discernimento”) designa a capacidade de perceber nuances. O verbo tiqrāʾ (qal imperfeito 2ª masc. sing.) tem valor injuntivo: “chamarás entendimento ‘teu parente íntimo’”. Sintaticamente, o paralelismo entre “sabedoria/irmã” e “entendimento/parente” constrói uma pequena cena doméstica na qual a sabedoria é instalada dentro da família afetiva do discípulo. O versículo desloca o eixo das afeições: em vez de dirigir eros para a mulher estranha, o coração do jovem é ensinado a formar laços de afeição com a sabedoria e o discernimento. A linguagem de parentesco delimita e purifica o amor: é um afeto intenso, mas ordenado, que preenche o espaço interior de modo a neutralizar a sedução destrutiva que virá na narrativa.
Aqui a tradução “Parente!” pode ser refinada para “parente íntimo” ou “confidente”, pois mōdāʿ sugere alguém próximo, familiar. Em Midrash Mishlei 14:2, este versículo é relido de modo surpreendente: ali se cita “dize à sabedoria: tu és minha irmã” e afirma-se que o que é chamado de “longe” (merāḥōq) é a própria ruaḥ ha-qodesh, o Espírito Santo, segundo Jeremias 31, sugerindo que a sabedoria próxima como “irmã” espelha a experiência da presença divina que, embora transcendente, se deixa aproximar na Torá (Midrash Mishlei 14:2). Em outro passo, o mesmo midrash associa esta imagem à “mulher virtuosa” de Provérbios 31: a esposa fiel torna-se paradigma da alma sábia que sustenta o justo, enquanto a “mulher estranha” de Provérbios 7 é a anti-imagem. O contraste rabínico, então, é nítido: o discípulo deve tratar a sabedoria como laço de sangue, inseparável e protegido, e o entendimento como um parente com quem se conversa constantemente; quem não cultiva essa intimidade vaga vulnerável pelo mesmo caminho em que o jovem ingênuo será arrastado pela sedutora.
Provérbios 7:5
Para te guardar da mulher estranha, da estrangeira que suaviza as suas palavras (Hb.: lišmorkā mēʾiššā zārā, minnāḵrîyā ʾămāreyhā heḥĕliqāh — “para te guardar de mulher estranha, de estrangeira, as suas palavras ela alisou”). A conjunção li- em lišmorkā introduz um infinitivo construto de šāmar com sufixo de 2ª masc. sing. (“para te guardar”), indicando o propósito de todo o encadeamento dos versículos 1–4: a interiorização da sabedoria tem uma finalidade protetiva concreta. Os dois termos femininos, ʾiššā zārā (“mulher estranha”) e nāḵrîyā (“estrangeira”), são adjetivos substantivados que ultrapassam a ideia de mera nacionalidade; zār e nāḵrî descrevem aquilo que é “de fora”, “alheio”, tanto em termos sociais quanto religiosos, frequentemente associados à idolatria e à infidelidade de aliança. O paralelismo sinonímico duplica o perigo, como se cercasse o jovem por dois lados. A cláusula final ʾămāreyhā heḥĕliqāh traz ʾămārîm (“palavras”) com sufixo de 3ª fem. sing. e o verbo heḥĕliqāh, hifil perfeito 3ª fem. sing. de ḥālaq (“ser liso, escorregadio”), que em hifil assume o sentido de “alisar, tornar suave, adocicar”. O perfeito descreve a ação como já consumada: a mulher já tratou previamente suas palavras, polindo-as como quem lustra metal ou unge com óleo; o jovem já as recebe prontas, sedutoras, sem asperezas. Sintaticamente, o infinitivo de propósito governa a frase inteira, de modo que a presença da sabedoria como irmã e da inteligência como parente tem um fim claro: impedir que a voz doce da sedução, cuidadosamente polida, penetre onde o coração já está cheio de mandamentos gravados. Este versículo mostra que a luta não é abstrata; é uma batalha de discursos. Palavras internalizadas (mandamentos, tōrāh) são escudo contra palavras alisadas e enganosas; a estranheza da mulher é, antes de tudo, doutrinária e ética, e sua suavidade verbal é o canal por onde a infidelidade se insinua.
A tradução “forasteira que suaviza as suas palavras” é boa, mas a expressão hebraica aponta para uma língua que escorrega, lisonjeia e engana. Comentadores como Malbim, ecoando um tema midráshico, insistem numa dupla camada: “mulher estranha” não é só a adúltera literal, mas também um símbolo para a idolatria, pois “quem se prostitui após outros deuses” é descrito como infiel à aliança; assim, a “estrangeira” é aquela que abandonou a fé de Israel e arrasta outros para deuses alheios (Comentário de Malbim em Mishlei 2:16). Em Isaías 58, um midrash liga a expressão “para te guardar da mulher estranha” à escolha de uma esposa “que te seja conveniente” em termos de Torá, pois dela nascerão filhos de sabedoria: o mesmo verbo “guardar” é aplicado tanto à proteção contra a sedução quanto à guarda da santidade conjugal, e o contraste entre a voz lisa da estranha e a voz firme da Torá reforça, para os sábios, que toda falsa doutrina chega à alma com polidez sedutora antes de revelar sua violência (Midrash em Isaías 58:1–14).
Provérbios 7:6
Pois da janela da minha casa, através da minha grade, olhei para fora (Hb.: kî bəḥallōn bêtî, bəʿad ʾešnabbî nišqaptî — “pois pela janela da minha casa, através da minha grade, eu me debrucei”). Aqui, o discurso muda para a primeira pessoa com nišqaptî, nifal perfeito 1ª sing. de šāqap (“olhar de cima, debruçar-se”), conferindo ao narrador o papel de testemunha ocular. O advérbio causal kî liga a cena a tudo o que foi dito antes, como se dissesse: “eu sei do que falo, porque vi com meus próprios olhos”. A expressão bəḥallōn bêtî (“pela janela da minha casa”) situa o observador em lugar elevado e protegido; ḥallōn é a abertura por onde se vê o exterior, mas a casa permanece barreira. Já bəʿad ʾešnabbî (“através da minha grade”) adiciona a ideia de uma treliça, um tipo de grade vazada que permite ver sem ser visto. Morfologicamente, temos duas frases preposicionais que preparam o cenário, seguidas de um único predicado verbal na primeira pessoa; a sintaxe é simples, mas pictórica. Este versículo funciona como quadro de abertura da pequena “parábola” que se seguirá: o sábio não fala a partir de abstrações, mas do que observou na vida real, como alguém que olha a rua pela janela. A posição na casa, por trás da grade, simboliza o ponto de vista da sabedoria — um lugar de segurança e discernimento —, em contraste com o jovem que anda desprotegido na rua. A janela se torna, assim, metáfora de um olhar filtrado, que enxerga o perigo sem se expor a ele.
A imagem da “janela” fascina os midrashim: em Midrash Tanchuma sobre Ki Tisa, o autor costura três textos — a mãe de Sísera olhando pela janela (Juízes 5:28), os servos de Jezabel que espreitam Jeú pela janela (2 Reis 9:32) e este versículo de Provérbios — para mostrar um motivo comum: olhar de um ponto elevado para discernir o que realmente acontece no mundo lá embaixo (Midrash Tanchuma, Ki Tisa 14). Nessa leitura, o narrador de Provérbios representa a sabedoria que observa o drama humano à distância segura: vê a trama da sedução sem estar preso a ela. Maimônides, no Guia dos Perplexos, usa este mesmo versículo como exemplo de um tipo de mashal profético, em que a cena exterior encena o estado interior da alma: o “olhar pela janela” simboliza o intelecto que contempla, com lucidez, os passos de quem vive dominado pelas paixões (Guide for the Perplexed, Prefatory Remarks 8). Na tradição rabínica, portanto, a janela é simultaneamente o ponto de vista divino e o olhar do sábio: é desse “andar superior” que se reconhece o perigo antes que o jovem sequer perceba que está se aproximando da esquina fatal.
Provérbios 7:7
E vi entre os ingênuos, e reconheci entre os filhos, um jovem sem entendimento (Hb.: wāʾereʾ bap pĕtāʾîm, ʾăbînâ babbānîm, naʿar ḥăsar-lēb — “e eu vi entre os ingênuos, discerni entre os jovens, um rapaz carente de coração”). O verbo wāʾereʾ é qal perfeito 1ª sing. de rāʾāh (“ver”), precedido da conjunção wə-, continuando o testemunho iniciado no v. 6; a forma perfeita narra um evento concreto, passado, que serve de exemplo. A expressão bap pĕtāʾîm traz o substantivo pĕtāʾîm (“simples, ingênuos, inexperientes”) no plural, precedido da preposição bə- e do artigo assimilado, indicando o grupo de pessoas sem malícia, mas também sem discernimento. O verbo seguinte, ʾăbînâ, é forma cohortativa de 1ª sing. de bîn (“discernir, compreender”), com nuance de empenho: “eu procurei compreender, eu discernei” entre os babbānîm (“os jovens, os filhos”), plural com artigo. Assim, o narrador não apenas vê, ele interpreta aquilo que vê. O foco recai então sobre naʿar ḥăsar-lēb: naʿar (“jovem, rapaz”) designa um indivíduo em formação, e ḥăsar-lēb significa literalmente “carente de coração”; aqui, “coração” é sede de juízo e vontade, de modo que a expressão caracteriza alguém sem senso, sem critério, sem centro interior. Morfologicamente, a construção é nominal, com ḥăsar atuando como particípio ou adjetivo em relação a lēb. Sintaticamente, o versículo progride do coletivo ao individual: primeiro o grupo dos ingênuos, depois o conjunto dos jovens, finalmente um único rapaz, destacado pela falta de coração. Este versículo mostra que o perigo da sedução não recai de maneira aleatória: ele encontra alvo especialmente em quem não amadureceu o “coração” — isto é, em quem não escreveu a lei na tábua interior nem amarrou a sabedoria aos dedos. A narrativa, a partir daqui, descreverá como a ausência de estrutura interior expõe o jovem ao fascínio mortal da mulher estranha; mas já aqui se antecipa a tese: onde o coração está vazio, qualquer palavra “alisada” encontra abrigo.
A tua tradução “sem entendimento” já aponta para o sentido, mas o hebraico “carece de coração” conserva a nuance afetiva e volitiva: não é apenas falta de QI, mas de centro interior sólido. Avot deRabbi Natan usa justamente esta cena do “naʿar ḥăsar lēḇ” para explicar por que alguns, em certa época, quiseram esconder Mishlei, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes: temiam que quem lesse esses textos “de forma simples” (pĕṭāʾîm) tropeçasse nas passagens que descrevem amores, prazeres e seduções, como o encontro com a prostituta em Provérbios 7, e fizesse disso um manual de devassidão; os homens da Grande Assembleia, porém, mostraram que a intenção do texto é exatamente o oposto, denunciar a insensatez do jovem e chamar à sabedoria (Avot deRabbi Natan 1). Em comentários posteriores preservados em coletâneas como Mikraot Gedolot, interpreta-se “jovem sem coração” como aquele que não aprende com a experiência alheia: ele precisa experimentar o mal na própria carne porque não deixa que a tradição — os “filhos” que o precederam — escreva nada na tábua do seu coração (Nota homilética em Mishlei 7). Alguns rabinos ainda associam o “jovem” à idade em que o sangue ferve: antes dos vinte anos, diz uma leitura mística em torno de Avot 5:21, ele é um naʿar ḥăsar lēḇ que corre atrás da luxúria, e só mais tarde seu coração “se alarga” para as sabedorias; por isso o livro de Provérbios insiste tanto em falar ao “filho” e ao “jovem”, para antecipar, com palavras, as feridas que, de outro modo, a vida escreveria na própria carne (Yein Levanon sobre Avot 5:21).
Provérbios 7:8
Passando pela rua, perto da esquina dela, e caminhando pelo caminho para a sua casa (Hb.: ʿōvēr baššûq ʾēṣel pinnāh wĕdereḵ bêtāh yiṣʿād — “passando pela rua, junto à esquina dela, e pelo caminho da casa dela ele ia andando”). O verbo ʿōvēr é particípio qal masculino singular de ʿāvar (“passar, atravessar”), e descreve uma ação durativa, quase um vaguear habitual, não um simples passo distraído. Baššûq (“na rua, no mercado”) é preposição b + artigo + substantivo masculino singular, indicando o espaço público mais exposto, enquanto ʾēṣel pinnāh (“junto à esquina dela”) marca, com a preposição ʾēṣel, a proximidade calculada do ponto de risco, não apenas um acaso geográfico. Wĕdereḵ bêtāh (“e o caminho da casa dela”) traz dereḵ em estado construto com bêtāh (“a casa dela”), seguido de yiṣʿād, imperfeito qal 3ª masc. sing. de ṣāʿad (“dar passos, marchar”), que sugere não só movimento futuro, mas progressão deliberada, um avançar decidido em direção à casa da mulher. Sintaticamente, o particípio inicial pinta o jovem como figura em movimento contínuo, e o imperfeito final fecha o quadro com a direção específica desse movimento: do espaço público indistinto até a rota bem definida que leva à casa da sedutora. O versículo mostra que a queda não começa no quarto, mas na esquina: o jovem “sem entendimento” já se coloca no trajeto do perigo, rondando o perímetro da tentação, como quem desenha com seus próprios passos o mapa do desastre moral. O texto hebraico, ao acumular preposições de proximidade (“na rua… junto à esquina… caminho da casa”), faz ressoar a ideia de que ninguém cai de repente; o coração já havia escolhido essa rua antes que os pés começassem a caminhar.
A literatura rabínica enxerga aqui a coreografia da desfaçatez: o verbo heḥĕziqā (“agarrou”) é aproximado pela massorá de “we-heḥĕziqā bĕmevušāw” em Deuteronômio 25:11, a mulher que, numa briga, “agarra” os genitais do homem adversário; Baal HaTurim observa que as duas ocorrências apontam para uma mesma dureza, e conclui que a responsabilidade plena só recai quando o gesto é deliberado (be-mēzīd), isto é, quando há esse endurecimento da face, “heʿēzā pāneyhā”. Bereshit Rabbah, ao reinterpretar a cena de José e a esposa de Potifar, transfere todo o quadro de Provérbios 7 para o episódio do Egito: “ve-hinnēh ’iššāh liqrātô… we-heḥĕziqā bô wenāšĕqā lô… heʿēzā pāneyhā wattōʾmer lô: šĕkaḇā ‘immî” — “eis que uma mulher veio ao seu encontro… agarrou-o, beijou-o, endureceu o rosto e disse-lhe: deita-te comigo”. Assim, a mulher de Provérbios torna-se matriz tipológica para toda sedução agressiva que tenta arrastar o justo para fora de sua vocação. Midrash Shemuel sobre Pirkei Avot 4:2 cita o mesmo versículo e lê o “garrote” e o beijo como antítese da educação de sabedoria: o mestre já “ensinou o caminho da sabedoria”, mas o jovem que se deixa segurar e beijar é o que abandona o derekh ḥokmāh para seguir a voz do impulso. Nessa terceira rodada, a literatura rabínica faz do rosto endurecido um signo espiritual: quando o pudor se vai do semblante, a transgressão deixou de ser deslize e se tornou programa; o versículo passa a ser advertência concreta contra a perda da vergonha — primeiro no olhar, depois nas mãos, por fim nas palavras que justificam o pecado.
Provérbios 7:9
Ao crepúsculo, ao entardecer, na escuridão da noite e na penumbra (Hb.: bĕnešep̄ bĕʿerev yôm bĕʾîšôn laylāh waʾăfēlāh — “no crepúsculo, ao cair do dia, na pupila da noite e na escuridão”). Aqui, bĕnešep̄ (“no crepúsculo”) usa o substantivo masculino singular nešep̄, que designa o momento de transição em que o dia começa a se dissolver, sugerindo o limiar entre luz e sombra. Logo em seguida, bĕʿerev yôm (“ao entardecer do dia”) reforça a ideia de um dia que se inclina, com ʿerev (substantivo masc. sing.) marcando o cair do sol. O sintagma bĕʾîšôn laylāh é um ponto alto semântico: ʾîšôn é o “pupilo, menininha do olho”, imagem usada metaforicamente para o centro escuro do olho e, aqui, para o miolo densíssimo da noite; é como se o narrador dissesse “no miolo negro da noite”. Por fim, waʾăfēlāh (“e escuridão”) é substantivo feminino singular que intensifica a ausência de luz, talvez referindo-se a uma treva espessa, quase palpável. A sequência de quatro expressões, em paralelismo crescente, move-se do crepúsculo ainda ambíguo para a escuridão compacta, compondo um gradiente temporal e moral: quanto mais tarde, mais escuro; quanto mais escuro, mais livre se sente o pecado. Sintaticamente, a cadeia de complementos adverbiais sem verbo explícito funciona como pano de fundo para a ação do versículo precedente, como se o tempo fosse uma moldura moral: ele escolhe a hora em que é menos visível, menos confrontado, mais oculto. O texto constrói, com uma cadência quase poética, a ideia de que há “horas escolhidas para o mal”, em que o coração procura o disfarce da sombra; ao mesmo tempo, o acúmulo de termos mostra que, por mais que o homem busque se esconder na noite, o narrador vê toda a trajetória com nitidez, como a pupila que enxerga mesmo quando o resto é treva.
A tua tradução está boa; só vale notar que ʾîshon laylāh é literalmente “pupila da noite”, a noite em seu ponto mais fechado.) Os sábios se detêm nesse versículo para mostrar como o desvio raramente é brusco: a luz vai morrendo em gradações. No Talmud, Berakhot 3b usa esse verso para definir o termo neshef, explicando que é o momento em que o dia se mistura com a noite, citando a sequência “no neshef, à tarde do dia, na escuridão da noite e na escuridão densa” como gradação de sombras (Berakhot 3b). Em Bamidbar Rabbah 9:34, essa mesma cadeia de imagens é aplicada àquele que peca achando que, porque age “no crepúsculo, na escuridão”, está fora do olhar divino; o midrash insiste que a noite é apenas o disfarce psicológico do pecador, não uma zona neutra aos olhos de Deus (Bamidbar Rabbah 9:34). A literatura rabínica lê, portanto, o versículo como um relógio espiritual: quem não corta o desejo ainda no “crepúsculo” interior, acaba descendo até a “penumbra” moral em que já não distingue o contorno dos próprios atos.
Provérbios 7:10
E eis que uma mulher veio ao seu encontro — com traje de prostituta, e astuta de coração (Hb.: wĕhinneh ʾiššāh liqrātô šît zônāh ûnĕṣurat lēv — “e eis que uma mulher, para encontrá-lo, vestida com traje de prostituta e guardada de coração”). A interjeição wĕhinneh (“e eis que”) introduz de repente a figura feminina no campo de visão do narrador, como um relâmpago dramático no enredo. ʾIššāh é substantivo feminino singular (“mulher”), aqui ainda sem qualificação moral direta, enquanto liqrātô combina preposição l + infinitivo construto de qārāʾ (“ir ao encontro”) + sufixo 3ª masc. sing., pintando uma aproximação dirigida: ela vem “ao encontro dele”, não ao acaso. A sequência šît zônāh é morfologicamente intrincada: šît é substantivo masculino singular (“traje, vestimenta, aparato”), ligado em estado de relação com zônāh (“prostituta”), formando algo como “traje de prostituta”, isto é, não necessariamente que ela exerça oficialmente a prostituição, mas que ela se autoapresenta segundo esse código visual sedutor. Já ûnĕṣurat lēv traz particípio passivo qal feminino singular de nāṣar (“guardar, manter fechado”) com o substantivo lēv (“coração”), gerando uma expressão que pode significar “coração fechado, dissimulado, astuto”, um interior cuidadosamente guardado, onde as intenções não se deixam ler com facilidade. Sintaticamente, o versículo encadeia três traços: aproximação intencional (liqrātô), aparência calculada (šît zônāh) e interior oculto (nĕṣurat lēv). A cena revela uma teologia da aparência: o pecado vem ao encontro, usa vestes estudadas para seduzir, mas guarda o coração em sigilo, como uma casa de janelas abertas e porão trancado. A sua tradução “vestida de prostituta, e de coração vigilante” capta a ideia de atenção, mas convém ajustar “vigilante” para algo como “astuta” ou “dissimulada”, porque o foco do hebraico recai sobre um coração que protege seus intentos e maneja o outro com cálculo, não sobre uma vigilância virtuosa.
No Talmud, Shabbat 54a cita expressamente esse verso: “shît zonah u-netsurat lev” — “com o traje de prostituta e astuta de coração” — para falar de uma “mulher má”, fixando o texto como paradigma de sedução maligna e calculada (Shabbat 54a). A mesma tradição midráshica vincula a expressão “endureceu o seu rosto” (v. 13) à conduta da esposa de Potifar, que insiste em seduzir José, lendo em conjunto Gênesis 39:12 e o comentário de Bereshit Rabbah 87:1, onde a audácia do rosto é marca da mulher que já rompeu qualquer pudor (Bereshit Rabbah 87:1). Esses cruzamentos fazem da “mulher estranha” de Provérbios um tipo literário: ela representa, para os rabinos, tanto a tentação sexual concreta quanto qualquer doutrina ou ambiente que se aproximam “vestidos de sedução” e escondem um coração estrategista, que calcula o momento de capturar quem se deixa encontrar.
Provérbios 7:11
...ruidosa e obstinada; em sua casa os seus pés não repousam (Hb.: hōmiyyāh hîʾ wĕsōreret bĕvêtāh lōʾ yiškenû raglêhā — “ruidosa é ela e rebelde; na sua casa não habitam os seus pés”). O adjetivo verbal hōmiyyāh é particípio qal feminino singular de hāmāh (“bramir, tumultuar, fazer barulho”), retratando uma mulher barulhenta, estrondosa, cuja presença é um ruído constante, não serenidade. Hîʾ apenas reforça o sujeito (“ela”), e wĕsōreret é outro particípio qal feminino singular, agora do verbo sārar (“ser rebelde, insubmisso”), apontando para um caráter que recusa jugo, que não aceita limites. O sintagma bĕvêtāh (“em sua casa”) funciona como cenário normativo: ali seria o lugar da estabilidade e do cuidado; mas a forma verbal yiškenû (qal imperfeito 3ª masc. plural de šākan, “habitar”) com o sujeito raglêhā (“seus pés”, substantivo dual em forma de plural construto) cria uma imagem irônica: “os pés dela não moram em casa”, não encontram residência, estão sempre de partida. Sintaticamente, temos uma descrição nominal (ela é ruidosa e rebelde) seguida por uma oração verbal negativa que mostra o resultado dessa disposição interior: um corpo que não suporta ficar em um lugar só. O versículo desenha uma mulher cuja alma é um terremoto contínuo, e cujos pés são peregrinos da inquietação. Não se trata apenas de movimento físico, mas de uma incapacidade moral de permanecer no espaço da aliança e da responsabilidade; a casa, que em Provérbios tantas vezes é o lugar da sabedoria, converte-se aqui em lugar abandonado, um cenário vazio porque aquela que o deveria guardar prefere a excitação das ruas ao labor silencioso da fidelidade. Sua tradução “em sua casa os seus pés não repousam” é boa, mas o verbo “habitar” sugere ainda mais do que “descansar”: os pés dela nunca fazem morada no lar, como se a casa fosse para ela um lugar de exílio, não de pertença.
A tua formulação está correta no sentido geral.) Aqui a literatura rabínica lê não apenas a figura da adúltera, mas um modelo antitético da mulher que vive na tzeniut, na modéstia interior. Em Rabbeinu Bahya sobre Gênesis 34:1, ao comentar a saída de Diná (“e Diná, filha de Lia, saiu”), o autor cita Provérbios 7:11–12: “homiyāh hi ve-soreret, be-veitāh lo yishkenu ragleha; paʿam ba-chutz, paʿam ba-rechovot”, afirmando que a Escritura “critica a mulher quando ela é yatzanit, uma que vive saindo”, e contrapõe a isso a figura elogiosa de “toda a glória da filha do rei é no interior” em Salmos 45:14 (Rabbeinu Bahya em Gênesis 34:1). O texto midráshico vê, portanto, em “em sua casa os seus pés não repousam” não apenas um dado psicológico dessa personagem, mas uma ruptura com a vocação de guardar o espaço doméstico como lugar de bênção; a inquietação dos pés é sintoma de um coração já distante da aliança.
Provérbios 7:12
Ora lá fora, ora nas praças, e em cada esquina fica à espreita (Hb.: paʿam baḥûṣ paʿam bārĕḥovôt wĕʾēṣel kol pinnāh teʾĕrov — “ora fora, ora nas praças, e junto a cada esquina fica de tocaia”). O substantivo/adverbial paʿam (“vez, batida, vez após vez”) repetido em paralelismo cria um ritmo de alternância: “uma vez... outra vez...”, dando a impressão de idas e vindas incessantes. Baḥûṣ (“fora, no exterior”) remete ao espaço para além da casa, enquanto bārĕḥovôt (preposição b + artigo + plural de rechov, “ruas largas, praças”) alarga a cena para os espaços públicos mais movimentados. A preposição wĕʾēṣel (“e junto de”) reaparece, conectando com o v. 8, agora com kol pinnāh (“toda esquina”), formando uma rede de pontos de emboscada. O verbo teʾĕrov é imperfeito qal 3ª fem. sing. de ʾārav (“espreitar, armar emboscada”), e projeta a ação para o hábito: é algo que ela faz repetidamente, como um caçador que conhece o mapa de sua presa. Sintaticamente, a frase acumula sintagmas adverbiais (paʿam… paʿam… wĕʾēṣel kol pinnāh) que convergem para o único verbo no final, criando uma espécie de funil: toda essa movimentação espacial desemboca num único propósito — “espreitar”. A mulher adúltera se revela aqui como caçadora profissional: seus deslocamentos não são erráticos, mas estratégicos; ela percorre rua, praça, esquina, como quem conhece os fluxos da cidade e espera o momento em que um coração desavisado atravesse seu campo de caça. Sua expressão “ora em lugares afastados” atenua um pouco a força de baḥûṣ; o hebraico está menos falando de afastamento geográfico e mais da oposição “dentro/fora”, “casa/rua”: ela prefere sistematicamente o “fora”, o espaço em que ninguém lhe exige fidelidade, porque ali a consciência dos outros se dilui no burburinho da multidão.
Os midrashim fazem desse versículo uma chave para identificar o “estilo” da mulher promíscua. Em Midrash Sekhel Tov sobre Gênesis 38:15, ao narrar a história de Tamar, explica-se que “assim é o costume das prostitutas: ficar paradas no caminho”, e cita literalmente “paʿam ba-chutz, paʿam ba-rechovot (uma vez fora, outra nas ruas)” de Provérbios 7:12 como prova de que a prostituta se coloca à vista, estratégica e ostensivamente, no espaço público (Midrash Sekhel Tov, Gênesis 38:15). De modo semelhante, Midrash Lekach Tov sobre Números 5:27, ao tratar da mulher suspeita de adultério (ishah sotah), volta a citar “homiyāh hi ve-soreret... paʿam ba-chutz paʿam ba-rechovot” para descrever o tipo de conduta que leva a fama pública de infidelidade, reforçando que a Torá quer evitar que Israel se torne um povo em que se diga: “aconteça-te como aconteceu com fulana”, pois o adultério vira provérbio nacional de vergonha (Midrash Lekach Tov, Números 5:27). A mesma passagem de Rabbeinu Bahya que já citamos conclui nessa linha: a Torá censura a mulher que “vive fora, nas ruas, à espreita em cada esquina”, mas exalta aquela que permanece no interior de sua tenda, como Sara, cujo elogio está precisamente em ser encontrada “no acampamento, na tenda”, e não “nas esquinas” (Rabbeinu Bahya em Gênesis 34:1). Assim, as imagens de Provérbios 7:11–12 se tornam, na tradição rabínica, um espelho invertido da bat melekh: quanto mais a figura adúltera se multiplica “fora, nas ruas, em cada esquina”, mais os mestres insistem que a verdadeira sabedoria, personificada em Israel fiel, se recolhe para dentro, guardando os limites onde a aliança continua respirando.
Provérbios 7:13
E ela o agarrou, e o beijou; e, com rosto atrevido, disse-lhe: (Hb.: wĕheḥĕzîqāh bô wĕnāšĕqāh-lô hêʿēzāh pāneyhā vattōmar lô — “e ela o agarrou, e o beijou; com rosto atrevido, disse-lhe”). O verbo wĕheḥĕzîqāh vem de ḥāzaq (“ser forte, segurar com força”), no hifil perfeito 3ª fem. singular, significando “ela o fez seu prisioneiro, ela o agarrou com força”, não um toque tímido, mas um gesto de domínio físico. Em seguida, wĕnāšĕqāh-lô é qal perfeito 3ª fem. singular de nāšaq (“beijar”), com o sufixo 3ª masc. singular (“beijou-o”), e a ordem dos verbos (primeiro agarrar, depois beijar) desenha a cena de uma captura sensual. O verbo hêʿēzāh, hifil perfeito 3ª fem. singular de ʿāzaz (“ser forte, ousar”), indica que “ela tornou ousado o seu rosto”, isto é, assumiu uma expressão desavergonhada, descarada; por isso, “endureceu o seu rosto” em português pode ser melhorado para “com rosto atrevido” ou “sem vergonha”, pois o foco não é frieza, mas audácia insolente. Pāneyhā (“seu rosto”) é o núcleo dessa expressão: o lugar onde a interioridade se torna visível está agora revestido de ousadia. Por fim, vattōmar lô (qal wayyiqtol 3ª fem. singular + sufixo 3ª masc. singular) insere sua fala na sequência de ações: agarrar → beijar → falar, como um crescendo de invasão, em que o corpo abre o caminho para as palavras. Sintaticamente, a frase é uma cadeia de verbos no perfeito/wayyiqtol que descrevem uma ação rápida e contínua, quase cinematográfica. O versículo mostra como a sedução rompe com qualquer pudor: não é o rapaz que toma iniciativa, é ela quem “se apodera” dele, com gestos e rosto treinados para dominar, encurtando todas as distâncias para que, quando as palavras vierem, o coração já esteja cativo.
Provérbios 7:14
Sacrifícios de ofertas de paz estão comigo; hoje quitei os meus votos. (Hb.: zivḥê šelāmîm ʿālai hayyôm šillamtî nĕdarāy — “sacrifícios de comunhão estão sobre mim; hoje quitei os meus votos”). A expressão zivḥê šelāmîm une zivḥîm (“sacrifícios”) e šelāmîm (“ofertas de paz/comunhão”, de šālôm, “paz, inteireza”), termo técnico do culto levítico para sacrifícios em que parte era queimada e parte comida em refeição festiva (Levítico 3). Ela afirma, na prática, “tenho carne de sacrifícios de comunhão em casa”, insinuando um banquete religioso. O sintagma ʿālai (“sobre mim”) pode significar tanto “a meu cargo, a meu respeito” quanto “comigo, em meu poder”, justificando traduções “estão comigo” ou “eu tinha de oferecer”; o ponto é que ela se apresenta como alguém religiosamente comprometida. Hayyôm (“hoje”) delimita o tempo e reforça a urgência: é o dia do voto cumprido. O verbo šillamtî é piel perfeito 1ª sing. de šālam (“pagar, completar, cumprir”), indicando que ela “quitou, pagou por completo” os votos (nĕdarāy, “meus votos”, plural com sufixo 1ª pessoa). Morfologicamente, a frase é nominal (“sacrifícios… sobre mim”) seguida de verbal (“cumpri meus votos”), como se o status ritual se desdobrasse em ação recente. O versículo revela a máscara sacra da sedução: a mulher adúltera não se apresenta como alguém à margem da religião, mas como alguém que acaba de vir do altar, com votos cumpridos e sacrifícios de comunhão prontos na mesa. O culto é instrumentalizado como verniz de respeitabilidade, e a refeição de paz, que deveria selar comunhão com Deus e com a comunidade, torna-se pretexto para um encontro ilícito. O veneno entra pela taça da religiosidade.
Os rabinos percebem aqui a máscara “religiosa” do pecado. Rashi explica que a mulher se apresenta como alguém que naquele dia trouxe zivḥê šĕlāmîm e precisa agora de convidados para uma grande refeição sacrificial: ela alega ter carne consagrada em casa, sugerindo um banquete “para o céu” que, na verdade, é isca sensual, porque os sacrifícios pacíficos deviam ser comidos em prazo curto, sob condições de pureza. Avot de Rabí Natan descreve como, no início, alguns queriam esconder Provérbios, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes, por julgarem que textos como “zivḥê šĕlāmîm ʿālai… marvadîm rāvadti ʿarsî... lekā nirweh dōdîm” eram apenas linguagem de sedução; os “homens da Grande Assembleia” os resgataram, ligando-os a Cântico dos Cânticos e Eclesiastes para mostrar que essas mesmas imagens podem ser lidas como pedagogia: o mesmo vocabulário que o desejo torce, o amor de Deus endireita. Maimônides, no Guia dos Perplexos II:2, toma exatamente esta sequência (“zivḥê šĕlāmîm ʿālai... marvadîm rāvadti... nataphtî miškāvî... lekā nirweh dōdîm”) como seu “segundo exemplo” de mashal, insistindo que não se deve procurar um “segredo” em cada detalhe (“o que significa, no nível do nimshal, ‘sacrifícios de paz’ ou ‘marvadim’?”), mas compreender o quadro inteiro como alegoria de um perigo espiritual. A literatura rabínica, assim, lê este versículo como caricatura do uso cínico da linguagem de culto: a boca fala de votos e sacrifícios, mas o coração quer apenas transformar a mesa sacrificial em sofá de adultério.
Provérbios 7:15
Por isso saí ao teu encontro, para buscar diligentemente o teu rosto, e te encontrei.
(Hb.: ʿal-kēn yāṣāʾtî liqrāteḵā lĕšaḥēr pāneyḵā wāʾemṣāʾeḵā — “por isso saí ao teu encontro, para madrugar em buscar o teu rosto, e te encontrei”). O advérbio-construção ʿal-kēn (“por isso, portanto”) conecta o discurso ao versículo anterior: porque tem sacrifícios de comunhão e votos cumpridos, ela justifica a própria caça. Yāṣāʾtî é qal perfeito 1ª sing. de yāṣāʾ (“sair”), indicando uma decisão já tomada: ela deixou a casa com propósito definido. A forma liqrāteḵā reúne preposição l + infinitivo construto de qārāʾ (“ir ao encontro, vir à frente”) com sufixo 2ª masc. sing., expressando finalidade: “para vir ao teu encontro”. O infinitivo lĕšaḥēr, piel de šāḥar (“madrugar, procurar com zelo”), carrega a imagem de quem levanta cedo para caçar algo precioso; por isso, “buscar diligentemente” é boa tradução, embora a nuance original traga a ideia de um levantar-se de madrugada para perseguir um alvo. Pāneyḵā (“o teu rosto”) é a forma concreta de dizer “tua pessoa, tua presença”. O verbo final wāʾemṣāʾeḵā (qal com waw conversivo, 1ª sing.) completa o arco: “e te encontrei”. Sintaticamente, a frase encadeia causa (ʿal-kēn), ação passada (yāṣāʾtî), propósito (liqrāteḵā lĕšaḥēr pāneyḵā) e resultado (wāʾemṣāʾeḵā), desenhando um roteiro pré-planejado, não um encontro casual. O versículo inverte a lógica do amor bíblico autêntico, em que Deus busca o homem com graça: aqui, é a mulher estranha que imita essa busca, levantando-se cedo não para buscar o Senhor, mas o rapaz tolo. A mesma linguagem de “buscar o rosto” que em Salmos expressa devoção é torcida para legitimar o desejo ilícito; a caça amorosa que poderia ser santa torna-se paródia profana de uma peregrinação.
Avot de Rabí Natan cita este versículo dentro do longo trecho de Provérbios 7:7–20 para explicar o trabalho dos sábios ao “cercar” a Torá: não é que eles “retardaram” a decisão sobre esses livros, mas que interpretaram cuidadosamente cenas como esta, onde a mulher diz “saí ao teu encontro”, para mostrar que a Torá descreve com realismo a psicologia da tentação: o pecador é seduzido pela ilusão de ser único, “o escolhido”, a presa que a mulher supostamente procurava desde cedo. Yein Levanon, comentando Avot 5:20, usa justamente “we-heḥĕziqā bô... ʿal kēn yatsā’tî liqrāteka...” para ilustrar como o yetzer ha-raʿ trabalha: ele recobre a banalidade do desejo com narrativa de eleição — “só a você eu esperava”, “foi por causa de você que saí de casa”. A leitura rabínica transforma então a frase da sedutora numa espécie de contra-liturgia: enquanto os salmos falam de buscar a face de Deus de madrugada, aqui uma personagem usa a mesma linguagem de busca diligente para perseguir o rosto do outro como objeto; o versículo, visto pelos sábios, torna-se um espelho invertido da verdadeira devoção.
Provérbios 7:16
Com cobertas finas enfeitei o meu leito, com bordados de linho do Egito. (Hb.: marbaddîm rābad tî ʿarśî ḥăṭubôt ʾētûn miṣrayim — “com cobertas bordadas estendi o meu leito, com obras entalhadas de linho do Egito”). O substantivo marbaddîm (plural) designa colchas, cobertas ornamentais, ricas tapeçarias; são peças de luxo, não panos comuns. O verbo rābad tî é qal perfeito 1ª sing. de rābad (“estender, forrar”), indicando que ela mesma “espalhou, forrou” o leito (ʿarśî, “meu leito”) com tais cobertas, transformando-o em cenário cuidadosamente preparado. A sequência ḥăṭubôt ʾētûn une ḥăṭubôt (“trabalhos entalhados, lavrados, bordados”) e ʾētûn, termo raro, entendido pelos léxicos e versões antigas como “linho fino, tecido nobre”, possivelmente um empréstimo técnico do comércio têxtil. O acréscimo miṣrayim (“do Egito”) identifica a procedência: o Egito era célebre por seus tecidos finos, sugerindo importação cara. Morfologicamente, temos uma construção nominal que acumula modificadores: cobertas → bordadas → de linho → do Egito, numa escadaria de luxo. Sintaticamente, a ênfase recai sobre o objeto direto (marbaddîm… ḥăṭubôt ʾētûn miṣrayim), enquanto o eu que fala se coloca como artesã de seu próprio palco. Este versículo mostra que a sedução se reveste de estética: o leito não é apenas lugar funcional, mas cenário sensual arquitetado com requinte. O luxo importado do Egito — terra que, em outras passagens, simboliza opressão e sedução idolátrica — é trazido para dentro da cama como promessa de uma experiência “exótica” e superior. Sua expressão “bordados de algodão do Egito” aproxima-se da ideia, mas é mais fiel falar de “linho do Egito”, pois não há base lexical para “algodão”; o texto quer destacar, antes de tudo, a sofisticação têxtil e o brilho desse tecido que recobre a transgressão.
Os rabinos exploram tanto o sentido concreto quanto o eco simbólico desta frase. Rashi, ao comentar “marbadîm” em Provérbios 31:22 (“marbadîm ʿāśĕtā lā”), remete ao nosso versículo: em ambos os casos, trata-se de roupas de cama belas, “cobertores finos” que sinalizam honra e conforto, mas em Provérbios 7 esse luxo é posto a serviço da sedução ilícita, enquanto em Provérbios 31 ele veste a casa da mulher virtuosa. Em textos talmúdicos, a raiz r-b-d é ligada a vocabulário sexual: um trecho citado em compêndios haláchicos lembra a explicação de Ravina de que “reved” se refere à emissão de sêmen, ilustrando com “marbadîm rābadti ʿarsî” como a preparação de um leito perfumado que incita à relação. Exegetas posteriores, como Akeidat Yitzḥaq, leem as colchas egípcias como imagem das culturas estrangeiras e de suas seduções intelectuais: os “marvadim” são ideias recobertas de beleza, as “peças de linho” importadas são sistemas de pensamento que, se não forem discernidos, transformam o leito (o lugar de aliança) em cenário de infidelidade espiritual. A literatura rabínica, assim, faz do quarto luxuoso uma pequena parábola do exílio: com o mesmo linho do Egito é possível vestir o Mishkan ou perfumar o leito da estrangeira; o versículo pergunta, em silêncio, a serviço de qual amor esse tecido será posto.
Provérbios 7:17
Aspergi o meu leito com mirra, aloés e canela. (Hb.: naftî miškābî mōr ʾăhālîm wĕqinnāmôn — “perfumei o meu leito com mirra, aloés e canela”). O verbo naftî é forma perfeita 1ª sing. ligada à raiz nāṭap (“gotejar, pingar, destilar”), usada em contexto de perfumes e óleos, de onde o sentido “aspergir, perfumar” — as versões antigas captam isso ao traduzir por “aspergi/perfumei”. Miškābî (“meu leito, meu lugar de deitar”) retoma e aprofunda a imagem de ʿarśî do versículo anterior, agora não só revestido por tecidos, mas impregnado por aromas. A tríade de substâncias é cuidadosamente escolhida: mōr (“mirra”) era resina aromática valiosa, associada tanto à unção quanto ao erotismo (Cântico dos Cânticos); ʾăhālîm (“aloés”) designa madeiras aromáticas usadas em unguentos e incensos; wĕqinnāmôn (“canela”) traz o perfume quente e doce de especiaria cara, conhecida no comércio antigo. A ausência de preposição antes da lista sugere que os três substantivos funcionam como meios materiais da perfumação, implícitos: “perfumei meu leito [por meio de] mirra, aloés e canela”. Sintaticamente, o versículo é conciso, quase lapidar: verbo + leito + três aromáticos, como três notas de um acorde olfativo. A sedutora passa do apelo visual e tátil dos tecidos ao apelo olfativo das especiarias; ela transforma o leito em templo invertido, usando aromas que em outros contextos se associam ao culto e às bodas para ungir uma união ilícita. O leitor, conhecendo o uso de mirra e aloés em contextos de adoração e sepultamento, percebe a ironia sombria: aquilo que ela perfuma para dar prazer é, na verdade, leito de morte moral; o ar impregnado de especiarias torna-se névoa que encobre o abismo em que o jovem prestes está a cair.
Os rabinos usam esta tríade de aromas para mostrar como algo que pode ser parte do culto torna-se instrumento de transgressão. Em ensaios sobre “’ăhālîm”, estudiosos rabínicos observam que o termo aparece também em Números 24:6 (“kĕ’ăhālîm naṭa‘ YHWH”), onde Onkelos traduz como “árvores de perfume”, e Rashi segue: são madeiras aromáticas associadas a Jericó e aos recintos do santuário; ao lembrar que Provérbios 7 fala de uma mulher que “perfuma o leito com mirra, aloés e canela”, o comentário mostra o contraste entre o uso cultual dos mesmos perfumes e seu desvio para fins de sedução. Um estudo de direito judeu contemporâneo, refletindo sobre crimes sexuais, cita precisamente “nataphtî miškāvî mōr ’ăhālîm weqinnāmôn. lekā nirweh dōdîm ʿad habbōqer, nithʿallĕsā ba’ăhābîm” como exemplo clássico de como a tradição bíblica descreve a preparação calculada de uma relação ilícita por meio de alimentação, bebida e perfumes, antes do convite verbal. Akeidat Yitzḥaq retoma nosso versículo dentro da sequência, sugerindo que esses aromas simbolizam prazeres sensoriais que, se não forem atravessados por “temor do céu”, esvaziam a interioridade: depois dos “perfumes” vem, ele diz, uma progressão em que “linha após linha” (qaw le-qaw) a reverência é expulsa e “adquirem-se crenças falsas”. Na voz rabínica, portanto, a cama perfumada torna-se figura da consciência saturada de estímulos: aquilo que deveria ser incenso diante de Deus é queimado para o ídolo do próprio desejo.
Provérbios 7:18
“Vem, embriaguemo-nos de amores até pela manhã; alegremo-nos com carícias” (Hb.: lĕkā nirqĕhā dōdîm ʿad-habboqer, nitaʿallĕsā bāʾăhābîm — “vem, embriaguemo-nos de amores até a manhã, alegremo-nos com amores”). O convite começa com lĕkā (“vem”, literalmente “vai para ti”, forma coloquial de chamado íntimo), seguido de nirqĕhā, nifal coortativo 1ª pessoa do plural de rāwāh (“ficar embriagado, saturar-se”), dando a ideia de “deixemo-nos inebriar”, não apenas “nos saciemos”, mas perder a sobriedade nas carícias. O objeto dōdîm (“amores”, originalmente “carícias amorosas, abraços”) no plural constrói a atmosfera de sensualidade intensa, como se fossem muitos toques entrelaçados. A expressão temporal ʿad-habboqer (“até a manhã”) coloca a cena sob o arco inteiro da noite, transformando-a em liturgia invertida, uma vigília de amores ilícitos. O segundo verbo, nitaʿallĕsā (hitpael coortativo de ʿālas, “alegrar-se, deleitar-se”), reforça a ideia de prazer mútuo, reflexivo, onde cada um se torna ambiente do outro. O plural bāʾăhābîm (“em amores”) retoma e amplia dōdîm, como se o vocabulário do amor fosse usado em sua gradação máxima. Sintaticamente, são dois coortativos (“embriaguemo-nos” e “alegremo-nos”) em paralelismo, como se ela convidasse a uma aliança litúrgica de prazer, com o “até a manhã” costurando a noite inteira como um manto. O versículo revela o cinismo da mulher: ela batiza de “amores” aquilo que é adultério, e descreve a perda de sobriedade como algo desejável, fazendo da própria noite uma taça sem fundo; onde a sabedoria mandava vigiar, ela propõe embriagar-se, e cada verbo carrega o peso de uma paródia da verdadeira alegria do pacto.
Avot de Rabí Natan cita literalmente esta frase ao mostrar como os sábios leram Provérbios, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes em conjunto: primeiro vem o chamado sedutor “lekā nirweh dōdîm ʿad habbōqer, nithʿallĕsā ba’ăhābîm”, depois o convite purificado de Cântico dos Cânticos — “lekā dōdî, nēṣēh hassādeh… šām ’etēn ’et dōdai lāka” — e, por fim, o aviso de Eclesiastes 11:9 de que “sobre todas estas coisas Deus te trará a juízo”. A tradição rabínica vê aí uma pedagogia em três atos: o mesmo verbo “vem” pode introduzir a noite de adultério ou a saída ao campo com o Amado; a mesma alegria juvenil pode ser licenciosa ou ordenada, mas em todos os casos está debaixo do olhar divino. Akeidat Yitzḥaq, comentando esta passagem, descreve o chamado “embriaguemo-nos de amores até a manhã” como a última etapa da sedução, em que o desejo promete duração (“até o amanhecer”) e intensidade (“embriagar-se de carícias”), mas, logo adiante, o texto revela o desfecho: o boi que vai para o matadouro e a flecha que rasga o fígado. Alguns tratados éticos posteriores usam este versículo como exemplo paradigmático da voz do yetzer ha-raʿ: não se trata apenas de um ato isolado, mas de um projeto de vida embriagada, de uma noite prolongada que pretende suspender o dia do juízo; a literatura rabínica responde pondo Provérbios 7 lado a lado com Cântico e Eclesiastes, para lembrar que todo “vem” humano — seja de desejo, seja de devoção — caminha inevitavelmente na direção da aurora em que Deus pedirá contas dos amores que escolhemos.
Provérbios 7:19
“Porque o meu marido não está em casa; saiu para uma viagem distante” (Hb.: kî ʾên hāʾîš bĕbêtô, hālak bĕderek mērāḥôq — “pois não está o homem em sua casa; foi por um caminho distante”). O discurso se faz justificativa com kî (“pois”), que introduz a razão da ousadia. A expressão ʾên hāʾîš bĕbêtô é quase seca: “não está o homem em casa”, onde hāʾîš (“o homem”) pode significar “meu marido”, mas o texto o descreve de forma distanciada, dessubjetivada, como se fosse apenas “o homem”, sem afeto. Bĕbêtô (“em sua casa”) indica o lugar de seu dever e de seu direito, agora vazio. O verbo hālak (“foi, partiu”), perfeito qal 3ª masc. sing., seguido por bĕderek mērāḥôq (“num caminho distante”), sugere uma viagem longa, provavelmente comercial, que o manterá afastado por tempo suficiente para que ela se sinta segura. Sintaticamente, temos duas frases coordenadas que ecoam em paralelo: ausência do marido em casa ↔ presença dele numa estrada distante; quanto mais distante o caminho, mais livre ela se imagina. A mulher constrói um argumento de impunidade: se o marido está longe, a casa se torna terra de ninguém; a distância geográfica é transformada em autorização moral. Ao chamar o esposo simplesmente de “o homem”, ela já o apaga do coração, reduzindo-o a detalhe logístico do adultério, e não a pessoa com quem partilha uma aliança.
No nível simples, o texto põe na boca da mulher adúltera a desculpa perfeita: a ausência prolongada do marido, que supostamente remove toda vigilância e toda consequência imediata. Rabinicamente, porém, esse detalhe narrativo é muitas vezes lido como mashal para uma sensação espiritual de abandono: o “marido” é visto como o próprio Deus, e a casa como o Templo ou a presença divina entre Israel. O Gaon de Vilna, citado num estudo sobre Sanhedrin 96b, lê “porque o homem não está em casa” como referência ao fato de que o Templo foi destruído e o Santo, bendito seja, não “habita” mais em Sião, de onde vinha a sabedoria; o “caminho distante” torna-se imagem da longa travessia do exílio, em que a voz da revelação parece retirada e a Torá aparece “selada”, difícil de decifrar. Nesse horizonte, a desculpa da adúltera dramatiza a tentação de pensar que, na ausência visível da presença divina, “tudo é permitido”: se o Senhor parece ter partido, o coração se sente livre para seguir outros deuses, outras lealdades. A cena da rua escura torna-se, assim, um espelho da noite teológica do exílio: quando a percepção de que “o marido está fora” se instala, a disciplina interior se relaxa, a aliança é tratada como suspensa, e a sedução da infidelidade espiritual encontra espaço para sussurrar: “ninguém está vendo, ninguém voltará tão cedo”.
Provérbios 7:20
“Levou na mão a bolsa de dinheiro; voltará para casa só no dia marcado” (Hb.: ṣar kêsef lāqaḥ bĕyādô, lĕyôm hakēseh yābôʾ bêtô — “a bolsa de prata levou na mão; para o dia da lua cheia virá para a sua casa”). O substantivo ṣar (“bolsa, saco”) unido a kêsef (“prata, dinheiro”) indica um volume considerável de recursos, sinal de viagem longa e negócios demorados. O verbo lāqaḥ (“tomar, levar”) com bĕyādô (“na sua mão”) realça o ato concreto: ele parte carregando o capital necessário, deixando atrás de si um rastro de tempo. A expressão lĕyôm hakēseh é mais precisa do que a simples “lua nova”: kēseh provavelmente se refere ao “dia da lua cheia”, ou “dia fixo/ marcado”, isto é, uma data determinada no calendário, talvez ligada a festividades ou prazos de comércio; é o dia em que ele certamente voltará. O verbo yābôʾ (“virá, chegará”) com bêtô (“sua casa”) fecha o círculo: há um retorno previsto, mas distante. Sintaticamente, a primeira oração descreve o preparo da viagem (bolsa de prata na mão), e a segunda define o limite de sua ausência, como um intervalo seguro aos olhos da mulher. O discurso explora o calendário como cúmplice: enquanto o dia da lua cheia não chegar, ela se considera livre. Ela transforma uma informação neutra — o prazo da viagem do marido — em plataforma para o pecado, e a bolsa de dinheiro, que deveria sustentar a casa, torna-se pretexto para a destruição da própria casa.
O teu “bolsa de dinheiro” expressa bem ṣĕrôr hākesef; quanto a “no dia da lua nova”, traduz uma tradição antiga que lê yôm hakkesēʾ como “dia encoberto”, possivelmente a lua nova, embora muitos rabinos o entendam simplesmente como “dia determinado, tempo marcado”. Na literatura rabínica, este versículo se desprende da cena erótica e ganha vida própria. Em Chullin 92a, lê-se que “kesef” aqui simboliza os justos: “kesef — estes são os tzadikim, como está dito: ‘ṣĕrôr hākesef lāqaḥ bĕyādô’” — e a passagem continua dizendo que há quarenta e cinco justos pelos quais o mundo subsiste. A “bolsa de prata” na mão é, então, um feixe de vidas justas, uma reserva de mérito que Deus conserva para sustentar o mundo; o dinheiro do adúltero, na narrativa, torna-se no midrash o capital espiritual dos justos. Em vários comentários ligados a Isaías 59:20 e Daniel 12:7, o mesmo versículo de Provérbios é citado de novo: “ṣĕrôr hākesef lāqaḥ bĕyādô, leyôm hakkesēʾ yābô vētô — ‘uma bolsa de prata tomou na mão; no dia do keseʾ virá a sua casa’”. Ali se diz que “prata” é teshuvá (arrependimento) e que o “dia do keseʾ” é o tempo fixado para a redenção; Deus recolhe em suas mãos a prata-arrependimento de Israel e volta à sua casa — ao seu povo — no tempo que determinou. Em outro midrash, sobre Cântico dos Cânticos 1:13, “ṣĕrôr hammôr dōdî lî” é explicado dizendo que “ṣĕrôr são os justos, como está dito: ‘ṣĕrôr hākesef lāqaḥ bĕyādô’”, de modo que a mesma imagem de um pequeno embrulho é aplicada ao povo santo, guardado junto ao coração de Deus. Lida assim, a frase da adúltera é subvertida: ela usa a bolsa de prata como prova de que o marido só voltará num “dia distante”, que suspende a responsabilidade; os sábios transformam essa bolsa na esperança de que Deus, com o “prata” dos justos e dos penitentes em sua mão, voltará exatamente no tempo certo, tornando o “dia marcado” não uma licença para o pecado, mas o horizonte da restauração.
Provérbios 7:21
“Com a multidão de suas palavras o seduziu; com a lisonja de seus lábios o arrastou” (Hb.: hĕtîtāh bĕrōv liqḥāh, bĕḥēleq śĕpātêhā tidḥannennû — “ela o desviou com a abundância da sua persuasão; com a suavidade de seus lábios o faz ceder”). O verbo hĕtîtāh é hifil perfeito 3ª fem. singular de nāṭāh (“inclinar, desviar”), indicando que ela “o fez inclinar-se”, “o desviou de rota”, como quem puxa o leme de um barco. O meio usado é bĕrōv liqḥāh: rōv (“multidão, abundância”) unido a leqaḥ (“ensinamento, discurso persuasivo”) sugere não apenas muitas palavras, mas um discurso macio, lapidado, uma “retórica de sedução”. A segunda metade traz bĕḥēleq śĕpātêhā, onde ḥēleq (de ḥālaq) significa “lisura, suavidade”, gerando a expressão “a suavidade de seus lábios”, aquilo que escorrega fácil ao ouvido. O verbo tidḥannennû (piel imperfeito 3ª fem. sing. de ḥānan, “mostrar favor, tratar com graça”) indica ação repetida, quase contínua: “ela o mima, o bajula”, até que ceda. Sintaticamente, o paralelismo é claro: verbo de desvio + instrumento (discurso abundante) ↔ verbo de amolecer + instrumento (lábios suaves); toda a força está na construção de uma linguagem que se derrama como óleo. O versículo desvela a anatomia do encantamento: não são apenas gestos e perfumes, mas uma retórica inteira, cheia de argumentos, elogios, promessas. A boca torna-se corda que laça o coração, e a multiplicidade de palavras funciona como martelo insistente, golpeando o mesmo ponto até quebrá-lo; onde a sabedoria usa poucas palavras densas, a sedução usa muitas palavras leves, até que a resistência do jovem se incline.
A tua tradução está muito próxima do sentido; talvez “o obriga” ceda lugar a “o arrasta” ou “o faz ceder”, para preservar o campo semântico de “desviar”. Os comentaristas medievais, preservados em coleções como as reunidas em Wikitext e em edições clássicas de Mishlei, debruçam-se sobre cada termo. Rashi observa que “hiṭtĕtû” descreve o movimento daquele “carente de coração” que ela atrai a si; “bĕrōv liqḥāh” não é “mercadoria”, mas o hábito de instruir-se em como seduzir, um aprendizado em acostumar homens a esse padrão; e “bĕḥēleq śĕfatêhā” é a fala lisa com que o arranca do caminho.(Chullin 92.a) Ralbag comenta que são “as palavras dela que tomam o seu coração”, e que essa fala aveludada o “afasta do caminho devido, atraindo o coração aos caminhos da prostituição”. Os “Metzudot” sublinham que “liqḥāh” vem de “ensino” e “hábito”, como em Jeremias 23 (“os que ‘tomam’ a língua”), acentuando uma pedagogia do mal: ela é discípula e mestra num ofício de desviar. Malbim, por sua vez, distingue etapas: primeiro, pela abundância de discurso, ela apenas o faz voltar o rosto para ela, quebrando a resistência inicial; depois, com a doçura dos lábios, ela o faz “mover-se” do lugar, iniciar a caminhada atrás dela. No pano de fundo rabínico, a figura desta mulher torna-se imagem de qualquer doutrina estranha — heresia, culto idólatra, filosófica ou moralmente corrupta — que começa não com argumentos grosseiros, mas com longa conversa, slogans suaves, promessas de realização, até que o coração já se inclinou e os pés começam a desenhar, quase sem perceber, a curva que o afasta da sabedoria.
Provérbios 7:22
E logo ele a segue, como boi que vai ao matadouro (Hb.: pittaʾʾo rāʿ miyaḏ, hōlēḵ ʾaḥarêhā kĕšôr ʾel-ṭevaḥ — “de repente ele vai atrás dela, como boi para o abate”). O texto hebraico sugere brusquidão: pittaʾʾo rāʿ miyaḏ pode ser entendido como “de repente, ele a segue” ou “de pronto, ele vai atrás dela”, com miyaḏ (“imediatamente, de pronto”) marcando a passagem rápida da sedução à rendição. O verbo hōlēḵ (“vai, segue”) no qal particípio ou imperfeito, acompanhado de ʾaḥarêhā (“atrás dela”), desenha o rapaz como animal conduzido, não como agente. A comparação kĕšôr ʾel-ṭevaḥ é crua: šôr (“boi”) e ṭevaḥ (“abate, matadouro”) evocam o animal pesado, que caminha para a morte sem compreender, apenas obedecendo ao puxar da corda. A imagem dissolve qualquer romantização do encontro: o que ele chama de “amor” é, aos olhos da sabedoria, marcha de gado para a faca; não há brilho, não há poesia, apenas a tragédia de alguém que caminha rumo à própria destruição achando que está indo ao banquete.
Os comentaristas rabínicos veem o contraste entre a longa preparação verbal do versículo anterior e a rapidez desta decisão: depois de muita fala sedutora, a queda é instantânea. Nas notas tradicionais a Mishlei, essa imagem do boi serve como chave para ler toda a narrativa como mashal da pessoa que cede à yetzer haraʿ (inclinação má): o boi está habituado a ser conduzido, não compreende o destino final; entra pelo portão como em tantos outros dias, ignorando que aquele é o dia da sua morte. A literatura rabínica amplia esse quadro, aplicando-o a Israel quando segue ídolos “como boi para o matadouro”, sem perceber que o caminho da assimilação espiritual é caminho de extermínio interior. Em alguns comentários ligados a discussões sobre o exílio e a destruição do Templo, as imagens acumuladas em Provérbios 7:18-22 (“vamos encher-nos de amores até pela manhã... como o boi que vai ao matadouro”) são postas ao lado dos episódios de Baal-Peor em Números 25, para mostrar como a sedução cultual leva à morte coletiva, mesmo quando a aparência é de prazer e festa. A pressa do jovem torna-se, assim, em muitos sermões e drashot, um aviso contra a complacência: quem brinca com a sedução supõe que controla o jogo, mas é ele que está sendo levado pela corda.
...e como grilhões para correção o insensato (Hb.: ûkĕʾeḵes ʾel-mûsar ʾewîl — “e como algema para a disciplina do insensato”). O substantivo ʾeḵes designa “grilhão, algema, laço”, instrumento de contenção, enquanto mûsar é “disciplina, correção, castigo educativo”. ʾEwîl (“insensato, tolo”) é o termo técnico de Provérbios para aquele que rejeita a sabedoria. A comparação não diz que ele vai “castigar o insensato”, mas que ele mesmo é como grilhão levado para o lugar da disciplina: a situação inteira se converte em instrumento pedagógico severo para ele, que aprenderá pela dor aquilo que rejeitou aprender pela instrução. Sintaticamente, a conjunção û- (“e”) liga a primeira imagem (boi ao matadouro) a esta, como dois quadros sucessivos do mesmo destino: morte e correção. Enquanto o primeiro símile enfatiza a passividade cega do jovem, o segundo sugere que, apesar da cegueira, há uma dimensão de disciplina nessa queda: a vida, por meio das consequências, se tornará o “mestre” que ele recusou ouvir. A tua formulação “como o grilhão que leva ao castigo do insensato” acerta a ideia geral, mas é mais preciso dizer que ele mesmo é o insensato, e que o laço em que entra é o mecanismo pelo qual a disciplina o alcançará, ainda que tarde.
A tua imagem de “grilhão” capta bem o termo raro ʿekhes, entendido pela maioria dos comentadores como algum tipo de peça de metal ou algema que prende e guia. A literatura talmúdica não se detém muito nesse vocábulo específico, mas os mefarshim medievais agrupam as duas metáforas: tanto o boi quanto o insensato são levados por forças externas. O boi caminha por hábito; o tolo é arrastado por instrumentos de coerção. A ironia rabínica é que mûsar, “disciplina, correção”, aparece aqui como algo que chega tarde demais: em vez do mûsar aceito voluntariamente na juventude (como em Provérbios 1–4), ele é agora um castigo imposto, que prende e conduz. Assim, no comentário judaico posterior, essa meia-linha é usada para desenhar dois cenários pedagógicos: ou o homem se deixa ensinar pela Torá, pela sabedoria que se prende voluntariamente “aos dedos” e se escreve “na tábua do coração”, ou acabará conhecendo um outro tipo de mûsar, aquele que se experimenta com correntes nos pés e ferro no pescoço. A mulher estranha é apenas a narradora desse drama; a literatura rabínica a transforma num dispositivo pedagógico para falar da escolha entre uma disciplina amorosa, buscada no temor do Senhor, e uma disciplina tardia, que chega na forma de consequência e ruína.
Provérbios 7:23
até que uma flecha lhe fenda o fígado, como a ave que se apressa para uma armadilha, sem saber que lhe custará a vida. (Hb.: ʿad yĕpallaḥ ḥēṣ kĕvēdô kĕmahēr ṣippôr ʾel-paḥ wĕlōʾ yādaʿ kî bĕnapšô hûʾ — “até que uma flecha transpassa o seu fígado, como ave que se apressa para o laço, e ele não sabe que é contra a sua própria vida”.) O advérbio ʿad (“até”) estica a linha do tempo da loucura moral: ele segue atrás dela “até” o ponto-limite do juízo. O verbo yĕpallaḥ é qal imperfeito 3ª masc. singular de pālaḥ no sentido de “fender, transpassar, rasgar”, descrevendo o impacto da flecha como golpe que abre caminho no interior do corpo. Ḥēṣ (“flecha, dardo”) é sujeito dessa ação, e o alvo é kĕvēdô (“o seu fígado”, masc. sing. com sufixo de 3ª pessoa), órgão que na imaginação hebraica está ligado às profundezas da vida e dos afetos, o “interior quente” do ser humano. A imagem, portanto, não é de ferimento superficial, mas de uma penetração até o centro vital.
A segunda metade do versículo desenvolve a metáfora com um símile: kĕmahēr ṣippôr ʾel-paḥ — kĕmahēr (“como quem se apressa, como com pressa”) é advérbio de modo que pinta a velocidade insensata da ave, ṣippôr (“pássaro”) que voa ʾel-paḥ (“para o laço, armadilha”). A sintaxe sugere o movimento linear: boi → matadouro (v.22), jovem → mulher → flecha, ave → armadilha; tudo caminha em linha reta para um fim letal. O clímax vem em wĕlōʾ yādaʿ kî bĕnapšô hûʾ — wĕlōʾ yādaʿ (“e ele não sabe”, qal perfeito 3ª masc. singular de yādaʿ, “conhecer”), enfatiza a ignorância culpada, não meramente intelectual, mas moral. Kî bĕnapšô hûʾ literalmente “pois é na sua própria vida”, isto é, “é contra a sua vida, à custa da sua vida”, faz da armadilha um custo existencial. O versículo condensa em duas imagens — flecha no fígado e ave no laço — a lógica do pecado sexual: o prazer prometido é breve como os grãos que atraem o pássaro, mas o resultado é uma ruptura profunda no centro da pessoa. A tua tradução está correta em essência; apenas se pode calibrar o final para “sem saber que é contra a sua própria vida”, preservando a nuance de que o perigo não é apenas físico, mas atinge o núcleo da existência.
A literatura rabínica toma esta metade final do quadro como a revelação do que estava oculto na sedução: todo o jogo era, desde o início, uma armadilha de morte. Em Midrash Tehillim sobre o Salmo 11, ao comentar “fará chover sobre os ímpios laços, fogo e enxofre” (Salmos 11:6), o midrash traz nosso versículo como paralelo: “como está dito: ‘até que uma flecha lhe fenda o fígado; como o pássaro que se apressa para o laço, e não sabe que é por sua vida’” (Midrash Tehillim 11:4–6). A imagem da seta que atravessa o fígado é lida como o golpe súbito que rasga o centro vital, enquanto o pássaro que corre ao laço, sem saber, dramatiza a inconsciência do pecador: ele corre atrás de prazer e, na verdade, corre na direção de sua própria destruição.
Outros midrashim deslocam o cenário da cama para a boca: em Midrash Sekhel Tov sobre Gênesis 49:22, ao tratar do perigo da maledicência, o autor compara as palavras de lashon ha-raʿ a flechas que atravessam o fígado de quem é alvo, e cita literalmente nosso versículo: “assim são as palavras de calúnia sobre aquele de quem se fala… ‘até que uma flecha lhe fenda o fígado, como o pássaro que se apressa para o laço, e não sabe que é por sua vida’” (Midrash Sekhel Tov, Bereshit 49:22). O jovem ingênuo de Provérbios torna-se aqui metáfora de qualquer pessoa exposta à língua assassina: não percebe que as frases soltas no ar são, na verdade, flechas apontadas a seu fígado, e que a “armadilha” da calúnia enreda a vida inteira.
Em Avot deRabbi Natan 2:7, o versículo é convocado num contexto ainda mais amplo: fala-se de pessoas que arrastam outros ao pecado ou retardam o arrependimento alheio, e sobre elas se diz: “sobre eles está escrito: ‘até que uma flecha lhe fenda o fígado; como o pássaro que se apressa ao laço, sem saber que é por sua vida’” (Avot deRabbi Natan 2:7). O quadro de Provérbios 7, assim, é elevado a paradigma do destino de quem vive de empurrar outros à queda: a flecha que parecia dirigir-se apenas ao ingênuo atinge, a seu tempo, o próprio sedutor. E em obras místicas posteriores, como Reshit Chokhmah no “Portão do Temor”, nosso versículo ressurge na descrição dos “palácios” do castigo: cita-se “até que uma flecha lhe fenda o fígado” ao falar de um heikhal em que os que se embriagaram de prazeres são atingidos por seus próprios excessos (Reshit Chokhmah, Gate of Fear 13:21). Em todas essas leituras, a flecha no fígado e o voo cego da ave condensam uma teologia do pecado: o golpe é interno, o fígado da pessoa é que se rompe, e a tragédia é que ela só descobre isso quando já está dentro do laço.
Provérbios 7:24
Agora, pois, filhos, ouvi-me e atentai para as palavras da minha boca. (Hb.: wĕʿattâ bānîm šimʿû-lî wĕhaqšîbû lĕʾimrê fî — “E agora, filhos, ouvi-me e prestai atenção às palavras da minha boca”.) O advérbio temporal wĕʿattâ (“e agora”) abre uma nova seção discursiva: depois da narrativa do desastre, vem a convocação urgente. Bānîm (“filhos”) está em plural, mas na pedagogia sapiencial funciona como vocativo coletivo e afetuoso, como um pai que se dirige à assembleia de aprendizes. O imperativo qal plural šimʿû (“ouvi”) seguido de -lî (“a mim”) não descreve apenas audição física, mas acolhimento obediente, como em Deuteronômio: ouvir é o primeiro passo da fidelidade. O segundo verbo, wĕhaqšîbû (hifil imperativo 2ª masc. plural de qāšab, “inclinar o ouvido, prestar atenção”), aprofunda o gesto: não basta ouvir de passagem, é preciso inclinar-se, concentrar-se. O objeto dessa atenção é lĕʾimrê fî (“às palavras da minha boca”), onde ʾimrê (“ditos, enunciados”) sublinha que não estamos diante de meros conselhos, mas de sentenças cuidadosamente formuladas. Sintaticamente, o paralelismo “ouvi-me / atentai” forma um dístico que funciona como portal para a conclusão: quem ouviu a história do jovem tolo é agora interpelado a não repeti-la. O pai-sábio ergue a voz no limiar: depois de mostrar o corpo que cai na flecha, volta-se aos vivos e diz “agora, pois”; o texto deixa claro que o propósito de toda a narrativa não é fascinar com detalhes sórdidos, mas arrancar os ouvintes da linha de marcha que leva ao mesmo fim.
A tua tradução acompanha bem o hebraico.) A tradição rabínica percebe aqui uma virada dramática de voz: depois da longa cena de sedução, é como se o narrador puxasse a cortina e o pai-mestre entrasse em cena, chamando “filhos” não apenas o jovem da história, mas toda a assembleia de Israel. Midrash Mishlei 7 abre sua homilia chamando atenção exatamente para esse “agora”: “daqui aprendes quão pesado é o castigo da transgressão… e sobre ela profetiza Salomão: ‘não se desvie o teu coração para os seus caminhos’… ‘porque muitos são os feridos que ela fez cair’… ‘os caminhos do Sheol, a sua casa’” — toda a sequência 7:24–27 é lida como o sermão que se ergue sobre a parábola encenada nos versículos anteriores (Midrash Mishlei 7). Rabbinos posteriores observarão que o “agora” marca o momento em que a narrativa deixa de ser curiosidade psicológica sobre um jovem anônimo e se torna liturgia de advertência: enquanto se conta a história, é possível manter a distância; quando o texto diz “filhos, ouvi-me”, cada ouvinte passa a ser, ele próprio, o “ingênuo” à beira do beco.
Provérbios 7:25
Não se volte o teu coração para os caminhos dela, nem te percas nas suas veredas. (Hb.: ʾal-yêśeṭ ʾel-dĕrāḵeihā libbĕḵā ʾal-tētaʿ bintîḇôtêhā — “não se incline o teu coração para os caminhos dela, não te desvias nas suas veredas”.) Aqui é importante ajustar levemente a tua tradução para incluir o sujeito que o hebraico enfatiza: “o teu coração”. ʾAl-yêśeṭ é jussivo negativo da raiz nāṭâ num forme arcaica (yêśeṭ), qal imperfeito 3ª masc. singular usado com valor de proibição: “não se incline”, “não deixe desviar-se”. O alvo é libbĕḵā (“o teu coração”), e o destino do desvio é ʾel-dĕrāḵeihā (“para os seus caminhos”, com sufixo dela). A segunda linha traz ʾal-tētaʿ (qal imperfeito 2ª masc. singular de ṭāʿâ, “perder-se, vaguear, errar”), agora com endereço direto ao leitor (“não te desvias”), e o espaço em que esse vagar acontece são bintîḇôtêhā (“nas suas veredas”, forma plural de netîbâ, “trilha, caminho estreito”). A sintaxe constrói dois movimentos complementares: interior (coração que se inclina) e exterior (passos que começam a trilhar sendas), o que mostra a psicologia fina de Provérbios: ninguém cai de súbito na cama do adultério; antes, o coração se inclina, e os pés começam a sondar veredas. O versículo desce ao nível do primeiro desvio: trata-se não apenas de evitar o ato final, mas de vigiar os microgestos — inclinações do coração, curiosidades, pequenas aproximações — que configuram “os caminhos dela”. A sabedoria proíbe tanto o coração de “virar” para o lado dela quanto os pés de “passearem” em suas trilhas, porque sabe que quem brinca com as veredas acaba morando na casa.
A tua formulação é fiel ao sentido; pode-se tornar um pouco mais literal com “não se incline o teu coração para os seus caminhos”.) Os comentadores medievais detêm-se no verbo raro yēšt. O artigo de Wikisource hebraico observa o jogo de palavras: yēšt indica ao mesmo tempo “desviar-se” e “agir como tolo” (šetiyah), de modo que “ʾal yēšt el derāḵeihā libbekhā” pode ser lido como “não cometas o disparate de desviar o teu coração para os caminhos dela” (Mishlei 7:25). O mesmo artigo lembra que a Torá usa raiz semelhante em Números 5:12 (“quando a mulher se desviar”, tistê, na lei da sotah), como se o texto de Provérbios invertesse o papel: lá, a mulher é a “desviada”; aqui, o homem que corre atrás dela é o verdadeiro tolo-desviado.
O portal Mikraot Gedolot HaKeter reúne as vozes clássicas sobre este versículo: Radak explica que “al yēšt” significa “não se desvie o teu coração dos caminhos direitos até os dela; o duplo ‘não se inclines… não te desvies’ vem para reforçar o aviso” (Mgketer, Mishlei 7:25). Ralbag lê a sequência com 7:24: “e agora, filhos, ouvi-me… não se incline o teu coração para o caminho desta mulher estranha que leva ao seguimento das paixões”; a repetição “caminhos/veredas” desenha o processo: primeiro o coração se inclina, depois os pés, pouco a pouco, se desviam. Midrash Mishlei 7 amarra tudo dizendo: “por isso está escrito: ‘não se desvie o teu coração para os seus caminhos…’, por quê? ‘porque muitos são os feridos que ela fez cair’... e o que vem depois? ‘os caminhos do Sheol, a sua casa’” — o midrash lê o versículo como o primeiro degrau de uma escada que termina nas câmaras da morte (Midrash Mishlei 7).
Provérbios 7:26
porque muitos são os feridos que ela fez cair, e numerosos são todos os seus mortos poderosos.
(Hb.: kî rabbîm ḥălālîm hippîlāh waʿăṣummîm kol-hăruggêhā — “pois muitos são os feridos mortais que ela abateu, e numerosos, poderosos, todos os seus mortos”.) A conjunção kî (“porque”) amarra esse versículo ao apelo anterior: não te desvies, “porque” a estatística da ruína é aterradora. Rabbîm (“muitos”, adjetivo masc. plural) abre o quadro, ligado a ḥălālîm (“traspassados, feridos mortais”), termo usado para cadáveres de guerra; não são arranhões emocionais, são mortos espirituais. O verbo hippîlāh é hifil perfeito 3ª fem. singular de nāpal (“fazer cair, derrubar”), atribuindo à mulher sedutora o papel ativo de algoz: “ela os fez cair, derrubou-os”. A segunda linha intensifica: waʿăṣummîm (“e poderosos, robustos”), adjetivo que descreve homens fortes, de peso social ou físico; kol-hăruggêhā (“todos os seus mortos”, de hārag, “matar”) declara que, embora fossem fortes, terminaram como mortos dela. A tua tradução capta bem a ideia geral, mas pode ser levemente refinada para “muitos são os feridos mortais que ela derrubou, e numerosos são todos os seus mortos poderosos”, preservando tanto o aspecto de morte quanto o peso dos “fortes” que caíram. Sintaticamente, o paralelismo sintético junta dois retratos: o número (“muitos / numerosos”) e a qualidade das vítimas (“feridos mortais / poderosos mortos”), compondo um campo de batalha coberto de corpos onde antes talvez houvesse heróis. O versículo desmonta a ilusão de imunidade: não são apenas fracos e ingênuos que caem; até “poderosos” jazem entre os mortos dela. A sabedoria faz o discípulo caminhar entre esses corpos invisíveis para que perceba que cada flerte com a insensatez se soma a uma longa fileira de vítimas.
A tua tradução acompanha bem o texto.) Este versículo se torna, no Talmud, uma das mais célebres drashot morais. Em Sotah 22a, lê-se: “disse Rabi Abbahu em nome de Rav Huna em nome de Rav: que significa o que está escrito ‘porque muitos são os feridos que ela fez cair, e poderosos são todos os seus mortos’? ‘Muitos são os feridos que ela fez cair’ — este é o aluno de sábio que ainda não chegou ao nível de decidir halachá e, mesmo assim, ensina; ‘e poderosos são todos os seus mortos’ — este é o sábio que já chegou ao nível de decisão, mas se recusa a ensinar” (Sotah 22a; ver também Steinsaltz on Sotah 22a:2). A mulher de Provérbios é, aqui, explicitamente identificada com a distorção da Torá: tanto quem a usa sem preparo quanto quem a retém por comodismo se tornam agentes de morte espiritual, multiplicando “feridos” e “mortos poderosos” no povo.
Comentários modernos reunidos no site de Bney Zion resumem bem esta leitura: a Sotah vê no versículo dois tipos de tragédia — o pseudo-rabino que mata por imprudência e o grande mestre que mata por omissão (Artigo “Ki Rabbim Chalalim Hepila”). A nota de Mikraot Gedolot HaKeter acrescenta um leque de sentidos: há quem leia estes “mortos” como vítimas físicas — o amante morto pelo marido traído ou atingido por doenças venéreas —, e há quem, como o Malbim, entenda “feridos” e “mortos poderosos” como “homens grandes em Torá e temor, que, mesmo assim, não resistiram à prova” (Mgketer, Mishlei 7:26). Em outro registro, uma aula de Yeshayahu Leibowitz recorda que os sábios aplicam “ki rabbim chalalim hepila” também à heresia e até à própria Torá mal usada: a mesma palavra que deveria dar vida pode se tornar, se manipulada, instrumento de morte simbólica (Talks of Y. Leibowitz on Ha’Azinu 5:6). O verso, que em Provérbios fala da mulher adúltera, passa, na leitura rabínica, a designar qualquer poder de sedução — inclusive religioso ou intelectual — que derruba muitos e não poupa nem os “fortes”.
Provérbios 7:27
Caminho para o Sheol é a sua casa, descendo às câmaras da morte. (Hb.: darkê šĕʾôl bêtāh yōrdôt ʾel-ḥadrê māwet — “os caminhos do Sheol [são] a sua casa, descendo às câmaras da morte”.) Aqui é necessário corrigir um pouco a tua redação: o texto não diz “os caminhos do Sheol, a sua casa”, mas estrutura a frase de modo a identificar a casa dela com a rota que leva ao Sheol. Darkê é plural construto de derek (“caminho, rota”), formando “caminhos de…”. O complemento é šĕʾôl, termo que designa o mundo dos mortos, a região sombria para onde descem todos. Em seguida vem bêtāh (“a sua casa”, com sufixo 3ª fem.), em aposição: a casa da mulher é, por assim dizer, encruzilhada de todos os caminhos que convergem para o Sheol. O verbo yōrdôt (qal particípio feminino plural de yārad, “descer”) concorda com darkê e descreve esses caminhos como continuamente “descendo” ʾel-ḥadrê māwet (“até as câmaras da morte”), onde ḥadrê é plural construto de ḥeder (“quarto interior, cômodo”), evocando compartimentos profundos, não a superfície. A tua expressão “câmaras interiores da morte” traduz bem essa ideia de profundidade, embora “câmaras da morte” já retenha a imagem. Sintaticamente, o versículo funciona como selo da perícope: o quadro se fecha com um movimento descendente, como um plano de câmera que acompanha a escadaria até os porões. O texto remove qualquer romance da cena: a casa que parecia perfumada de mirra, aloés e canela é reconfigurada como boca de caverna; entrar ali é pôr os pés numa estrada que, por natureza, desce. Não se trata apenas de “risco moral”, mas de geografia espiritual: a arquitetura da sedução está encaixada sobre o mapa do Sheol, e cada passo em direção à casa é, invisivelmente, um degrau rumo às câmaras da morte.
A tua tradução capta bem o movimento de descida; só ajustaria o começo para “caminhos do Sheol é a sua casa” ou “caminhos do Sheol são a sua casa”.) Aqui a tradição judaica vê o ponto final da espiral. Midrash Mishlei 7, depois de citar “não se desvie o teu coração… porque muitos são os feridos… e poderosos todos os seus mortos”, conclui: “que está escrito depois? ‘os caminhos do Sheol, a sua casa, descendo às câmaras da morte’ — daqui aprendes quão pesado é o castigo do pecado” (Midrash Mishlei 7). A casa da mulher estranha é descrita como uma rua de muitas entradas que deságua num mesmo porão: cada visita, cada encontro, é, na verdade, um passo adiante nessa escada em direção aos “quartos” da morte.
Os comentários reunidos em Mikraot Gedolot HaKeter ligam nosso versículo a Provérbios 5:5 (“seus pés descem à morte, seus passos firmam-se no Sheol”), insistindo que “as câmaras da morte” são níveis, degraus. Radak fala em “caminhos muitos e variados, mas todos levam ao mesmo fim”; outros veem nesses “quartos” uma alusão às diversas formas de perdição — ruína física, moral, espiritual — que se entrecruzam na vida do adúltero (Mgketer, Mishlei 7:26–27). Reshit Chokhmah, ao descrever “palácios” de castigo, fala de um “sétimo heikhal” de embriaguez, citando nosso “até que uma flecha lhe fenda o fígado” e, em continuidade, os termos de descida ao Sheol, para mostrar que os prazeres ilícitos não são apenas momentos isolados, mas uma arquitetura: uma casa inteira construída sobre degraus que conduzem ao fundo (Reshit Chokhmah, Gate of Fear 13:21). E estudiosos modernos, como Yehoshua Grintz, ao analisar os capítulos iniciais de Provérbios, sublinham que imagens como “os caminhos do Sheol, a sua casa, descendo às câmaras da morte” são típicas do primeiro bloco do livro (Provérbios 1–9), inteiramente dedicado a advertir contra a sedução da adúltera e da loucura: as pernas que desciam à morte em Provérbios 5 agora se revelam como degraus reais, que vão das janelas da cidade até os “quartos” soturnos da perdição (Grintz, Al Sefer Mishlei).
Na leitura rabínica, portanto, estes versículos finais se encadeiam como o fecho de uma parábola que deixou de ser cena erótica para tornar-se mapa espiritual: o jovem, flecha no fígado, pássaro no laço, é qualquer um que troca o “ouve-me, filhos” pela voz doce da sedução; a casa da mulher estranha é qualquer lugar onde se decide, repetidas vezes, que o Sheol será o endereço final da própria história.
II. Devocional de Provérbios 7
Provérbios 7 é um texto que, como o capítulo anterior, adverte veementemente contra a sedução e o adultério, mas o faz por meio de uma narrativa vívida e um estudo de caso prático. Podemos dividir este capítulo em três blocos principais, que ilustram a importância da vigilância e do discernimento moral.A. Provérbios 7:1-5 (A Urgência de Guardar a Sabedoria para Proteção)
Este segmento inicial estabelece a premissa fundamental: a sabedoria é uma proteção vital. O autor exorta o leitor a guardar seus mandamentos e ensinamentos com a mesma preciosidade que se guarda a menina dos olhos (a parte mais sensível e vital do corpo). A metáfora de “escrevê-los na tábua do coração” e “atrelá-los aos dedos” sugere que a sabedoria deve ser internalizada e sempre visível, servindo como um guia constante. O propósito explícito dessa adesão à sabedoria é a proteção contra a mulher adúltera e suas palavras sedutoras, destacando a sabedoria como um escudo contra o perigo moral.
Aplicação: Para ser um cristão melhor, a internalização da Palavra de Deus é nossa primeira linha de defesa. Assim como Davi declarou em Salmos 119:11, “Guardei a tua palavra no meu coração para não pecar contra ti.” Em um mundo saturado de mensagens que promovem a imoralidade, a imersão nos ensinamentos bíblicos (como o Evangelho da pureza e da santidade em Cristo, conforme 1 Tessalonicenses 4:3-5) é essencial.
Como filhos melhores, obedecer aos ensinamentos de nossos pais (que, idealmente, refletem a sabedoria divina) nos oferece um alicerce moral. Se nossos pais nos alertam sobre certos perigos ou influências, sua sabedoria é um escudo. Para pais melhores, o desafio é inculcar essa sabedoria nos filhos desde cedo, não apenas com palavras, mas com o exemplo de uma vida que valoriza a pureza e a fidelidade, incentivando-os a fazer das Escrituras seu guia (Deuteronômio 6:6-7).
Mesmo como funcionário ou cidadão, a integridade moral derivada dessa sabedoria básica nos protege de decisões antiéticas que podem levar à ruína pessoal e profissional, como o envolvimento em esquemas fraudulentos que prometem riqueza fácil.
B. Provérbios 7:6-23 (A Narrativa da Queda do Ingênuo)
Este é o coração narrativo do capítulo, um conto preventivo e detalhado da sedução. O autor descreve-se como um observador que vê um jovem insensato, sem discernimento, passando perto da casa da mulher imoral ao cair da noite (Pv 7:6-9). A cena se desenrola com a mulher astuta o interceptando: ela é ousada, vestida de forma provocante, e o agarra e beija sem pudor (Pv 7:10-13). Sua sedução é verbal e psicológica: ela tece uma história sobre votos religiosos cumpridos e uma casa cheia de luxo e aromas, convidando-o abertamente para uma noite de prazer, garantindo que o marido está longe (Pv 7:14-20). A astúcia de suas palavras e a sua lábia persuasiva levam o jovem a seguir, como um animal levado ao matadouro, sem perceber que sua vida e seu futuro estão sendo sacrificados (Pv 7:21-23). A descrição do jovem como um “boi” ou “pássaro” ilustra a cegueira e a inevitabilidade de sua destruição.
Aplicação: Este bloco é um estudo de caso sobre a importância da vigilância e do discernimento. Para ser um cristão melhor, devemos reconhecer a astúcia das tentações que nos cercam. Como Jesus advertiu em Mateus 26:41, “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca.” A tentação não é apenas um “demônio” que aparece, mas muitas vezes assume formas sedutoras e “razoáveis”. Evitar os “caminhos” onde a tentação é frequente (como ambientes ou companhias que comprometem a moralidade) é crucial.
Um filho melhor aprende a reconhecer os sinais de perigo e a evitar situações de risco, confiando na orientação dos pais que já experimentaram as artimanhas do mundo. Para pais melhores, esta narrativa serve como um aviso para educar os filhos sobre a sutileza das tentações e a importância de desenvolver o discernimento para “reconhecer o bem do mal” (Hebreus 5:14), não apenas sobre sexo, mas sobre qualquer comportamento enganoso.
Mesmo como funcionário ou membro da igreja, as táticas de sedução podem ser metafóricas: alguém que oferece um “atalho” antiético para o sucesso ou uma “solução” pecaminosa para um problema. A ingenuidade leva à queda, como vemos em 1 Coríntios 10:12, “Aquele que pensa estar em pé, cuide para que não caia.”
C. Provérbios 7:24-27 (A Solene Advertência Final)
O capítulo culmina com uma advertência final e solene, apelando diretamente aos filhos para que ouçam e não se desviem. Após a vívida ilustração do jovem insensato, a sabedoria reitera que o caminho da mulher imoral é um caminho de ruína e morte (Pv 7:24-26). Ela já foi a causa da queda de inumeráveis vítimas, incluindo homens poderosos. O destino final desse caminho é o Seol, a câmara da morte, sublinhando a seriedade das consequências (Pv 7:27). A mensagem é clara: as aparências enganam, e a sedução conduz a um fim trágico e inevitável.
Aplicação: Esta seção é um chamado à responsabilidade pessoal e à seriedade das escolhas. Para ser um cristão melhor, devemos levar a sério os avisos das Escrituras e não subestimar o poder destrutivo do pecado, especialmente da imoralidade sexual. O apóstolo Paulo adverte em 1 Coríntios 6:18, “Fugi da prostituição. Todo pecado que o homem comete é fora do corpo; mas o que se prostitui peca contra o seu próprio corpo.” A vida de um cristão deve ser marcada pela santidade, pois somos templo do Espírito Santo.
Como filhos melhores, devemos acatar as advertências dos mais velhos e da Palavra de Deus sobre os perigos da imoralidade, compreendendo que as consequências são reais e devastadoras, afetando não apenas a vida pessoal, mas a reputação e o futuro. Para pais melhores, o encerramento do capítulo reforça a necessidade de serem firmes na educação moral, não se cansando de alertar sobre as consequências das escolhas erradas, com amor e clareza. Para um membro da igreja melhor e um cidadão melhor, a integridade moral pessoal contribui para a saúde coletiva. A imoralidade e a infidelidade destroem a confiança, a família e a própria estrutura social. Viver de forma íntegra, fugindo do mal, é um testemunho de fé e um pilar para a comunidade.
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