Provérbios 12: Significado, Explicação e Devocional
Provérbios 12
Provérbios 12 contém vários ditos e ensinamentos sábios. O capítulo enfatiza a importância de viver uma vida justa e evitar a iniquidade. Diz que aqueles que buscam a justiça encontrarão graça diante de Deus, enquanto aqueles que praticam o engano serão condenados.O texto também enfatiza o poder de nossas palavras. Diz que palavras sábias trazem cura e promovem a paz, enquanto palavras tolas levam a conflitos e danos. O capítulo também ensina o valor do trabalho árduo e da diligência. Diz que aqueles que trabalham duro e são diligentes prosperarão, enquanto aqueles que são preguiçosos e ociosos sofrerão.
Provérbios 12 também enfatiza a importância de buscar conselhos e conselhos sábios. Diz que aqueles que ouvem conselhos prosperarão, enquanto aqueles que os rejeitam sofrerão. Esse capítulo ensina a importância de viver uma vida justa, falar com sabedoria, trabalhar arduamente e buscar conselhos sábios.
I. Resumo de Provérbios 12
Provérbios 12 inicia contrastando a sabedoria e a tolice no que diz respeito à instrução e à estabilidade. Nos versículos 1–3, ele aponta que quem busca conhecimento ama a disciplina, enquanto quem rejeita a repreensão é irracional. Aqueles que são justos encontram o favor de Deus e segurança, pois sua integridade lhes dá firmeza, ao contrário dos ímpios que, mesmo que se esforcem, não conseguem se estabelecer.A influência da mulher no lar e a natureza dos pensamentos são abordadas em seguida. Nos versículos 4–6, a sabedoria destaca que uma esposa virtuosa é a glória do marido, enquanto uma mulher que age vergonhosamente pode destruí-lo. O texto diferencia os pensamentos dos justos, que são puros e retos, dos conselhos dos ímpios, que são enganosos e perigosos, armando ciladas e até tramando mortes, enquanto a verdade dos justos os salva.
A estabilidade do justo e a natureza da sabedoria prática são os próximos temas. Nos versículos 7–9, é dito que os ímpios desaparecem e suas casas caem, mas a casa dos justos permanece firme. A compreensão de um homem traz-lhe louvor, mas a mente perversa será desprezada. É preferível ser humilde e ter sustento básico a se gabar e passar fome.
A compaixão e a diligência no trabalho são exaltadas nos versículos seguintes. Em Pv 12:10–12, o provérbio mostra que o justo cuida até de seus animais, revelando um coração compassivo, enquanto a crueldade é a marca do ímpio. Aqueles que trabalham a terra com afinco prosperam, em contraste com os que perseguem o vazio e demonstram falta de juízo. A sabedoria dos justos, como uma raiz, produz frutos, enquanto o ímpio cobiça aquilo que leva à destruição.
A importância do controle da fala e da escuta é acentuada. Nos versículos 13–15, percebe-se que as palavras enganosas podem prender o pecador em problemas, mas o justo encontra libertação. O homem colhe os frutos de suas palavras e ações, sejam eles bons ou maus. A sabedoria aqui reside em ser humilde o suficiente para ouvir conselhos, pois o tolo confia em sua própria opinião como se fosse a única verdade.
A forma como se lida com a raiva e a verdade é um sinal de sabedoria. Nos versículos 16–19, o tolo revela sua irritação rapidamente, mas o homem prudente ignora ou encobre a ofensa. Quem fala a verdade promove a justiça, enquanto a falsa testemunha engana. As palavras impensadas podem ferir profundamente, mas a fala dos sábios traz cura. A verdade tem permanência eterna, ao contrário da mentira, que dura apenas um momento.
As consequências da maldade e da retidão são reiteradas. Em Pv 12:20–22, o engano está no coração dos que tramam o mal, mas a alegria pertence aos que promovem o bem. Nenhuma desgraça fundamental sobrevém ao justo, mas os ímpios estão cheios de problemas. Lábios mentirosos são abominação para o Senhor, mas aqueles que agem com fidelidade O agradam.
Finalmente, a sabedoria encerra o capítulo destacando a diligência, o impacto das palavras e o caminho da vida. Nos versículos 23–25, o homem prudente guarda seu conhecimento, enquanto o tolo expõe sua insensatez. A mão dos trabalhadores diligentes alcançará o domínio, mas a preguiça leva à servidão. A ansiedade pode oprimir o coração, mas uma palavra de encorajamento traz alegria. O justo, como um bom guia para o próximo, leva a caminhos seguros, enquanto o caminho dos ímpios os engana (Pv 12:26). A diligência é um tesouro que o preguiçoso não consegue alcançar, pois não se esforça para "apanhar sua caça" (Pv 12:27). O capítulo conclui, em Pv 12:28, afirmando que o caminho da justiça é um caminho de vida, e em sua vereda não há morte.
II. Comentário de Provérbios 12
Provérbios 12:1
Quem ama a instrução ama o conhecimento, mas quem odeia a repreensão é insensato. (Hb.: ʾōhēb mûsār ʾōhēb daʿat wəšōnēʾ tôkaḥat bāʿar — “amante de disciplina, amante de conhecimento, mas quem odeia a repreensão é bruto”. O verso é construído inteiramente com particípios Qal masculinos singulares, ʾōhēb e šōnēʾ, que funcionam como sujeitos genéricos, “quem ama” e “quem odeia”, descrevendo uma disposição habitual, uma identidade moldada no tempo, não um ato isolado. O particípio ʾōhēb deriva do verbo ʾāhav (“amar”), no binyan Qal, aqui em particípio ativo masculino singular absoluto; substantivado, torna-se “o amante de…”, sujeito da cláusula inicial, que toma como objeto direto o substantivo masculino singular absoluto mûsār (“disciplina, correção”). Etimologicamente, mûsār vem da raiz ysr, ligada à ideia de disciplinar, castigar pedagogicamente, e em Provérbios designa a correção formadora, muitas vezes vinda do próprio Deus (cf. Provérbios 3:11–12), mais próxima de “treino severo” do que de mera instrução intelectual. A segunda ocorrência de ʾōhēb governa daʿat, substantivo feminino singular absoluto, de raiz ydʿ (“conhecer”), que, segundo os léxicos, não é conhecimento frio, mas “conhecimento” carregado de percepção e competência, frequentemente usado para o conhecimento de Deus e de seus caminhos. Assim, morfologicamente, temos duas orações paralelas do tipo particípio + objeto direto (“aquele que ama disciplina, aquele que ama conhecimento”), nas quais o mesmo sujeito participial desenha um único perfil: quem ama mûsār é, por definição, amante de daʿat; amar um implica amar o outro.
A conjunção wə- introduz šōnēʾ com valor claramente adversativo (“mas”), embora a forma seja a simples coordenação waw; faz a ponte entre o amigo da disciplina e o seu oposto, o inimigo da repreensão. Šōnēʾ é particípio Qal masculino singular absoluto do verbo śānēʾ (“odiar”), funcionando, como ʾōhēb
, como sujeito genérico: “o que odeia”. O objeto direto desse particípio é tôkaḥat, substantivo feminino singular absoluto de raiz ykḥ, termo forense que, nos léxicos, oscila entre “argumento, contestação” e “repreensão, censura”, sugerindo um confronto verbal que expõe o erro e chama ao acerto. A cláusula se encerra com bāʿar, analisado na morfologia como adjetivo masculino singular absoluto, em função de predicativo do sujeito: “é bruto / estúpido”. Etimologicamente, bāʿar conecta-se à raiz baʿar, “ser bruto, agir como animal”, aparentada ao substantivo beʿir, “gado, animal doméstico”; o quadro, portanto, não é apenas de alguém pouco inteligente, mas de alguém que renuncia à inteligência moral e desce ao nível do instinto, como se Provérbios dissesse: quem odeia ser corrigido está se animalizando por dentro.Do ponto de vista sintático, o verso forma dois cola em paralelismo antitético. O primeiro, ʾōhēb mûsār ʾōhēb daʿat, é uma oração verbal participial em que o particípio Qal masc. sing. absoluto ʾōhēb atua como núcleo do sujeito genérico (“quem ama”), e mûsār e daʿat são objetos diretos em estrutura paralela. O segundo, wəšōnēʾ tôkaḥat bāʿar, é uma predicação nominal com cópula elíptica: o conjunto “o que odeia a repreensão” (particípio Qal masc. sing. + objeto direto feminino sing.) funciona como sujeito, e o adjetivo masculino singular bāʿar funciona como predicativo, preenchendo o “é” não escrito (“é bruto”). A forma participial em ambos os lados, em vez de um perfeito pontual, confere ao verso um tom de retrato: não se descreve um ato isolado de amar ou odiar, mas um modo de ser reiterado. Exegética e teologicamente, o verso encadeia disciplina (mûsār), conhecimento (daʿat) e humanidade verdadeira: quem ama a correção ama o processo doloroso pelo qual Deus e a sabedoria o transformam; quem a odeia rejeita o único caminho pelo qual o conhecimento se torna carne, e, ao fazê-lo, torna-se “bruto”, cada vez menos capaz de responder à voz de Deus. A luz da teologia bíblica deixa esse quadro ainda mais nítido: a disciplina é marca de filiação (Hebreus 12:5–11), a repreensão amorosa de Cristo é sinal de que ele ainda bate à porta (Apocalipse 3:19), e toda Escritura é soprada por Deus precisamente “para repreender, corrigir e educar na justiça” (2 Timóteo 3:16). Amar a disciplina é, portanto, amar o próprio Deus que se aproxima para nos confrontar; odiá-la é preferir a cegueira confortável de quem, aos poucos, se contenta em viver como animal e não como filho.
O sábio sabe que a disciplina e a orientação são a sua própria recompensa. Mas quem abomina ser repreendido é um bruto (literalmente, imbecil). Os sábios achavam que os erros ofereciam oportunidades de aprendizado. Eles também aparentemente assumiram que todos cometeriam erros ao longo do caminho. O que eles não podiam tolerar, porém, era uma atitude defensiva que se recusava a admitir erros.
Os verdadeiros aprendizes, as pessoas verdadeiramente sábias, são aqueles que desejam saber quando erraram para que possam mudar seu comportamento. Assim, a pessoa sábia ama a “disciplina” (mûsār, veja 1:2) e a “correção” (tôkaḥat, veja 1:23). É estúpido resistir à crítica porque isso significa que uma pessoa perpetuará um comportamento errado. A palavra “estúpido” (bāʿar) é forte e se refere a uma pessoa “que não tem a racionalidade que diferencia os homens dos animais (Sl 73:22).” (NIDOTTE 1:691)
O princípio expresso aqui nos lembra por que o livro de Provérbios valoriza tanto a humildade sobre o orgulho. A humildade permite ouvir palavras de crítica e cria abertura para mudanças, enquanto o orgulho faz o contrário. A humildade e a capacidade de ouvir a correção fornecem, assim, o caminho para o sucesso e a vida; o orgulho leva ao fracasso e, por fim, à morte.
Provérbios 12:2
O bom atrai o favor do Senhor, mas o homem de planos malignos é condenado por ele. (Hb.: ṭôḇ yāp̄îq rāṣôn mēyhwh wəʾîš məzimmôt yaršiʿ — “o bom faz brotar favor de Yahweh, mas o homem de maquinações ele condenará”. A primeira palavra, ṭôḇ, é adjetivo masculino singular absoluto derivado da raiz ṭôḇ, que os léxicos descrevem como “bom, agradável, adequado”, podendo funcionar como substantivo (“um bom [homem]”, “o bom”) e incluindo a dimensão ética: aquilo que é reto, benéfico, conforme o propósito de Deus. Aqui, ṭôḇ está substantivado e ocupa a posição de sujeito gnômico da primeira cláusula. O verbo yāp̄îq é forma imperfeita Hifil 3ª masc. sing. da raiz ypq; no Hifil, o campo semântico aponta para “fazer sair, trazer à tona, produzir”, de modo que a tradução “obtém” ou “faz brotar” preserva o matiz causativo: o “homem bom” é alguém por meio de quem o favor se manifesta e se derrama. O objeto direto, rāṣôn, é substantivo masculino singular absoluto da raiz rṣh, termo que designa “favor, benevolência, agrado”, tanto no plano humano quanto no divino; em muitos contextos, é o “agrado do Senhor”, o sorriso de Deus sobre alguém. A expressão mēyhwh combina a preposição min (“de, a partir de”) com o Nome divino, formando um complemento preposicional de origem: o favor não é genérico, mas “de YHWH”, sua fonte é a própria vontade de Deus.
A metade seguinte se abre novamente com a conjunção wə- em valor contrastivo (“mas”), seguida de ʾîš, substantivo masculino singular absoluto (“homem”), que, junto com məzimmôt, substantivo feminino plural absoluto de mezimmāh, compõe o sintagma ʾîš məzimmôt, “homem de planos / maquinações”. Em outros contextos, mezimmāh pode ser positiva (“prudência”), mas em Provérbios 12:2 o plural məzimmôt é explicitamente carregado de maldade, como confirmam as traduções que falam de “wicked devices”, “wicked intentions”, e o próprio paralelo com o verbo final de condenação. Sintaticamente, esse sintagma funciona como objeto direto lógico da forma verbal que se segue, yaršiʿ, imperfeito Hifil 3ª masc. sing. da raiz rāšaʿ. A forma Hifil dessa raiz, conforme a tradição lexical, indica um ato declarativo-forense: “declarar culpado, condenar, tratar como ímpio”, mais do que simplesmente “tornar alguém ímpio” em sentido ontológico. O sujeito gramatical de yaršiʿ está elíptico, mas é recuperado naturalmente da cláusula anterior: é o próprio YHWH, de quem o bom obtém favor. Assim, temos, na primeira cláusula, a estrutura sujeito (ṭôḇ) + verbo imperfeito Hifil 3ª masc. sing. (yāp̄îq) + objeto direto (rāṣôn) + complemento preposicional de origem (mēyhwh), descrevendo uma ação habitual de graça; na segunda, conjunção adversativa + objeto direto complexo (ʾîš məzimmôt) + verbo imperfeito Hifil 3ª masc. sing. com sujeito elíptico (yaršiʿ), descrevendo uma ação igualmente habitual de juízo.
Etimologicamente e teologicamente, ṭôḇ sugere não apenas um caráter “bonzinho”, mas algo (ou alguém) que funciona de acordo com seu propósito: o homem “bom” é aquele cuja vida se harmoniza com o bem que Deus chamou “bom” desde a criação. Rāṣôn, o favor, é a resposta afetiva e graciosa de Deus a esse alinhamento: não um prêmio mecânico, mas o prazer de Deus em ver a sua própria bondade refletida na criatura. Mezimmôt, por sua vez, retrata a inteligência que se distorceu, que usa sua capacidade de planejar para maquinar o mal; é a mente que transformou o dom da prudência em arma de egoísmo. O uso do imperfeito Hifil nos dois verbos — yāp̄îq e yaršiʿ — sublinha que o Senhor não é observador neutro da história: ele faz brotar favor “de si” sobre o justo e ele mesmo, como juiz, declara culpado o homem de tramas perversas. O quadro ecoa textos como Salmos 5:12 (“tu, Senhor, abençoas o justo; o teu favor como escudo o cerca”) e Romanos 2:6–11, em que Deus retribui segundo as obras, e alinha Provérbios 12:2 com a convicção de todo o cânon de que o universo moral não é cego: há um Deus que se deleita em quem se faz ṭôḇ e que, ao mesmo tempo, ergue o martelo da sentença sobre o ʾîš məzimmôt. Entre o sorriso de rāṣôn e a palavra pesada de yaršiʿ se decide, silenciosamente, a direção da vida de cada um.
Este versículo fala sobre a repreensão de Deus aos homens de pensamentos perversos. O Evangelho de João fala de alguém já condenado por ter feito o mal, e que se agarra propositalmente a escuridão embora a luz já tenha chegado (Jo 3.16-21). O verso é um paralelismo antitético baseado no contraste entre dois tipos de pessoas. De um lado estão as pessoas boas, a quem Javé favorece; e do outro estão os planejadores, a quem Deus condenará. A categoria “bom” é muito ampla, e pode-se esperar que a pessoa igualmente ampla “perversa” ou “má” forneça o contraste. No entanto, aqui a pessoa negativa é um intrigante.
A palavra “conspiração” vem de mĕzimmâ. Esta palavra pode ter um significado positivo ou negativo. Em 2:11 vimos que tem o sentido positivo de discrição, mas aqui está a ideia negativa de maquinação. A ideia básica é, como Fox apontou, “pensamento privado e não revelado, frequentemente, mas nem sempre, usado em intrigas. Como a capacidade de pensar por si mesmo e seguir seu próprio conselho, é especialmente valioso para resistir à tentação.” [Fox, Proverbs p. 1–9, 116.] Para “favor” (rāṣôn), veja os comentários em 10:32; 11:1, 20, 27.
Provérbios 12:3
O homem não se firma na impiedade, e a raiz do justo não é abalada. (Hb.: lōʾ yikkōn ʾādām bərešaʿ wəšōreš ṣaddîqîm bal yimmōṭ — “não se firmará o ser humano em perversidade, mas a raiz dos justos de modo algum vacilará”. O versículo começa com a partícula negativa lōʾ, advérbio de negação simples que recai sobre todo o predicado verbal e abre a sentença como uma sentença categórica: o que vem a seguir não é exceção, mas regra. Em seguida vem yikkōn, forma imperfeita Nifal 3ª masc. sing. do verbo kûn (“ser firme, estar estabelecido, permanecer”), com aspecto imperfeito de valor gnômico, descrevendo não um futuro pontual, mas uma lei constante: “não se estabelece, não se consolida”. O sujeito é ʾādām (substantivo masc. sing. absoluto, de raiz ʾdm, ligada a ʾădāmāh, “solo, terra”), aqui designando o ser humano em geral, não um indivíduo específico, como se o provérbio dissesse: “nenhum ser humano, por mais astuto, consegue dar solidez à própria existência construindo-a sobre o mal”. A expressão bərešaʿ é formada pela preposição bə (“em, dentro de, por meio de”) + o substantivo rešaʿ (masc. sing. absoluto, de raiz ršʿ, “perversidade, maldade”), funcionando como complemento circunstancial de esfera e de meio: é “no” campo da perversidade e “por meio” dela que o homem tenta se estabelecer, como quem ergue uma casa sobre areia movediça.
A segunda hemistiquia se abre com wəšōreš, onde wə- é conjunção coordenativa, aqui com valor adversativo (“mas”), ligando e opondo a sentença anterior a esta, e šōreš (“raiz”) é substantivo masc. sing. em estado construto, de raiz šrš (“enraizar, criar raízes”), funcionando como sujeito da oração seguinte e formando com ṣaddîqîm a cadeia construtiva “raiz dos justos”. Ṣaddîqîm é plural masculino absoluto de ṣaddîq (adjetivo/substantivo, de raiz ṣdq, “ser justo, viver em conformidade com o padrão de Deus”), aqui substantivado: “os justos”, aqueles que não apenas praticam atos bons, mas cuja identidade está alinhada ao juízo reto de Deus. O advérbio bal é outra partícula de negação, mais rara e poética, que reforça a ideia de impossibilidade enfática (“de modo algum, jamais”), recobrindo o verbo seguinte com uma sombra de impossibilidade absoluta. Yimmōṭ é imperfeito Qal 3ª masc. sing. do verbo mûṭ (“vacilar, ser abalado, cambalear”), com sujeito “a raiz dos justos”, e atua como predicado verbal: essa raiz “não será abalada”, não oscilará, não sairá do lugar, qualquer que seja o vendaval.
Sintaticamente, a primeira cláusula é oração verbal: partícula negativa + verbo no Nifal imperfeito + sujeito nominal (ʾādām) + complemento preposicionado (bərešaʿ) que indica esfera e meio; a segunda é igualmente oração verbal, mas com o sujeito nominal complexo (šōreš ṣaddîqîm) antecipado, seguido do advérbio negativo bal e do verbo Qal imperfeito yimmōṭ. O paralelismo é antitético: de um lado, o “homem” no singular, visto como indivíduo genérico que tenta usar o mal como alicerce; do outro, a “raiz dos justos” no plural, representando uma comunidade cuja estabilidade não depende de truques, mas da profundidade de seu enraizamento em Deus. A própria metáfora da “raiz” sugere algo oculto, subterrâneo e silencioso: a parte não visível da vida dos justos — sua fé, seu temor do Senhor, sua obediência — é precisamente o que os impede de ser arrancados quando vêm as tempestades (compare Salmos 1:3 e Jeremias 17:7–8, onde o justo é comparado à árvore junto às águas, que “não deixará de dar fruto” mesmo no calor). Enquanto o ímpio se imagina firme “na impiedade”, mas constrói em terreno que cede, o justo parece vulnerável na superfície, mas está ancorado num ponto que o texto apresenta como inabalável, porque a raiz que o sustenta está plantada na justiça de Deus. À luz do Novo Testamento, essa imagem se aprofunda quando Cristo é apresentado como aquele em quem fomos “arraigados” (Colossenses 2:7): quem se firma em qualquer outra coisa — poder, dinheiro, astúcia — está, sem perceber, apoiando-se numa madeira podre; já quem tem a sua vida escondida em Cristo torna-se como essa raiz de Provérbios 12:3, que pode até ser sacudida, mas não é arrancada.
Provérbios 12:4
A mulher virtuosa é a coroa do seu marido, e a podridão nos seus ossos é a vergonha que causa. (Hb.: ʾēšet ḥayil ʿăṭeret baʿlāh ûkərāqāḇ bəʿaṣmōtāyw məḇîšāh — “mulher de força é coroa de seu marido, mas como podridão em seus ossos é a que o envergonha”). O verso abre com ʾēšet ḥayil, um sintagma em estado construto: ʾēšet é forma construta fem. sing. de ʾiššāh (“mulher”), funcionando aqui como núcleo do sujeito, e ḥayil é substantivo masc. sing. absoluto de raiz ḥyl, cujo campo semântico inclui “força, vigor, capacidade, riqueza, exército”, de modo que ʾēšet ḥayil não é simplesmente “mulher boazinha”, mas “mulher de força, de valor, de competência”, alguém energicamente capaz de sustentar e administrar a casa, como aparece de forma desenvolvida em Provérbios 31. A expressão “mulher virtuosa” perde algo do sentido de iniciativa ativa e coragem que o termo sugere; trata-se de alguém que luta, planeja, protege, trabalha, e justamente por isso é chamada de “coroa”. ʿĂṭeret é substantivo fem. sing. em estado absoluto, de raiz ʿṭr (“coroar, cercar, honrar”), funcionando aqui como predicativo do sujeito: a mulher de valor “é uma coroa”, em paralelo com a imagem da coroa como sinal público de honra e autoridade. Baʿlāh é substantivo masc. sing. com sufixo de 3ª fem. sing. (“seu marido”), de raiz bʿl (“possuir, dominar, ser senhor”), frequentemente usado no sentido afetivo de “esposo”; aqui cumpre função de complemento genitivo: é “a coroa de seu marido”, sugerindo que a dignidade dele brilha aos olhos dos outros por causa das qualidades dela.
A segunda hemistiquia começa com ûkərāqāḇ, onde û- é conjunção coordenativa (“e/mas”) com valor claramente adversativo no paralelismo, e kə- é preposição comparativa (“como”), unida ao substantivo masc. sing. absoluto rāqāḇ (“podridão, decomposição”), de raiz que indica deterioração lenta, interna, às vezes usada para doenças profundas dos ossos (como em Provérbios 14:30 e Habacuque 3:16). A expressão bəʿaṣmōtāyw soma a preposição bə (“em”) ao substantivo ʿaṣāmôt (plural fem. construto de ʿeṣem, “osso”, “estrutura”), com sufixo de 3ª masc. sing. -āyw (“seus”), e funciona como complemento locativo: essa “podridão” está “nos seus ossos”, no nível mais íntimo e estruturante da pessoa, naquilo que a sustenta por dentro. Por fim, məḇîšāh é particípio Hifil fem. sing. de bôš (“envergonhar, trazer vergonha”), atuando como sujeito da oração: “a que envergonha [o marido]”. A forma Hifil indica causação: não se trata apenas de uma mulher que “passa vergonha”, mas de alguém que produz vergonha sobre o outro, que ativa processos de humilhação e desonra pela forma como fala, age, se comporta.
Do ponto de vista sintático, a primeira cláusula é uma predicação nominal com cópula elíptica: o sujeito é o sintagma ʾēšet ḥayil (substantivo fem. sing. em construto + substantivo masc. sing. absoluto), e o predicativo é ʿăṭeret baʿlāh (“coroa de seu marido”), em que ʿăṭeret é o núcleo e baʿlāh o complemento genitivo, formando juntos a imagem de uma dignidade que repousa sobre a cabeça do homem em função da presença daquela mulher ao seu lado. A segunda cláusula enfatiza o contrário organizando-se quase ao inverso: o elemento comparativo ûkərāqāḇ bəʿaṣmōtāyw (“mas como podridão em seus ossos”) é colocado à frente e faz o papel de predicativo nominal, enquanto o particípio məḇîšāh (“a que o envergonha”) aparece ao fim como sujeito, em forma de relativa implícita (“a mulher que causa vergonha”). O poema, assim, equilibra um quadro de honra exterior (a coroa que todos veem) com um quadro de corrosão interior (o apodrecimento dos ossos que ninguém enxerga de imediato), e em ambos os casos o ponto de inflexão é a postura da esposa: ou ela é força que exalta, ou é ácido que corrói silenciosamente.
No fundo etimológico, ḥayil associa a mulher não à passividade, mas à energia vital, à capacidade de mobilizar recursos, à coragem; no hebraico bíblico, o termo descreve tanto guerreiros quanto líderes influentes e também essa figura feminina que administra, protege e produz (como em Provérbios 31). ʿĂṭeret evoca o cerimonial da coroação: a coroa não é parte do corpo, mas um adorno que marca publicamente quem aquele homem é; assim, a excelência da esposa torna-se visível na maneira como a vida dele se apresenta à comunidade. Rāqāḇ, por sua vez, não é quebradura brusca, mas decadência progressiva: dia após dia, algo apodrece por dentro; a imagem sugere que atitudes de deslealdade, escárnio, desprezo ou oposição sistemática não destroem o marido de uma só vez, mas corroem seu ânimo, sua confiança e, em última análise, sua saúde integral. Məḇîšāh sublinha que essa vergonha é ativa: ela o expõe, o ridiculariza, talvez em público, talvez em casa, talvez com palavras, talvez com atitudes — mas sempre de modo que a honra dele vai sendo ferida.
À luz do conjunto bíblico, esse provérbio dialoga com textos que tratam da relação conjugal como espaço de mútuo embelezamento e mútuo sofrimento: em 1 Pedro 3, por exemplo, a esposa é chamada a uma beleza que não é apenas externa, mas de “espírito manso e tranquilo”, que se torna preciosa diante de Deus e, por consequência, honra aquele com quem ela caminha; em Efésios 5, marido e esposa são convocados a uma dinâmica de amor sacrificial e respeito profundo. Lido a partir de Provérbios 12:4, o lar se revela como lugar em que duas possibilidades se abrem: uma mulher que, com sua força, se torna diadema na fronte do marido; ou uma mulher que, com sua vergonha infligida, funciona como doença invisível nos ossos dele. E, por trás de ambas as figuras, está a sabedoria de Deus chamando homem e mulher a serem, um para o outro, sinais vivos de graça e não de corrosão.
Provérbios 12:5
Os pensamentos do justo são justiça, mas os conselhos do ímpio são engano. (Hb.: maḥšəvot ṣaddiqim mišpat taḥbulot rešaʿim mirmāh — “pensamentos de justos são juízo; estratagemas de ímpios são engano”. Do ponto de vista morfológico, maḥšəvot é substantivo feminino plural em estado construto, de maḥašavah (“pensamento, plano, projeto”), derivado da raiz ḥšb (“calcular, tramar, tecer, planejar”), que designa tanto o exercício intelectual como o entrelaçar de planos, bons ou maus. Em função sintática, maḥšəvot ṣaddiqim forma um sintagma nominal em construto (“os pensamentos dos justos”), funcionando como sujeito da primeira oração nominal. ṣaddiqim é adjetivo masculino plural absoluto, de ṣaddiq (“justo, reto”), adjetivo proveniente da raiz ṣdq (“ser justo, estar em conformidade com o direito”), frequentemente usado para qualificar quem está em relação correta com o Deus da aliança, e não apenas alguém “moralmente decente”. mišpat é substantivo masculino singular absoluto, da raiz špṭ (“julgar, governar”), com o campo semântico de “sentença, decisão judicial, direito, ordem estabelecida” — aqui com sentido de “justiça em conformidade com o padrão de Deus”. A estrutura “maḥšəvot ṣaddiqim mišpat” é, portanto, uma oração nominal com cópula elidida: sujeito (“os pensamentos dos justos”) e predicativo nominal (“[são] justiça/juízo”), indicando identidade entre o interior do justo e o padrão de julgamento de Deus. No segundo hemistíquio, taḥbulot é substantivo feminino plural em estado construto, de taḥbulah (“direção, estratégia, plano, conselho hábil”), palavra cuja etimologia remete às cordas de um navio, ao ato de manejar cabos para “governar” a embarcação, e por extensão “estratégias que conduzem algo a um fim”.
Em análise sintática, taḥbulot rešaʿim (“as tramas/estratégias dos ímpios”) funciona como sujeito da segunda oração nominal. rešaʿim é adjetivo masculino plural absoluto, de rāšāʿ (“ímpio, culpado, criminoso”), usado como substantivo para designar aqueles hostis à vontade de Deus, culpados de violar o direito e a aliança. mirmāh é substantivo feminino singular absoluto, derivado da raiz rmh (“enganar, ludibriar”), com o sentido de “fraude, dolo, engano traiçoeiro”. A estrutura “taḥbulot rešaʿim mirmāh” é outra oração nominal com cópula elidida, em que “as tramas dos ímpios” são o sujeito e “engano” o predicativo: as estratégias dos perversos, por mais sofisticadas que pareçam, são feitas de fraude. Não há conjunção explícita entre as duas metades do versículo no hebraico; a antítese é criada por justaposição poética: duas sentenças nominais paralelas, em que o primeiro colon define a natureza das “maḥšəvot” do justo como alinhadas ao mišpat divino, e o segundo revela as “taḥbulot” dos ímpios como tecidas com mirmāh.
Provérbios 12:5 afirma que a justiça em Israel não começa na mão que executa o ato, mas no tear oculto da mente: o justo é aquele cuja atividade de pensar — planejar, avaliar, pesar — já está sob o governo do mišpat de Deus, ecoando a ligação frequente entre coração, pensamento e juízo em textos como Salmos 1 e Jeremias 17:5–10, onde a confiança no Senhor molda o interior. O ímpio, ao contrário, não é apenas alguém que comete ações más, mas alguém cuja própria arte de planejar (essas “cordas” da mente que dirigem a vida) está orientada à manipulação e à fraude; por isso, suas estratégias lembram o “tecer” enganoso descrito em Isaías 59:3–8. No horizonte bíblico mais amplo, esse contraste prepara a ética do Novo Testamento, onde Jesus insiste que “o homem bom tira do bom tesouro do coração coisas boas, e o homem mau, do mau tesouro tira coisas más” (Mateus 12:35), e onde Paulo exorta a “renovação da mente” (Romanos 12:2): as maḥšəvot moldadas pelo mišpat de Deus tornam-se o terreno onde o Espírito escreve a lei (Jeremias 31:33; 2 Coríntios 3:3). Hermeneuticamente, o provérbio chama o leitor a examinar não apenas se faz o que é correto, mas se ama pensar segundo o juízo de Deus; a sabedoria não é apenas evitar o erro, mas desejar que o próprio processo mental seja um espelho do caráter justo do Senhor, enquanto toda habilidade de planejar desligada desse eixo, por mais brilhante que pareça, se converte em mirmāh, fraude que inevitavelmente se volta contra o próprio ímpio.)
Provérbios 12:6
As palavras do ímpio são: “Armarão ciladas para derramar sangue”, mas a boca do reto o livra.
(Hb.: divrê rešaʿim ʾĕrāḇ-dam ûpî yešarim yaṣṣīlēm — literalmente: “palavras de ímpios [são] emboscada para sangue, mas a boca dos retos os fará escapar”). Em termos morfológicos, divrê é substantivo masculino plural em estado construto, forma de dābār (“palavra, assunto, coisa”), de raiz dbr (“falar, dizer, tratar”), cujo campo semântico une “palavra pronunciada” e “evento/coisa realizada”: aquilo que se diz é, em certo sentido, aquilo que se faz. Assim, divrê rešaʿim (“as palavras dos ímpios”) funciona como sujeito da primeira oração. rešaʿim é, novamente, adjetivo masculino plural absoluto usado substantivamente para “ímpios, criminosos, hostis a Deus”. O verbo ʾĕrāḇ é infinitivo construto Qal, da raiz ʾrb (“armar emboscada, ficar de tocaia”), um verbo que, nos léxicos, descreve o ato de “espreitar” ocultamente para atacar, muitas vezes associado a trama astuta, como se alguém tecesse uma armadilha. Aqui, o infinitivo assume valor substantivado, compondo com dam (“sangue”, substantivo masculino singular absoluto) uma expressão predicativa: “emboscada para sangue”, isto é, uma conspiração que visa derramar vida inocente. A oração “divrê rešaʿim ʾĕrāḇ-dam” é uma oração nominal com cópula elidida: “as palavras dos ímpios [são] emboscada de sangue”, de modo que o que o ímpio diz já é, em si, um dispositivo letal. No segundo hemistíquio, ûpî combina a conjunção wə- (“e/mas”, aqui com claro valor adversativo no paralelismo) ao substantivo pî (“boca”) em forma construto; o sintagma pî yešarim (“a boca dos retos”) é sujeito da oração verbal seguinte. yešarim é adjetivo masculino plural absoluto, derivado de yāšār (“reto, direito, correto”), adjetivo que descreve aquilo que é “reto” tanto no sentido espacial (sem curvas) quanto ético (transparente, íntegro, sem desvios). O verbo yaṣṣīlēm é forma Hifil imperfeita 3ª pessoa masculina singular, com sufixo pronominal de 3ª pessoa masculina plural (-ēm), do verbo nāṣal (“arrancar, livrar, resgatar, fazer escapar”). Em termos de aspecto, o imperfeito aqui expressa uma generalização habitual: “a boca dos retos livra [repetidamente, como padrão] a eles”, sendo o sujeito “a boca dos retos” e o objeto direto pronominal “os (alvos da emboscada, isto é, as possíveis vítimas)”. A estrutura sintática do versículo contrapõe, portanto, uma oração nominal (palavras que são emboscada) a uma oração verbal (boca que age para livrar), criando uma progressão: o ímpio fala para prender; o justo fala para soltar.
O quadro é denso: dābār não é mero som, mas “palavra-coisa”, elo entre discurso e acontecimento; quando essa “palavra-coisa” pertence aos rešaʿim, ela se torna ʾĕrāḇ-dam, uma tocaia homicida. Já o campo semântico de yāšār evoca aquilo que é “direto” e “transparente”, sem curvas escondidas, e nāṣal descreve a ação de arrancar alguém de um perigo — uma mão que puxa, com urgência, alguém de dentro do laço. A boca dos retos, então, é apresentada como corda de resgate que puxa para fora do abismo onde a fala dos ímpios queria arrastar. O provérbio desenvolve o tema já intuído em Provérbios 11 e no próprio versículo anterior (12:5): a sabedoria não é apenas um modo correto de pensar, mas uma língua que se torna instrumento de salvação concreta. As “palavras dos ímpios” aqui não são apenas insultos ou discussões; elles são projetos articulados — legislação injusta, calúnia, tramas, discursos que legitimam violência — que constroem uma emboscada coletiva contra inocentes, ecoando o quadro de “pés que se apressam para derramar sangue” em Provérbios 1:11–16. Já a “boca dos retos” livra precisamente com aquilo que diz: testemunho que desmonta acusações, ensino que desarma jovens antes que sejam seduzidos pela emboscada, defesa dos oprimidos diante de tribunais e estruturas injustas, como pedirá mais tarde os profetas (Isaías 1:17; Provérbios 31:8–9).
Provérbios 12:6 é uma observação sobre as consequências que decorrem da fala dos “maus” e dos “íntegros”, duas palavras usadas para indicar o reino dos tolos e dos sábios. Como poderíamos esperar, as palavras dos ímpios levam a um final negativo, até mesmo a uma morte violenta. Não está claro, talvez intencionalmente, se a emboscada recai sobre aqueles que ouvem os conselhos dos ímpios, cuja orientação é fraudulenta (ver o versículo anterior), ou sobre os próprios ímpios. Certamente, o ensino de Provérbios afirma ambos os resultados (11:9).
Da mesma forma, não está claro se as palavras (indicadas pela boca de onde fluem as palavras) dos íntegros os salvam dos engarrafamentos ou salvam aqueles que ouvem seus conselhos. Mas, novamente, o sábio afirmaria ambos os resultados. Como o versículo anterior, este provérbio serve para advertir seus ouvintes a serem criteriosos ao ouvirem a fala dos outros (12:13). Alguns estudiosos [Whybray, Proverbs, p. 192; Murphy, Proverbs, p. 98.] sugerem um cenário legal para este provérbio; embora uma situação legal certamente pudesse ser imaginada que ilustrasse a verdade desse provérbio, ele não parece estar especificamente vinculado ao tribunal.
No conjunto da teologia bíblica, esse microcosmo sapienciai aponta para o uso redentor da palavra: se, no Antigo Testamento, a “palavra” divina cria, julga e liberta (Gênesis 1; Salmos 33:6; Isaías 55:10–11), aqui os justos são chamados a participar desse padrão em miniatura: sua boca deve estar alinhada com o mišpat e a ṣĕdāqāh de Deus, de modo que seu falar seja, em escala humana, uma continuação da voz que cria espaço de vida. No Novo Testamento, essa linha encontra eco quando Tiago descreve a língua como um pequeno leme capaz de conduzir todo o navio da vida (Tiago 3:1–6), e quando Jesus declara que seremos julgados por nossas palavras (Mateus 12:36–37): o discurso revela, ao mesmo tempo, a emboscada oculta ou o resgate que habita o coração. Hermeneuticamente, Provérbios 12:6 chama a comunidade do pacto a desconfiar da linguagem que naturaliza violência (“é só discurso”, “é apenas retórica”) e a ver na boca dos retos um ministério ativo de libertação — consolo que arranca alguém da culpa, denúncia que desmascara engano, defesa profética daqueles sobre cuja vida pesa uma “emboscada de sangue”. Assim, o texto convida o leitor a pedir que o Senhor transforme suas palavras em cordas de resgate, jamais em fios quase invisíveis de uma armadilha.
Provérbios 12:7
Os ímpios são derrubados e desaparecem, mas a casa dos justos permanece firme. (Hb.: hāp̄ōḵ rĕšāʿîm wĕʾênām ûbêt ṣaddiqîm yaʿămōd — “derrubados os ímpios e já não existem, mas a casa dos justos estará de pé”). A linha hebraica começa com hāp̄ōḵ, infinitivo absoluto Qal, masculino singular, do verbo hāpaḵ (“virar, inverter, derrubar”, raiz hpk), que em contexto verbal gnômico assume função predicativa, como se dissesse “estão derrubados” ou “são derrubados” os ímpios. O campo semântico de hāpaḵ vai de virar algo fisicamente a “subverter, derrubar, mudar o estado das coisas”, como em juízos que invertem posições de segurança aparente (por exemplo, em textos onde Deus “derruba” cidades ou situações estabelecidas). Em seguida vem rĕšāʿîm, adjetivo masculino plural absoluto de rāšāʿ (“ímpio, criminoso”), raiz ršʿ, substantivado aqui como sujeito da primeira cláusula: “os ímpios” enquanto grupo caracterizado por hostilidade à vontade de Deus e culpabilidade ética. A combinação sintática hāp̄ōḵ rĕšāʿîm forma essencialmente uma predicação nominal com força verbal: o infinitivo absoluto funciona como predicativo, e o adjetivo substantivado como sujeito (“os ímpios estão em estado de derrubados”). A segunda microcláusula traz wĕʾênām: wĕ- é conjunção coordenativa, aqui com matiz consecutivo ou epexegético (“e, por isso”, “e assim”), ligada à partícula existencial negativa ʾên (“não há, não existem”), acrescida do sufixo pronominal de 3ª pessoa masculina plural -ām, retomando o sujeito “ímpios”. A estrutura é de cláusula de existência negativa com cópula elíptica: “e eles não [mais são / já não existem]”. A imagem é de apagamento ontológico do ímpio: não apenas perde posição, mas é retirado de cena.
Na segunda metade do versículo, ûbêt combina a conjunção wĕ- (“e/mas”) com o substantivo masculino singular em estado de construto bêt (“casa”), derivado de bayit, raiz byt. A conjunção aqui assume claro valor adversativo, contrastando o destino dos ímpios com o dos justos: “mas a casa…”. Bêt está em construto com ṣaddiqîm, adjetivo masculino plural absoluto de ṣaddiq (“justo, aquele que está em conformidade com o direito de Deus”), raiz ṣdq, substantivado e funcionando como genitivo: “casa dos justos”, isto é, o conjunto da família, linhagem, estrutura de vida que se organiza em torno deles. O predicado verbal é yaʿămōd, verbo Qal imperfeito, 3ª pessoa masculina singular, da raiz ʿmd
(“ficar em pé, permanecer, manter-se firme”). O sujeito é o sintagma “casa dos justos”, entendido como coletivo; o imperfeito aqui é gnômico, exprimindo verdade proverbial: a casa dos justos “permanece”, “fica de pé”, “continua firme”. Do ponto de vista sintático, o versículo articula uma primeira sentença nominal com infinitivo absoluto-predicado (“os ímpios: derrubados”), seguida de uma cláusula existencial negativa (“e não há mais deles”), e, em contraste, uma cláusula verbal com sujeito explícito (“a casa dos justos”) e verbo finito (“permanece”). O paralelismo antitético é claro: de um lado, o sujeito é o indivíduo coletivo “ímpios”, sem estabilidade, cuja existência termina em ausência (“não há”); do outro, o sujeito é a “casa” dos justos, imagem de continuidade, memória e estrutura, sustentada por um verbo que sugere durabilidade e firmeza.O campo de rāšāʿ aponta para alguém “culpado, criminógeno”, cuja vida se opõe à ordem da aliança, ao passo que ṣaddiq deriva da ideia de “estar em conformidade com a norma”, ser declarado em direito, tanto no foro humano quanto no divino. Hāpaḵ reforça a ideia de inversão radical: o que parecia sólido na vida do ímpio é subitamente “virado do avesso”, seja pela história, seja pelo juízo de Deus. ʿāmad , por sua vez, é verbo recorrente para “permanecer de pé”, “ser estabelecido”, frequentemente associado à fidelidade de Deus e à estabilidade concedida àqueles que confiam nele. Em termos exegéticos, o provérbio desenha um contraste temporal e ontológico: a impiedade pode erguer estruturas impressionantes, mas a própria lógica de Deus no mundo é de “revirar” aquilo que se ergue sem justiça. A ausência final dos ímpios (“e já não existem”) ecoa temas de Salmos 1 e 37, onde o ímpio é como palha que o vento leva, enquanto o justo é plantado junto às águas. A “casa dos justos” lembra a metáfora de Mateus 7, em que a casa fundada sobre a rocha permanece apesar da tempestade. O texto não promete que o justo nunca será abalado por crises; promete, antes, que, dentro da narrativa longa, o que é edificado em retidão não sucumbe ao nada. Em perspectiva cristã, isso se intensifica na certeza de que aquilo que é plantado na justiça de Cristo resiste à derrubada última da morte, porque a “casa” é incorporada à edificação que Deus mesmo sustenta. O versículo, assim, é um chamado silencioso para desconfiar das arquiteturas do mal, por mais sólidas que pareçam, e investir na construção lenta e fiel de uma casa justa, sabendo que Deus, no tempo dele, “vira” o cenário e mantém de pé o que foi alicerçado em sua vontade.
Provérbios 12:8
A pessoa é louvada conforme o seu entendimento, mas quem tem o coração distorcido é objeto de desprezo. (Hb.: lĕpî śiklô yĕhullal ʾîš wĕnaʿăwê-lēb yihyeh lāvûz — “segundo o seu entendimento será louvado o homem, mas o de coração torcido será para desprezo”). O versículo se abre com lĕpî, preposição lə (“segundo, de acordo com”) ligada ao substantivo masculino singular em estado de construto pî (“boca”, de peh, raiz pʾh), que, em uso adverbial, significa “segundo, em conformidade com”. A expressão lĕpî introduz um dativo de relação: aquilo que vem a seguir (louvor ou desprezo) estará “medido” por um padrão interno. Em seguida, śiklô é substantivo masculino singular com sufixo de 3ª pessoa masculina singular -ô, de śēkel (“prudência, discernimento, entendimento eficaz”), raiz śkl, que designa não apenas inteligência abstrata, mas a combinação de percepção correta da realidade com capacidade prática de agir com sucesso. O sintagma lĕpî śiklô funciona como advérbio de modo e medida: “na medida do seu entendimento”, “proporcional ao seu discernimento”.
O verbo principal da primeira cláusula é yĕhullal, Pual imperfeito, 3ª pessoa masculina singular, voz passiva intensiva do verbo hālal (“louvar”), raiz hll. A forma Pual, com valor passivo, indica que o sujeito recebe louvor de outros: “será louvado”, “será celebrado”. O sujeito dessa forma verbal é ʾîš, substantivo masculino singular absoluto (“homem”, “pessoa”), que aqui representa o indivíduo em geral: “o homem será louvado segundo o seu entendimento”. Sintaticamente, temos um advérbio frontalizado (lĕpî śiklô), seguido do verbo passivo (yĕhullal) e do sujeito posposto (ʾîš), com destaque para o critério interno de avaliação (entendimento) acima de qualquer parâmetro externo.
A segunda metade introduz o contraste: wĕnaʿăwê-lēb. Wĕ- é conjunção coordenativa adversativa (“mas”), e naʿăwê é particípio Nifal masculino singular em estado de construto, da raiz ʿwh (“entortar, torcer, perverter”). O Nifal, voz passiva ou reflexiva, aqui descreve alguém “tornado torto” ou “caracterizado por torção”, e o estado de construto o liga imediatamente a lēb, substantivo masculino singular absoluto de lēb (“coração”), raiz lb. O sintagma naʿăwê-lēb significa, portanto, “o de coração torcido”, “aquele cuja interioridade foi entortada”. O verbo seguinte, yihyeh, Qal imperfeito 3ª pessoa masculina singular, da raiz hāyāh (“ser, tornar-se”), funciona como cópula futura ou gnômica: “será”, “vem a ser”. O predicativo é lāvûz, combinação da preposição lə/lā (“para, em direção a, como”) com o substantivo masculino singular bûz (“desprezo, escárnio”), raiz bz, que designa uma atitude de desdém, de tratamento como algo sem valor. A estrutura sintática desta segunda parte é uma predicação nominal: sujeito “o de coração torcido” + cópula verbal “será” + predicativo “para desprezo” (“será reduzido a desprezo”, “será objeto de escárnio”).
Etimologicamente, śēkel é palavra muito rica, ligada a êxito prático: não é apenas “saber coisas”, mas “entender de modo que a ação seja adequada”, de modo que alguém que possui śēkel administra bem a vida, os relacionamentos e as responsabilidades. ʿāwâ, por sua vez, traz a ideia de algo que foi “curvado, distorcido”, seja fisicamente, seja moralmente; quando aplicado ao “coração”, sugere uma interioridade que perdeu o eixo, uma mente que já não pensa direito porque se habituou a torcer o reto em seu próprio favor. Bûz designa o desprezo que nasce, ora da soberba humana, ora do juízo de Deus: desprezo como pecado, quando zombamos dos outros; desprezo como sentença, quando a sociedade (ou o próprio Deus) deixa alguém exposto à vergonha pública por causa da perversão de seu caráter.
O provérbio, nesse arranjo, tece uma teologia da reputação à luz do coração. Na primeira linha, o louvor é visto como resposta justa a um interior ordenado: “o homem é louvado segundo o seu entendimento”. Não se trata de bajulação vazia, mas de um reconhecimento, por parte de Deus e das pessoas sábias, de que discernimento genuíno é digno de honra. No horizonte veterotestamentário, isso dialoga com a ideia de que Deus não vê “como o homem vê”, pois o homem olha para a aparência, mas o Senhor olha para o coração (1 Samuel 16:7), e de que a verdadeira honra vem daquele que pesa os corações (Provérbios 21:2). No Novo Testamento, ressoa em textos como 1 Coríntios 4:5, onde o Senhor “trará à luz o que está oculto nas trevas e manifestará os desígnios dos corações”, e então “cada um receberá de Deus o seu louvor”: o elogio que importa é o que responde à verdade interior, não à fachada.
Na segunda linha, a figura do naʿăwê-lēb (“coração torcido”) é quase cirúrgica. O sábio não fala de alguém que cometeu um erro isolado, mas de uma interioridade que se habituou a dobrar a verdade, a entortar a justiça, a usar a inteligência para fins tortuosos. Esse tipo de pessoa, diz o provérbio, “será para desprezo”: seu destino é tornar-se motivo de vergonha, quer pela exposição pública de suas tramas, quer pela própria degradação do caráter. Há aqui uma espécie de “lei moral de gravidade”: quanto mais alguém entorta o coração, mais sua própria vida acaba torcida, até o ponto em que as máscaras caem. Esse princípio está em consonância com passagens como Salmos 1 e 37, que mostram o caminho do ímpio murchando, e com Romanos 2, onde Paulo descreve Deus julgando “os segredos dos homens”, de modo que o torcido por dentro não permanecerá oculto para sempre.
Provérbios 12:8 convida o leitor a buscar não qualquer tipo de inteligência, mas śēkel: um entendimento que se submete à sabedoria de Deus e produz frutos concretos de justiça. Na vida cristã, isso significa permitir que o evangelho endireite o coração, que o Espírito Santo desentorte motivos, desejos e pensamentos, para que a mente se torne lúcida e humilde diante da verdade de Cristo. À medida que isso acontece, o “louvor” não é apenas reconhecimento humano, mas o eco terreno do “bem está” do Senhor. Em contraste, quem insiste em cultivar um “coração torcido” caminha rumo ao bûz, ao desprezo inevitável de uma vida que, no fim, se mostra vã. O texto faz, assim, uma pergunta silenciosa: queremos ser conhecidos pelo brilho discreto de um entendimento alinhado à vontade de Deus, ou pela sombra deformada de um coração que, ao dobrar a verdade, termina dobrado por ela?
Provérbios 12:9
Melhor é o humilde que tem um servo do que o orgulhoso que não tem pão. (Hb.: ṭôḇ niqlēh wəʿeḇeḏ lô mimmetkabbēd waḥăsar-lāḥem — “melhor [é] o desprezado que tem servo para si do que o que se honra a si mesmo e é carente de pão”). O verso é um provérbio comparativo de estrutura nominal, sem verbo finito, com cópula elíptica: a primeira cláusula “ṭôḇ niqlēh wəʿeḇeḏ lô” funciona como predicação nominal inteira, equivalente a “é melhor o desprezado que tem servo”, e a segunda, introduzida por min- (“do que”), exprime o termo de comparação “mimmetkabbēd waḥăsar-lāḥem”, “do que o que se honra e é faltoso de pão”. Sintaticamente, temos a estrutura implícita “[é] melhor X do que Y”, em que X e Y são grupos nominais complexos. O adjetivo ṭôḇ (“bom, melhor”) é adjetivo masculino singular, aqui em função predicativa de comparação; a forma superlativa/comparativa é dada pelo contexto e pela presença de min como partícula comparativa, não por uma forma morfológica especial. Niqlēh é particípio Nifal masculino singular do verbo qālah / qālal (“ser leve, ser desprezado, ser tratado como insignificante”), raiz qll / qlh, que em Nifal descreve o estado de alguém “tornado leve”, isto é, desonrado, “de pouca conta”; usado como substantivo, funciona aqui como núcleo do sujeito lógico “aquele que é desprezado”.
A etimologia de qālah liga “leveza” a desprezo, como em 1 Samuel 18:23, onde Davi se descreve como “um homem pobre e desprezado (wəniqlēh)”, e em Isaías 3:5, onde o “desprezado” se levanta contra o “honrado”. O particípio Nifal dá a nuance de estado duradouro: não é uma ofensa momentânea, mas uma condição social de pouco prestígio. Em seguida aparece wəʿeḇeḏ (“e servo”), com wə- como conjunção coordenativa simples, e ʿeḇeḏ
como substantivo masculino singular absoluto (“servo, escravo”, da raiz ʿbd, “servir, trabalhar”), em aposição a niqlēh: o quadro não é de um miserável totalmente desassistido, mas de alguém socialmente pequeno, porém em situação estável o suficiente para possuir um servo. Lô (“para ele, a ele”) é a preposição lə- (“para, a, de pertença”) com sufixo pronominal de 3ª masc. sing., funcionando como dativo de posse: “servo que lhe pertence”, de modo que o grupo ʿeḇeḏ lô descreve a relação de posse e a condição econômica modesta, porém não indigente. A segunda metade começa com min incorporado em mimmetkabbēd (“do que o que se honra”), preposição min (“de, a partir de, do que”) funcionando como marcador comparativo, ligada à forma verbal seguinte. Mitkabbēd é particípio Hitpael masculino singular do verbo kāḇēd (“ser pesado, importante, honrado”; raiz kbd), com valor reflexivo: “aquele que se torna honrado, que se dá peso a si mesmo”, isto é, o que se exalta ou se pavoneia.A etimologia de kbd articula “peso” e “glória”: o que é “pesado” tem relevância, importância; o Hitpael em textos como Ezequiel 39:13 e Daniel 11:38 pode indicar “glorificar-se, fazer-se pesado” em sentido autoexaltador. O particípio aqui é substantivado, funcionando como segundo termo da comparação, “o autohonrado”, “o que faz pose”. A expressão final waḥăsar-lāḥem traz wa- como conjunção, ligando este predicado ao particípio anterior, e ḥăsar como adjetivo masculino singular (“carente, faltoso”, da raiz ḥsr, “faltar, estar em necessidade”), em construção com lāḥem (“pão”, substantivo masculino singular, raiz lḥm, “pão, alimento”), de modo que o conjunto funciona como predicativo nominal: “e [ele é] faltoso de pão”. BDB observa que ḥāsēr em textos como 2 Samuel 3:29 e aqui em Provérbios 12:9 descreve alguém em necessidade de pão, carente do mínimo para viver. Não há verbo finito; a predicação é toda construída por adjetivos e particípios substantivados, com a cópula “ser/estar” subentendida, típico dos provérbios sapienciais. Do ponto de vista sintático, niqlēh wəʿeḇeḏ lô formam o sujeito lógico do juízo “melhor [é]”: o ser socialmente desprezado, mas minimamente estabilizado, é preferível; mimmetkabbēd waḥăsar-lāḥem é o complemento comparativo, “do que o que se enche de honra e falta de pão”. A antítese está menos entre pobreza e riqueza e mais entre aparência e realidade, entre “peso” social autoatribuído e a solidez concreta da vida.
Provérbios 12:9 golpeia o coração da cultura da imagem: é melhor carregar a marca social de niqlēh (“levemente considerado, quase invisível”) e ter uma pequena estrutura funcional de vida, do que viver de kāḇēd simulado, uma honra inflada que convive com ḥāṣēr-lāḥem, a falta do básico. O campo lexical de qālah contra kāḇēd ecoa Isaías 3:5, onde “o desprezado” (niqlēh) se insurge contra o “honrado” (nikbād), mostrando a inversão de valores quando a sociedade deixa de medir o peso pelo critério de Deus. Em ligação com outros provérbios, a cena se alinha com Provérbios 15:16 (“Melhor é pouco com o temor do Senhor do que um grande tesouro acompanhado de inquietação”) e Provérbios 16:19 (“É melhor ser humilde de espírito com os humildes do que repartir o despojo com os orgulhosos”), onde “melhor” não é cálculo de status, mas discernimento de qual estilo de vida se aproxima do coração de Deus. No horizonte bíblico mais amplo, essa inversão prepara a lógica de Jesus, que proclama bem-aventurados os pobres de espírito (Mateus 5:3) e ilustra, em Lucas 14:7–11, a ruína de quem procura o primeiro lugar. A hermenêutica teológica do versículo, portanto, lê nesse “desprezado com servo” o retrato de um justo que aceita contentar-se com o pouco (1 Timóteo 6:6–8), recusa a idolatria de parecer grande e prefere a solidez discreta de uma vida que não falta pão, ainda que falte aplauso. Já o “autohonrado faltoso de pão” é figura do ímpio que constrói uma imagem inflada, mas, por dentro, colapsa; tem reputação, mas não estrutura, é pesado nos banquetes da vaidade e leve na balança de Deus (Daniel 5:27). Entre esses dois, o provérbio faz eco à lógica do Reino: mais vale parecer pequeno diante dos homens e ser sustentado por Deus, do que fazer-se grande em público e, em segredo, comer o pão da falta.
Provérbios 12:10
O justo conhece a vida dos seus animais, mas as misericórdias dos ímpios são cruéis. (Hb.: yōdēaʿ ṣaddîq nefeš bəhēmtô wəraḥămê rešāʿîm ʾakzārî — “o justo conhece a vida [a nefeš] do seu animal, mas as compaixões dos ímpios são cruéis”). O verso se divide em uma primeira cláusula verbal e uma segunda cláusula nominal. Na primeira, yōdēaʿ é particípio Qal masculino singular do verbo yādaʿ (“conhecer, perceber, reconhecer, cuidar”), aqui com valor predicativo verbal, funcionando como “conhece, tem consideração por”; a raiz ydʿ descreve um conhecimento que envolve percepção, relacionamento e responsabilidade, não mera informação, como se vê em textos onde “conhecer o nome” ou “conhecer o caminho” implica cuidado (Êxodo 33:17; Salmos 1:6). Ṣaddîq (“justo”) é adjetivo masculino singular, da raiz ṣdq (“ser justo, reto”), funcionando aqui como sujeito da oração: é a pessoa que foi alinhada ao padrão de justiça de Deus, como em Gênesis 6:9 e em Provérbios inteiros, onde o “justo” é aquele cuja vida se harmoniza com o temor do Senhor. Nefeš é substantivo feminino singular em estado construto, da famosa raiz npš, que designa “alma, vida, pessoa, ser vivente”; aqui, em construto com bəhēmtô, significa “a vida (a alma, a interioridade) do seu animal”, aquilo que o faz um ser sensível e vulnerável, não apenas um recurso. Bəhēmtô combina a preposição bĕ- (“em, a respeito de”) com bəhēmâ (“animal, gado, besta”, substantivo feminino singular, de root provável ligada a “mudez”, o animal que não fala) e o sufixo pronominal de 3ª masc. sing. (-ô), significando “seu animal”.
Assim, sintaticamente, yōdēaʿ é o predicado verbal; ṣaddîq é o sujeito; nefeš bəhēmtô é o objeto direto complexo: “o justo conhece / tem consideração pela vida do seu animal”. A segunda metade inicia com wəraḥămê, conjunção wə- (“mas / e”) seguida de raḥămê, substantivo masculino plural em estado construto, de raḥămîm (“entrahas, compaixões, misericórdias”, da raiz rḥm, ligada etimologicamente ao “útero”, o lugar onde a vida é acolhida e nutrida). A ironia mortal do provérbio está aqui: aquilo que deveria ser “útero”, cuidado, entranha sensível, nas mãos dos ímpios se converte em instrumento de dano. Rešāʿîm é adjetivo masculino plural (“ímpios, culpados”), da raiz ršʿ (“ser culpado, agir perversamente”), funcionando como genitivo: “as compaixões dos ímpios”. Finalmente, ʾakzārî é adjetivo masculino singular (“cruel”), da raiz ʾkzr (“ser duro, implacável”), empregado aqui como predicativo nominal: “as compaixões dos ímpios [são] cruéis”. Este adjetivo aparece em Provérbios 11:17 e em textos proféticos (Jeremias 6:23; 50:42; Isaías 13:9) para descrever a ferocidade de exércitos e juízos devastadores, pintando um tipo de dureza que não apenas é fria, mas deleita-se na destruição. Estruturalmente, a segunda cláusula é nominal: o sujeito gramatical é o sintagma raḥămê rešāʿîm (“as misericórdias dos ímpios”) e o predicativo é ʾakzārî (“cruel”), com cópula “ser” subentendida. O paralelismo é antitético e profundamente irônico: de um lado, um justo que leva a sério a nefeš de um ser que nem fala; de outro, ímpios cujas “misericórdias” — o melhor que conseguem oferecer — têm a textura de juízos cruéis.
Provérbios 12:10 constrói um arco que vai da criação à ética do Reino. A raiz ydʿ já em Gênesis 18:19 liga “conhecer” a “guardar o caminho do Senhor, praticando justiça e juízo”; conhecer a vida do animal é um exercício concreto de aliança: o justo não explora o ser mais frágil debaixo de sua mão. A linguagem de nefeš aplicada ao animal lembra que a Escritura, desde Gênesis 1:20–24, fala dos animais como “seres viventes” (nefeš ḥayyâ), distinguindo-os das coisas inanimadas: há uma vida que respira e sente, e o justo se curva diante desse mistério com cuidado. Ao mesmo tempo, a palavra bəhēmâ evoca o mundo do trabalho agrário: bois, jumentos, ovelhas, forças motrizes da economia familiar. As leis de Êxodo 23:12 (descanso do animal no sábado) e Deuteronômio 25:4 (“Não amordace o boi enquanto estiver debulhando o cereal”) concretizam o mesmo princípio que aqui é condensado em forma sapiencial: a justiça se verifica na forma como tratamos aqueles que não têm voz, inclusive os animais. Quando o texto diz que “o justo conhece a nefeš do seu animal”, ele declara que a verdadeira justiça bíblica é sensível até mesmo à fadiga de um boi e ao peso sobre um jumento (cf. Êxodo 23:5). No Novo Testamento, Paulo relê Deuteronômio 25:4 em 1 Coríntios 9:9 e 1 Timóteo 5:18, mostrando que o mandamento sobre o boi revela um princípio mais amplo: Deus se importa com o trabalhador, com o corpo cansado, com toda vida posta a serviço. A hermenêutica teológica do provérbio enxerga aqui uma parábola encarnada: o que o justo faz com o animal é um ensaio do que Deus faz com o justo.
Assim como o Senhor não trata sua criação como máquina, mas como algo cuja nefeš lhe é preciosa (Jonas 4:11, onde até o “muito gado” entra na compaixão divina), o justo, reformado pela graça, começa a espelhar esse cuidado em sua esfera doméstica. Já “as misericórdias dos ímpios” serem ʾakzārî desenha uma crítica profunda: mesmo quando o ímpio parece exercer compaixão, seu coração é tão deformado que o resultado final é violência. O texto não está sugerindo que os ímpios sejam incapazes de gestos de ternura visível, mas que sua “compaixão” nasce de um coração centrado em si, calculista, egocêntrico; por isso, suas iniciativas “misericordiosas”, no fim, ferem, exploram, produzem dependência e destruição. Em termos espirituais, é a diferença entre a caridade que nasce de raḥămîm alinhados ao caráter de Deus e a filantropia que serve à autoimagem de rešāʿîm. No horizonte cristão, este provérbio converge com a imagem do Bom Pastor em João 10, que “dá a vida pelas ovelhas”, em oposição ao mercenário que, na hora do perigo, abandona o rebanho. Ao dizer que o justo conhece a vida dos seus animais, o texto já desenha uma sombra da compaixão de Cristo por toda a criação, da ave que cai (Mateus 10:29) ao suspiro da criação que geme aguardando redenção (Romanos 8:19–22). E ao desmascarar a “misericórdia cruel” dos ímpios, o provérbio alerta a Igreja contra qualquer forma de bondade que, no fundo, use pessoas e criaturas como palcos para a própria glória: onde a compaixão se transforma em espetáculo, em instrumento de controle ou em teatro de virtude, a Bíblia ousa chamá-la pelo nome nu: ʾakzārî, cruel.
Provérbios 12:11
O que lavra a terra farta-se de pão (Hb.: ʿōvēḏ ʾadmātô yiśbaʿ-lāḥem — “o que trabalha a sua terra se fartará de pão”). O hebraico massorético organiza a primeira metade do versículo como uma cláusula verbal de sabor gnômico: o particípio ʿōvēḏ anteposto, seguido do sintagma nominal ʾadmātô e do verbo finito yiśbaʿ com o complemento lāḥem. O particípio ʿōvēḏ é Qal masculino singular, derivado da raiz ʿāḇaḏ (“trabalhar”, “servir”, “labutar”), raiz que percorre tanto o campo do serviço agrícola quanto o do culto, de modo que o verbo pode evocar tanto o labor diário quanto a ideia de serviço estável, perseverante (como em Gênesis 2:15, onde o ser humano é colocado para “servir” e “guardar” o jardim). Aqui o particípio funciona como substantivo agentivo, sujeito da sentença, descrevendo uma ação habitual, quase um retrato em movimento: “aquele que, por hábito, se dedica a trabalhar”. O termo ʾadmātô é substantivo feminino singular no estado construto, de ʾădāmâ (“terra arável, solo cultivável”), com sufixo pronominal de 3ª pessoa masculina singular (-ô), expressando posse: “a sua terra”, isto é, o pedaço de chão confiado à sua responsabilidade; a mesma raiz ʾ-d-m conecta semanticamente “terra” (ʾădāmâ) e “homem” (ʾādām), sugerindo, de fundo, essa vocação primordial do ser humano ligado ao solo (Gênesis 3:19). Como objeto direto do particípio, ʾadmātô precisa do verbo para fechar o sentido: é a terra que ele lavra, revolve, cultiva. O verbo yiśbaʿ é Qal imperfeito 3ª pessoa masculina singular, de śāḇaʿ (“estar satisfeito, fartar-se”), com valor gnômico-habitual: não descreve um evento pontual, mas um princípio constante, a lei silenciosa do mundo de Deus em que o trabalho aplicado costuma desembocar em provisão adequada. O complemento lāḥem é substantivo masculino singular absoluto, de leḥem (“pão”), funcionando como acusativo interno ou complemento de conteúdo do verbo: não apenas “ficará satisfeito”, mas “ficará satisfeito de pão”, isto é, terá alimento, sustento básico garantido.
Do ponto de vista sintático, o particípio substantivado ʿōvēḏ funciona como sujeito, o sintagma “sua terra” como complemento direto do trabalho, e o verbo imperfeito yiśbaʿ constitui o núcleo do predicado verbal, com lāḥem como complemento do resultado. A etimologia de ʿāḇaḏ (trabalho, serviço, até escravidão) e de ʾădāmâ (terra cultivável) une aqui suor e solo; o provérbio desenha com economia de palavras a antiga cena: mãos calejadas, enxada, barro, sol, e depois a mesa com pão. Em termos exegéticos, o provérbio ecoa e concretiza a palavra de Gênesis 3:17–19, em que o pão passa a vir “do suor do rosto”, mas não pela via do desespero, e sim pela disciplina perseverante que coopera com a ordem de Deus no mundo. Outros provérbios retomam a mesma lógica: em Provérbios 28:19, quase o mesmo enunciado reaparece, confirmando que o ensino é central: quem lavra a própria terra “se fartará de pão”, ao passo que quem busca atalhos colhe pobreza. A justiça da sabedoria aqui não é mágica: ela se desenha na conexão entre esforço fiel e resultado, ainda que essa conexão possa ser temporariamente tensionada pelo mistério do sofrimento (Jó 21; Salmos 73), mas como regra de sabedoria é sólida. A frase confessa que a bênção de Deus costuma descer por canais muito concretos: responsabilidade, constância, trabalho honrado. No horizonte bíblico mais amplo, Paulo ecoa esse princípio quando exorta que “se alguém não quer trabalhar, também não coma” (2 Tessalonicenses 3:10), não como crueldade, mas como pedagogia: o pão que sacia é o pão que vem de uma vida que assume a vocação de cultivar o espaço que Deus lhe deu. Na prática, o versículo chama o leitor a abandonar fantasias de enriquecimento instantâneo e a abraçar a dureza e a dignidade da labuta, confiando que o Deus da aliança costuma honrar o labor fiel com “pão bastante” (Provérbios 10:4; Provérbios 14:23).
mas o que corre atrás de vaidades não tem ânimo” (Hb.: ûməraddēp̄ rêqîm ḥăsar-lēḇ — “mas o que persegue coisas vazias é faltoso de coração”). A segunda metade do versículo é uma cláusula nominal com cópula elíptica: não há verbo “ser” expresso, apenas o participial e o predicativo final, ligados pela respiração do hebraico. O elemento û- é a conjunção copulativa adversativa (“e/mas”), que aqui liga em paralelismo antitético a sorte do trabalhador diligente à do caçador de fantasias. O termo məraddēp̄ é particípio Piel masculino singular de rāḏap̄ (“perseguir, correr atrás”), com a vogal de ligação mə- e a duplicação interna característica do Piel, que intensifica a ação: não é alguém que casualmente se interessa, mas quem vive em modo de perseguição insistente, obstinada. Essa estrutura funciona como sujeito da cláusula, descrevendo um tipo humano: “o perseguidor”, o que se deixa definir pelas coisas que foge atrás. O complemento rêqîm é adjetivo masculino plural de rēq (“vazio, oco”), substantivado aqui: “vazios”, “futilidades”, podendo designar tanto pessoas levianas quanto empreitadas ocas e projetos sem substância; o plural reforça o caráter dispersivo e fragmentado dessas vaidades, em contraste com a concentração do lavrador sobre “sua” terra. O sintagma final ḥăsar-lēḇ reúne o adjetivo ḥăsar (“faltar, estar carente, deficiente”) em forma masculina singular, provavelmente em estado construto, com o substantivo masculino singular lēḇ (“coração”, entendido como centro da inteligência, da vontade e da sensibilidade), formando a expressão idiomática “sem coração”, isto é, “sem juízo, sem entendimento”, como em Provérbios 6:32 e Provérbios 7:7, onde o “faltar de coração” é marca de insensatez moral.
A expressão məraddēp̄ rêqîm funciona como sujeito complexo (“o que persegue futilidades”), enquanto ḥăsar-lēḇ é o predicativo do sujeito: o provérbio afirma que a própria perseguição obstinada de coisas ocas revela um coração vazio, incapaz de avaliar valor real. Etimologicamente, rāḏap̄ traz a imagem da caça, da perseguição que consome energia; associado a rēq (“vazio”), o quadro é quase cinematográfico: alguém que gasta as forças correndo atrás do vento, como no refrão de Eclesiastes 1:14. A expressão ḥăsar-lēḇ torna isso teologicamente grave: a perda não é apenas econômica, é interior; não é apenas que falte pão, falta coração.
Esta metade reforça e aprofunda o contraste da primeira: enquanto o trabalhador fixa seu corpo e sua atenção num pedaço de terra e, por meio da fidelidade, produz fruto, o insensato fragmenta seu ser em múltiplas buscas vãs (jogos de azar, esquemas rápidos, aventuras morais instáveis) e, no fim, não apenas não se sacia de pão, mas se torna estruturalmente incapaz de discernir o que é pão. Passagens como Provérbios 28:19 retomam quase literalmente esse contraste, e Jesus, em outra chave, alertará contra o acúmulo de tesouros na terra que se desfazem (Mateus 6:19–21), denunciando o mesmo coração que corre atrás de rêqîm. Na lógica prática, o provérbio ensina que a direção da nossa perseguição revela o estado do coração e molda o nosso futuro: quem gasta a vida em vaidades vai esculpindo em si mesmo uma incapacidade crescente de amar a verdade, de se comprometer, de sustentar uma vocação; quem se ancora numa tarefa concreta, sob o olhar de Deus, vai sendo formado em sobriedade e firmeza, com um “coração cheio” capaz de discernir o que vale a pena.
Provérbios 12:12
O ímpio cobiçou a rede dos malfeitores (Hb.: ḥāmad rāšāʿ məṣōḏ rāʿîm — “o perverso desejou intensamente a presa dos malfeitores”). O hebraico abre com o verbo ḥāmad, Qal perfeito 3ª pessoa masculina singular, da raiz ḥāmad (“desejar, cobiçar, ter apetite por algo”), a mesma raiz que aparece no décimo mandamento “não cobiçarás” (Êxodo 20:17; Deuteronômio 5:21), de modo que o provérbio se inscreve no campo da concupiscência proibida. O perfeito aqui não descreve um passado pontual, mas o gesto típico do “ímpio”, o movimento recorrente do seu querer. O termo rāšāʿ é adjetivo masculino singular, de rāšāʿ (“ser ímpio, culpado”), funcionando substantivamente como sujeito: “o ímpio”, aquele cuja identidade é definida por um desvio de aliança, por um modo de vida contrário à justiça de Deus (em contraste com ṣaddîq, o justo). Em seguida, məṣōḏ é substantivo masculino singular, provavelmente em estado construto, ligado a rāʿîm; deriva de um termo que indica “armadilha, rede de caça, presa capturada” e aqui, no paralelismo, é naturalmente entendido como “presa, despojo”, isto é, o resultado acumulado da maldade alheia. O adjetivo rāʿîm é plural masculino de rāʿ (“mau, perverso”), substantivado como “malfeitores” e funcionando como genitivo: “a presa dos malfeitores”. Sintaticamente, ḥāmad é o núcleo verbal da cláusula, rāšāʿ o sujeito pós-verbal, e məṣōḏ rāʿîm o objeto direto complexo cobiçado por ele. A imagem etimológica é pungente: o ímpio não cobiça apenas bens em abstrato, ele deseja justamente aquilo que foi obtido por meio da violência ou fraude de outros malfeitores; sua imaginação se alimenta das “caçadas” de gente pior do que ele, invejando tanto a eficácia do mal quanto os seus resultados.
Em termos exegéticos, esta metade do versículo mostra que a maldade não é apenas um conjunto de atos, mas uma pedagogia do desejo: o ímpio é formado pelo que admira, pelo que inveja. Em Salmos 73:3–12, o salmista confessa que quase escorregou justamente por “invejar os arrogantes, ao ver a prosperidade dos ímpios”, e aqui vemos a mesma dinâmica: a contemplação fascinada da “caça” dos maus transforma-se em cobiça. Tiago 1:14–15 descreve o processo interno pelo qual a concupiscência, “atraindo e seduzindo”, dá à luz o pecado e, amadurecido este, a morte. Esta cláusula expõe o perigo de medir o sucesso segundo a “rede dos malfeitores”: quando o coração toma como ideal os frutos do crime, do engano ou da injustiça, ele rompe com o modo como Deus distribui dons (Salmos 37) e se coloca sob o jugo de outro “senhor”, o da violência. Na lógica prática, isso se traduz na tentação de copiar estratégias antiéticas de outros, cobiçando não apenas seus bens, mas o modo torcido como os obtiveram, o que explica por que culturas inteiras podem normalizar a corrupção quando as “presas dos malfeitores” passam a ser almejadas como modelo.)
...,mas a raiz dos justos a dá (Hb.: wəšōreš ṣaddîqîm yittēn — “mas a raiz dos justos dará [fruto]”). O segundo hemistíquio introduz, por meio da conjunção wə- em função claramente adversativa, um contraste radical: em vez de cobiçar o produto do mal alheio, temos uma fonte interna que produz e doa. O substantivo šōreš é masculino singular absoluto e designa “raiz”, o elemento subterrâneo, oculto, de onde uma planta retira alimento e estabilidade; no discurso de sabedoria, “raiz” torna-se metáfora da profundidade e da permanência, como em Provérbios 12:3 (“a raiz dos justos não será removida”) e em Isaías 11:1 (“um rebento sairá do tronco de Jessé, e das suas raízes brotará um renovo”). O termo ṣaddîqîm é adjetivo masculino plural, de ṣaddîq (“justo, aquele que se conforma ao padrão da aliança”), usado aqui como genitivo plural: “dos justos”. Juntos, formam o sintagma “raiz dos justos”, indicando não apenas a origem histórica, mas a dimensão mais profunda da vida deles, aquilo que os alimenta e os mantém. O verbo yittēn é Qal imperfeito 3ª pessoa masculina singular de nātan (“dar, conceder, produzir”), com aspecto habitual e uma nuance de futuridade aberta: “dará”, “costuma dar”, “trará”. O objeto direto é elíptico no hebraico, o que é típico de máximas poéticas; versões modernas acrescentam “fruto” ou “prosperidade”, mas o texto deixa a palavra em suspenso, como se convidasse o leitor a reconhecer, a partir de outros textos, que a raiz sadia gera fruto bom (Salmos 1:3; Jeremias 17:7–8).
Sintaticamente, šōreš ṣaddîqîm é o sujeito, e yittēn o predicado verbal, formando uma cláusula verbal simples em que o foco recai na capacidade geradora da raiz. A etimologia de šōreš vem do campo botânico, mas, ao ser associado a ṣaddîqîm, ganha coloração teológica: os justos têm, por assim dizer, uma “raiz” plantada na própria fidelidade de Deus, o que os torna capazes de dar em vez de tomar, de frutificar em vez de saquear. Nesse sentido, o provérbio opõe dois modos de relação com o bem: o ímpio tenta obtê-lo por cobiça parasitária, sugando o fruto da rede alheia; o justo, nutrido por dentro, torna-se ele mesmo fonte de doação, “raiz que dá”. No horizonte mais amplo da Escritura, a metáfora se alinha com a árvore plantada junto a ribeiros de águas, que “dá o seu fruto na estação própria” (Salmos 1:3), e com a promessa de Jesus de que quem nele permanece “dá muito fruto” (João 15:5). A lógica prática é profunda: o verdadeiro bem não nasce de desejar o que o mal produz, mas de estar enraizado em Deus de tal maneira que a vida, naturalmente, começa a derramar frutos de justiça, generosidade e fidelidade. Onde o ímpio vive de desejar o que outros capturaram, os justos, por força da sua raiz, tornam-se eles mesmos resposta às necessidades ao redor, e o mundo à sua volta deixa de ser apenas cenário de cobiça para tornar-se campo de frutificação.
Provérbios 12:13
Na transgressão dos lábios está a armadilha do ímpio, mas o justo escapa da angústia. (Hb.: bepešaʿ śāp̄atayim mōqēš rāʿ wayyēṣēʾ miṣṣārâ ṣaddîq — “na transgressão de lábios [há] uma armadilha maligna, e o justo sairá da angústia”). O texto massorético traz a sequência: בְּפֶ֣שַׁע שְׂ֭פָתַיִם מֹוקֵ֣שׁ רָ֑ע וַיֵּצֵ֖א מִצָּרָ֣ה צַדִּֽיק׃. A expressão inicial bepešaʿ combina a preposição bə (“em, dentro de”) com o substantivo masculino singular pešaʿ (“transgressão, rebelião deliberada”), de raiz que, segundo os léxicos, indica revolta consciente, nacional ou moral, contra alguém ou contra o próprio Deus. Em sua estrutura morfológica, temos uma locução preposicional (“em transgressão”), que, associada ao substantivo seguinte, delimita o campo onde o provérbio localiza o perigo. Śāp̄atayim (“lábios”) é substantivo feminino dual, de śāp̄â (“lábio, borda, fala”), funcionando como genitivo de pešaʿ: “transgressão de lábios”, isto é, a rebelião que se encarna na fala — mentira, calúnia, difamação, juramento falso, linguagem violenta. Os léxicos de śāp̄â destacam exatamente o uso metafórico para “palavra, discurso”, inclusive expressões como “lábios de mentira”, “lábios de engano”, “lábios de verdade” em Provérbios. Mōqēš é substantivo masculino singular absoluto, “armadilha, laço, isca de caçador”, proveniente da raiz yāqaš (“enredar”), e as entradas lexicais sublinham que o termo, aplicado metaforicamente, designa “snare” espiritual ou moral, um laço invisível que prende o desatento. Rāʿ (“mau, maligno, perverso”) é adjetivo masculino singular que aqui é substantivado: “o malvado, o ímpio”. A estrutura “bə·fešaʿ śə·fātayim moqēš rāʿ” (“na transgressão dos lábios há uma armadilha má”) é uma cláusula nominal com cópula elíptica: o grupo preposicional bepešaʿ śāp̄atayim funciona como adjunto circunstancial (“no campo da transgressão verbal”), enquanto mōqēš rāʿ é o sintagma nominal que serve de sujeito e predicativo ao mesmo tempo, exprimindo que ali reside “uma armadilha maligna” ou “armadilha do malvado”. As traduções e o léxico de Provérbios 12:13 explicitam esse valor: “um homem mau é enredado pela transgressão dos seus lábios”, lendo a estrutura como: “na transgressão dos lábios [está] um laço para o mau”. A segunda metade passa a um verbo finito: wayyēṣēʾ é forma wayyiqtol Qal 3ª masc. sing. de yāṣāʾ (“sair, desprender-se”), que em discurso proverbial assume valor gnômico, descrevendo o resultado típico: “e o justo sai”. Miṣṣārâ é preposição min (“de, para fora de”) assimilada a ṣārâ (“angústia, aperto, tribulação”), substantivo feminino singular cuja etimologia remete à ideia de “estreiteza, aperto, espaço comprimido”, usado para aflição e adversidade. Ṣaddîq (“justo”) é adjetivo masculino singular da família de ṣedeq (“justiça”), empregado aqui como substantivo — “o justo”, aquele cuja conduta e posição se alinham à norma da justiça divina. A segunda cláusula é verbo–complemento–sujeito: “e sairá da angústia o justo”, com miṣṣārâ como complemento ablativo marcando o ponto de onde ele é libertado.
A morfologia completa delineia a lógica sintática: na primeira metade, temos um predicado nominal sem verbo expresso, que se poderia explicitar como “na transgressão dos lábios [há] uma armadilha maligna”; o sujeito lógico é o sintagma “armadilha maligna”, e a frase preposicional marca o domínio em que essa armadilha se arma. Na segunda metade, a forma verbal narrativa wayyēṣēʾ, descolada aqui de um contexto histórico, torna-se enunciado proverbial: sempre que a justiça caracteriza alguém, há, inscrito na própria ordem moral de Deus, um caminho de saída das estreitezas. Exegeticamente, pešaʿ śāp̄atayim não aponta para um deslize qualquer na fala, mas para uma fala deliberadamente rebelde — difamações intencionais, juramentos falsos calculados, discursos que instigam violência, manipulações verbais com dolo. Os léxicos de pešaʿ insistem na ideia de “revolta” e “rebelião consciente”. E os léxicos de mōqēš lembram que o laço pertence originalmente ao universo da caça: o animal acredita estar apenas pisando em chão comum, mas há um mecanismo escondido que se fecha; assim também a boca rebelde instala mecanismos discretos que acabam se fechando sobre o próprio ímpio — implicações legais de suas palavras, perda de confiança, redes de intriga que se voltam contra ele (ver Provérbios 6:2; 18:7).
A Septuaginta verte: “por causa do pecado dos lábios, o pecador cai em armadilhas, mas o justo foge delas”, explicitando o verbo “cair” para o ímpio e “fugir” para o justo. O versículo se alinha com a grande tradição de sabedoria que vê na língua um eixo decisivo da vida moral (Provérbios 10:19; 12:18–19; 13:3) e ecoa-se de modo forte em Tiago 3, onde a língua é chamada de fogo que incendeia “todo o curso da existência” (Tiago 3:6). A lógica prática é severa e misericordiosa ao mesmo tempo: severa, porque afirma que a própria transgressão verbal é o terreno onde o ímpio arma o seu laço; misericordiosa, porque dá ao justo a esperança de que, mesmo passando por estreitezas, não ficará nelas: sua relação com a verdade, refletida na palavra, o torna apto a clamar, confessar, arrepender-se e, assim, “sair da angústia” (Salmos 34:13–19; 2 Coríntios 4:8–9). A boca, portanto, não é ornamento; é trilho por onde corre tanto a rebelião quanto a libertação.
Provérbios 12:14
Do fruto da boca se satisfaz o bem, e o fruto das obras das mãos do homem retorna a ele. (Hb.: mippərî pî ʾîš yiśbaʿ ṭôḇ ûgəmûl yədê ʾādām yāšûḇ lô — “do fruto da boca do homem ele se saciará de bem, e a recompensa das mãos do homem voltará para ele”). O sintagma inicial mippərî resulta da preposição min (“de, a partir de”) mais o substantivo masculino singular pərî (“fruto”), com assimilação da nun (min → mip → mippə-), formando “do fruto”. Pî é forma de construto de peh (“boca”), relacionando-se a ʾîš (“homem”, masc. sing.): “fruto da boca do homem”. A palavra pərî é substantivo masculino singular em construto com pî, e pî em construto com ʾîš: uma cadeia de genitivos que se pode ver como “aquilo que brota da boca de um homem”. Os léxicos notam que, em passagens como Provérbios 12:14; 13:2; 18:20, pərî já não é fruto agrícola, mas metáfora para “resultado, consequência, produto” da fala. O verbo yiśbaʿ é Qal imperfeito 3ª masc. sing. de śāḇaʿ (“estar satisfeito, fartar-se”); funciona como núcleo da cláusula verbal, com sujeito genérico implícito (“ele” → “um homem”, ou um “se” impessoal, “satisfaz-se”). Ṭôḇ é adjetivo masculino singular (“bom”), aqui substantivado, “bem, coisas boas”, funcionando como acusativo interno ou complemento de conteúdo (“se fartará de bem”). O uso de ṭôḇ como “coisas boas” como objeto de śāḇaʿ em Provérbios 12:14 é explicitamente atestado pelos léxicos, que listam nosso versículo entre aqueles em que o “bem” é a substância com que a pessoa é preenchida.
Na segunda metade, ûgəmûl une a conjunção copulativa û (“e”) ao substantivo masculino singular gəmûl (“recompensa, retribuição, o que vem de volta”), derivado de gāmal (“retribuir, tratar segundo o mérito”). Yədê é forma construta plural de yād (“mão”), “mãos de”, e ʾādām é substantivo masculino singular (“homem, humanidade”), de modo que gəmûl yədê ʾādām significa “a recompensa (o resultado) das mãos do homem”, isto é, aquilo que o trabalho e as ações produzem. A cláusula se completa com yāšûḇ (Qal imperfeito 3ª masc. sing. de šûḇ, “voltar, retornar”) e lô (preposição lə + sufixo 3ª masc. sing., “a ele”), formando o predicado: “voltará para ele”. Léxicos e interlineares confirmam essa construção como “as obras/ a recompensa doas obras de um homem retornarão para ele”. A primeira cláusula se organiza como adjunto de origem + verbo + complemento de conteúdo: “a partir do fruto da boca do homem, ele se satisfaz de bem”. O grupo preposicional mippərî pî ʾîš indica fonte; o sujeito é um “ele” genérico ligado ao “homem” (ou, por metonímia, ao próprio fruto da boca); yiśbaʿ é o núcleo verbal, e ṭôḇ é o que o preenche. A segunda cláusula, por sua vez, traz um sujeito nominal (gəmûl yədê ʾādām) seguido de verbo e dativo: “e a recompensa das mãos do homem retornará para ele”.
O termo pərî nasce do mundo agrário: fruto é aquilo que amadurece no tempo, resultado de uma árvore enraizada, de estações que se repetem, de cuidados e de fatores fora do controle humano. Quando Provérbios fala do “fruto da boca”, o léxico registra a passagem semântica: trata-se do “curso de vida, caráter, fala”, as consequências condensadas daquilo que sai da boca. Gəmûl carrega a ideia de retribuição justa: o que volta não é aleatório, mas é “devolução” moral daquilo que se fez (Salmos 28:4; Isaías 3:11). Šûḇ é um verbo central na teologia bíblica, usado tanto para descrever o retorno físico de algo (juízo, sorte, exílio) quanto o retorno espiritual do pecador a Deus; aqui, marca o movimento circular da ação moral: o que as mãos lançam ao mundo retorna ao lançador. A primeira metade do versículo afirma que existe uma estreita ligação entre palavra e bem-estar: as “coisas boas” com que alguém se farta — não apenas bens materiais, mas também estima, paz, alegria relacional — estão intrinsecamente ligadas ao tipo de “fruto” que sai da sua boca. O comentário de Guzik, por exemplo, sublinha que “um homem é abençoado pelo que diz; suas palavras boas, gentis e encorajadoras trazem vida para si e para outros”. Provérbios 13:2 e 18:20 retomam a imagem, falando do “ventre” satisfeito pelo fruto da boca, indicando que as palavras não apenas constroem o mundo ao redor, mas alimentam ou envenenam o interior do falante. No Novo Testamento, Jesus declara que “pelas tuas palavras serás justificado e pelas tuas palavras serás condenado” (Mateus 12:37), ecoando essa teologia da palavra como semente que floresce em juízo ou bênção.
A segunda metade complementa esse quadro deslocando o foco das palavras para as obras: aquilo que as mãos realizam — trabalhos, gestos de justiça ou injustiça, generosidade ou exploração — gera um gəmûl que inevitavelmente se volta para o agente. Outros textos de sabedoria confirmam essa circularidade: “o mal que o ímpio faz recairá sobre ele” (Provérbios 11:5; 14:14), e Gálatas 6:7–8 formula, em linguagem paulina, o mesmo princípio: “tudo o que o homem semear, isso também ceifará”. Yāšûḇ lô não descreve apenas um mecanismo automático, mas a forma como Deus governa o mundo moral: Ele permite que o fruto das palavras e das obras retorne, para revelação e correção do coração. Na prática, Provérbios 12:14 erige uma espécie de espelho duplo: de um lado, a boca; de outro, as mãos. O “bem” de que o homem se sacia é, em boa medida, o eco do que diz: palavras de gratidão tendem a construir relações de cuidado; palavras de crítica cruel tendem a gerar isolamento; palavras de promessas quebradas corroem a confiança. Paralelamente, as mãos que trabalham com diligência e integridade, ainda que às vezes pareçam pouco recompensadas, desenham ao longo da vida um gəmûl de respeito, sustento e, muitas vezes, proteção providencial; já as mãos que roubam, oprimem e ferem fabricam, como bumerangues, julgamentos e sofrimentos que retornam (Provérbios 1:18–19). No horizonte da cruz, essa dinâmica assume profundidade ainda maior: ali, o Justo colhe o amargo retorno de palavras e obras que não eram suas (Isaías 53:5; 1 Pedro 2:24), para que, unidos a ele, aprendamos a plantar, com boca e mãos, frutos que, quando voltarem, sejam “bem” e não condenação.
Provérbios 12:15
O caminho do insensato parece-lhe reto, mas o que dá ouvidos aos conselhos é sábio.
(Hb.: dereḵ ʾĕwîl yāšar bəʿênāw wəšōmēaʿ ləʿēṣâ ḥākām — “o caminho de um insensato é reto aos seus olhos, mas o que ouve conselho é sábio”). A frase hebraica se organiza, primeiro, como uma sentença nominal sem verbo finito: dereḵ ʾĕwîl (“caminho de um insensato”) é o sujeito, e yāšar bəʿênāw (“reto aos seus olhos”) funciona como predicado nominal com cópula elidida; em seguida vem uma segunda cláusula, também de sabor nominal, em que o particípio šōmēaʿ (“o que ouve”) funciona como sujeito substantivado, acompanhado de seu complemento preposicionado ləʿēṣâ (“a conselho”), enquanto ḥākām (“sábio”) é o predicativo do sujeito. O termo dereḵ (“caminho”) é substantivo masculino singular, cujo campo semântico vai da “trilha pisada” até o “modo de vida, conduta” em textos sapienciais; aqui ele aparece numa construção genitiva com ʾĕwîl (“insensato”), formando a expressão “caminho de um insensato”, típica de Provérbios para descrever um estilo de vida inteiro orientado pela tolice. A palavra ʾĕwîl (“insensato”) é substantivo/adjetivo masculino singular e designa não apenas alguém intelectualmente limitado, mas o tolo moralmente obstinado, recorrente na literatura sapiencial. O predicado yāšar (“reto”) é adjetivo masculino singular que, em seu uso básico, descreve aquilo que é “direito, alinhado, conforme a régua”, e teologicamente passa a qualificar o que é conforme o padrão de Deus; o sintagma preposicional bəʿênāw (“em seus olhos”) combina a preposição bə (“em”) com o substantivo dual ʿênayim (“olhos”) com sufixo de 3ª masc. sing., compondo a expressão “aos seus próprios olhos”, que marca o ponto de vista subjetivo e auto-referencial do insensato.
Na segunda metade, wəšōmēaʿ (“mas o que ouve”) traz a conjunção wə (“e/mas”) seguida do particípio Qal masculino singular de šāmaʿ (“ouvir, escutar, obedecer”); como particípio, ele tem valor durativo e habitual, funcionando aqui como um substantivo de agente: “aquele que continuamente se dispõe a ouvir”. O complemento ləʿēṣâ (“a conselho”) une a preposição lə (“a, para”) ao substantivo feminino singular ʿēṣâ (“conselho, plano”), termo que em Provérbios assume forte densidade teológica: é a orientação prudente que pode vir de sábios, de anciãos, mas, em última instância, está ancorada no conselho do próprio Senhor. O predicativo ḥākām (“sábio”) é adjetivo masculino singular, que aqui atua como núcleo nominal predicativo da cláusula: aquele que se define por ouvir conselho é precisamente o sábio, não por um brilho intelectual abstrato, mas por uma disposição humilde de se deixar corrigir. Sintaticamente, portanto, temos duas linhas que se miram como espelhos: de um lado, sujeito “caminho do insensato” + predicado “reto aos seus olhos”; de outro, sujeito “o que ouve conselho” + predicado “é sábio”. A etimologia reforça a imagem: dereḵ (“caminho”) vem da ideia de trilha batida, senda pisada, que, ao longo da Bíblia, torna-se metáfora da conduta (“andar nos caminhos do Senhor” contra “caminho dos pecadores” em Salmos 1). Yāšar (“reto”) tem raiz ligada ao que é “direito, ajuizado”, e a expressão “fazer o que é reto aos seus próprios olhos” ecoa o refrão sombrio de Juízes, onde “cada um fazia o que era reto aos seus olhos”, sinalizando um relativismo moral corrosivo.
Em termos exegéticos, o provérbio desenha duas estradas: a do insensato, pavimentada pela autoconfiança epistemológica (“parece-lhe reto”), e a do sábio, marcada pela disposição de submeter seu próprio olhar ao olhar de outros, e, sobretudo, ao conselho de Deus. Teologicamente, o texto denuncia a auto-referência como forma de idolatria da consciência: o insensato toma seus próprios olhos como medida final da verdade, invertendo a ordem de Deuteronômio 6:18, em que o padrão do “reto” é o que é “bom e direito aos olhos do Senhor”, não aos olhos do homem. Já o que ouve conselho encarna o princípio de Provérbios 1:7, em que o “temor do Senhor” é o princípio do conhecimento: ouvir conselhos humanos se torna sábio exatamente na medida em que estes são filtrados pela revelação divina. Na lógica prática do versículo, o caminho do insensato é agradável para quem o percorre — é confortável caminhar numa estrada que nós mesmos traçamos —, mas ele conduz à colisão com a realidade objetiva de Deus; em contraste, quem se abre para conselhos vive numa tensão saudável, porque sabe que seu olhar não é a medida de tudo, e essa docilidade à correção o torna verdadeiramente sábio. Aqui a poesia sapiencia lida com algo profundamente espiritual: ou a pessoa se torna prisioneira do labirinto de seus próprios olhos, ou se deixa guiar por vozes que a chamam para fora de si, até que o “caminho” se alinhe com o Caminho de Deus, que, no horizonte bíblico, culmina na figura de Cristo como a própria Sabedoria encarnada (1 Coríntios 1:24).
Provérbios 12:16
O insensato revela num só dia a sua ira (Hb.: ʾĕwîl bayyôm yiwwādaʿ kaʿsô — “o insensato, no mesmo dia, é conhecida a sua ira”). A estrutura hebraica aqui é mais compacta e carregada: ʾĕwîl (“insensato”) aparece em posição de destaque como nominativo absoluto, introduzindo o personagem; bayyôm (“no dia”) combina a preposição bə (“em”) com o substantivo masculino singular yôm (“dia”), com daguesh que sinaliza a assimilação, e, no contexto, adquire o valor adverbial de “de imediato, no mesmo instante”, como traduzem versões como NET e NASB. O verbo yiwwādaʿ (“é conhecida”) é forma imperfeita Niphal 3ª pessoa masc. sing. de yādaʿ (“conhecer, saber”), voz passiva/reflexiva que, neste contexto gnômico, descreve aquilo que “se torna visível, notório, costuma vir à luz”; o imperfecto exprime aqui uma verdade típica, algo que se repete: sempre que a situação é de provocação, é questão de pouco tempo até que a ira do tolo se manifeste. O termo final kaʿsô (“sua ira”) é substantivo masculino singular kaʿas (“ira, desgosto, irritação”) com sufixo pronominal de 3ª masc. sing.; o campo semântico de kaʿas vai de indignação intensa a um misto de dor e irritação, abrangendo toda a turbulência interior provocada por frustração ou ofensa.
Muitos intérpretes entendem que o sujeito gramatical de yiwwādaʿ é kaʿsô (“a sua ira é conhecida”), enquanto ʾĕwîl bayyôm desempenha função de tópico: “Quanto ao tolo, no próprio dia, a sua ira se torna conhecida.” A etimologia reforça a imagem: ʾĕwîl (“insensato”) é o mesmo tipo humano de Provérbios 12:15, alguém que não aprende, não se deixa instruir, de modo que sua reação emocional é tão previsível quanto o nascer do sol; kaʿas (“ira”) é aquele fogo interior que, em outros textos, se associa tanto à reação de Deus à idolatria quanto à irritação humana diante de contrariedades (por exemplo, em 1 Samuel 1:6, onde a provocação de Penina gera profunda angústia em Ana). O quadro é de uma transparência descontrolada: o insensato é uma casa sem portas, qualquer sopro de contrariedade escancara todos os cômodos; sua ira “fica à mostra” com mínima provocação, lembrando o provérbio paralelo de Provérbios 29:11, onde “o tolo dá vazão a toda a sua ira, mas o sábio a reprime”. Isso fala de um coração sem freios, em que não há domínio próprio, fruto do Espírito (Gálatas 5:23), e no qual o “temor do Senhor” não regula a temperatura das emoções. A lógica prática é cortante: quem se entrega a esse padrão de reações rápidas e sem filtro, revela não apenas seu temperamento, mas a arquitetura moral do próprio coração; é alguém em quem a ira ocupa o centro do palco, enquanto a reflexão, a oração e a escuta são expulsas para os bastidores. O texto não romantiza explosões emocionais como “autenticidade”; ele as denuncia como marca de tolice e imaturidade espiritual.
...mas o prudente encobre a sua vergonha. (Hb.: wəḵōseh qālôn ʿārûm — “mas o que encobre a vergonha é prudente”). A conjunção inicial wə (“mas”) faz o contraste com a linha anterior: em vez da publicidade imediata da ira, temos agora o encobrimento prudente da vergonha. Ḵōseh (“o que encobre”) é particípio Qal masculino singular de kāsâ (“cobrir, ocultar”), funcionando, como em 12:15, como substantivo de agente: “aquele que, por hábito, cobre.” O objeto direto é qālôn (“vergonha, desonra”), substantivo masculino singular cujo campo semântico abrange humilhação pública, opróbrio moral e descredito social; em outros textos, qālôn é aquilo que Deus pode cobrir para restaurar a dignidade (por exemplo, Isaías 61:7) ou aquilo que acompanha o escarnecedor que perturba a comunidade. O predicativo ʿārûm (“prudente, sagaz”) é adjetivo masculino singular que, em Gênesis 3:1, descreve a astúcia da serpente, mas é ressignificado por Provérbios como prudência sábia: aquele que antevê consequências, guarda conhecimento e age com discrição. A construção é, formalmente, mais uma sentença de particípio: o sujeito lógico é a expressão “aquele que encobre vergonha” (ḵōseh qālôn), e o predicativo é ʿārûm (“é prudente”). Do ponto de vista semântico, esta “cobertura” não é encobrimento cúmplice de pecado estrutural (algo condenado em textos proféticos e em Provérbios 28:13, que diz que quem encobre as transgressões não prosperará), mas o ato de não expor tudo, de não transformar cada ofensa ou falha em espetáculo. O paralelo entre 12:16 e 29:11 sugere que a “vergonha” em questão pode ser tanto a própria vergonha potencial do prudente quanto a vergonha alheia que ele decide não amplificar; ele não responde a insultos na mesma moeda, não dramatiza cada afronta, não transforma a ofensa em palco para seu ego.
O adjetivo ʿārûm (“prudente”) carrega a tensão entre astúcia e discernimento; a sabedoria bíblica não demoniza a sagacidade, mas a redime, purificando-a de engano e colocando-a a serviço do bem. Provérbios 12:16 aponta para uma ética da contenção: em vez de derramar a ira e expor tudo o que é vergonhoso, o prudente administra conflitos com discrição, sempre à luz de Deus, que é quem, em última instância, revela e julga. Há aqui um eco da pedagogia de Mateus 18: antes de tornar o problema público, o sábio procura o irmão em particular; só em último caso, e com critério, a vergonha precisa vir à tona. A lógica prática é delicada: nem toda ferida exige trombetas, nem toda afronta precisa de fogo; muitas vezes, a forma mais profunda de coragem é suportar a injúria sem transformar a própria alma num vulcão. O prudente “cobre” não para negar a verdade, mas para impedir que a vergonha — própria ou alheia — se torne moeda de troca na praça pública. Assim, enquanto o tolo vive com o coração à flor da pele, exibindo cada explosão, o prudente escolhe o silêncio amadurecido, que não é covardia, mas sabedoria que aprendeu a medir o peso de cada palavra diante de Deus.
Provérbios 12:17
Quem profere a verdade declara a justiça, mas a testemunha falsa, a mentira. (Hb.: yāpîaḥ ʾĕmûnâ yaggîḏ ṣedeq wəʿēd šeqārîm mirmah — “quem respira verdade declara justiça, mas a testemunha de mentiras [declara] engano”). O texto hebraico traz a sequência: yāpîaḥ ʾĕmûnâ yaggîḏ ṣedeq wəʿēd šeqārîm mirmah. O primeiro verbo, yāpîaḥ (“ele respira, exala”), é Hifil imperfeito 3ª masc. sing. de pûaḥ (“soprar, exalar, proferir”), funcionando aqui como verbo finito gnômico, de aspecto habitual: descreve aquele que, como modo de ser, “sopra” palavras para fora. O substantivo que o acompanha é ʾĕmûnâ (“fidelidade”, “verdade firme”), substantivo feminino singular, objeto direto do verbo: o que esse sujeito “exala” não é qualquer palavra, mas fidelidade, verdade confiável. Na sequência, yaggîḏ (“ele declara, anuncia”) é também Hifil imperfeito 3ª masc. sing. de nāgad (“anunciar, tornar conhecido”), partilhando o mesmo sujeito implícito de yāpîaḥ; trata-se de um segundo movimento do mesmo ato: quem exala verdade acaba, por isso mesmo, “declarando” algo ao mundo. O objeto de yaggîḏ é ṣedeq (“justiça”), substantivo masculino singular que, na literatura bíblica, abrange tanto a retidão forense quanto a conformidade com o padrão da aliança. Assim, na primeira meia-linha, a morfologia se organiza: sujeito subentendido (“ele / quem exala verdade”), verbo 1 (yāpîaḥ), objeto 1 (ʾĕmûnâ), verbo 2 (yaggîḏ), objeto 2 (ṣedeq). Sintaticamente, o provérbio está a dizer que a pessoa cuja fala é permeada de fidelidade torna visível, sem talvez o perceber, a própria justiça — ela “expõe”, “publica” o que é reto. A origem da palavra ʾĕmûnâ (“fidelidade”) vem do campo da firmeza, daquilo que é seguro, confiável, de onde também surgem ʾāman (“crer”) e ʾāmēn (“amém”); falar com ʾĕmûnâ (“fidelidade”) é falar de modo que outros possam apoiar o peso da vida sobre a palavra dada. Já ṣedeq (“justiça”) é a retidão que se alinha com o caráter de Deus, frequentemente associada à equidade nas relações humanas (Provérbios 11:5; Amós 5:24).
Na segunda meia-linha, wəʿēd (“mas testemunha”) é conjunção wə (“e/mas”) seguida de ʿēd (“testemunha”), substantivo masculino singular que, na morfologia aqui, funciona como sujeito da cláusula. O grupo seguinte, šeqārîm (“mentiras”), é substantivo masculino plural de šeqer (“mentira, falsidade”), em função genitiva: “testemunha de mentiras”, ou, como observa a nota da NET, “witness of falsehoods”, um genitivo atributivo que caracteriza a testemunha como habitualmente falsa. O termo final, mirmah (“engano”), é substantivo feminino singular, núcleo nominal que, na estrutura da frase, funciona como predicativo ou como objeto elíptico do verbo “declara” tomado do primeiro hemistíquio: “mas a testemunha de mentiras [declara] engano.” Temos, portanto, uma segunda sentença nominal/verbal com verbo elidido por paralelismo: a forma explícita yaggîḏ na primeira metade governa também a segunda, por economia poética. Morfologicamente: sujeito ʿēd šeqārîm (“testemunha de mentiras”), verbo implícito “declara”, predicativo/objeto mirmah (“engano”). Etimologicamente, šeqer (“mentira”) e mirmah (“fraude, dolo”) pertencem ao vocabulário jurídico da Torá: a proibição de falso testemunho em Êxodo 20:16 e Deuteronômio 19:16–21 tem essa mesma atmosfera de tribunal, onde a palavra cria ou destrói destinos; mirmah (“engano”) é o veneno que corrompe o juízo, distorce a realidade e viola a confiança comunitária.
Provérbios 12:17 desenha, com traços mínimos, um tribunal invisível em que cada fala é testemunho: ou se respira ʾĕmûnâ (“fidelidade”) e, assim, se declara ṣedeq (“justiça”), ou se respira šeqer (“mentira”) e se dissemina mirmah (“engano”). O foco não é apenas “dizer a verdade factual”, mas ser uma pessoa cuja respiração verbal é fiel, confiável, coerente com a realidade de Deus. O comentário de Guzik nota, a partir deste versículo, que “aquele que fala a verdade declara a justiça; suas palavras estão cheias de verdade e refletem a justiça de Deus”, ao passo que “a testemunha falsa promove o engano em vez da justiça”. A lógica prática é clara como aço: toda vez que alguém “sopra” fidelidade — evitando exageros, distorções, omissões convenientes —, torna o mundo um pouco mais alinhado ao trono onde Deus julga com justiça (Salmos 89:14). Toda vez que alguém se torna ʿēd šeqārîm (“testemunha de mentiras”), seja num tribunal, seja em conversas corriqueiras, espalha mirmah (“engano”) como uma névoa que cega os olhos e impede que a justiça seja vista. À luz de Jesus, que se apresenta como “a verdade” (João 14:6), esse paralelismo ganha ainda mais densidade: deixar que nossas palavras sejam impregnadas de ʾĕmûnâ (“fidelidade”) é alinhar a língua com Aquele cuja própria presença é a verdade encarnada; continuar a ser ʿēd šeqārîm (“testemunha de mentiras”) é colocar a boca a serviço do “pai da mentira” (João 8:44).
Provérbios 12:18
O falador temerário fere como espada, mas a língua dos sábios é cura. (Hb.: yēš bōṭeh kəmaḏqərôt ḥerev ûləšōn ḥăkāmîm marpeʾ — “há quem fala impensadamente como perfurações de espada, mas a língua dos sábios é cura”). O hebraico dispõe as palavras assim: yēš bōṭeh kəmaḏqərôt ḥerev ûləšōn ḥăkāmîm marpeʾ. O advérbio/partícula existencial yēš (“há, existe”) abre a sentença, introduzindo, como se fosse uma cena, um certo tipo de pessoa; não é verbo, mas partícula que estabelece a existência de algo ou alguém. O participial bōṭeh (“falando de forma impulsiva”) é Qal particípio masculino singular de bāṭāh (“proferir, emitir, falar à toa”), funcionando como adjetivo-substantivo: “aquele que fala de modo irrefletido”. A tradição judaica, em Rashi, liga bōṭeh à forma de Levítico 5:4, onde alguém “pronuncia” precipitadamente algo com os lábios — promessa ou juramento irrefletido. Esse bōṭeh (“falador temerário”) é o sujeito lógico, caracterizado por um fluxo verbal que sai sem filtro, antes do pensamento. O grupo kəmaḏqərôt (“como perfurações”) junta a preposição kə (“como”) ao substantivo feminino plural construto maḏqərôt (“golpes penetrantes, perfurações”), plural de maḏqārâ (“golpe, pontada, estocada”), vocábulo raro que, segundo o léxico, ocorre aqui em Provérbios 12:18 como “piercings” de uma espada. Ḥerev (“espada”) é substantivo feminino singular, em relação de genitivo com maḏqərôt: “perfurações de espada”. Temos, portanto, uma construção comparativa: “há quem fale impulsivamente como perfurações de espada”, em que bōṭeh é sujeito, e o complemento comparativo explicita o efeito de suas palavras.
Na segunda meia-linha, ûləšōn (“mas a língua”) combina a conjunção û (“e/mas”) com o substantivo lašon (“língua”) em estado construto com ḥăkāmîm (“sábios”), adjetivo masculino plural de ḥākām (“sábio”) usado substantivamente: “dos sábios”. O substantivo final, marpeʾ (“cura, remédio, saúde”), é masculino singular absoluto; aqui age como predicativo nominal, de modo que a segunda cláusula é, formalmente, uma equação: “a língua dos sábios é cura.” A primeira meia-linha pode ser descrita como sentença existencial-descritiva: yēš (“há”) + sujeito participial bōṭeh + complemento comparativo kəmaḏqərôt ḥerev (“como perfurações de espada”). A segunda é uma sentença nominal simples: sujeito ləšōn ḥăkāmîm (“língua dos sábios”), cópula elíptica, predicado marpeʾ (“cura”).
Na raíz etimológica bāṭāh (“falar impulsivamente”) sugere aquela fala que “escapa” sem ser pesadamente pensada; não é necessariamente fala maligna premeditada, mas palavra que, por falta de freios, se torna arma. Rashi comenta que bōṭeh é “aquele que fala como quem apenas solta sons dos lábios”, ligando a ideia a uma linguagem mecânica, não ponderada. Já marpeʾ (“cura”) pertence ao vocabulário médico: “remédio, cura, saúde”, usado tanto de restabelecimento físico quanto de restauração interior (Provérbios 4:22; 16:24). A imagem, então, se torna vivíssima: de um lado, a boca do bōṭeh (“falador temerário”) é comparada a uma arma branca que faz cortes rápidos, profundos, muitas vezes irreversíveis; de outro, a língua dos sábios é um bálsamo que cicatriza, fecha feridas, reconcilia. As palavras do imprudente “ferem como estocadas de espada”, dividindo amigos e destruindo reputações; a língua dos sábios, ao contrário, “é saúde”, restabelecendo a paz e o bem-estar.
Em chave exegética, Provérbios 12:18 completa e aprofunda 12:17. Não se trata apenas de dizer “verdade” contra “mentira”, mas de perceber que o modo como se fala — temerário ou ponderado — pode ferir ou curar, mesmo quando o conteúdo factual é verdadeiro. Um bōṭeh (“falador irrefletido”) pode dizer algo objetivamente correto, mas lançá-lo como espada e não como remédio; mistura, assim, verdade e crueldade, e transforma o dom da fala em instrumento de mutilação. Já a ləšōn ḥăkāmîm (“língua dos sábios”) administra tanto o conteúdo quanto o tom, o tempo e o contexto, para que as palavras atuem como marpeʾ (“cura”). Em toda a Escritura, essa tensão é reiterada: Tiago 3 descreve a língua como fogo capaz de incendiar o curso da existência, mas também como peça que, se domada, faz do corpo inteiro algo governável; Efésios 4:29 exorta a falar apenas o que é bom “para edificação, conforme a necessidade, a fim de que transmita graça aos que ouvem”. A lógica prática deste provérbio é quase cirúrgica: cada palavra é um golpe ou um remédio. A pessoa que se habitua a falar sem discernimento, reagindo a tudo, acaba cercada de pessoas feridas, relações cortadas, atmosferas de tensão; a que, pelo temor do Senhor, educa a língua para ser marpeʾ (“cura”) vai, pouco a pouco, vendo como a própria presença passa a ser lugar de conserto, reconciliação e descanso. Assim, no coração de Provérbios 12, a sabedoria não se mede apenas por ideias corretas, mas pelo uso da mesma lâmina — a palavra — como bisturi que cura, e não como espada que rasga.
Provérbios 12:19
Os lábios da verdade permanecem para sempre, mas a língua da mentira é passageira (Hb.: śəpat ʾĕmet tikkon laʿad wəʿad-ʾargîʿāh lāšon šeqer — “o lábio da verdade será estabelecido para sempre, mas a língua de falsidade [é] apenas por um instante”). O versículo se abre com o sintagma śəpat ʾĕmet (“lábio de verdade”), em que śəpat (“lábio”, “fala”) é a forma feminina singular em estado de construto de śāp̄â (“lábio”, “linguagem”, “borda”), funcionando como sujeito e descrevendo metonimicamente a fala do justo, não apenas o órgão físico. A palavra ʾĕmet (“verdade”, “firmeza”, “fidelidade”) é substantivo feminino singular absoluto, o segundo membro da cadeia de construto, e carrega, etimologicamente, o campo semântico de estabilidade e confiabilidade, ligado ao verbo ʾāman (“ser firme”, “ser digno de confiança”), razão pela qual muitas vezes designa a própria fidelidade de Deus. Do ponto de vista morfológico, o núcleo verbal da primeira cláusula é tikkon (“será estabelecido”, “permanecerá”), classificado como Nifal imperfeito 3ª fem. sing. de kûn (“ser firme”, “estabelecer-se”), concordando em pessoa, gênero e número com o sujeito feminino śəpat (“lábio”).
O aspecto imperfeito, em um provérbio, assume valor gnômico e durativo: não se trata de um futuro pontual, mas de uma afirmação de princípio — a palavra verdadeira, por natureza, se firma e fica de pé. O sintagma preposicional laʿad (“para sempre”) combina a preposição lə (“para”, “em direção a”) com o substantivo masculino ʿad (“perpetuidade”, “eternidade”), funcionando como adjunto adverbial de tempo que prolonga indefinidamente a duração desse estabelecimento: o que é falado em verdade participa, de algum modo, da estabilidade da própria palavra de Deus, que não passará, ainda que céu e terra passem (Mateus 24:35). A segunda metade do versículo começa com wəʿad (“mas até”, “porém até”), em que wə (“e/mas”) funciona aqui com nuance adversativa, contrapondo o destino da verdade ao da mentira, e ʿad (“até”, “até o ponto de”) introduz uma ideia de limite muito curto.
Em seguida aparece ʾargîʿāh (“eu farei repousar por um instante”, “darei descanso por um momento”), forma verbal analisada por BDB como Hifil imperfeito coortativo 1ª pessoa singular do verbo rāgaʿ (“agitar”, “acalmar”, “dar repouso”), funcionando aqui como um “piscar de olhos” temporal, uma “trégua” mínima que qualifica a duração da língua mentirosa. A construção hebraica pode ser entendida como uma cláusula nominal elíptica na tradução tradicional (“mas a língua de mentira [é] apenas por um instante”), em que lāšon (“língua”, substantivo comum em construto, aqui como sujeito coletivo que representa a fala) e šeqer (“mentira”, “falsidade”, substantivo masculino absoluto) formam o sintagma “língua de mentira”, enquanto ʾargîʿāh funciona como predicativo/adverbial de tempo, comprimindo a existência dessa fala em um “momento” evanescente. Na leitura proposta por BDB, o verbo coortativo pode ser ouvido como voz divina: “enquanto eu, num só instante, a faço cessar, a língua de mentira [não dura] mais que isso”, o que reforça a ideia de que a mentira pode parecer vitoriosa, mas Deus mesmo se encarrega de abreviá-la.
Sintaticamente, portanto, temos na primeira metade uma oração verbal com sujeito explícito (“os lábios da verdade”) e predicado verbal (“serão estabelecidos para sempre”), e na segunda, uma oração nominal contrastiva em que o sujeito (“língua de mentira”) recebe um predicado temporal (“só por um instante”). A oposição é reforçada pela morfologia: tikkon (Nifal imperfeito de permanência) contra ʾargîʿāh (Hifil coortativo de efeito momentâneo), ʾĕmet (“verdade” como firmeza) contra šeqer (“mentira” como engano vazio). Do ponto de vista teológico, o provérbio desenha um contraste entre dois regimes de palavra: a palavra verdadeira, enraizada no caráter fiel de Deus (ʾĕmet como “estabilidade” e “fidelidade”), e a palavra mentirosa, que seduz por um tempo, mas carrega em si mesma a semente da própria ruína. A experiência bíblica confirma esse padrão: o “triunfo do ímpio” é curto, “e a alegria do hipócrita, por um momento” (Jó 20:5), ecoando aqui a ideia de ʾargîʿāh (“um instante”).
A mentira pode produzir ganhos imediatos, reputações artificiais, vantagens políticas ou econômicas, mas todo esse brilho tem a duração de um relâmpago; já a verdade, embora às vezes custosa e aparentemente frágil, é a única que permanece quando as estruturas se desmoronam. Em termos práticos, o versículo ensina que a integridade na fala — “lábios da verdade” — é investimento de longo prazo: ela constrói confiança, estabelece alianças, dá peso à palavra da pessoa e a faz atravessar o tempo, enquanto a mentira exige manutenção constante, gera medo de ser desmascarada e termina por destruir quem a profere (como se vê em Atos 5:3–10, na queda de Ananias e Safira). A lógica sapiencial, portanto, é que o discípulo de Deus se compromete com ʾĕmet (“verdade”) mesmo quando isso parece menos vantajoso, porque confia que Deus estabelece, no tempo e na eternidade, aquilo que é dito em conformidade com Ele.
Provérbios 12:20
O engano está no coração dos que tramam o mal, mas a paz é alegria para os que aconselham (Hb.: mirmāh bə-lēv-ḥōršê rāʿ ū-lə-yōʿăṣê šālōm śimḥāh — “engano [está] no coração dos que maquinaram o mal, mas para os conselheiros de paz [há] alegria”). O versículo começa com mirmāh (“engano”, “traição”), substantivo feminino singular absoluto derivado do verbo rāmāh (“enganar”, “trapacear”), ocupando posição de sujeito de uma oração nominal e marcando o “clima espiritual” interno do ímpio. A expressão bə-lēv (“no coração”) combina a preposição bə (“em”, “dentro de”) com lēv (“coração”, “centro da pessoa”), substantivo masculino singular que, na antropologia hebraica, é o centro da inteligência, da vontade e dos afetos; este sintagma funciona como complemento locativo, indicando o “lugar” onde o engano reside e se movimenta.
Em seguida, ḥōršê (“os que tramam”) é particípio Qal masculino plural em construto de ḥāraš (“lavrar”, “entalhar”, “planejar”), sugerindo, etimologicamente, a imagem de alguém que “sulca” o coração com planos e projetos — assim como o lavrador abre a terra com o arado, o tramador “abre sulcos” de maldade. O adjetivo rāʿ (“mal”, “maldade”), masculino singular, atua como complemento atributivo, especificando o tipo de “sulco” que está sendo traçado: não se trata de qualquer planejamento, mas de um maquinário interno orientado para o mal. A primeira metade é uma oração nominal: o sujeito é mirmāh (“engano”), o predicado é a cadeia preposicional + participial (bə-lēv ḥōršê rāʿ — “no coração dos que tramam o mal”); a cópula “está” é elidida, como é típico do hebraico bíblico, mas subentendida na tradução.
A segunda metade do versículo começa com ū-lə-yōʿăṣê (“mas para os que aconselham”), em que ū (“e/mas”) introduz contraste com nuança adversativa, e lə-yōʿăṣê traz a preposição lə (“para”, “em relação a”) prefixada ao particípio Qal masculino plural construto de yāʿaṣ (“aconselhar”, “dar conselho”), de modo que yōʿăṣê (“os que aconselham”) funciona como substantivo participial — “conselheiros”. O substantivo šālōm (“paz”, “plenitude”, “inteireza”), masculino singular, é o genitivo que completa esta cadeia: “conselheiros de paz”, isto é, aqueles cujo conselho visa restauração, reconciliação, bem-estar integral, não apenas ausência de conflito.
O vocábulo śimḥāh (“alegria”, “júbilo”), substantivo feminino singular absoluto, aparece como predicativo: “é alegria”, “há alegria”, como BDB observa ao comentar especificamente que aqui śimḥāh é o “feliz resultado” oposto à mirmāh (“engano”). Também nesta segunda cláusula temos uma oração nominal sem verbo expresso: o grupo preposicional ū-lə-yōʿăṣê šālōm funciona como dativo de relação (“para os conselheiros de paz”), e śimḥāh é o núcleo predicativo; a estrutura implícita é “para os conselheiros de paz [há] alegria”.
Do ponto de vista etimológico-exegético, o provérbio traça dois perfis espirituais opostos. De um lado, mirmāh (“engano”, “fraude”) como atmosfera interna: o coração se torna oficina de projetos tortuosos, laboriosamente “lavrados” ḥāraš (“lavrar”, “tramar”) em direção ao mal, e o particípio Qal masculino plural em construto ḥōršê (“os que tramam”) mostra justamente isso, não um impulso ocasional, mas uma ocupação contínua, quase profissional, do interior voltado a maquinar o mal. A cadeia “mirmāh bə-lēv-ḥōršê rāʿ” é morfologicamente muito densa: mirmāh (“engano”) como substantivo feminino singular absoluto ocupa a posição de sujeito; o sintagma preposicional bə-lēv (“no coração”) funciona como complemento locativo, com lēv (“coração”) como substantivo masculino singular que, na antropologia bíblica, designa o centro do pensar, querer e sentir; em seguida, o particípio ḥōršê (“os que tramam”), Qal masculino plural em construto, de ḥāraš (“lavrar”, “entalhar”, “tramar”), recebe o adjetivo rāʿ (“mal”) como complemento atributivo masculino singular, configurando o grupo “os que lavram o mal”.
Sintaticamente, temos uma oração nominal: o sujeito “engano” (mirmāh) e o predicado composto “no coração dos que tramam o mal” (bə-lēv-ḥōršê rāʿ), com a cópula “está” elidida. Exegeticamente, isso quer dizer que o engano não é apenas uma ferramenta ocasional desses homens, mas o “clima” habitual do seu interior: o coração, lugar de decisões e projetos, está saturado de mirmāh (“fraude”) enquanto os “sulcos” que eles abrem (ḥāraš – “lavrar”, “tramar”) são alinhados com rāʿ (“mal”). A nota de estudo em Bible Hub sublinha esse vínculo entre engano e intenção má: a própria ação de “maquinar o mal” é nutrida por uma interioridade enganosa, em linha com Jeremias 17:9, que descreve o coração como “enganoso” e com Gênesis 6:5, onde os “designíos do coração” são continuamente maus. Na lógica sapiencial, essa primeira hemístiquia desmascara o mito da neutralidade interior: quem vive para tramar o mal não está apenas “estrategizando”, mas alimentando uma deformação do próprio centro do ser, em que o engano passa a morar “em casa” (como sugere a formulação em algumas traduções: “Deceit is at home in the hearts of those who plan evil”).
Do outro lado, o verso desenha a figura oposta: “ū-lə-yōʿăṣê šālōm śimḥāh” — “mas para os conselheiros de paz [há] alegria”. O grupo inicial ū-lə-yōʿăṣê traz a conjunção ū (“e/mas”) com nuance adversativa, seguida da preposição lə (“para”, “em relação a”) unida ao particípio Qal masculino plural em construto yōʿăṣê, de yāʿaṣ (“aconselhar”, “deliberar”, “dar conselho”), formando o substantivo participial “os que aconselham”. O substantivo masculino singular šālōm (“paz”, “plenitude”, “integridade”) é o termo em construto que completa a expressão: “conselheiros de paz”, isto é, não apenas pessoas que “gostam de paz”, mas aqueles cujo conselho visa restaurar relações, recompor danos, buscar o bem-estar integral da comunidade. Finalmente, śimḥāh (“alegria”, “júbilo”), substantivo feminino singular absoluto, é o núcleo predicativo dessa segunda oração nominal: “há alegria”, “é alegria” para tais pessoas. O dativo de relação está na forma ū-lə-yōʿăṣê šālōm (“mas para os conselheiros de paz”), e a cópula “há/é” permanece implícita, como é frequente em hebraico. Morfologicamente, portanto, a segunda metade se estrutura como: dativo de relação (ū-lə-yōʿăṣê šālōm), predicado nominal (śimḥāh).
Os “conselheiros de paz” são o exato oposto dos “lavradores de mal”: enquanto estes “sulcam” o coração com projetos de dano, aqueles gastam a inteligência para abrir caminhos de reconciliação. As notas de tradutores (por exemplo, SIL e Bible Hub) chamam atenção para o fato de que, aqui, o contraste não é perfeitamente “simétrico”: do lado dos que tramam o mal, o foco está no conteúdo interno (o engano no coração); do lado dos conselheiros de paz, o foco está no resultado: a alegria que lhes é concedida. Essa śimḥāh (“alegria”) é, ao mesmo tempo, consequência psicológica — há um júbilo intrínseco a ver conflitos sanados, vínculos restaurados — e dom teológico, pois a Escritura associa a promoção da paz à bem-aventurança de Deus: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9), em linha com a ideia de que os “conselheiros de paz” participam do próprio modo de agir do Senhor.
Do ponto de vista etimológico-exegético, o provérbio traça dois perfis espirituais completos. Num, mirmāh (“engano”) senta-se no trono do lēv (“coração”): o centro da pessoa se converte numa oficina de conspirações, e o particípio ḥōršê (“os que tramam”) sugere esse trabalho paciente, quase artesão, de quem vive “entalhando” caminhos de dano. Em outro, šālōm (“paz”) torna-se o adjetivo que qualifica o ofício dos yōʿăṣê (“os que aconselham”), e a recompensa disso é śimḥāh (“alegria”) como resultado interno, quase um eco que Deus imprime na alma de quem se ocupa em reconciliar e não em dividir. Provérbios 12:20 articula um princípio que atravessa toda a Escritura: o engano não é neutro nem inofensivo, ele corrói primeiro quem o abriga; quem “trama o mal” descobre, mais cedo ou mais tarde, que se tornou prisioneiro das próprias redes, enquanto aqueles que fazem de šālōm (“paz”) o conteúdo de seus conselhos terminam por experimentar uma alegria que não depende do sucesso imediato, mas do alinhamento com o coração de Deus, que é chamado, em Isaías, de “Deus da paz”, e, no Novo Testamento, de “Deus de paz” repetidas vezes. Em termos práticos, a lógica do versículo é profundamente pastoral: sempre que o coração se enche de mirmāh (“engano”), as estratégias que nascem dali, por mais sofisticadas, estão envenenadas desde a raiz; sempre que alguém se dispõe a ser “conselheiro de paz”, dá um passo na direção da alegria que vem de participar, ainda que em pequena medida, da grande obra de Deus de reconciliar todas as coisas.
Provérbios 12:21
O justo não deseja a iniquidade, mas os ímpios se enchem de maldade. (Hb.: lōʾ yə'unneh laṣṣaddîq kol ʾāwen ûrĕšāʿîm mālĕʾû rāʿ — “não sucederá ao justo nenhum mal, mas os ímpios se encheram de mal”). O provérbio hebraico não fala de “desejar”, mas de “sobrevir” ou “acontecer”: o advérbio lōʾ (“não”) nega a ação verbal, e yə'unneh é forma verbal classificada em CBOL como Puʿal imperfeito 3ª masc. sing. do verbo ʾanāh (“encontrar”, “sobrevir”, “acontecer”), com valor passivo: “será atingido”, “será acometido”. Em registro gnômico, o imperfeito aqui não indica um futuro pontual, mas um princípio: “não é destino do justo ser atingido por mal”. O grupo preposicional laṣṣaddîq combina a preposição lə (“para”, “a”) com o adjetivo ṣaddîq (“justo”, “justo de aliança”), masculino singular, empregado substantivamente como sujeito lógico desse enunciado (“ao justo”). A sequência kol ʾāwen traz kol (“todo”, “qualquer”) em estado de construto governando ʾāwen (“iniquidade”, “mal moral”, mas também “desgraça” ou “calamidade”), substantivo masculino singular; semanticamente, “nenhuma forma de mal” — tanto o pecado quanto suas consequências destrutivas. A segunda metade do verso, introduzida por ûrĕšāʿîm (“e os ímpios”), conjuga a conjunção wə (“e/mas”) com o adjetivo rāšāʿ (“ímpio”, “culpado”), aqui no plural masculino, usado como substantivo coletivo (“os ímpios”). O verbo mālĕʾû (“encheram-se”, “foram cheios”) é Qal perfeito 3ª comum plural de mālēʾ (“encher”, “estar cheio”), com rāʿ (“mal”, “desgraça”) como objeto interno, substantivo masculino singular que designa tanto a maldade moral quanto o desastre que dela procede. Sintaticamente, a primeira cláusula é verbal (“não será acometido o justo por qualquer mal”), com sujeito lógico “qualquer mal” e dativo de relação “ao justo”, ou, por inversão, “nenhum mal sucederá ao justo”; a segunda é também verbal, coordenada adversativamente: “mas os ímpios se encheram de mal”, usando o perfeito com sentido gnômico, como um aoristo proverbial — “é da natureza dos ímpios viverem cheios de mal”.
O campo de ṣaddîq (“justo”) se ancora na raiz ṣdq (“ser justo”, “agir segundo o direito”), frequentemente associada à justiça pactuai de Deus (por exemplo, em Salmos 11:7); ʾāwen (“iniquidade”, “vaidade”) traz consigo a ideia de “vazio” que se torna “idolatria” e “desgraça” (Oseias 4:15), e rāʿ (“mal”) funciona como termo-guarda-chuva para miséria, dano e perversidade. O verbo ʾanāh (“sobrevir”) aparece em Êxodo 21:13, onde uma morte “acontece” sem intenção, e em Salmos 91:10 (“nenhum mal te sucederá”), texto que ecoa muito de perto nosso provérbio. Assim, mais que prometer uma vida sem sofrimentos, o verso afirma que nenhum “mal” no sentido último — isto é, nada que contrarie o propósito redentor de Deus — está destinado ao justo: toda adversidade é absorvida, filtrada e reconfigurada pelo Deus da aliança (Romanos 8:28), de modo que não se torna “mal absoluto” que o destrua, enquanto os ímpios, por sua própria escolha, se enchem de um rāʿ (“mal”) que é ao mesmo tempo culpa e colheita (Gálatas 6:7–8). A lógica prática é que a vida do justo é atravessada por tribulações (Atos 14:22), mas não definida por elas; já os ímpios podem acumular aparentes sucessos, mas no fundo se saturam do próprio veneno que cultivam, como salienta também Jó 20:5 ao dizer que o júbilo do ímpio é breve.
Provérbios 12:22
Os lábios mentirosos são abomináveis ao Senhor, mas os que cumprem a sua palavra são o seu deleite. (Hb.: tōʿăbat YHWH śip̄tê šāqer wəʿōśê ʾĕmûnāh rĕṣōnô — “abominação de Yahweh [são] lábios de mentira, mas os que praticam fidelidade [são] o seu agrado”). A estrutura de ambas as metades é nominal, sem verbo expresso: “abominação de YHWH [são] lábios de mentira” e “[os] que fazem fidelidade [são] o seu prazer”. Tōʿăbat (“abominação”) é forma feminina singular construto de tōʿēbāh (“abominação”, “algo repulsivo”), termo técnico para aquilo que Deus rejeita visceralmente (como em Provérbios 6:16–17, onde o primeiro item da lista é justamente “olhos altivos” e logo em seguida “língua mentirosa”). O nome divino YHWH (“Senhor”) funciona aqui como genitivo: “abominação de YHWH”, marcando não apenas desaprovação legal, mas repulsa afetiva. Em seguida, śip̄tê (“lábios de”) é forma masculina plural construto de śāp̄â (“lábio”, “borda”, “idioma”), e šāqer (“mentira”, “engano”) é substantivo masculino absoluto que completa a expressão: “lábios de mentira”, isto é, toda fala moldada pelo engano, seja em doutrina, seja em relações cotidianas. Sintaticamente, “lábios mentirosos” ocupa a posição de sujeito lógico, enquanto “abominação de YHWH” é o predicativo: aquilo que estas bocas se tornam diante de Deus.
Na segunda semi-linha, wəʿōśê (“mas os que praticam”) traz a conjunção wə com valor adversativo (“mas”) unida ao particípio Qal masculino plural de ʿāśāh (“fazer”, “agir”), empregado aqui como substantivo: “os que fazem”, “os que praticam”. O objeto que especifica essa prática é ʾĕmûnāh (“fidelidade”, “lealdade”, “confiabilidade”), substantivo feminino singular que deriva do campo de ʾāman (“ser firme”, “ser estável”), o mesmo campo de onde vem ʾĕmet (“verdade”). Enquanto šāqer (“mentira”) remete ao vazio, ao discurso oco, ʾĕmûnāh (“fidelidade”) sugere firmeza, constância, confiabilidade nas relações e perante Deus. O substantivo final rĕṣōnô (“seu agrado”, “seu deleite”) é rāṣôn (“boa vontade”, “favor”) com sufixo pronominal 3ª masc. sing. (“dele”), e funciona como predicativo da segunda cláusula: “são o seu deleite”, isto é, o prazer íntimo do Senhor.
Do ponto de vista morfológico-sintático, temos, pois, duas sentenças nominais em paralelo: na primeira, o sujeito é “lábios mentirosos” e o predicativo é “abominação de YHWH”; na segunda, o sujeito é “os que praticam fidelidade” (particípio substantivado) e o predicativo é “seu agrado”. O paralelismo é antitético, mas também progressivo: não se opõe simplesmente “mentir” a “dizer a verdade”, mas “lábios de mentira” a “fazedores de fidelidade”. Como observa a análise de Blue Letter Bible, o contraste é entre falar uma falsidade e viver de modo confiável, onde a verdade não é apenas conteúdo do discurso, mas forma de existência.
A expressão tōʿēbāh (“abominação”) é vocábulo forte, usado para idolatria (Deuteronômio 7:25–26), práticas injustas de comércio (Provérbios 11:1) e perversões morais; o provérbio eleva a mentira ao mesmo patamar simbólico: ela é algo intrinsecamente repulsivo ao Deus que Se define como “Deus de verdade” (Deuteronômio 32:4). ʾĕmûnāh (“fidelidade”) recobre tanto a fidelidade de Deus na aliança (Salmos 36:5) quanto a confiabilidade humana nas relações; em Provérbios 12:22, ela é a resposta humana que reflete o caráter divino.
Provérbios 12:22 estabelece uma linha divisória nítida: quem faz da mentira um instrumento habitual de sobrevivência, autoimagem ou vantagem se coloca no lado daquilo que Deus declara “abominação”; quem escolhe ser confiável, pagando o preço de dizer a verdade e agir com integridade, torna-se “deleite” de Deus. O Novo Testamento ecoa esse juízo ao afirmar que “fora” da cidade escatológica estão “todo aquele que ama e pratica a mentira” (Apocalipse 22:15), enquanto os salmos prometem vida àquele que guarda a língua do mal e os lábios de falarem dolosamente (Salmos 34:13–14; 1 Pedro 3:10). Na lógica prática da sabedoria, isso significa que não há mentiras “inofensivas”: cada distorção da verdade nos afasta um passo do Deus que é luz e em quem não há trevas nenhumas (1 João 1:5–6), ao passo que cada escolha de ʾĕmûnāh (“fidelidade”) — cumprir a palavra dada, honrar promessas, recusar manipular fatos — torna nossa vida um espaço em que Deus encontra prazer. Assim, o provérbio chama o leitor a transformar a boca em altar de sinceridade: que os “lábios”, antes instrumentos do šāqer (“engano”), se tornem expressão concreta de um coração firmado na verdade de Deus, e que não apenas falemos o que é verdadeiro, mas vivamos de modo confiável, como “fazedores de fidelidade” diante do Senhor.
Provérbios 12:23
O prudente esconde o conhecimento, mas o coração dos insensatos proclama a insensatez (Hb.: ʾādām ʿārûm kōsê daʿat wəlēv kəsîlîm yiqrāʾ ʾiwwelet — “homem prudente esconde conhecimento, mas o coração dos tolos proclama insensatez”). O versículo se abre com ʾādām (“homem”), substantivo masculino singular absoluto, funcionando como sujeito genérico, um “qualquer homem” que encarna um tipo moral. Esse homem é qualificado por ʿārûm (“prudente”, “sensato”, mas também “astuto”) adjetivo masculino singular, passivo de ʿāram (“ser astuto”), que em contexto sapiencial assume nuance positiva: alguém perspicaz, capaz de discernir o tempo e o modo de falar, em contraste com o ingênuo ou tolo. Essa prudência se manifesta no particípio kōsê (“que esconde”, “que encobre”), Qal particípio masculino singular de kāsâ (“cobrir”, “ocultar”), usado aqui como verbo de ação habitual: o ato de esconder não é um momento isolado, mas a postura constante desse sujeito, que não despeja o que sabe de modo irrefletido. O objeto dessa ação é daʿat (“conhecimento”), substantivo feminino singular absoluto, derivado de yādaʿ (“conhecer”), termo que, na literatura sapiente, abrange conhecimento prático, discernimento e até conhecimento de Deus; léxicos notam que daʿat é muitas vezes colocado, em Provérbios, em oposição direta à ʾiwwelet (“insensatez”). A primeira metade do versículo é uma oração verbal em que o sujeito composto (ʾādām ʿārûm — “homem prudente”) governa o particípio kōsê como predicado, com daʿat como objeto direto: “o homem prudente esconde conhecimento”. O valor gnômico do particípio reforça o caráter proverbial: o texto não descreve um ato isolado, mas um padrão de vida, um traço de caráter consolidado.
A segunda metade introduz o contraste com wəlēv kəsîlîm (“mas o coração dos tolos”), em que lēv (“coração”) é substantivo masculino singular absoluto, núcleo do sintagma, e kəsîlîm (“tolos”) é substantivo masculino plural em construto, qualificando o coração como pertencente à classe dos moralmente obtusos; o conectivo wə (“e/mas”) aqui assume claro valor adversativo, contrapondo o interior reservado do prudente à interioridade ruidosa do insensato. O verbo yiqrāʾ (“proclama”, “clama”), Qal imperfeito 3ª masc. sing. de qārāʾ (“chamar”, “clamar”, “proclamar”), concorda com o sujeito singular lēv e, em chave proverbial, expressa um presente habitual: o coração dos tolos não consegue deixar de fazer eco daquilo de que está cheio, clamando aquilo que deveria ser escondido. O complemento ʾiwwelet (“insensatez”, “estupidez moral”), substantivo feminino singular absoluto, funciona como objeto direto do verbo, o conteúdo proclamado. A etimologia de ʾiwwelet a vincula a um campo semântico de distorção, perversão do juízo, frequentemente em paralelo com kəsîl (“tolo”) na literatura sapiente. A estrutura sintática reforça o contraste: enquanto a primeira cláusula enfatiza o sujeito “homem prudente” e o objeto “conhecimento” que ele guarda, a segunda desloca o foco para o “coração dos tolos”, revelando que o problema não é apenas o que se diz, mas o que habita as profundezas da pessoa; a boca é apenas o alto-falante do coração, como confirma a própria sabedoria de Jesus: “a boca fala do que está cheio o coração” (Mateus 12:34).
Do ponto de vista teológico, o provérbio contrapõe dois modos de administrar o capital mais delicado que possuímos: o daʿat (“conhecimento”). O prudente não é alguém que se cala por covardia, mas alguém que sabe que conhecimento sem tempo, sem contexto e sem amor pode ferir mais do que curar; por isso, ele o esconde, isto é, o guarda, o administra, o libera na medida certa, à pessoa certa, no momento certo (compare Provérbios 10:14, onde “os sábios entesouram o conhecimento”). Já o coração dos tolos não tem filtros: tudo o que pensa, sente ou deseja escapa em palavras; eles “proclamam a insensatez”, exibem sua própria ruína intelectual e moral como se fosse algum troféu. A lógica prática do texto convida o leitor a uma disciplina de silêncio e humildade: o sábio não precisa provar que sabe; ele permite que a verdade fale na hora exata, e muitas vezes o seu silêncio é mais eloquente do que o discurso inflado do tolo. Em chave cristã, isso ressoa com o modo como Jesus administra a revelação de si mesmo — calando-se perante Herodes (Lucas 23:9), respondendo com sobriedade a Pilatos (João 18:33–37) e mantendo, em muitos momentos, uma “economia” da palavra que preserva o mistério e protege o fraco. O discípulo é chamado a esse mesmo pudor da verdade: não transformar o conhecimento em espetáculo, mas em serviço.
Provérbios 12:24
A mão do diligente governa, mas a preguiça se torna tributária (Hb.: yad ḥārûṣîm timšōl ûrəmiyyāh tihyeh lāmas — “a mão dos diligentes governará, mas a negligência será para trabalho forçado/tributo”). Aqui, yad (“mão”) é substantivo feminino singular absoluto, sujeito da primeira cláusula, representando metonimicamente a capacidade de agir, o trabalho, a força operativa da pessoa. Essa mão é qualificada por ḥārûṣîm (“diligentes”, “resolutos”), forma masculina plural em construto de ḥārûṣ, termo cuja família semântica, segundo os léxicos, abrange “afiado, incisivo, diligente, decidido”, evocando tanto o gume de um instrumento de debulha quanto a tenacidade de uma decisão firme. O verbo timšōl (“governará”, “dominará”), Qal imperfeito 3ª fem. sing. de māšal (“governar”, “dominar”), concorda com yad (feminino) como sujeito; o aspecto imperfeito, em contexto proverbial, exprime valor gnômico: “é da natureza da mão diligente governar”, descrever uma consequência típica e não apenas um futuro pontual. A cláusula, assim, desenha uma relação direta entre diligência e autoridade: quem trabalha com constância, foco e resolução tende, com o tempo, a ocupar posições de liderança, influência ou, ao menos, de liberdade relativa, em que não vive acorrentado pelos ditames de outros.
A segunda metade introduz, com ûrəmiyyāh (“mas a negligência/preguiça/deceito”), o polo oposto. Rəmiyyāh é substantivo feminino singular, que os léxicos descrevem como “deceito, traição” e também, por extensão, “preguiça, remissão”, de um verbo que significa “enganar, ser remisso”; em Provérbios, o termo aparece tanto para a língua enganosa quanto para a mão relaxada, indicando que preguiça e falsidade têm a mesma raiz moral de desleixo e deslealdade. O verbo tihyeh (“será”), Qal imperfeito 3ª fem. sing. de hāyâ (“ser, tornar-se”), tem como complemento o sintagma preposicional lāmas (“para [o] mas”), em que mas é substantivo masculino que designa “trabalho forçado, corvéia, tributo em forma de serviço”, termo técnico para a condição de povos subjugados ou camponeses submetidos a trabalhos de Estado sob jugo. A frase significa, portanto, que a preguiça “se tornará para trabalho forçado”, ou, em linguagem mais corrente, “acabará sob jugo”, escravizada às demandas alheias. Sintaticamente, é uma oração verbal com sujeito (rəmiyyāh), verbo de existência (tihyeh) e predicativo introduzido por lā-; semanticamente, interpreta a preguiça como uma escolha que desemboca em servidão: ao evitar o esforço disciplinado no presente, a pessoa se condena a esforços ainda mais pesados, impostos de fora, no futuro.
Do ângulo etimológico-teológico, o contraste é agudo. Ḥārûṣîm (“diligentes”) carrega a ideia de algo “incisivo”, “cortante”, que abre caminho, descrevendo o trabalhador cuja energia “corta” obstáculos e cria espaço de liberdade; não por acaso, o mesmo vocábulo ocorre em Provérbios 10:4, onde “a mão dos diligentes enriquece”. Já mas carrega, nos textos históricos, a sombra de Israelitas e povos conquistados transformados em “corvéia” pelos reis (como sob Salomão), símbolo de uma existência dobrada, sem autodeterminação. O provérbio, portanto, não promete que todo diligente será “chefe de Estado”, mas afirma uma direção: diligência tende à liberdade relativa (governar o próprio tempo, a própria casa, a própria vocação), enquanto negligência tende à perda dessa liberdade, seja econômica, seja moral, seja espiritual. Em termos práticos, quem cultiva disciplina, regularidade e responsabilidade, ainda que em tarefas aparentemente pequenas, vai silenciosamente construindo um capital de confiança e competência que o habilita a “governar”; quem se entrega à rəmiyyāh (“preguiça”, “desleixo”) abre mão dessa construção e, quando percebe, está servindo a agendas alheias, preso a dívidas, dependente de sistemas e pessoas que não necessariamente partilham do bem.
Lido à luz do restante da Escritura, este versículo ecoa o mandato criacional do trabalho, dado ainda no Éden (Gênesis 2:15), e dialoga com a advertência apostólica: “se alguém não quer trabalhar, também não coma” (2 Tessalonicenses 3:10–12). O trabalho diligente, aqui, não é idolatria da produtividade, mas resposta fiel ao Deus que chamou o ser humano a cultivar e guardar, a administrar a criação em parceria com Ele. Já a preguiça não é apenas fraqueza de temperamento; é, em última instância, recusa de participar do mandato divino, e por isso acaba abrindo a porta para outras formas de escravidão. O provérbio desenha, assim, uma paisagem moral em que cada escolha cotidiana — esconder humildemente o conhecimento ou ostentá-lo; trabalhar com afinco ou abandonar-se ao desleixo — vai talhando, como o cinzel na pedra, o destino do coração.
Provérbios 12:25
A tristeza abate o coração do homem, mas uma boa palavra o alegra. (Hb.: dəʾāgāh bə-lēḇ ʾîš yašḥennāh wə-dāḇār ṭôḇ yəśamməḥennāh — “ansiedade no coração de um homem a faz curvar-se, mas uma palavra boa a faz alegrar-se”). A linha de sentido começa pela palavra dəʾāgāh (“ansiedade”, “preocupação angustiada”), substantivo feminino singular que, segundo a nota da NET, une o campo semântico de medo e preocupação, formando a ideia de um “temor ansioso” que corrói por dentro, ecoando usos em Jeremias 49:23 e Ezequiel 4:16, onde a raiz descreve um estado de aflição contínua que tira o fôlego da alma. Essa ansiedade não paira no ar; ela é localizada em bə-lēḇ (“no coração”), sintagma formado pela preposição bə (“em”, “dentro de”) e o substantivo masculino singular lēḇ (“coração”), centro decisivo da pessoa, lugar onde a Bíblia localiza pensamento, vontade e afetos (Provérbios 4:23; 23:7). O coração, por sua vez, pertence a ʾîš (“homem”, “pessoa”), substantivo masculino singular que aqui funciona quase como pronome indefinido: qualquer ser humano, sem distinção, é potencial portador dessa ansiedade pesada. Sobre esse cenário interior recai o verbo yašḥennāh (“a faz curvar-se”, “a abate”), forma Hifil imperfeita 3ª masc. sing. com sufixo pronominal de 3ª fem. sing., da raiz šāḥaḥ (“abaixar”, “dobrar-se”, “curvar”), usada em outros contextos para descrever corpos abatidos, espíritos esmagados, gente “dobrada” pelo peso do sofrimento (cf. Salmos 35:14; 38:7). A forma causativa Hifil indica que a ansiedade atua como agente: ela “faz curvar”, “faz abaixar” alguma coisa feminina — provavelmente a própria dəʾāgāh (“ansiedade”), também feminina, ou a vida interior entendida de modo implícito. No anticlímax da segunda metade do versículo surgem dāḇār (“palavra”, “mensagem”) e ṭôḇ (“bom”, “benéfico”), compondo dāḇār ṭôḇ (“palavra boa”, “palavra benigna”), em contraste frontal com a ansiedade. Dāḇār nasce de uma raiz que também significa “falar” e pode designar tanto um simples vocábulo quanto um pronunciamento carregado de autoridade; ṭôḇ, por sua vez, percorre todo o Antigo Testamento desde Gênesis 1 como aquilo que está em conformidade com o querer de Deus, o que produz vida, ordem, frutificação. No fim da linha vem yəśamməḥennāh (“a alegra”, “a faz regozijar-se”), Piel imperfeito 3ª masc. sing. com sufixo de 3ª fem. sing., derivado de śāmaḥ (“alegrar-se”, “regozijar-se”), aqui numa forma intensiva que aponta para uma alegria não superficial, mas produzida, instilada e quase “acendida” por essa boa palavra, invertendo o efeito depressivo de yašḥennāh.
Do ponto de vista morfológico, dəʾāgāh é classificada como substantivo feminino singular absoluto, atuando como sujeito da primeira cláusula. Bə-lēḇ combina a preposição inseparável bə com o substantivo masculino singular absoluto lēḇ, formando um complemento locativo interno (“no coração”). ʾîš é substantivo masculino singular absoluto que especifica o possuidor desse coração (“coração de um homem”), funcionando como regente da pequena cadeia de genitivo sem marca explícita. O verbo yašḥennāh é Hifil imperfeito 3ª masc. sing. com sufixo de 3ª fem. sing., que alguns esquemas de morfologia descrevem como V-Hifil-Imperf-3ms | 3fs, indicando um sujeito masculino singular (“ele”, isto é, “temor/ansiedade no coração do homem”) que causa um efeito numa entidade feminina (“a”, referindo-se à sua vida interior ou à própria ansiedade personificada). Na segunda cláusula, wə-dāḇār traz a conjunção wə (“e/mas”) seguida do substantivo masculino singular dāḇār, que aqui é retomado por ṭôḇ, adjetivo masculino singular concordando em gênero e número, compondo a expressão “palavra boa”. O verbo yəśamməḥennāh é Piel imperfeito 3ª masc. sing. com sufixo de 3ª fem. sing. (V-Piel-Imperf-3ms | 3fs), paralelamente estruturado a yašḥennāh: há um sujeito masculino singular (“ele”, isto é, “a palavra boa”) que provoca um efeito intensivo de alegria sobre o mesmo referente feminino que a ansiedade deprimia. Assim, todos os verbos são formas finitas de aspecto imperfeito, com valor gnômico: descrevem padrões recorrentes da experiência humana. Não há particípios ou infinitivos destacados neste verso; a tonalidade proverbial está toda concentrada na oposição entre dois verbos causativos (Hifil e Piel) aplicados à mesma realidade interior.
A primeira hemistíquia constitui uma oração verbal em que o sujeito é o grupo nominal dəʾāgāh bə-lēḇ ʾîš (“ansiedade no coração do homem”). Dəʾāgāh é o núcleo do sujeito; bə-lēḇ é complemento locativo atribuído a esse núcleo, e ʾîš funciona como genitivo de posse desse coração, formando a estrutura “[ansiedade] [no coração] [de um homem]”. O predicado é o verbo yašḥennāh, que, com o sufixo pronominal feminino, forma uma construção transitiva de objeto indireto implícito, descrita por muitos interlineares como “faz com que se curve / faz com que ele se incline”. A segunda hemistíquia é outra oração verbal, ligada por wə com valor adversativo (“mas”), em que dāḇār ṭôḇ (“boa palavra”) é o sujeito e yəśamməḥennāh é o predicado verbal, novamente com objeto pronominal feminino. No pano de fundo, há um paralelismo antitético: “ansiedade no coração do homem → abate-a” / “palavra boa → alegra-a”. A sintaxe reforça a ideia de que o mesmo “interior” que pode ser esmagado pela preocupação é também o alvo que pode ser restaurado pela palavra benigna. Não há elipse de cópula, porque ambas as cláusulas são verbais e estruturadas de modo completo; o que temos é um paralelismo verbal simétrico, com mudança apenas do campo semântico dos verbos e dos sujeitos.
Na comparação de versões, vê-se como as traduções tentam captar esse jogo de peso e alívio. Em inglês, a Young’s Literal Translation verte: “Sorrow in the heart of a man boweth down, And a good word maketh him glad” (“A tristeza abate o coração do homem, mas uma boa palavra o alegra”), mantendo o paralelismo de “abater” e “deixar feliz”, e preservando a literalidade de “boa palavra”. A King James Version segue a mesma linha: “A tristeza no coração do homem o abate, mas uma boa palavra o alegra.”, com o pronome neutro “it” (no original inglês) remetendo ao coração. Em português, a Almeida Revista e Atualizada traduz: “A ansiedade no coração do homem o abate, mas a boa palavra o alegra”, enquanto a Almeida Corrigida Fiel diz: “A ansiedade no coração deixa o homem abatido, mas uma boa palavra o alegra”. Ambas escolhem “ansiedade” para dəʾāgāh e “boa palavra” para dāḇār ṭôḇ, o que é bastante fiel. A NVI formula: “O coração ansioso deprime o homem, mas uma palavra bondosa o anima”, deslocando o foco para o “coração ansioso” como sujeito e explicando ṭôḇ com “bondosa”, explicitando o tom afetivo da palavra. A NVT oferece: “A preocupação deprime a pessoa, mas uma palavra de incentivo a anima”, interpretando ṭôḇ como “de incentivo”, isto é, uma palavra que carrega encorajamento e direção. Em todas, permanece o eixo: preocupação que deprime / palavra benigna que levanta. As versões mais literais (KJV, YLT, ARA, ACF) ajudam a ver o esqueleto hebraico — “peso” que faz dobrar, “palavra” que faz alegrar — enquanto NVI e NVT aproximam o texto da experiência psicológica contemporânea, trazendo termos como “oprime”, “deprime”, “bondosa”, “incentivo”.
Na exegese e na leitura teológica, o provérbio desenha uma pequena cena interior: o coração como um chão onde algo pesado pousa e, aos poucos, o vai dobrando. Dəʾāgāh (“ansiedade”) não é apenas uma emoção passageira, mas um estado de alma que se arraiga no coração e o puxa para baixo — a imagem se aproxima de outros textos que falam de “tristeza do coração” que quebra o espírito (Provérbios 15:13) e que escurece o rosto. A ansiedade é vista como força espiritual concreta: ela “faz curvar”, ela exerce uma gravidade invisível que tira o ânimo, afunda a pessoa em si mesma, distorce sua percepção da realidade. O contraponto não é um otimismo genérico, mas dāḇār ṭôḇ (“palavra boa”), isto é, uma palavra que participa do bem de Deus — palavra verdadeira, adequada, oportuna, cheia de graça e de fidelidade. Em toda a Escritura, Deus responde à ansiedade não apenas mudando circunstâncias, mas falando: o “não andeis ansiosos de coisa alguma” de Filipenses 4:6 vem acompanhado da promessa de que a paz de Deus guardará coração e mente, e essa paz chega justamente por meio da confiança na palavra que Ele dirige ao seu povo. Aqui, em Provérbios, a dinâmica é a mesma, mas aplicada também à esfera humana: uma palavra boa, vinda de Deus ou de um irmão sensato, age como remédio. Ela nomeia o medo, reorganiza a perspectiva, lembra quem Deus é, aponta caminhos concretos. Onde a ansiedade curva, a palavra boa endireita a coluna da alma.
Na prática, o versículo mostra que ninguém é neutro diante da angústia alheia. Quando alguém está sob dəʾāgāh (“ansiedade”), uma palavra descuidada pode aprofundar o peso, mas uma dāḇār ṭôḇ (“palavra boa”) pode ser instrumento para que Deus acenda de novo a alegria, como em Provérbios 15:23, onde se diz que “a palavra dita ao seu tempo, quão boa é”. A lógica do texto é profundamente relacional: Deus governa o coração humano também através da fala — seja pela Escritura, seja pela exortação mútua dos santos, seja pela consolação simples e fiel que um crente oferece a outro. Para o leitor de hoje, o provérbio funciona como um espelho e um chamado: de um lado, reconhece que a ansiedade realmente pesa, não é fantasia, e pode abatê-lo a ponto de o coração “curvar-se”; de outro, convoca a buscar e a oferecer palavras boas, enraizadas na verdade de Deus, que tenham o poder de alegrar de novo aquilo que se vergou. Quem se deixa formar por esse provérbio aprende duas coisas ao mesmo tempo: a não romantizar a ansiedade e a não subestimar o poder de uma palavra certa, no momento certo, para levantar um coração caído diante de Deus.
Provérbios 12:26
O justo examina o seu companheiro, mas o caminho dos ímpios os leva a errar. (Hb.: yāṯēr mēreʿēhû ṣaddîq wədereḵ rəšāʿîm taṯʿēm — aproximadamente “um justo examina o seu companheiro, mas o caminho dos ímpios os faz desviar”). O hebraico deste versículo é notoriamente difícil, como observam os guias de tradução, ao ponto de a própria TIPs admitir que “nenhuma solução produz um paralelismo totalmente satisfatório”, mas o texto massorético lido de forma conservadora permite a linha interpretativa adotada por muitas versões modernas: um justo que “escolhe cuidadosamente / examina” relações, em contraste com um caminho de ímpios que arrasta para o erro. A abertura com yāṯēr é analisada em OpenBible como verbo Hifil imperfeito jussivo 3ª masc. sing. da raiz yātar (“ser excedente”, “ser superior”, “preferir, escolher”), com valor causativo: “ele trata de forma diferenciada”, “ele escolhe com cuidado”. Nesse caso, o sujeito da forma verbal é ṣaddîq (“justo”), adjetivo masculino singular usado substantivamente, que aparece no final da meia-linha, mas é, em termos sintáticos, o agente do verbo: “o justo yāṯēr em relação ao seu companheiro”. Alternativamente, alguns intérpretes (e versões como KJV/Web) entendem yāṯēr como predicativo adjetival, “é superior a” (“o justo é mais excelente do que o seu próximo”), leitura que se fundamenta no mesmo campo semântico de “exceder, ser mais”. Ainda que a nuance varie — “examina”, “é guia”, “é mais excelente” — o ponto convergente é que há uma assimetria moral entre o justo e o seu entorno, e que essa assimetria se manifesta na forma como ele se posiciona em relação ao “companheiro”.
O sintagma mēreʿēhû (“do seu companheiro”) é composto de min (“de”, “a partir de”), reduzido a mē- diante da consoante, e de rēaʿ (“amigo, próximo, companheiro”), substantivo masculino singular, acrescido do sufixo de 3ª masc. sing. -hû (“dele”): “de seu amigo / companheiro”. Funcionalmente, é o complemento do verbo yāṯēr (“examina / escolhe”), ou, na leitura adjetival, o termo de comparação: o justo “é superior a seu companheiro” ou “serva de guia a seu companheiro”, como trazem várias traduções (ASV, DBY, ESV, AMP). Sintaticamente, a meia-linha pode ser descrita assim: verbo Hifil imperfeito 3ª masc. sing. yāṯēr (“examina / escolhe cuidadosamente”), complemento preposicional mēreʿēhû (“em relação ao seu companheiro”), sujeito ṣaddîq (“o justo”), colocado ao fim por ênfase. Etimologicamente, a raiz yātar (“exceder”, “sobrar”, “preferir”) é usada em contextos de primogenitura, escolha e superioridade; lida como forma verbal aqui, ela sugere o justo como alguém que pesa, avalia, não se deixa arrastar por qualquer vínculo, mas examina com cuidado a qualidade moral de suas relações.
Na segunda meia-linha, temos wədereḵ rəšāʿîm taṯʿēm — “mas o caminho dos ímpios os leva a errar”. Wə- (“e/mas”) novamente tem função adversativa, contrapondo a lucidez relacional do justo à deriva dos ímpios. Dereḵ (“caminho”), substantivo de gênero comum no singular, designa aqui não apenas uma estrada física, mas a “maneira de viver”, o estilo de vida, o padrão de conduta; rəšāʿîm (“ímpios”), adjetivo/particípio masculino plural de rāšāʿ (“ser culpado, ímpio”), funciona como genitivo: “caminho dos ímpios”, isto é, a rota existencial que nasce de um coração culpado. O verbo taṯʿēm (“os faz errar”, “os desvia”) é Hifil imperfeito 3ª fem. sing. com sufixo de 3ª masc. pl. da raiz tāʿâ (“errar o caminho”, “desviar-se”), com o sujeito “caminho” (dereḵ, tratado como feminino) e o objeto pronominal “eles” (-ēm), referindo-se, mais naturalmente, aos próprios ímpios, embora alguns vejam aqui um alcance mais amplo (“leva outros a errar”). Morfologicamente, a frase se organiza assim: sujeito dereḵ rəšāʿîm (“caminho dos ímpios”), verbo Hifil imperfeito taṯʿēm (“faz errar, desvia”), objeto sufixado 3ª masc. pl. (“a eles”). O aspecto imperfeito gnômico indica um padrão: o caminho dos ímpios, por sua própria natureza, tende continuamente a fazer errar, a desorientar — primeiro quem o trilha, depois quem se deixa guiar por ele.
As leituras judaicas clássicas também percebem a tensão do texto. Rashi toma yāṯēr como “mais generoso / renuncia às próprias medidas”, vendo o justo como aquele que, na relação com o próximo, abre mão de seus direitos e “passa por cima” de ofensas, enquanto o caminho dos ímpios, ao contrário, os arrasta para erros constantes. Malbim, por sua vez, sublinha que o justo não confia cegamente em si mesmo, mas se deixa guiar pela relação com o amigo fiel, ao passo que o caminho dos ímpios, por não ter referenciais externos de retidão, termina por desviar os próprios caminhantes. Em chave exegética mais próxima às traduções modernas (NET, CSB, NKJV), o verso ensina que o justo é “cauteloso em sua amizade” — ele examina, prova, discerne o caráter do companheiro — enquanto o modo de vida dos ímpios é, em si mesmo, uma escola de desorientação, levando-os a errar em cadeia.
Provérbios 12:26 leva o tema das relações para um nível de gravidade espiritual: amigos não são apenas companhia; são, de fato, caminhos. O justo se recusa a pisar em qualquer vereda relacional sem antes pesar o que ela implica; ele “examina seu companheiro”, o que significa que mede, à luz de Deus, o tipo de influência que aquela amizade terá sobre sua própria caminhada. Isso ecoa o alerta de Provérbios 13:20 (“quem anda com sábios será sábio, mas o companheiro dos tolos será destruído”) e antecipa o discernimento apostólico de 1 Coríntios 15:33 (“as más conversações corrompem os bons costumes”). Já o “caminho dos ímpios” funciona como uma estrada com declive oculto: quem entra nela acha que está apenas caminhando, mas, na verdade, está sendo levado — taṯʿēm (“os faz errar”) — por uma lógica de vida que, a cada escolha, os desvia um pouco mais do bem. Em termos práticos, o provérbio convida o leitor a duas posturas: cultivar amizades sob o crivo da justiça — não elitismo social, mas discernimento moral — e desconfiar dos caminhos que parecem agradáveis, mas são marcados por rəšāʿîm (“ímpios”), pois eles carregam, embutida, a força de arraste do erro. À luz do evangelho, isso se concretiza no chamado a seguir o Caminho que é o próprio Cristo (João 14:6), deixando que seja Ele, e não a pressão do grupo, o critério para quem deixamos ocupar o lugar de “companheiro de jornada”.
Provérbios 12:27
O preguiçoso não assa a sua caça, mas a riqueza do diligente é preciosa. (Hb.: lō-yaḥărōḵ rəmiyyāh ṣêdô wə-hôn-ʾādām yāqār ḥārûṣ — “não assa o preguiçoso a sua caça, mas a riqueza de um homem [é] preciosa [a] diligência”). O versículo gira em torno de quatro núcleos semânticos fortes. Rəmiyyāh (“preguiça”, “fraude”, “relaxamento”) é substantivo feminino que, segundo os léxicos, combina a ideia de “remissidão” com “engano”, podendo significar tanto “decepção traiçoeira” quanto “desleixo preguiçoso”.(Strong H7423) Em Provérbios, o contexto inclina o termo para o campo da “indolência”, mas a sombra de “fraude” permanece, sugerindo que a preguiça é um autoengano moral. Ṣêd (“caça”, “presa”, “mantimento”) vem de um verbo que significa “caçar” e, por extensão, designa tanto o ato de caça quanto o alimento obtido dela. Hôn (“riqueza”, “bens”, “patrimônio”) é vocábulo típico da sabedoria para designar não apenas dinheiro, mas todo conjunto de recursos sólidos que dão estabilidade à vida. Yāqār (“precioso”, “de alto valor”) deriva de uma raiz que significa “ser pesado, raro, caro”, frequentemente usada para pedras preciosas ou para algo humanamente muito estimado, enquanto ḥārûṣ (“diligência”, “homem diligente”, “decidido”) está ligado à ideia de algo “incisivo, afiado”, e, no campo ético, indica a pessoa que corta a indecisão e se lança à ação disciplinada. Assim, já na etimologia, o quadro fica claro: um tipo humano marcado por autoengano preguiçoso, incapaz de transformar caça em alimento, contraposto a outro cuja diligência se torna um bem raríssimo.
Do ponto de vista morfológico, lō (“não”) é partícula negativa adverbial, usada aqui para negar o verbo que se segue. Yaḥărōḵ (“assará”, “assar”) é forma Qal imperfeito 3ª pessoa masc. singular do verbo provavelmente ligado à ideia de “assar/cozinhar”, com valor gnômico: descreve uma ação típica, não um futuro pontual. O sujeito da oração é rəmiyyāh (“preguiça”, “preguiçoso”), substantivo feminino singular absoluto que funciona aqui como sujeito personificado — “a preguiça”, isto é, “o homem preguiçoso”. Ṣêdô (“sua caça”, “sua presa”) é substantivo masculino singular, de ṣêd (“caça”), em estado absoluto, com sufixo pronominal de 3ª masc. sing. (“dele”), funcionando como objeto direto do verbo “assar”. Na segunda hemístique, wə- (“e/mas”) é conjunção coordenativa que, no paralelismo antitético, assume nuance adversativa (“mas”). Hôn (“riqueza”, “bens”) é substantivo masculino singular absoluto; ʾādām (“homem”, “ser humano”) é substantivo masculino singular em justaposição genitiva, formando hôn-ʾādām (“riqueza de um homem”). Yāqār (“precioso”) é adjetivo masculino singular que concorda com hôn, funcionando como predicativo. Já ḥārûṣ pode ser lido como substantivo/adjetivo masculino singular (“diligente”, “diligência”), servindo ou como aposto que especifica de que riqueza se trata (“riqueza de um homem — [isto é] a diligência”), ou como predicado em uma estrutura um tanto elíptica (“é preciosa [a] diligência”). Em qualquer caso, os elementos principais estão todos em estado absoluto, sem cadeias de construto complexas além de hôn-ʾādām.
A primeira metade do versículo apresenta uma oração verbal simples: lō-yaḥărōḵ rəmiyyāh ṣêdô (“não assa o preguiçoso a sua caça”). A ordem é partícula negativa + verbo imperfeito + sujeito + objeto direto. A função sintática fica assim: rəmiyyāh (“preguiça/preguiçoso”) como sujeito; yaḥărōḵ como núcleo do predicado verbal; ṣêdô (“sua caça”) como objeto direto, especificando aquilo que deveria ser processado. Não há complementos adverbiais explícitos: o foco está na ação não concluída sobre um produto já conquistado. Já a segunda metade forma uma oração nominal, sem verbo expresso, na qual wə-hôn-ʾādām (“mas a riqueza do homem”) é o sujeito, e yāqār ḥārûṣ (“preciosa [é] a diligência” / “preciosa [é] [sua] riqueza diligente”) funciona como predicado composto, com o adjetivo “precioso” qualificando a riqueza e ḥārûṣ especificando o tipo de riqueza — aquela que nasce da diligência. Em termos de funções: sujeito → “riqueza do homem/diligente”; predicativo do sujeito → “preciosa”; elemento apositivo ou predicativo adicional → “diligência/diligente”. A ausência da cópula (“é”) é típica do hebraico em sentenças nominais, mas ela está subentendida na nossa tradução.
Quando se comparam as versões, vê-se como cada tradição tenta resolver as nuances e as dificuldades do hebraico. A Young’s Literal Translation verte: “The slothful roasteth not his hunting, And the wealth of a diligent man is precious” (“O preguiçoso não assa a sua caça, e a riqueza do homem diligente é preciosa”), preservando o verbo “assar” e lendo ḥārûṣ claramente como “diligent man”. A King James Version segue a mesma linha: “The slothful man roasteth not that which he took in hunting: but the substance of a diligent man is precious” (“O homem preguiçoso não assa aquilo que apanhou na caça; mas a substância de um homem diligente é preciosa”). Em português, a Almeida Revista e Atualizada traduz: “O preguiçoso não assará a sua caça, mas o bem precioso do homem é ser ele diligente”, transformando o segundo membro num enunciado mais explícito: a diligência é o verdadeiro “bem precioso”. A Almeida Corrigida Fiel aproxima-se: “O preguiçoso deixa de assar a sua caça, mas ser diligente é o precioso bem do homem.” A NVI em português suaviza: “O preguiçoso não aproveita a sua caça, mas o diligente dá valor a seus bens”, destacando o fato de que a preguiça não transforma potencial em benefício. A NVT torna a imagem ainda mais concreta: “O preguiçoso nem mesmo cozinha o animal que caçou, mas o que trabalha com dedicação valoriza tudo que possui.” Todas, porém, mantêm o contraste entre uma ação interrompida (a caça que não vira alimento) e um modo de vida em que o trabalho diligente se converte em riqueza valorizada.
Sobre essa base lingüística, a leitura exegética se desenha com nitidez. Na primeira linha, o preguiçoso não é alguém que nunca teve oportunidades, mas alguém que chega a caçar e, mesmo assim, “não assa a sua caça”: ele inicia processos, mas não os termina; começa projetos, mas abandona antes da fase em que os frutos se tornam usufruíveis. A etimologia de rəmiyyāh (“preguiça”, mas também “fraude”, “treachery”) sugere que a preguiça é uma infidelidade dupla: para com Deus, que deu meios e oportunidades, e para com o próximo, que poderia ser abençoado por aquilo que nunca foi concluído. Em Provérbios, esse padrão aparece repetidamente: “A mão remissa empobrece, mas a mão dos diligentes enriquece” (Provérbios 10:4), “A mão diligente dominará, mas a remissa será sujeita a trabalhos forçados” (Provérbios 12:24). A preguiça não é neutra: ela cria um ciclo de desperdício, dependência e servidão.
Na segunda linha, a “riqueza do homem” está intimamente ligada a ḥārûṣ (“diligência”, “decisão afiada”). Os léxicos lembram que o termo pode significar tanto “instrumento cortante” quanto, figuradamente, “resolução determinada” — a pessoa que “corta” a hesitação e age. A sabedoria bíblica não glamouriza a riqueza como fetiche, mas afirma que há um tipo de patrimônio cuja preciosidade está menos na quantidade e mais na qualidade moral do processo que o gerou. Em outras palavras, o bem verdadeiramente precioso não é apenas “o que o homem tem”, mas o tipo de homem que ele se torna quando cultiva diligência: alguém capaz de colher aquilo que semeia, de transformar caça em alimento, oportunidade em serviço, talento em fruto. Isso se harmoniza com outros textos: o “homem diligente” é aquele que “permanece firme” (Provérbios 21:5) e que, a longo prazo, “governa” em vez de ser “sujeito a trabalhos forçados” (Provérbios 12:24).
Teologicamente, o provérbio traça uma pequena parábola da graça e da responsabilidade. Deus, em sua providência, permite ao preguiçoso “caçar”: ele recebe oportunidades, dons, portas que se abrem. Mas a falta de diligência faz com que tudo isso se perca na etapa final, como carne crua esquecida sobre a mesa até estragar. Já o diligente, mesmo sem ter começado com tantos recursos, transforma pouco em muito porque valoriza o que recebe e trabalha em parceria com a ordem que Deus colocou no mundo. O Novo Testamento retoma essa lógica quando insiste que “se alguém não quer trabalhar, também não coma” (2 Tessalonicenses 3:10) e que tudo deve ser feito “de coração, como para o Senhor” (Colossenses 3:23). A figura do preguiçoso que não assa a caça é, assim, um espelho da vida desperdiçada: dons não cultivados, oportunidades não amadurecidas, chamadas não levadas até o fim. A figura do diligente, ao contrário, é a do servo que, ainda que tenha recebido poucos talentos, os multiplica e os devolve aumentados (Mateus 25:20–23). Em termos práticos, o versículo ensina que não basta “caçar” boas ideias, bons projetos, bons começos: é necessário o fogo paciente da diligência para que a caça se torne alimento, para que o que Deus nos põe nas mãos se converta em vida compartilhada com outros.
Provérbios 12:28
No caminho da justiça está a vida, e na vereda desse caminho não há morte! (Hb.: bəʾōraḥ ṣĕdāqāh ḥayyîm wĕderek nətîbāh ʾal-māwet — “no caminho de justiça [há] vida, e vereda [é] caminho [que leva] a não-morte”). A linha hebraica começa com bəʾōraḥ (“no caminho”, “na vereda”) formado pela preposição bə (“em”, “dentro de”) unida a ʾōraḥ (“trilha”, “vereda secundária”), termo que em Provérbios costuma evocar o caminho concreto da vida cotidiana, a trilha pisada repetidas vezes pela prática habitual (cf. o uso em Provérbios 2:13–15). A seguir, ṣĕdāqāh (“justiça”, “retidão”) deriva da raiz ṣdq (“ser justo”, “estar em conformidade com a norma”), campo semântico que vai da retidão forense à justiça pactual, ligada ao caráter fiel de Deus e ao comportamento alinhado à sua vontade; não é apenas “correção ética” abstrata, mas uma vida que corresponde ao padrão da aliança (cf. Provérbios 11:19, onde a justiça leva à vida). O termo ḥayyîm (“vida”) vem da raiz ḥyy (“viver”), e em Provérbios assume frequentemente conotação qualitativa: vida plena, sustentada, protegida, muitas vezes em contraste direto com māwet (“morte”), que pode significar tanto o fim físico quanto a ruína existencial e espiritual. Na segunda metade, derek (“caminho”, “estrada”) é vocábulo mais amplo que ʾōraḥ (“vereda”): frequentemente designa a rota principal, a direção de conjunto da existência, o estilo de vida como um todo. Nətîbāh (“vereda”, “senda”, “trilha”) designa um caminho mais estreito, uma trilha traçada dentro de um caminho maior; alguns comentaristas judeus clássicos distinguem derek, ʾōraḥ e nətîbāh como estrada principal, caminho derivado e trilha de poucos, sugerindo que a justiça abre vias diferentes de aproximação da vida de Deus, desde a observância comum até a dedicação excepcional. Já ʾal (“não”) aqui é entendido, em boa parte da tradição exegética, não como preposição “para”, mas como partícula negativa poética, de modo que ʾal-māwet significa “não [há] morte”, e não “para a morte”; isso explica por que traduções antigas e modernas vertem “não há morte” em vez de “até a morte”. Māwet (“morte”), por sua vez, pertence ao campo semântico que, em Provérbios, se opõe não apenas à vida biológica, mas à “vida” no sentido de comunhão com Deus, prosperidade justa e longevidade preservada da ruína (cf. Provérbios 15:24, onde o “caminho de vida” afasta de Sheol).
Do ponto de vista morfológico, bəʾōraḥ (“no caminho”) é formado pela preposição inseparável bə (“em”) seguida do substantivo masculino singular ʾōraḥ (“caminho”, “vereda”), aqui em estado absoluto; o conjunto funciona como um bloco nominal. Ṣĕdāqāh (“justiça”) é substantivo feminino singular absoluto, não em construto, modificando ʾōraḥ em relação de adjunção: “caminho de justiça” por sentido, ainda que não por forma de construto. Ḥayyîm (“vida”) é substantivo masculino plural em forma -îm, frequentemente com valor coletivo (“vida” como categoria), e aqui exerce função de núcleo nominal predicativo. Na segunda cola, wĕderek (“e [um] caminho”) combina a conjunção wĕ (“e”) com o substantivo masculino singular derek (“caminho”), em estado absoluto, introduzindo um paralelo sinonímico à primeira expressão; nətîbāh (“vereda”) é substantivo feminino singular absoluto, posto imediatamente após derek em uma justaposição que muitos entendem como hendiadys (“caminho-vereda”, “caminho que é vereda”). A sequência ʾal-māwet (“não [há] morte”) reúne a partícula ʾal (“não”) com o substantivo masculino singular māwet (“morte”), funcionando, em conjunto, como expressão negativa absoluta, sem verbo expresso.
Sintaticamente, o versículo é composto de duas cláusulas nominais paralelas, sem verbo finito expresso, com a cópula “é/está” elidida, como é típico do hebraico bíblico. Na primeira, bəʾōraḥ ṣĕdāqāh (“no caminho de justiça”) pode ser lido como sujeito em posição inicial, com ḥayyîm (“vida”) como predicativo: “[no] caminho da justiça [estão] vida(s)”; alternativamente, pode-se entender ḥayyîm como sujeito e o sintagma preposicional como predicativo locativo (“vida [está] no caminho da justiça”). Em ambos os casos, a construção descreve uma relação estável entre a esfera da justiça e a presença da vida. Na segunda cláusula, wĕderek nətîbāh (“e [o] caminho [é] vereda”) funciona como sujeito composto, retomando e aprofundando a imagem de rota, enquanto ʾal-māwet desempenha função de predicativo negativo: “não [é] morte”, isto é, não conduz à morte, não se define por um horizonte de morte. O paralelismo é essencialmente sinonímico-progressivo: “caminho de justiça” ↔ “caminho-vereda”, “vida” ↔ “não morte”, mas com leve intensificação, pois a segunda metade não apenas afirma que há vida, como exclui explicitamente a morte como horizonte. Em termos de funções sintáticas, os blocos principais comportam-se assim: na primeira cola, sintagma preposicional bəʾōraḥ ṣĕdāqāh (“no caminho de justiça”) em função de sujeito ou quadro locativo principal, e ḥayyîm como núcleo predicativo; na segunda, derek nətîbāh como sujeito composto e ʾal-māwet como predicativo nominal negativo.
Quando se compara as versões, a Young’s Literal Translation verte: “In the path of righteousness [is] life, And in the way of [that] path [is] no death!” (“No caminho da justiça [há] vida, e no caminho dessa vereda não há morte!”), preservando a leitura de ʾal-māwet como negação absoluta e explicitando com “[that] path” a referência anafórica à primeira metade. A King James Version segue de perto: “In the way of righteousness is life; and in the pathway thereof there is no death.” (“No caminho da justiça há vida; e na sua vereda não há morte.”), entendendo derek nətîbāh como “pathway thereof”, isto é, a trilha própria do caminho justo. Em português, a Almeida Revista e Atualizada mantém esse paralelismo: “Na vereda da justiça, está a vida, e no caminho da sua carreira não há morte.” A Almeida Corrigida Fiel reproduz quase literalmente: “Na vereda da justiça está a vida, e no caminho da sua carreira não há morte.” A Nova Versão Internacional simplifica levemente a imagem, mas conserva a relação: “No caminho da justiça está a vida; essa é a vereda que nos preserva da morte.” A Nova Versão Transformadora ajusta a sintaxe para o português contemporâneo, mas a lógica é a mesma: “O caminho dos justos conduz à vida; é uma estrada que não leva à morte.” O consenso tradutório reforça, portanto, duas intuições da sintaxe hebraica: (1) o “caminho de justiça” é o locus da vida; (2) a senda própria desse caminho não conduz à morte, mas preserva dela.
Provérbios 12:28 insere-se no grande eixo de Provérbios que associa diretamente justiça e vida: “A justiça conduz à vida, mas quem persegue o mal caminha para a própria morte” (Provérbios 11:19), e “o caminho da vida conduz para cima ao prudente, para que se desvie do inferno embaixo” (Provérbios 15:24). Aqui, “caminho de justiça” não é apenas um conjunto de atos isolados, mas a trilha reiterada de uma vida alinhada ao caráter de Deus: quem pisa repetidamente essa vereda vai se moldando a ela, como quem abre uma picada na mata que, a cada passo, se torna mais clara. A promessa de “vida” e de “não-morte” não é um slogan de prosperidade fácil, mas a afirmação de que a justiça é o único eixo que, a longo prazo, não conduz à ruína: pode haver sofrimento, perdas e perseguições, mas o fim último desse caminho não é o colapso, e sim a comunhão plena com Deus, que é fonte de vida. No horizonte do Novo Testamento, essa intuição converge em Cristo, quando Ele diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14:6): o “caminho de justiça” encontra nele sua personificação e seu cumprimento, de modo que seguir esse caminho é, em última instância, seguir a própria pessoa do Filho.
Na lógica prática do versículo, o contraste não é apenas entre dois destinos, mas entre duas atmosferas de existência: há modos de viver que são, por dentro, uma antecipação de morte — relações corroídas, consciências fragmentadas, estruturas injustas que ruem —, e há um modo de viver em que a justiça, ainda que pareça custosa em certos momentos, vai abrindo espaço para uma qualidade de vida que não pode ser destruída nem mesmo pela morte física. Quem escolhe o caminho da justiça faz, a cada decisão, uma aliança com a vida; quem se afasta desse caminho, por mais brilhante que pareça sua rota, cava trilhas que desembocam na morte. O provérbio, assim, chama o leitor a enxergar a ética não como peso, mas como estrada iluminada: trilhar bəʾōraḥ ṣĕdāqāh (“no caminho de justiça”) é caminhar onde a própria vida de Deus circula, e entrar em derek nətîbāh (“caminho-vereda”) é entregar-se a uma senda que, por definição, “não leva à morte”.
III. Devocional de Provérbios 12
Provérbios 12 é como um mosaico de cenas do cotidiano: casa, praça, mercado, templo, tribunal. Em cada verso, Deus pega algo que vivemos todos os dias — uma conversa apressada, um desabafo de ira, a rotina de trabalho, a forma como tratamos os animais, a maneira como reagimos à correção — e o coloca diante de nós como um espelho. Lido com calma, o capítulo inteiro se torna um manual de sabedoria encarnada: não apenas o que pensar, mas como viver. É um texto que atravessa todos os nossos papéis: discípulos de Cristo, filhos, pais, líderes, cidadãos, colegas de trabalho.
A. Corações que aceitam correção: a base de todo crescimento
Provérbios 12 começa com um golpe direto no orgulho: “Todo o que ama a disciplina ama o conhecimento, mas aquele que odeia a repreensão é tolo” (Provérbios 12:1, NVI). O texto não fala apenas de quem suporta correção, mas de quem a ama. Isso muda tudo. Amar a disciplina significa reconhecer que não somos prontos, que o nosso caráter é um canteiro de obras e que Deus usa pessoas, situações e até fracassos para nos moldar.
No relacionamento com os pais, isso aparece quando um filho deixa de ouvir a correção como ataque e passa a enxergá-la como cuidado. O adolescente que lê Provérbios 12 com humildade começa a perceber que um “não” responsável pode salvá-lo de escolhas que marcam uma vida inteira. Na direção oposta, pais que amam a disciplina também se deixam corrigir — por Deus, pela Palavra, por irmãos maduros — para não projetarem suas frustrações sobre os filhos, mas educarem com firmeza e ternura.
No contexto profissional, a mesma sabedoria se manifesta quando não fugimos de feedback. O funcionário que agradece uma avaliação sincera, mesmo desconfortável, cresce mais rápido, gera confiança e se torna referência. O líder espiritual que permite que alguém o confronte com mansidão protege o rebanho e a própria alma. Rejeitar repreensão é escolher a estagnação; acolhê-la é abrir porta para o conhecimento.
No fim, a pergunta que Provérbios 12:1 faz a cada um de nós é simples e profunda: você prefere ter sempre razão ou prefere se tornar uma pessoa melhor? A resposta a essa pergunta define o tipo de cristão, de filho, de pai, de líder e de cidadão que seremos.
B. Verdade que sustenta a vida: a língua como alicerce da confiança
Ao longo do capítulo, a forma como falamos é tema constante. “Os lábios da verdade permanecem para sempre, mas a língua mentirosa dura apenas um instante” (Provérbios 12:19, NVI); “Os lábios mentirosos são abomináveis ao Senhor, mas os que falam a verdade lhe trazem prazer” (Provérbios 12:22, NVI). Aqui não se trata de pequenos deslizes, mas da atmosfera moral que envolve nossa fala.
Na família, a verdade é o tecido da confiança. Quando um pai promete e não cumpre, quando um filho mente para esconder o que fez, quando um cônjuge manipula informações para se proteger, a casa se torna um lugar frágil, cheio de rachaduras invisíveis. A sabedoria de Provérbios 12 nos chama a um tipo de honestidade que vai além de “não contar mentiras” e se traduz em transparência, coerência e integridade. A criança aprende cedo: a palavra de um cristão precisa ser “sim, sim; não, não”.
Na vida religiosa, a exigência é ainda mais forte. Quem ensina, aconselha ou lidera espiritualmente lida com corações vulneráveis. Uma meia-verdade em um gabinete pastoral, uma promessa vazia no púlpito, um exagero emocional para manipular decisões, tudo isso se enquadra nessa “língua mentirosa” que Deus abomina. O líder que se deixa guiar por Provérbios 12 decide ser confiável, mesmo que isso lhe custe popularidade.
Na esfera pública, essa mesma fidelidade à verdade nos torna cidadãos diferentes. Não embarcamos facilmente em boatos, não compartilhamos calúnias, não ajudamos a espalhar notícias sem verificar. A sabedoria de Deus nos ensina a falar menos e ouvir mais, a questionar, a checar, a não usar a língua como arma política. Quando a verdade se torna um valor central, nossa presença no mundo passa a ser sinal de estabilidade: pessoas que podem ser levadas a sério.
C. Palavras que ferem e palavras que curam: a arte de construir o outro
Provérbios 12 descreve a boca como um jardim capaz de produzir dois tipos de fruto. De um lado: “Há quem fala como que fere com a espada, mas a língua dos sábios traz cura” (Provérbios 12:18, NVI); do outro, “Do fruto da sua boca o homem se beneficia, e o trabalho das suas mãos será recompensado” (Provérbios 12:14, NVI). A imagem é poderosa: cada frase que sai dos nossos lábios é ou golpe de espada ou toque de médico. Não existe neutralidade.
Dentro de casa, isso aparece nas pequenas coisas. Um pai cansado pode dizer ao filho que trouxe um boletim mediano: “Você nunca acerta nada mesmo”, e essa frase ficará anos ecoando. Ou pode olhar nos olhos, corrigir o que precisa ser corrigido, mas também afirmar: “Você é capaz, vamos juntos melhorar isso”. A diferença entre um futuro ferido e um coração fortalecido pode estar em dez segundos de fala. Esposos e esposas sabem como uma palavra sarcástica pode estragar todo um dia, enquanto um elogio sincero pode reerguer alguém por dentro.
Na igreja, o uso da língua se torna um termômetro de maturidade. Críticos compulsivos, ironias, fofocas disfarçadas de “pedidos de oração”, tudo isso são golpes de espada que rasgam a comunhão. Em contrapartida, quando alguém se aproxima para encorajar, agradecer, reconhecer o esforço do outro, a comunidade sente cheiro de cura. Pastores, professores, ministros de louvor, líderes de pequenos grupos: todos lidam com almas cansadas. A língua sábia se torna como um bálsamo em um corpo cheio de hematomas.
No ambiente profissional, uma palavra pode significar demolição ou construção. Chefe que humilha em público gera medo, não excelência. Colega que vive debochando mina o clima. Por outro lado, quando alguém decide ser porta-voz de reconhecimento, de clareza, de orientação, muda a atmosfera do setor. As “palavras que curam” não são frases doces e vazias; são verdades ditas com respeito, correções feitas com cuidado, elogios concedidos com honestidade.
Provérbios 12 nos convida a filtrar cada fala pela pergunta: o que estou prestes a dizer se parece mais com espada ou com remédio? Ao responder isso diante de Deus, começamos a tratar a comunicação não como desabafo automático, mas como ministério.
D. Trabalho, diligência e responsabilidade: a fé que alcança o chão da rotina
Outro fio forte em Provérbios 12 é o contraste entre o trabalhador dedicado e o negligente. “Quem trabalha a sua terra terá fartura de alimento, mas quem fica fantasiando leva a miséria” (Provérbios 12:11, NVI); “As mãos diligentes governarão, mas o preguiçoso acabará escravo” (Provérbios 12:24, NVI); “O preguiçoso não aproveita a sua caça, mas o diligente dá valor a seus bens” (Provérbios 12:27, NVI).
Aqui vemos que, para Deus, espiritualidade e rotina não são mundos separados. A pessoa que se diz crente, mas é indolente no trabalho, não honra o Senhor; o funcionário que vive enrolando, o líder que delega tudo para fugir de esforço, o estudante que se acostuma a copiar em vez de aprender — todos caminham na direção oposta da sabedoria.
Provérbios 12 retrata a diligência como forma de amor. Pais que se levantam cedo, se organizam, estudam, se reciclam, procuram dar o melhor dentro das possibilidades, não apenas colocam comida na mesa, mas mostram aos filhos como se vive de maneira responsável. Filhos que levam a sério suas obrigações escolares, tarefas domésticas e compromissos, expressam gratidão concreta por tudo que recebem.
Na vida da igreja, a mesma lógica se aplica. Quem lidera louvor, ensina crianças, organiza finanças ou cuida da limpeza do templo precisa dessa “mão diligente” que planeja, revisa, busca excelência, ora e se prepara. Espiritualidade sem esforço se transforma em discurso vazio.
Até na cidadania a diligência aparece: pagar contas em dia, organizar documentos, respeitar horários, votar com consciência, cuidar do espaço público — tudo isso é parte de “trabalhar a própria terra”. A fé cotidiana é feita de mil pequenas decisões nas quais escolhemos responsabilidade em vez de preguiça. A recompensa, diz o texto, não é apenas prosperidade material; é também o respeito conquistado, a liberdade de não viver escravizado a impulsos, dívidas, improvisos.
E. Relações que protegem: família, amizades e cuidado com os vulneráveis
Provérbios 12 se preocupa com o tecido das relações. Em um extremo, “A esposa exemplar é a coroa do seu marido, mas a de comportamento vergonhoso é como câncer em seus ossos” (Provérbios 12:4, NVI); em outro, “O justo cuida bem dos seus animais, mas até as atitudes mais bondosas dos ímpios são cruéis” (Provérbios 12:10, NVI); e ainda: “O justo é cauteloso em suas amizades, mas o caminho dos ímpios os leva a perder-se” (Provérbios 12:26, NVI).
O primeiro verso descreve a força silenciosa de uma vida fiel em casa. Uma esposa “exemplar” não é ideal romântico de revista, mas alguém que, pela atitude, traz honra para o outro. A figura da “coroa” sugere dignidade: a forma como vivemos dentro do lar é visível fora dele. Isso vale para qualquer papel: marido, esposa, filhos, avós. Caráter não é acessório; é a verdadeira beleza da família.
O cuidado com os animais é outra surpresa do capítulo. O texto afirma que o justo se importa com o bem-estar até de criaturas que não podem retribuir. Isso denuncia a violência gratuita, o abuso de poder, o uso de força sem necessidade, não só com animais, mas com qualquer ser vulnerável: crianças, idosos, pessoas à margem. A sabedoria de Deus molda um tipo de humanidade que não se contenta em não ser cruel; ela busca ser gentil.
Quanto às amizades, Provérbios 12:26 alerta que o justo escolhe bem suas companhias. Ele não trata relacionamento como passatempo, mas como meio pelo qual caminhos são formados. Quem ocupa posição de liderança espiritual precisa dessa prudência redobrada, porque sua vida se torna referência. Quem exerce paternidade ou maternidade também discerne: com quem os filhos andam? Quem está influenciando sua visão de Deus, de si mesmos, do mundo?
Como cidadãos, esse cuidado relacional se expressa quando nos engajamos em redes que procuram o bem comum, e não apenas interesses de grupo. O justo caminha com gente que ama a justiça, que defende a vida, que respeita o diferente. Assim, Provérbios 12 nos chama a ser “coroa” e não “câncer” nas relações: pessoas cuja presença adorna, não corrói.
F. Peso no peito e palavra que levanta: esperança em meio à ansiedade
Em um versículo de rara sensibilidade, lemos: “A ansiedade no coração do homem o deprime, mas uma palavra bondosa o anima” (Provérbios 12:25, NVI). A sabedoria bíblica reconhece algo que hoje chamamos por muitos nomes — preocupação crônica, angústia, medo difuso — e afirma: isso pesa, isso “deprime”, isso empurra para baixo. Não há romantização do sofrimento interior.
Filhos carregam ansiedades: pressão na escola, conflitos entre pais, medo de não serem amados. Pais trazem suas próprias preocupações: contas, segurança dos filhos, relacionamentos que se desgastam. Líderes espirituais, muitas vezes, carregam o peso de dezenas de histórias. Funcionários lidam com prazos, metas, ameaças de desemprego. O cidadão se vê diante de crises políticas, econômicas, sociais. Provérbios 12 entra nessa espiral e diz: uma palavra cheia de graça pode ser o ponto de virada no dia de alguém.
Isso nos chama a duas atitudes. Primeiro, a honestidade diante de Deus: não esconder a ansiedade, mas apresentá-la em oração, como o salmista que despeja diante do Senhor o que o coração não sabe organizar. Provérbios 12 não fala explicitamente da oração, mas encaixa perfeitamente com o convite do Novo Testamento: “Lancem sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês” (1 Pedro 5:7). Segundo, a responsabilidade de sermos portadores dessa “palavra bondosa” que anima.
No lar, isso significa perceber quando o silêncio do filho não é mau humor, mas preocupação; quando o cansaço do cônjuge esconde medo; quando um pai ou mãe idosos estão aflitos e não sabem dizer. Uma frase de acolhimento, um “estou aqui com você”, um gesto de escuta real — tudo isso pode funcionar como alívio imediato em um coração comprimido.
Na igreja, a mesma sensibilidade nos leva a olhar além das aparências. A pessoa que canta alto pode estar tentando calar o barulho interno. O irmão que se isola, talvez, esteja lutando com culpas e pensamentos de derrota. Em vez de julgamentos apressados, Provérbios 12 nos encoraja a oferecer palavras que levantem: lembretes da fidelidade de Deus, promessas da Escritura, relatos de como o Senhor já nos sustentou em outras tempestades.
No trabalho e na vida pública, ser alguém que fala com bondade não é romantismo ingênuo, mas ato profético. Em um mundo saturado de críticas ácidas, ironias e discursos de ódio, a voz que encoraja se torna sinal do reino de Deus. A ansiedade coletiva precisa de homens e mulheres que, firmes na Palavra, lembram que a história não está solta, que existe um Senhor da justiça e da vida.
Provérbios 12, lido em conjunto, pinta o retrato de um discípulo integral: alguém que ama correção, fala a verdade, usa as palavras para curar, trabalha com responsabilidade, cuida das relações e oferece consolo em meio à ansiedade. Esse tipo de pessoa será, ao mesmo tempo, um seguidor mais parecido com Cristo, um filho que honra, um pai ou mãe que protege, um líder que inspira, um cidadão que contribui, um profissional que honra o nome de Deus em tudo o que faz. Não se trata de uma lista de metas frias, mas de um caminho: à medida que caminhamos com o Senhor da sabedoria, o capítulo 12 deixa de ser apenas texto e passa a ser biografia em construção.
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GALVÃO, Eduardo. Provérbios 12: Significado, Explicação e Devocional. In: Comentário Bíblico Online (S. l.), abr. 2013. Disponível em: [Cole aqui o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano, também sem colchetes. Ex.: 22 ago. 2025].
