Estudo sobre Hebreus 9
Índice: Hebreus 1 Hebreus 2 Hebreus 3 Hebreus 4 Hebreus 5 Hebreus 6 Hebreus 7 Hebreus 8 Hebreus 9 Hebreus 10 Hebreus 11 Hebreus 12 Hebreus 13
3) O ministério
sacerdotal das duas alianças é contrastado (9.1-28)
O autor continua o seu
contraste entre a antiga e a nova alianças por meio de uma descrição, não
do templo de Jerusalém e de seu serviço ritual (que teria sido
especialmente apropriada se os leitores fossem “hebreus”), mas do tabernáculo
no deserto (cf. Ex 25—31; 35—40), que havia sido o ponto focal da
adoração para o antigo povo de Deus que peregrinou pelo deserto.
Ele se refere ao
tabernáculo como a um tabernáculo terreno (v. 1), que para ele
significava que pertencia ao mundo imperfeito das sombras (em contraste
com o lugar em que Cristo serve; 8.1-5). Assim, para começar, o autor
novamente chama atenção para a diferença radical e essencial entre as duas
alianças. A referência aos utensílios no tabernáculo é, como o próprio
autor sugere, de importância secundária na sua presente discussão,
por isso diz: A respeito dessas coisas não cabe agora falar
detalhadamente (v. 5). E suficiente dizer que o que parece um erro com
referência ao lugar do altar de ouro de incenso (provavelmente não “incensário”,
como na ARC), isto é, atrás do segundo véu e no Lugar Santíssimo (v.
3,4 diferentemente de Ex 40.26), pode não ser um erro de forma alguma.
Precisamos observar que o autor diz que há uma tenda chamada Santo dos
Santos, onde se encontravam o altar de ouro para o incenso (v. 3, 4). A referência à presença dos utensílios é
diferente nos v. 2,4. A ideia no v. 4 não é ”em que está o altar de ouro”,
como afirmou o autor ao descrever a posição dos
utensílios mencionados antes no v. 2. A própria formulação da frase (na
ARC, isso fica mais claro, pois no lugar de “em que havia...” no v.
2 está “que tinha...” no v. 4) “aponta para algo diferente de mera
posição”. Provavelmente, tinha a intenção de dar a entender que o
altar propriamente pertencia ao Santo dos Santos. ”A arca e o altar
do incenso tipificavam as duas concepções mais profundas do santuário
celestial, a manifestação de Deus e a adoração espiritual oferecida pelo homem.
E assim são colocadas em conexões significativas no Pentateuco: Ex 30.6;
40.5; cf. Lv 4.7; 16.12,18 (diante do Senhor)” (Westcott, Comm.,
p. 247; cf. tb. lRs 6.22). Deveríamos perceber também que, embora as
tábuas da aliança tivessem sido colocadas de fato dentro da arca (Ex
25.16,21), não há declaração explícita no AT de que o vaso de maná e
a vara de Arão foram também colocados no seu interior. Afirma-se,
antes, que eles foram colocados “em frente das tábuas da arca da aliança” (Êx
16.34; Nm 17.10). Talvez o autor esteja seguindo aqui uma tradição que
colocou tudo dentro da arca para mostrar que interpostos entre esses símbolos
da rebeldia de Israel (assim Crisóstomo: “as tábuas da aliança porque
ele quebrou as anteriores, e o maná porque eles murmuraram [...] e a
vara de Arão que floresceu porque eles se rebelaram”) e o Deus santo estavam
os querubins da Glória, que com sua sombra cobriam a tampa da arca
(v. 5), i.e., interposto entre Deus e o pecado do povo estava o lugar da
expiação.
O autor continua nos v.
6-10 a ressaltar a natureza simbólica do antigo tabernáculo, cuja simples
construção foi a forma em que o Espírito Santo anunciou que o livre acesso
a Deus era impossível sob a antiga aliança (v. 8). Todos, exceto o sumo sacerdote (e até ele, a não
ser por um único dia no ano — o Dia da Expiação, cf. Lv 16), ficavam
excluídos por um véu grosso (e pela lei ritual) do lugar em que Deus
manifestava visivelmente a sua presença — o Lugar Santíssimo. De acordo
com essa ordenação, fica óbvio, então, que esses presentes e
sacrifícios que eram oferecidos não aperfeiçoavam a consciência do
adorador (v. 9), pois ele era sempre mantido à distância de Deus. Eram prescrições
(v. 10) totalmente exteriores, que não penetravam de forma profunda no
âmbito moral para purificar a consciência do seu sentimento de culpa. E “é um
axioma da epístola que a pessoa não pode adorar com uma consciência
culpada” (Narborough, Comm., p. 115). Essas coisas, no entanto — o
tabernáculo com suas duas tendas, seus utensílios simbólicos e
seus rituais bem elaborados etc. — não eram sem valor ou erradas;
eram somente temporárias, pois foram impostas (presumivelmente
por Deus) até o tempo da nova ordem (v. 10), até que a sombra
desse lugar à realidade.
Esse tempo chegou agora! O
véu foi rasgado. O que o antigo sacerdócio com seus sacrifícios e sua esfera terrena
de atuação não pôde realizar, Cristo foi capaz de fazê-lo. Como sumo
sacerdote dos benefícios agora presentes (v. 11, não “dos bens futuros”
como na ARC), ele entrou de uma vez por todas (v. 12) no maior
e mais perfeito tabernáculo, não feito pelo homem, isto é, não
pertencente a esta criação (v. 11). Foi num tabernáculo celestial
que ele entrou, sendo capaz de fazer isso em virtude do seu próprio
sangue (v. 12). Assim, em virtude dos méritos da sua pessoa, da
qualidade do seu sacrifício e da esfera do seu ministério, Cristo garantiu por
si só (e talvez ”para o seu próprio interesse”, gr. heuramenos) uma
eterna redenção para nós (v. 12). O autor não afirma explicitamente
do que é essa redenção, nem diz a quem o preço da redenção foi pago, mas
ao menos isto pode ser deduzido do contexto: A redenção significa “libertação”
de uma consciência culpada que foi tornada possível somente a um
grande preço para o Redentor.
O autor admite que os
sacrifícios pertencentes ao Dia da Expiação (o sangue de bodes e novilhos
— cf. Lv 16) e até as oblações oferecidas em outras ocasiões (as cinzas de uma novilha
— cf. Nm 19) de fato tinham valor. Mesmo inteiramente exteriores, proviam
purificação cerimonial, de modo que o impuro não era excluído do
relacionamento de aliança com Deus (v. 13). Mas o autor está disposto a fazer
essa concessão somente para mostrar a eficácia muito maior do
sacrifício de Cristo que foi um auto-sacrifício “consciente e voluntário”,
oferecido a Deus sem culpa moral pelo Espírito eterno (v. 14). Essa última
expressão é muito difícil. Alguns comentaristas a interpretaram como
significando que Cristo se ofereceu a Deus “segundo o poder de uma
vida indestrutível” (cf. 7.16), ou seja, em virtude de sua natureza
eterna. Outros entenderam que significa que o seu sacrifício foi da
sua própria e espontânea vontade. Ainda outros, que o seu sacrifício
foi oferecido no plano espiritual, e não no ritual. O ponto de vista
provavelmente mais correto é o que entende que, assim como o Salvador dependeu
do poder do Espírito Santo para realizar a vontade do Pai em tudo na
sua vida, também dependeu dele na morte. [Observação: Alguns escribas
antigos devem ter compreendido essa frase dessa forma porque ”santo”
aparece com “espírito”, em vez de com “eterno”, em alguns manuscritos
gregos e latinos.] A eficácia do sangue de Cristo (v. 14)
é vista no fato de que ele purifica a consciência (v. 14) — realiza na
experiência pessoal o que todos os outros sacrifícios de
sangue meramente sinalizavam mas não conseguiam efetuar.
O resultado dessa
consciência purificada é a libertação de atos que levam à morte
(v. comentário de 4.10) e a capacidade de servir ao Deus vivo
(v. 14). “Servir” traduz a palavra grega latreuein, que sempre
significa “desempenhar tarefas religiosas”, “prestar serviço em um
santuário” (Arndt e Gingrich, A Greek-English Lexicon). O termo é usado
diversas vezes em Hebreus, e em uma passagem quem assim serve é chamado de
“adorador” (9.9). Assim, “servir ao Deus vivo” realmente significa que
qualquer pessoa cuja consciência foi purificada agora pode entrar no Santo
dos Santos como sacerdote para prestar serviço piedoso ao “Deus que é
totalmente vivo”.
Por essa razão (v. 15), isto é, porque o perdão dos pecados foi
realmente efetuado por meio do sacrifício de Cristo, como prova
a purificação da consciência, Cristo é o mediador de uma nova aliança
— aquele que é capaz de garantir que todos que são chamados vão
receber a promessa da herança eterna (v. 15) . Mas esses “chamados” incluem somente os
crentes que vivem na nova época? E o que acontece com as pessoas da fé que
viveram no tempo da antiga aliança (cf. 11.8ss,13-16) ? São elas deixadas nos
seus pecados, visto que suas instituições não trataram adequadamente do
problema do pecado, removendo-o só cerimonialmente? A resposta a
essa pergunta vem logo em seguida: O alcance da eficácia da morte de
Cristo é tão amplo que ele liberta das transgressões cometidas
sob a primeira aliança (v. 15). A morte de Cristo é retroativa
(cf. Rm 3.25,26).
v. 16. No caso de um
testamento, é necessário que se comprove a morte daquele que o fez. Parece
que a intenção do autor é ampliar essa afirmação concernente a Cristo como
o mediador da nova aliança (cf. v. 15). Ele deseja mostrar que Cristo é
mais do que um mero intermediário entre Deus e o homem; ele
é exatamente aquele cuja morte era necessária para ratificar a aliança. A
palavra “testamento” (gr. diathêkê') pode também ser traduzida pela
palavra “aliança”. E verdade que diathêkê tinha como sua ideia
básica “testamento”, “última vontade”, mas não se pode esquecer que o
significado dessa palavra foi mediado ao autor de Hebreus pelo AT (a LXX),
e que ele nunca a usa em outro sentido que não “aliança” em outro lugar
da sua carta. Isso, associado com o fato de que o v. 16 é uma
ampliação da ideia iniciada no v. 15, em que Cristo é descrito como
mediador de uma nova aliança, deixa claro que o autor dificilmente
mudaria significados com tão pouco aviso. O que então significam os v.
16, 17 se substituirmos por “aliança” sempre que encontrarmos “testamento”?
É importante observarmos que o v. 16 não diz que quem faz a aliança
precisa morrer, mas é necessário que se comprove a [sua\ morte (gr.
pheresthai, significando “levado adiante”, “apresentado”, “introduzido
na cena”, “colocado em evidência”). Tradicionalmente, isso era
feito por meio do sacrifício de um animal “introduzido” por aqueles que
estavam iniciando um relacionamento de aliança (cf. comentário sobre
aliança, cap. 8). “Aquele que faz a aliança [...] está identificado, para
os propósitos da aliança, com a vítima por cuja morte representativa a
aliança é ordinariamente ratificada. Na morte da vítima, a sua morte é
apresentada simbolicamente” (Westcott, Comm., p. 265; cf. tb. p.
298ss). Por isso, aquele que fez a aliança é considerado (simbolicamente)
incapaz de fazer qualquer coisa para alterar a aliança, pois
figuradamente ele morreu. Isso fica claro no v. 17: pois
um testamento só é validado no caso de morte (lit. ”é ratificado
sobre os [corpos] mortos”; cf. Gn 15.7-21; Jr 34.18,19), uma vez que
nunca vigora enquanto está vivo quem o fez, i.e., enquanto ele
não estiver simbolicamente morto por meio da morte da vítima que ratifica
a aliança. Assim, a morte de Cristo, que era de difícil compreensão para
os leitores de Hebreus, foi tornada significativa para eles por meio
do conceito da aliança e do que era exigido para colocá-la em vigor. Deus
que fez a aliança tornou os termos da aliança inalteráveis, no que dizia
respeito a ele, por meio da sua morte, não simbolicamente, mas realmente,
na pessoa do seu eterno Filho que se tornou homem! [Mas é adequado
registrar que essa interpretação é rejeitada por muitos que
consideram que o sentido claro dos v. 16, 17 exige o significado de “testamento”, ou
“última vontade”, para diathêkê, pois esse é o único tipo de
aliança, ou acerto, que não tem validade enquanto aquele que a
fez ainda está vivo. Pheresthai, o verbo gr. traduzido por fez
(v. 16), é então interpretado no sentido secular de “ser registrado” ou “ser produzido
como evidência”, i.e., com o fim de legitimação do testamento (F. F.
Bruce; v. tb. seus comentários em Peake’s Commentary of the Bible,
ed. rev., p. 1.015, em que ele registra a interpretação de Westcott
adotada aqui neste comentário, mas somente para rejeitá-la. Cf. tb.
C. Spicq, Comm., ad loc., que defende que em Hb 9.15,18-20 diathêkê
significa “aliança” com o mesmo significado do AT, mas que o termo
significa “testamento” nos v. 16,17). Essa mudança ressalta o
duplo aspecto de diathêkê, isto é, como aliança selada com o sangue
de Cristo e como um testamento pelo qual o Cristo moribundo deixou como
herança os bens da salvação a todos os crentes.]
O significado de sangue, no
entanto, não é exaurido quando explicado como representando a morte daqueles
que fazem a aliança. O sangue também era exigido para purificação de
pecados cometidos dentro do relacionamento de aliança (cf. o comentário
de ”aliança” em conexão com o cap. 8). Por isso, o autor é conduzido
pelos significados de sangue e aliança a dizer que segundo a Lei,
quase todas as coisas são purificadas com sangue, e sem derramamento
de sangue não há perdão (v. 22; v. exceções a essa exigência de sangue
para a purificação em Lv 5.11-13; Nm 16.46; 31.50).
Parece estranho que
o autor dissesse que as coisas celestiais tivessem de ser purificadas (v.
23). Talvez foi simplesmente porque se sentiu compelido por sua analogia a
fazer essa afirmação, ou talvez ele concebia as coisas celestiais
como tendo incorrido “em certa profanação por meio do contato com os
pecados que são absolvidos” nelas (E. F. Scott, Gomm., ad loc.). De
todo modo, tendo oferecido um sacrifício melhor do que tinha feito sua
contraparte, Cristo não entrou em santuário feito por homens, uma simples
representação do verdadeiro; ele entrou nos céus, para agora
se apresentar diante de Deus em nosso favor (v. 24). Sua esfera
de serviço é o Santo dos Santos, e ele entra nela em virtude daquele
sacrifício único e definitivo feito por ele na história no fim dos
tempos (v. 26; cf. G1 4.4; Ef 1.10) — o sacrifício de si mesmo. É uma oferta
tão completa e definitiva que nunca será repetida (v. 26), uma oferta
substitutiva que foi eficaz em carregar os pecados de muitos (v.
28). [Observação: “muitos” não significa necessariamente nada menos do que “todos”
(cf. 2.9 e Mc 10.45 com lTm 2.6); isso entra no NT como “um legado de
Is 53.11,12”. “Todos” pode ser expresso por “muitos” quando
a extensão do “todos” está sendo destacada.] Visto que foi feita no
final dessa era, nada se interpõe entre ela e a realização completa
da era por vir, que será inaugurada quando Cristo aparecer segunda
vez, não para tirar o pecado, mas para trazer salvação aos que
o aguardam (v. 28).