Hebreus 9: Significado, Devocional e Exegese
Hebreus 9
Hebreus 9 constitui um dos pontos mais densos da argumentação sacerdotal do autor, em que se evidencia o contraste radical entre o culto da antiga aliança e a eficácia do sacrifício de Cristo na nova aliança. A exposição começa com uma descrição minuciosa do tabernáculo mosaico e de seus utensílios, estabelecendo o pano de fundo tipológico que servirá para destacar a precariedade do sistema levítico. Os versículos iniciais não são apenas um inventário descritivo, mas uma forma literária de transição: ao narrar a disposição do lugar santo e do santo dos santos, bem como o ritual de expiação anual do sumo sacerdote, o autor prepara a demonstração de que tais ritos, por sua repetição e limitação, eram apenas sombras (skia, “sombra”) e figuras (parabolē, “parábola”) de uma realidade superior. O foco está na insuficiência de um culto que, embora ordenado por Deus, não podia aperfeiçoar a consciência dos adoradores, pois lidava apenas com purificações externas, sem alcançar a interioridade.
A segunda parte do capítulo introduz o contraste decisivo com a obra de Cristo. Enquanto os sacerdotes do antigo pacto ofereciam sangue de animais, Cristo, como sumo sacerdote dos bens futuros, entrou uma vez por todas no santuário celestial, não com sangue alheio, mas com o seu próprio sangue, obtendo redenção eterna. A linguagem aqui é deliberadamente elevada: termos como hapax (“uma vez por todas”) e aiōnios (“eterno”) são usados para sublinhar a singularidade e a validade permanente da obra de Cristo. O autor mostra que o sangue de Cristo, diferente dos sacrifícios mosaicos, purifica a consciência das obras mortas para o serviço do Deus vivo, realizando assim o que a Lei apenas prefigurava.
A terceira unidade do capítulo apresenta Cristo como mediador da nova aliança, aliança esta estabelecida com base em sua morte, que inaugura o testamento de bênçãos prometidas. O discurso assume contornos jurídicos ao associar o termo diathēkē [“aliança”, mas também “testamento”] à ideia de morte como condição para a validade da disposição testamentária. Com isso, o autor reforça a necessidade do sacrifício de Cristo, cuja morte não apenas sela a nova aliança, mas também purifica as realidades celestiais e inaugura um acesso perfeito a Deus.
O capítulo culmina com a antítese entre a repetição constante dos sacrifícios levíticos e a oferta única de Cristo, que, ao ser realizada no fim dos tempos, inaugura a consumação escatológica. Cristo não entra em um santuário feito por mãos humanas, mas no próprio céu, onde agora comparece em favor dos crentes. E não se oferece muitas vezes, como os sacerdotes antigos, mas ofereceu-se uma só vez para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo. O movimento do capítulo conduz o leitor da descrição ritual do tabernáculo terrestre até a exaltação do sacrifício celeste e único de Cristo, terminando com a declaração solene sobre a inevitabilidade da morte e do juízo, seguida da certeza da salvação consumada para aqueles que esperam o Senhor.
Assim, Hebreus 9 se apresenta como um tratado de teologia sacerdotal e escatológica, em que a tipologia veterotestamentária encontra seu cumprimento definitivo em Cristo. O autor articula com precisão a insuficiência ritual do antigo culto e a perfeição sacrificial do Messias, de modo que a comunidade destinatária, tentada a retroceder às práticas judaicas, seja exortada a permanecer firme na fé, confiando na obra irrevogável do verdadeiro sumo sacerdote.
I. Estrutura e Estilo Literário
Hebreus 9 se organiza de forma clara em três movimentos principais, unidos por uma progressão argumentativa que vai do descritivo ao teológico e culmina no escatológico. Primeiramente, nos versículos 1 a 10, encontramos a descrição detalhada do tabernáculo terreno e de seus rituais, numa linguagem que remete ao relato de Êxodo, especialmente aos capítulos 25 a 40. Essa seção inicial funciona como pano de fundo e estabelece o cenário tipológico que será reinterpretado cristologicamente. O autor não pretende apenas recordar a arquitetura e os utensílios do tabernáculo, mas mostrar a sua funcionalidade limitada e provisória, como um sistema ritual que não podia levar o povo à perfeição da consciência. O estilo aqui é quase inventarial, marcado por enumerações precisas — candeeiro, mesa, pães, véu, altar de ouro, arca da aliança — que, ao serem dispostos em ordem, reforçam a materialidade do culto terreno em contraste com a espiritualidade e a eternidade do sacrifício de Cristo.
Na segunda parte, que se estende dos versículos 11 a 22, o texto assume uma tonalidade contrastiva e argumentativa. Aqui, o autor contrapõe a obra do sumo sacerdote terreno à obra do sumo sacerdote celeste. Os recursos estilísticos empregados são de paralelismo antitético: “não com sangue de bodes e bezerros, mas com o seu próprio sangue” [ouk en haimati tragōn kai moschōn alla en tō idiō haimati], “não em santuário feito por mãos, mas no céu mesmo” [ou cheiropoiēton alla eis auton ton ouranon]. Essa estrutura enfatiza o contraste absoluto entre a insuficiência e a repetição do culto antigo e a eficácia única e eterna da oferta de Cristo. O ritmo do texto ganha intensidade, com repetições de termos como hapax (“uma vez por todas”) e aiōnios (“eterno”), criando uma cadência que reforça a unicidade e a perenidade da nova aliança.
Na terceira parte, que vai dos versículos 23 a 28, o autor eleva a argumentação para o plano escatológico. O estilo adquire aqui uma densidade solene, marcada pelo paralelismo temporal: de um lado, a lembrança da repetição dos sacrifícios levíticos; de outro, a afirmação de que Cristo “se manifestou uma vez por todas, no fim dos tempos, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo” [hapax epi synteleia tōn aiōnōn eis athetēsin tēs hamartias dia tēs thysias autou]. Esse movimento culmina na declaração lapidar de que “aos homens está ordenado morrer uma só vez, vindo depois o juízo” [apokeitai tois anthrōpois hapax apothanein meta de touto krisis], seguida da esperança da salvação para os que aguardam o Cristo. O estilo literário da conclusão é marcado pela alternância entre juízo e salvação, morte e vida, repetição e unicidade, criando um clímax teológico que encerra o capítulo com força retórica e pastoral.
Assim, a estrutura literária de Hebreus 9 pode ser descrita como um arco ascendente que parte da descrição ritual e visível, passa pelo contraste teológico da obra sacerdotal de Cristo e culmina no horizonte escatológico da redenção consumada. O estilo varia entre o inventário descritivo, a argumentação antitética e a proclamação solene, compondo um mosaico retórico que não apenas instrui, mas persuade e exorta. O capítulo, desse modo, funciona como um microcosmo da epístola, reunindo os elementos fundamentais da teologia de Hebreus: tipologia veterotestamentária, cristologia sacerdotal e consumação escatológica.
II. Hebraísmos no Texto Grego
Hebreus 9 é particularmente marcado pela presença de hebraísmos, tanto em termos lexicais quanto sintáticos, refletindo a dependência direta da tradição cultual israelita e do vocabulário da Septuaginta, ainda que aqui adaptado ao grego retórico do autor. A primeira evidência se encontra na descrição do tabernáculo e de seus utensílios, em que se utilizam termos gregos que carregam o peso semântico hebraico. Por exemplo, a expressão “santuário terrestre” [to hagion kosmikon] reflete o hebraico miqdash [מִקְדָּשׁ, miqdāsh, “lugar santo”], indicando não apenas espaço físico, mas sobretudo a ideia de consagração pela presença divina. O uso do termo “santo dos santos” [hagion hagiōn] é construído por um hebraísmo típico de superlativo, que reproduz literalmente a estrutura hebraica qōdesh haq-qodāshīm [קֹדֶשׁ הַקֳּדָשִׁים, qōdesh haq-qodāshīm, “santidade das santidades”], reforçando a intensidade da sacralidade pela repetição.
Outro hebraísmo relevante se encontra na menção às “purificações” [katharismoi], que traduzem a ideia hebraica de ṭahor [טָהוֹר, ṭāhōr, “puro”] e ṭāhēr [טָהֵר, ṭāhēr, “purificar”], conceitos que na tradição hebraica não se limitavam a uma noção higienista, mas diziam respeito à condição de acesso à presença de Deus. Quando o autor afirma que esses ritos “não podem aperfeiçoar a consciência” [mē dynamenai teleiōsai kata syneidēsin], está refletindo o contraste entre a pureza externa (hebraico ṭāhēr) e a integridade interna exigida pela aliança.
O autor também emprega o termo “parábola” [parabolē], que no grego clássico teria sentido mais amplo de comparação ou ilustração, mas aqui carrega a conotação semítica de mashal [מָשָׁל, māshāl, “provérbio, parábola, figura”], aplicado ao tabernáculo e seus ritos como representações figurativas da realidade celeste. Essa semitização do vocábulo é central para a compreensão do argumento, pois mostra que o culto mosaico não era em si mesmo a realidade definitiva, mas uma figura pedagógica.
Na seção sobre o sangue e a aliança (versículos 18–22), o autor utiliza a expressão “sem derramamento de sangue não há perdão” [chōris haimatekchysias ou ginetai aphesis], que reflete diretamente a formulação hebraica de Levítico 17:11: kī haddām hu’ ban-nephesh yekhapper [כִּי הַדָּם הוּא בַּנֶּפֶשׁ יְכַפֵּר, kī haddām huʾ bannéfeš yəkhappēr, “porque o sangue é que faz expiação pela vida”]. A fraseologia grega aqui mantém a estrutura conceitual hebraica, em que sangue, vida e expiação são inseparáveis.
Por fim, a declaração conclusiva de que “aos homens está ordenado morrer uma vez” [apokeitai tois anthrōpois hapax apothanein] remete a uma visão semítica da ordem divina estabelecida sobre a vida humana. O verbo “apokeitai” é aqui usado em sentido jurídico e solene, equivalente ao hebraico ḥāqaq [חָקַק, ḥāqaq, “prescrever, decretar”], indicando um estatuto irrevogável. Essa formulação retém o peso do conceito hebraico de destino humano sob o decreto de Deus, reforçando o paralelismo entre a universalidade da morte e a unicidade do sacrifício de Cristo.
Portanto, Hebreus 9 não apenas descreve a liturgia mosaica em termos gregos, mas o faz permeando sua linguagem com estruturas semíticas que transmitem a teologia veterotestamentária em sua profundidade. Os hebraísmos funcionam como ponte entre a tradição hebraica e a argumentação cristológica, preservando o colorido da herança judaica e, ao mesmo tempo, reinterpretando-a à luz do evento de Cristo.
III. Versículo-Chave
Hebreus 9:12
Não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção.
Este versículo condensa a teologia central do capítulo e, em muitos aspectos, de toda a epístola. O contraste é traçado pela partícula adversativa oude... alla de (“não... mas sim”), estrutura tipicamente semítica que reforça a oposição absoluta entre os sacrifícios levíticos e o sacrifício de Cristo. A frase “sangue de bodes e bezerros” ecoa diretamente as prescrições do Dia da Expiação em Levítico 16, quando o sumo sacerdote entrava no Santo dos Santos com sangue alheio para expiar pelo povo. O autor, porém, sublinha que o Cristo não entrou por meio de sangue estranho, mas “pelo seu próprio sangue” (dia tou idiou haimatos), expressão que carrega o peso sacrificial e ao mesmo tempo pessoal da entrega voluntária. O adjetivo “idiou” destaca a singularidade da oferenda, pois não se trata de uma vítima externa, mas do próprio Filho que se entrega como sacerdote e vítima.
A locução “uma vez por todas” (hapax) é teologicamente decisiva. No vocabulário de Hebreus, ela indica o caráter irrepetível e definitivo da obra de Cristo. Enquanto o sacerdócio levítico se caracterizava pela repetição interminável dos rituais, a entrada de Cristo no Santo dos Santos celeste estabelece uma ruptura definitiva na história da salvação. Este “hapax” tem ressonância escatológica, pois a ação de Cristo não se inscreve na circularidade do tempo cúltico judaico, mas na consumação única do tempo redentor.
A expressão final, “eterna redenção” (aiōnian lytrōsin), combina a ideia veterotestamentária de resgate (gāʾal [גָּאַל, gāʾal, “redimir, resgatar”]) com a dimensão escatológica da eternidade. No Antigo Testamento, a redenção estava ligada a atos de libertação histórica, como o êxodo ou a libertação de servidão. Em Hebreus, porém, a redenção é elevada à esfera celeste e eterna, pois não apenas remove a culpa momentânea, mas estabelece a reconciliação perene do ser humano com Deus. O uso do termo lytrōsis (resgate, libertação mediante preço) destaca o aspecto jurídico e substitutivo da obra de Cristo, que paga o preço definitivo para libertar os homens da escravidão do pecado.
Assim, este versículo resume a argumentação do capítulo: a insuficiência dos rituais mosaicos, a singularidade do sacrifício de Cristo, a sua eficácia irrepetível e a dimensão eterna da redenção. É por isso que Hebreus 9:12 pode ser considerado o coração teológico do capítulo, funcionando como eixo que articula o contraste entre o culto terreno e a obra sacerdotal do Filho no céu.
IV. Intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento
A intertextualidade em Hebreus 9 é densa e multifacetada, pois o autor faz uso intenso da tradição cultual do Antigo Testamento para construir sua argumentação cristológica. A seção inicial do capítulo (vv. 1–5), que descreve minuciosamente o tabernáculo e seus utensílios, ecoa diretamente Êxodo 25–Êxodo 30 e Levítico 16. O vocabulário técnico empregado, como “candelabro” (luchnia [λυχνία, luchnia, “candelabro”]) em paralelo com menorah [מְנוֹרָה, menōrāh, “candelabro”], e “pão da proposição” (artoi tēs protheseōs [ἄρτοι τῆς προθέσεως, artoi tēs protheseōs, “pães da exposição”]) em paralelo com lechem panim [לֶחֶם פָּנִים, leḥem pānīm, “pães da presença”], demonstra que o autor está reinterpretando elementos mosaicos para preparar a exposição sobre o contraste entre culto terreno e realidade celeste.
A menção ao Santo dos Santos (hagion hagiōn [ἅγιον ἁγίων, hagion hagiōn, “santo dos santos”]) encontra sua raiz em Levítico 16, especialmente no rito do Yom Kippur. Ali, o sumo sacerdote entrava uma vez por ano com sangue alheio. Em Hebreus 9:7, essa referência é retomada para realçar a limitação do ritual mosaico. O autor contrapõe isso à entrada de Cristo “uma vez por todas” (hapax [ἅπαξ, hapax, “uma vez por todas”]) no Santo dos Santos celestial (v. 12), o que conecta diretamente com a promessa profética de uma nova aliança em Jeremias 31:31–34.
A relação com Jeremias 31 é decisiva, pois o capítulo anterior (Hebreus 8) já citou integralmente a profecia sobre a nova aliança. Em Hebreus 9, o tema é retomado no contraste entre “purificação da carne” (v. 13) e “purificação da consciência” (v. 14). Essa distinção remete a textos como Ezequiel 36:25–27, onde Deus promete purificar o povo com água pura e colocar dentro deles o seu Espírito, mostrando que o alvo da nova aliança não é externo, mas interno.
No versículo 18, quando o autor afirma que “nem a primeira aliança foi consagrada sem sangue”, a referência é explícita a Êxodo 24:3–8, quando Moisés aspergiu o sangue sobre o povo e sobre o livro da lei. O paralelismo é estruturado de modo a mostrar que, se a antiga aliança já foi ratificada com sangue, quanto mais a nova aliança necessita de sangue, mas agora o sangue do próprio Cristo. Essa conexão é intensificada com Levítico 17:11, que fundamenta a teologia sacrificial: “a vida da carne está no sangue”. O autor de Hebreus cita essa lógica para concluir em 9:22 que “sem derramamento de sangue não há perdão” (chōris haimatekchysias ou ginetai aphesis [χωρὶς αἱματεκχυσίας οὐ γίνεται ἄφεσις, chōris haimatekchysias ou ginetai aphesis, “sem derramamento de sangue não há perdão”]).
Já a universalidade da morte declarada em Hebreus 9:27 (“aos homens está ordenado morrer uma vez” – apokeitai tois anthrōpois hapax apothanein [ἀπόκειται τοῖς ἀνθρώποις ἅπαξ ἀποθανεῖν, apokeitai tois anthrōpois hapax apothanein, “aos homens está determinado morrer uma vez”]) ecoa Eclesiastes 3:2 e 2 Samuel 14:14, que testemunham a inevitabilidade da morte para todo ser humano. Essa realidade humana serve de contraponto para a obra única de Cristo, que morreu uma vez para tirar os pecados de muitos (Hebreus 9:28), cumprindo o anúncio de Isaías 53:12, onde o Servo sofredor é descrito como aquele que levou sobre si o pecado de muitos.
No Novo Testamento, as conexões mais fortes aparecem em passagens paulinas. Romanos 3:25 fala de Cristo como “propiciação pelo seu sangue” (hilastērion en tō haimati autou [ἱλαστήριον ἐν τῷ αὐτοῦ αἵματι, hilastērion en tō haimati autou, “propiciação em seu sangue”]), linguagem que alude à tampa da arca da aliança (o propiciatório), exatamente como em Hebreus 9. Em 1 Coríntios 11:25, Paulo cita as palavras de Cristo sobre o cálice: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue”, mostrando a continuidade da interpretação sacrificial que Hebreus desenvolve em profundidade.
Também o Apocalipse ecoa Hebreus 9 ao descrever o Cordeiro que foi morto e com seu sangue comprou para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação (Apocalipse 5:9). Assim como em Hebreus, o sangue do Cordeiro é o fundamento da redenção universal e eterna.
A intertextualidade bíblica de Hebreus 9 revela que o autor constrói sua teologia sobre um tecido de referências veterotestamentárias, reinterpretadas à luz do sacrifício de Cristo, e reforçadas pela convergência com o testemunho apostólico no Novo Testamento. O capítulo funciona como um elo entre Levítico e o Apocalipse, entre o sangue do cordeiro pascal e o sangue do Cordeiro eterno, entre o culto provisório da antiga aliança e a redenção definitiva na nova.
V. Lição Teológica Geral
O nono capítulo de Hebreus oferece uma das mais densas elaborações teológicas de toda a epístola, pois articula o contraste entre a antiga e a nova aliança a partir da categoria do culto, do sangue e da mediação sacerdotal. A argumentação gira em torno da insuficiência do sistema levítico e da perfeição do sacrifício de Cristo, sendo construída de forma cumulativa e conclusiva.
Do ponto de vista da teologia do culto, Hebreus 9 demonstra que os rituais mosaicos, ainda que divinamente instituídos, tinham caráter pedagógico e provisório. O autor insiste que eles purificavam apenas a carne e não podiam aperfeiçoar a consciência. Essa distinção é fundamental, pois desloca o eixo da religião do visível para o invisível, do ritual externo para a transformação interna. A consciência purificada se torna, assim, o verdadeiro santuário no qual Deus habita, cumprindo as promessas proféticas de Jeremias e Ezequiel.
No que se refere à cristologia, o capítulo apresenta Cristo como o Sumo Sacerdote da nova aliança, que não entrou em um santuário feito por mãos humanas, mas no próprio céu, oferecendo seu próprio sangue. O contraste entre sangue de bodes e novilhos e o sangue de Cristo é teologicamente decisivo. O primeiro apenas simbolizava a expiação, enquanto o segundo efetivamente realiza a redenção eterna. O termo hapax [ἅπαξ, hapax, “uma vez por todas”], repetido ao longo do capítulo, sublinha a unicidade e a suficiência do sacrifício de Cristo, afastando qualquer noção de repetição ou incompletude.
A soteriologia de Hebreus 9 está, portanto, centrada na eficácia do sangue de Cristo. A redenção aqui não é apenas uma metáfora, mas uma realidade ontológica que transforma a relação do ser humano com Deus. O sangue de Cristo inaugura a nova aliança, estabelece o perdão definitivo e garante a herança eterna. O argumento do autor não é apenas jurídico, mas também cósmico: Cristo aparece agora no céu, diante da face de Deus por nós, e aparecerá ainda uma segunda vez, não mais para tratar do pecado, mas para trazer a salvação consumada.
Por fim, a escatologia de Hebreus 9 reforça a tensão entre o já e o ainda não. Cristo já realizou a obra expiatória, mas a plenitude de sua salvação ainda aguarda manifestação em sua segunda vinda. O paralelo entre a morte inevitável dos homens e a morte vicária de Cristo acentua tanto a universalidade da condição humana quanto a universalidade da redenção oferecida. Assim, a história da salvação é vista como uma narrativa que culmina na cruz, mas que se consumará apenas na parousia.
Dessa forma, a lição teológica geral de Hebreus 9 é que o cristão não depende mais de ritos externos, de sacrifícios repetitivos ou de sacerdotes humanos para obter perdão e comunhão com Deus. Em Cristo, o verdadeiro Sumo Sacerdote, temos acesso ao Santo dos Santos celestial e desfrutamos de uma redenção que é eterna, interior e definitiva. A fé em Jesus substitui toda mediação terrena e inaugura um culto espiritual, centrado não em símbolos perecíveis, mas na realidade imutável do sacrifício único do Filho de Deus.
VI. Comentário de Hebreus 9
Hebreus 9 contrasta o arranjo cultual antigo — com regulamentos sagrados e um santuário terreno feito segundo o “modelo” (Santo Lugar, Santo dos Santos, arca, propiciatório, querubins) e um acesso rigorosamente limitado (ministério diário dos sacerdotes e entrada anual do sumo sacerdote “não sem sangue”) — com sua incapacidade de aperfeiçoar a consciência, pois lidava com impurezas externas e vigorava apenas “até o tempo de reforma” [Êxodo 25–31; 35–40; Levítico 16; Números 19; Hebreus 9:1-10; 10:1-4]; em contraste, Cristo veio como Sumo Sacerdote dos bens já realizados, ministrando no “tabernáculo maior e mais perfeito” (celestial), e, não com sangue de animais, mas “com o seu próprio sangue”, entrou uma vez por todas no Santo dos Santos, obtendo “eterna redenção”, de modo que seu sangue — oferecido “pelo Espírito eterno” e “sem mácula” — purifica a consciência de “obras mortas” para servirmos ao Deus vivo [Hebreus 8:2; 9:11-14; Mateus 26:28; Efésios 1:7]. Assim, Ele é o Mediador da Nova Aliança: sua morte remite as transgressões sob a primeira aliança e faz os chamados receberem a “herança eterna”; como num testamento, a morte do testador é necessária para que o legado entre em vigor — razão pela qual nem a primeira aliança foi inaugurada sem sangue, pois “sem derramamento de sangue não há remissão” [Êxodo 24:3-8; Hebreus 9:15-22; Romanos 3:25-26]. As cópias terrenas exigiam purificação com tais sacrifícios, mas as “realidades celestiais” requeriam um sacrifício superior: Cristo não entrou em santuário feito por mãos, mas no céu mesmo, para agora “comparecer por nós” diante de Deus — não repetidamente, como o sumo sacerdote anual com “sangue alheio”, mas “uma vez por todas”, no fim dos tempos, para abolir o pecado por seu sacrifício [Hebreus 9:23-26; 7:25; 10:12-14]. E, como aos homens está ordenado morrer uma só vez e, depois, o juízo, assim Cristo, oferecendo-se uma vez para levar os pecados de muitos, “aparecerá segunda vez, sem relação com o pecado”, para salvar definitivamente os que o aguardam [Hebreus 9:27-28; Isaías 53:11-12; Filipenses 3:20-21].A. O Tabernáculo Terreno e Seus Rituais Imperfeitos (Hebreus 9:1-10)
Hebreus 9:1 Ora, a primeira aliança também tinha preceitos de serviço sagrado... (A “primeira aliança” é a mosaica, com estatutos cultuais detalhados para mediação entre Deus e o povo [Êxodo 24:3-8; Levítico 1–Levítico 7; Números 3–Números 4]. “Preceitos de serviço sagrado” traduz a ideia de ordenanças litúrgicas que regulavam sacrifícios, purificações e acesso ao santuário [Êxodo 25–31; 35–40].) ...e o seu santuário terrestre. (Literalmente, um “lugar santo” feito por mãos humanas — um arranjo espacial temporário que representava em cópia a realidade celeste [Êxodo 25:8-9; Hebreus 8:5; Hebreus 9:24].)
Hebreus 9:2 Com efeito, foi preparado o tabernáculo,... (O mishkan foi erigido segundo o “modelo” revelado a Moisés; nada era arbitrário, tudo tipológico [Êxodo 25:40; 26:30; Hebreus 8:5].) ...cuja parte anterior, onde estavam o candeeiro, e a mesa, e a exposição dos pães, se chama o Santo Lugar;... (No “Santo Lugar” estavam: o candelabro de ouro (lychnia), que iluminava continuamente [Êxodo 25:31-40]; a mesa (trapeza) com os “pães da proposição” (artoi protheseōs), doze pães semanais que significavam a presença sustentadora de Deus para Israel [Levítico 24:5-9]; era um espaço de serviço regular dos sacerdotes [Êxodo 27:20-21].)
Hebreus 9:3 por trás do segundo véu,... (O “segundo véu” separava o Santo Lugar do “Santo dos Santos”; era fronteira de santidade e barreira de acesso, transposta apenas no Dia da Expiação [Êxodo 26:31-33; Levítico 16:2].) ...se encontrava o tabernáculo que se chama o Santo dos Santos,... (A câmara mais sagrada, símbolo da habitação de Deus no meio do povo; ali repousava a arca e o propiciatório, e ali Deus “se fazia presente” [Êxodo 25:21-22; 1 Samuel 4:4].)
Hebreus 9:4 ao qual pertencia um altar de ouro para o incenso... (O termo thymiaterion pode referir-se ao “altar de incenso” de ouro colocado junto ao véu [Êxodo 30:1-6] ou ao “incensário” do sumo sacerdote levado para dentro no Dia da Expiação [Levítico 16:12-13]. Hebreus o associa ao Santíssimo porque, funcionalmente, sua fumaça cobria o propiciatório naquele rito anual.) ...e a arca da aliança totalmente coberta de ouro,... (Baú sagrado de acácia revestido de ouro, trono-covenantal de YHWH, onde se revelava sua presença e de onde emanava a sua palavra [Êxodo 25:10-22; 1 Crônicas 28:2].) ...na qual estava uma urna de ouro contendo o maná,... (Recordação do sustento miraculoso no deserto, sinal de provisão e fidelidade [Êxodo 16:32-34].) ...o bordão de Arão, que floresceu, (Testemunho do chamado divino da casa de Arão ao sacerdócio, quando sua vara floresceu e frutificou, silenciando rebeliões [Números 17:1-10].) e as tábuas da aliança; (O Decálogo, coração da aliança, gravado por Deus e colocado na arca como testemunho permanente [Êxodo 31:18; Deuteronômio 10:1-5; 1 Reis 8:9].)
Hebreus 9:5 e sobre ela, os querubins de glória,... (Seres celestiais esculpidos sobre o propiciatório, representando o cortejo real de Deus; suas asas formavam um trono de misericórdia [Êxodo 25:18-22; Salmo 80:1].) ...que, com a sua sombra, cobriam o propiciatório. (O hilastērion — “propiciatório/assento de misericórdia” — era o tampo da arca, onde o sangue era aspergido no Dia da Expiação para remover a culpa pactual [Levítico 16:14-15; Romanos 3:25].) Dessas coisas, todavia, não falaremos, agora, pormenorizadamente. (O autor delimita o escopo: a finalidade não é curiosidade antiquária, mas mostrar a limitação funcional do sistema frente ao acesso que Cristo abriu [Hebreus 9:8-10; 10:19-22].)
Hebreus 9:6 Ora, depois de tudo isto assim preparado,... (Instalado o mobiliário segundo o modelo, começou o culto regular [Êxodo 40:1-9, 33-35].) ...continuamente entram no primeiro tabernáculo os sacerdotes, para realizar os serviços sagrados;... (Entrada diária no Santo Lugar para manter lâmpadas, incenso e pães — um serviço contínuo, mas ainda mediado e limitado [Êxodo 27:20-21; 30:7-8; Levítico 24:5-8].)
Hebreus 9:7 mas, no segundo, o sumo sacerdote,... (Ao Santíssimo, ia apenas o sumo sacerdote — o representante máximo do povo [Levítico 16:2].) ...ele sozinho,... (Ninguém mais tinha acesso; a exclusividade sublinhava a distância entre Deus e o povo sob aquele arranjo [Levítico 16:17].) ...uma vez por ano,... (Somente no Yom Kippur, o Dia da Expiação [Levítico 16:29-34].) ...não sem sangue,... (O acesso exigia vida derramada; sem derramamento de sangue não há remissão [Levítico 17:11; Hebreus 9:22].) ...que oferece por si e pelos pecados de ignorância do povo,... (Primeiro por si e por sua casa, depois pelo povo; e especificamente por pecados “inadvertidos/por ignorância” — os ritos não cobriam rebeldia obstinada [Levítico 16:6, 11, 15-16; Números 15:27-31].)
Hebreus 9:8 querendo com isto dar a entender o Espírito Santo... (O Espírito, autor das Escrituras, significava por meio dessa arquitetura e liturgia uma verdade teológica: a pedagogia do acesso [2 Pedro 1:21; Hebreus 3:7].) ...que ainda o caminho do Santo Lugar não se manifestou,... (Enquanto o véu permanecia, o “caminho” (hodos) à presença imediata de Deus não estava aberto ao povo; o sistema apontava, mas não concedia acesso pleno [Hebreus 10:19-20].) ...enquanto o primeiro tabernáculo continua erguido. (Enquanto vigorava aquela “primeira tenda” como ordem cultual, sua própria existência testemunhava a não manifestação plena do acesso [Hebreus 9:9; 8:13].)
Hebreus 9:9 É isto uma parábola para a época presente;... (O termo parabolē indica figura pedagógica: o tabernáculo e ritos eram uma parábola temporal que apontava para a obra de Cristo na “plenitude dos tempos” [Gálatas 4:4; Hebreus 10:1].) ...e, segundo esta, se oferecem tanto dons como sacrifícios,... (Havia um fluxo constante de ofertas não sangrentas e sangrentas [Levítico 1–7].) ...embora estes, no tocante à consciência,... (A syneidēsis — consciência — continuava carregada; os ritos removiam impurezas cerimoniais, não purificavam o foro íntimo de forma definitiva [Hebreus 9:13-14; 10:1-4].) ...sejam ineficazes para aperfeiçoar aquele que presta culto,... (Não podiam levar à teleiōsis — acesso pleno e consciência purificada; eram provisórios e indicativos [Hebreus 7:19; 10:11].)
Hebreus 9:10 os quais não passam de ordenanças da carne,... (“Da carne” (sarkos): regulamentos que lidavam com aspectos externos da vida cultual, marcadores temporários da aliança [Romanos 2:28-29; Colossenses 2:16-17].) ...baseadas somente em comidas, e bebidas, e diversas abluções,... (Regras dietéticas e purificações (baptismois) com águas, cinza da novilha, etc. [Levítico 11; Números 19:1-10; Marcos 7:3-4; Hebreus 9:13].) ...impostas até ao tempo oportuno de reforma. (Diorthōsis = reforma/endireitamento: a chegada de Cristo que corrige/consuma o sistema, abrindo o acesso definitivo [Hebreus 7:12; 8:6; 9:11-12; 10:19-22]. O calendário de Deus tinha um “até” — e esse “tempo” chegou em Jesus.)
B. Cristo e Seu Sacrifício Perfeito no Santuário Celestial (Hebreus 9:11-14)
Hebreus 9:11 Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados,... (A frase aponta para a chegada, em Cristo, dos “bens” prometidos — acesso real a Deus, perdão eficaz e dom do Espírito — sinalizando o cumprimento escatológico já inaugurado; o grego indica paragenómenos “tendo vindo/manifestado-se”, e archiereús “sumo sacerdote”, dos “bens que já vieram” [Hebreus 8:6; 9:26; 10:1; 6:5].) ...mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação,... (Ele ministra no santuário celestial, descrito como meízōn “maior” e teleióteros “mais perfeito”: não é obra humana (acheiropoiētos em sentido afim), nem pertence a esta ordem criada; é o tabernáculo “que o Senhor erigiu” [Hebreus 8:2; 9:24; Marcos 14:58; 2 Coríntios 5:1].)
Hebreus 9:12 não por meio de sangue de bodes e de bezerros,... (Referência direta ao rito do Yom Kippur: sangue de novilho e bode no Santo dos Santos [Levítico 16:6, 15]; porém, esse sangue não removia pecados de modo definitivo [Hebreus 10:4].) ...mas pelo seu próprio sangue,... (dià tou idíou haímatos): Cristo é sacerdote e oferta; Seu sangue inaugura a Nova Aliança e redime de fato [Mateus 26:28; Efésios 1:7; 1 Pedro 1:18-19].) ...entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas,... (ephapax = de uma vez por todas; “Santo dos Santos” = ta hágia, o santuário celeste; entrada única, irrepetível e suficiente [Hebreus 7:27; 9:24-26].) ...tendo obtido eterna redenção. (aiōnían lytrōsin: resgate definitivo da escravidão do pecado/culpa, com êxodo espiritual consumado [Marcos 10:45; Tito 2:14; Hebreus 10:14].)
Hebreus 9:13 Portanto, se o sangue de bodes e de touros e a cinza de uma novilha,... (Bodes/novilhos = Dia da Expiação; “cinza da novilha” = rito de purificação com a novilha vermelha [Levítico 16; Números 19:1-10].) ...aspergidos sobre os contaminados,... (Aspergir removia impureza ritual contraída por contato com morte e outras fontes de contaminação [Números 19:13, 18-19; Hebreus 9:19].) ...os santificam,... (Consagravam/“separavam” o adorador para o culto, restituindo-lhe estado cerimonial aceitável [Levítico 16:30].) ...quanto à purificação da carne,... (A eficácia era externa e temporal — sarx como esfera “carne” — não alcançava a consciência em profundidade [Hebreus 9:9-10; 10:1-2].)
Hebreus 9:14 muito mais o sangue de Cristo, (Argumento qal wahomer: do menor ao maior — se o provisório funcionava externamente, quanto mais o definitivo purifica internamente [Romanos 5:9].) ...que, pelo Espírito eterno,... (dia pneumatos aiōniou): pode referir-se ao Espírito Santo que unge e sustém o Messias na obediência [Lucas 4:18; Hebreus 2:9], ou ao “espírito eterno” do próprio Cristo (Sua vida indestrutível) [Romanos 1:4; Hebreus 7:16]; em ambos os casos, a oferta tem qualidade eterna e poder divino.) ...a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus,... (amōmos = “sem defeito”, linguagem sacrificial aplicada ao Cordeiro; oferta voluntária e impecável, sacerdote que se faz vítima [Levítico 1:3; 22:20; João 10:17-18; 1 Pedro 1:19; 2 Coríntios 5:21; Hebreus 7:27].) ...purificará a nossa consciência de obras mortas,... (Alcança o foro íntimo: remove culpa e liberta do ciclo de “obras mortas” — atos pecaminosos e/ou práticas “religiosas” sem a vida de Deus que nada podem justificar [Hebreus 6:1; 9:9; Gálatas 2:16; Efésios 2:1].) ...para servirmos ao Deus vivo! (latreúein = prestar culto/serviço sacerdotal; alvo da purificação é capacitar uma vida de adoração obediente ao “Deus vivo”, em contraste com ídolos e formas mortas [Deuteronômio 5:26; 1 Tessalonicenses 1:9; Romanos 12:1; Hebreus 12:28].)
C. A Nova Aliança e a Necessidade de Morte (Hebreus 9:15-28)
Hebreus 9:15 Por isso mesmo, ele é o Mediador da nova aliança,... (Aqui “mediador” traduz mesitēs: Aquele que põe as partes em relacionamento e garante que as cláusulas se cumpram. “Nova aliança” (kainē diathēkē) retoma a promessa de [Jeremias 31:31-34], já aplicada em [Hebreus 8:6-13]: lei no coração, conhecimento de Deus e perdão final. Cristo não apenas anuncia; Ele inaugura e administra esta aliança por sua obra sacerdotal [Hebreus 7:22; 12:24].) ...a fim de que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia sob a primeira aliança,... (A diathēkē requer sangue; a morte de Cristo lida retroativamente com as transgressões acumuladas sob o regime mosaico, que os sacrifícios apenas sinalizavam, sem removê-las definitivamente [Romanos 3:25-26; Hebreus 10:1-4]. Essa morte é “pelo pecado” e “em lugar de” (linguagem vicária) [Isaías 53:5-6; Marcos 10:45].) ...recebam a promessa da eterna herança aqueles que têm sido chamados. (“Herança eterna” cumpre as promessas a Abraão, agora ampliadas em Cristo para todos os chamados eficazmente [Gálatas 3:14, 29; 1 Pedro 1:4; Efésios 1:13-14, 18]. “Chamados” aponta ao chamado eficaz de Deus que cria fé e conduz à posse da herança [Romanos 8:28-30; Hebreus 3:1].)
Hebreus 9:16 Porque, onde há testamento,... (Jogo semântico de diathēkē: “aliança” pode funcionar como “testamento”. O autor usa a ilustração jurídica do testamento para explicar por que a morte é requerida.) ...é necessário que intervenha a morte do testador;... (Um testamento só é executável após a morte; a analogia mostra por que o legado da nova aliança é liberado mediante a morte de Cristo [Gálatas 3:15].)
Hebreus 9:17 pois um testamento só é confirmado no caso de mortos;... (Confirma-se pelo óbito, não pela mera intenção.) ...visto que de maneira nenhuma tem força de lei enquanto vive o testador. (Assim, sem a morte do Filho, os “bens” da nova aliança não estariam operantes; com sua morte, entram em vigor [Mateus 26:28].)
Hebreus 9:18 Pelo que nem a primeira aliança foi sancionada sem sangue;... (O Sinai foi selado com sangue — é princípio pactual: sem sangue não há ratificação [Êxodo 24:3-8].)
Hebreus 9:19 porque, havendo Moisés proclamado todos os mandamentos segundo a lei a todo o povo,... (Leitura pública do “livro da aliança” antes da consagração [Êxodo 24:7].) ...tomou o sangue dos bezerros e dos bodes, com água, e lã tinta de escarlate, e hissopo... (Êxodo 24 menciona “novilhos”; Hebreus combina elementos de outras purificações — água, escarlate e hissopo — presentes em ritos de aspersão como o da novilha vermelha, para enfatizar o padrão de purificação por sangue e água [Números 19:1-10; Salmo 51:7].) ...e aspergiu não só o próprio livro,... (Sinal de que a revelação também é posta sob o selo do sangue.) ...como também sobre todo o povo,... (O povo é consagrado e ligado a Deus pelo sangue; sem isso, não há comunhão pactual [Êxodo 24:6-8].)
Hebreus 9:20 dizendo: Este é o sangue da aliança,... (Fórmula pactual repetida por Jesus na Ceia: “este é o meu sangue da aliança”, mostrando que o Sinai apontava para a cruz [Êxodo 24:8; Mateus 26:28].) ...a qual Deus prescreveu para vós outros. (A aliança é de Deus: Ele define termos, meios e sinais [Êxodo 24:8].)
Hebreus 9:21 Igualmente também aspergiu com sangue o tabernáculo.. (Consagração do espaço sagrado por aspersão, como em ritos de dedicação e purificação [Êxodo 40:9; Levítico 8:10-15].) ...e todos os utensílios do serviço sagrado. (Tudo que serve no culto é santificado por sangue, indicando necessidade de purificação para proximidade com o Santo [Levítico 8:30].)
Hebreus 9:22 Com efeito, quase todas as coisas, segundo a lei,... (“Quase”, pois havia purificações por água ou fogo em alguns casos [Números 31:22-24].) ...se purificam com sangue;... (Princípio geral: vida por vida — o sangue, sede da vida, faz expiação sobre o altar [Levítico 17:11].) ...e, sem derramamento de sangue, não há remissão. (Remissão = cancelamento da culpa. A cruz cumpre e supera todos os ritos ao prover remissão real [Mateus 26:28; Hebreus 10:12, 18].)
Hebreus 9:23 Era necessário, portanto, que as figuras das coisas que se acham nos céus se purificassem com tais sacrifícios,... (“Figuras” = cópias terrenas do santuário celestial; elas exigiam purificações periódicas [Hebreus 8:5; 9:21].) ...mas as próprias coisas celestiais,... (Não porque o céu, em si, seja moralmente impuro, mas porque a nossa entrada e a reconciliação cósmica requerem um sacrifício de ordem celestial; o santuário se torna o palco da apresentação do sangue do Mediador em nosso favor [Hebreus 9:24; Colossenses 1:20].) ...com sacrifícios a eles superiores. (O “melhor” sacrifício é o do Filho — único, santo, eficaz [Hebreus 9:14; 10:10].)
Hebreus 9:24 Porque Cristo não entrou em santuário feito por mãos,... (Não no tabernáculo ou templo terrenos.) ...figura do verdadeiro,... (Cópias/“sombras” do real [Hebreus 8:5].) ...porém no mesmo céu,... (O Santo dos Santos real é o céu de Deus [Hebreus 4:14; 8:1-2].) ...para comparecer, agora, por nós, diante de Deus;... (Emphanisthēnai = manifestar-se na presença de Deus a nosso favor; a intercessão aplicada de sua obra consumada [Romanos 8:34; 1 João 2:1; Hebreus 7:25].)
Hebreus 9:25 nem ainda para se oferecer a si mesmo muitas vezes,... (Sem repetição: o seu sacrifício é suficiente.) ...como o sumo sacerdote cada ano entra no Santo dos Santos com sangue alheio. (O levita traz “sangue alheio” (de animais) e repete todo ano; Cristo traz seu próprio sangue e o faz uma só vez [Levítico 16:34; Hebreus 10:1-3].)
Hebreus 9:26 Ora, neste caso, seria necessário que ele tivesse sofrido muitas vezes desde a fundação do mundo;... (Se o sacrifício de Cristo fosse como os antigos, teria de ser reiterado; absurdo teológico.) ...agora, porém, ao se cumprirem os tempos,... (No “fim das eras”, a consumação dos tempos em que Deus executa seu plano em Cristo [Gálatas 4:4; 1 Coríntios 10:11].) ...se manifestou uma vez por todas,... (ephapax: uma única vez, definitiva [Hebreus 10:10].) ...para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado. (Coração do evangelho: Cristo “apareceu” para abolir o pecado em seu poder condenatório e cultual, pela autooferta [1 João 3:5; Romanos 8:3].)
Hebreus 9:27 E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez,... (Regra ordinária: a morte é única, não cíclica [Eclesiastes 9:5].) ...vindo, depois disto, o juízo,... (Responsabilidade final diante de Deus [Atos 17:31; 2 Coríntios 5:10].)
Hebreus 9:28 assim também Cristo,... (Paralelo tipológico: como a morte humana é única, o sacrifício de Cristo também o é.) ...tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos,... (Eco de Isaías: o Servo “levou o pecado de muitos” [Isaías 53:11-12]; “uma vez para sempre” reforça suficiência e irrepetibilidade [Hebreus 10:12, 14].) ...aparecerá segunda vez, (Terceiro “aparecer” do parágrafo: Ele “apareceu” para remover o pecado [Hebreus 9:26], “aparece” agora perante Deus por nós [Hebreus 9:24], e aparecerá aos homens na parousia [Tito 2:13].) ...sem pecado,... (Não para tratar de pecado outra vez, mas sem relação com o pecado — já resolvido na cruz [Hebreus 10:18].) ...aos que o aguardam para a salvação. (Consumação da salvação para os que vivem em expectativa fiel [Filipenses 3:20-21; 2 Timóteo 4:8; Isaías 25:9]. A esperança cristã é vigilante e confiante, ancorada no sacerdócio e no retorno do Senhor [Hebreus 6:19-20].)
VII. Devocional de Hebreus 9
Em Hebreus 9 vemos, como num único feixe de luz, que todo o tabernáculo e suas cerimônias eram um mapa para Cristo: o Santo dos Santos apontava para o céu, o sangue dos sacrifícios para o sangue do Cordeiro, e o sacerdote que entrava uma vez por ano prefigurava o nosso Sumo Sacerdote que entrou “uma vez por todas” com Seu próprio sangue (Hb 9:11–12, 24–26). Sem derramamento de sangue não há perdão — e por isso Ele se ofereceu, não com bodes e novilhos, mas com a Si mesmo, para purificar a consciência e nos libertar das “obras mortas” a fim de servirmos ao Deus vivo (Hb 9:14, 22). Hoje Ele aparece na presença de Deus por nós, sustentando-nos com intercessão eficaz; ontem Ele apareceu para tirar o pecado pelo Seu sacrifício perfeito; e amanhã Ele aparecerá “sem pecado”, para salvação dos que O aguardam (Hb 9:24, 26, 28). Assim, a culpa é removida, o acesso é aberto e a esperança é certa: olhe para trás e descanse na cruz, olhe para cima e confie na intercessão, olhe adiante e viva em santidade, esperando o Rei — e, enquanto espera, aproxime-se com ousadia, lave o coração no sangue que fala paz, e sirva com alegria Àquele que uma vez Se deu por você e agora vive para o salvar completamente.A. O Sumo Sacerdote das “boas coisas vindouras”
“Cristo, porém, tendo vindo como sumo sacerdote dos bens já realizados, por meio do maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação, e não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas por meio do seu próprio sangue, entrou, uma vez por todas, no Santo dos Santos, tendo obtido eterna redenção.” (Hb 9.11–12)
Há passagens da Escritura que, se não tomarmos tempo para parar e contemplar, passam por nós como um vento suave; mas, se nos detemos, percebemos que são, de fato, o sopro impetuoso do próprio céu. Hebreus 9.11–12 é uma dessas. Aqui, em poucas frases, o Espírito nos conduz do átrio do tabernáculo ao próprio coração do trono eterno; tira-nos da poeira das sombras mosaicas e nos coloca diante da realidade consumada em Cristo Jesus. Não é mera comparação: é consumação; não é um passo adiante em religião: é a troca da figura pelo próprio corpo (Cl 2.17), da lembrança anual pelo “uma vez por todas” (Hb 10.3,10).
Consideremos, então, a ordem desta afirmação apostólica. O autor fala de um Sumo Sacerdote, de um Tabernáculo, de um Sangue e de uma Redenção. O antigo Israel conhecia bem estes termos (Lv 16; Êx 25–28). Mas notemos o acento: maior, mais perfeito, não feito por mãos; não o sangue animal, mas o Seu próprio sangue; uma vez por todas; eterna redenção. Tudo aponta para a singularidade do nosso Senhor.
Primeiro, “Cristo, porém, tendo vindo como sumo sacerdote dos bens já realizados”. O sacerdócio aarônico era pedagógico e provisório; servia como figura (Hb 8.5; 10.1). A cada ano, o Dia da Expiação lembrava ao povo que o problema não estava resolvido; o próprio rito da repetição era uma confissão de insuficiência (Hb 10.4,11). Mas “tendo vindo” — eis o advento que o Sinai jamais pôde produzir — o Filho assume carne (Jo 1.14), para ter “o que oferecer” (Hb 8.3), e apresenta-Se como o Sumo Sacerdote das boas coisas vindouras: perdão real, consciência purificada, acesso ao Santo dos Santos, promessa de uma herança incorruptível (Hb 9.14–15; 10.19; 1Pe 1.4). O antigo ministrava sombras; este administra bens.
Segundo, “por meio do maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos”. Aqui somos tentados a pensar imediatamente no céu (Hb 9.24), e não erramos; mas não esqueçamos a encarnação: “o Verbo tabernaculou entre nós” (Jo 1.14). No corpo santo do Filho — verdadeiro santuário, onde “habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9) — Deus e homem se encontram sem véu. E, ressuscitado e exaltado, Ele entra “no próprio céu, para comparecer, agora, por nós, diante de Deus” (Hb 9.24). O contraste é total: não mais um santuário “desta criação”; não mais tecido humano, tábuas e ouro batido; não mais o brilho da Shekinah velado por cortinas. Agora é o maior tabernáculo, “que o Senhor erigiu, e não o homem” (Hb 8.2). E é por isso que a nossa fé deixa de ser uma coreografia terrena e se torna um movimento ascensional: “buscai as coisas do alto, onde Cristo vive” (Cl 3.1).
Terceiro, “nem por sangue de bodes e de bezerros, mas por seu próprio sangue”. Aqui está o nervo do argumento. O sangue animal, por designação divina, ministrava purificação cerimonial (Hb 9.13), apontando para Algo-além-de-si; mas “não é possível que o sangue de touros e bodes remova pecados” (Hb 10.4). No entanto, “o seu próprio sangue” — oh, a santidade desta expressão! — não é símbolo; é substância; não é didática; é eficácia. O valor do sacrifício mede-se pela dignidade da pessoa que o oferece e pela perfeição da vítima oferecida: aqui, Sacerdote e Cordeiro se identificam; Aquele que oferece é o Mesmo que se oferece (Jo 10.17–18; Ef 5.2). O Deus-homem derrama sangue humano de valor infinito; por isso, diz o apóstolo, “quanto mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a vossa consciência de obras mortas, para servirdes ao Deus vivo!” (Hb 9.14). Vede o alcance: não apenas remove culpa forense, mas lava o interior, desarma a memória acusadora, liberta do culto mecânico e impele ao serviço vivo.
Quarto, “entrou, uma vez por todas, no Santo dos Santos, tendo obtido eterna redenção”. No Dia da Expiação, o sumo sacerdote “entrava” — mas sempre de novo, e nunca sem tremor (Lv 16.2; Hb 9.7). Cristo “entrou” — e a Escritura faz soar o advérbio: “uma vez por todas” (Hb 9.12; 10.10). Aqui está a diferença entre religião e Evangelho: a primeira repete; o segundo consuma (Jo 19.30). O resultado não é alívio temporário, mas “eterna redenção”. Não se trata de uma aquisição precária, que dependa de o ofertante voltar no próximo ano; é um resgate com validade de eternidade, porque repousa na obra de um Sacerdote que “permanece para sempre” e “vive sempre para interceder” (Hb 7.24–25). A cruz é o Seu “tudo está consumado”; o céu é o Seu “para sempre Eu vivo por eles”.
Permiti que vos pergunte pastoralmente: qual sangue vos introduz na presença de Deus? Alguns confiam no sangue de seus esforços — pouco mais do que bodes e bezerros com nomes modernos: rotinas, disciplinas, humores devocionais. Outros tentam compensar, aumentar, repetir — como se o Santo dos Santos ainda estivesse fechado e restasse ao homem inventar chaves. Mas a Escritura chama isso de “obras mortas” (Hb 9.14). “Obras mortas” são até coisas boas quando transformadas em moeda de troca; são iscas da consciência inquieta, mas não abrem caminho além do véu. Deus não pede que tragas sangue; pede que venhas pelo sangue. “Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que Ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela Sua carne… aproximemo-nos” (Hb 10.19–22).
Aqui, então, está o Cristo que Hebreus 9 nos apresenta: Sumo Sacerdote que é também Santuário; Oficiante que é também Oferta; Caminho que é também Destino. E tudo “uma vez por todas”, para que tu vivas, não de repetições ansiosas, mas de realidades firmes. Vês como isto transforma a vida cristã?
Transforma a consciência. A religião das sombras produzia “lembrança de pecados” (Hb 10.3). O Evangelho produz esquecimento divino: “dos seus pecados jamais me lembrarei” (Hb 8.12). Não há música mais doce para uma alma que cansou de ouvir-se: “eterno resgate”. E quando a velha acusação se erguer, aponta para o “uma vez por todas” e responde: “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica… Cristo Jesus é quem morreu; antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós” (Rm 8.33–34).
Transforma a adoração. Se Cristo entrou, por que ficarias no átrio? Aproxima-te! Não como curioso, mas como filho; não com autoconfiança, mas com sangue nas mãos — não o teu, o Dele (Ef 2.18; Hb 4.16). Tua oração deixa de ser tentativa de convencer um Deus relutante; torna-se participação numa realidade já aberta: “nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2.6). Sobe, então, em fé; e quando a mente dispersa te puxar para o átrio, lembra: o véu rasgou-se de alto a baixo (Mt 27.51). Não foste tu; foi Deus. E se Deus abriu, entra.
Transforma a santidade. “Purificar a consciência… para servirmos ao Deus vivo” (Hb 9.14). A graça não te deixa onde te encontrou. O sangue que te absolve é o sangue que te consagra. Se dizes: “Tenho paz”, mas continuas abraçado às “obras mortas” — pecados polidos, hábitos mantidos — não entendeste. O Sumo Sacerdote não te cobre para te deixar nas trevas; Ele te limpa para que sirvas. A lei que uma vez soou do Sinai agora é escrita no coração (Hb 8.10; Ez 36.26–27). Não é leve, é viva; não é mão de ferro, é mão por dentro. E quando falhares — e falharás — não inventes um novo sangue; volta ao único, e levanta-te, porque “com uma única oferta aperfeiçoou para sempre os que estão sendo santificados” (Hb 10.14).
Transforma a esperança. “Eterna redenção” significa que o diabo perde o direito de última palavra. A morte, que antes fechava a porta, agora é porteira que abre para casa (Hb 2.14–15). O teu Sumo Sacerdote não apenas entrou; Ele é o Precursor (Hb 6.20). Onde Ele está, tu estarás (Jo 14.2–3; Cl 3.4). A âncora da tua alma não desce a mares incertos; sobe e prende-se “além do véu” (Hb 6.19). E se a tempestade vier — e virá — não lances novas âncoras; reforça a mesma. A tua segurança não está na força do cabo, mas no rochedo a que ele se agarra: o sangue e a intercessão de Cristo.
E a evangelização? Um texto assim fecha as bocas que dizem: “Para mim já não há remédio.” O sangue de bodes e bezerros, sim, não poderia; mas “o seu próprio sangue” — ousas colocar os teus pecados acima disto? “O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7). “Aquele que a Mim vem, de modo nenhum o lançarei fora” (Jo 6.37). Não esperes até que as mãos estejam limpas para tomarem o sangue; toma o sangue para que as mãos fiquem limpas.
Voltemos, então, ao início, e ouçamos outra vez a cadência apostólica: Sumo Sacerdote… Tabernáculo maior… próprio sangue… uma vez por todas… eterna redenção. Esta é a música do céu para consciências cansadas da batida ritual de sempre. Não te contentes com sombras quando o Sol levantou-se; não finjas sacrifícios quando o Cordeiro foi imolado (Ap 5.6,9). “Tendo, pois… aproximemo-nos” (Hb 10.19–22). Vem com fé — a fé que não apresenta, mas recebe; não compra, mas se deita. Vem como és, ao Cristo que entrou por ti onde tu não podias entrar; e vive daqui em diante como quem já pertence ao lugar onde Ele está. Porque assim é o Evangelho: aquilo que o sacerdote terreno prometia e não podia dar, o nosso Sumo Sacerdote obteve — e o fez para sempre.
B. “Quanto mais!” — Do sangue de animais ao sangue de Cristo
“Porque, se o sangue de bodes e de touros, e a cinza de uma novilha, aspergidos sobre os contaminados, os santificam, quanto à purificação da carne, quanto mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a vossa consciência de obras mortas, para servirdes ao Deus vivo?” (Hb 9.13–14)
Há textos que nos tomam pela mão e nos conduzem do pátio do antigo tabernáculo diretamente ao Santo dos Santos do evangelho. Aqui o autor aos Hebreus faz exatamente isso. Ele convoca a assembleia inteira de símbolos mosaicos — sangue, água corrente, hissope, a novilha vermelha (Nm 19), o grande dia da expiação (Lv 16) — e, com um único “quanto mais”, põe tudo aos pés do Cordeiro sem mácula. O argumento é de uma simplicidade majestosa: se aquilo que era sombra produzia efeitos reais, ainda que limitados, quanto mais a realidade produzirá efeitos totais e duradouros (Hb 10.1–4).
Consideremos primeiro a pedagogia de Deus no Antigo Testamento. O sangue de touros e bodes, aspergido pelo sumo sacerdote, interrompia o curso justo da ira e restituía o povo ao convívio da aliança (Lv 16.15–19). A cinza da novilha, misturada com água viva, tocava o impuro por contato com a morte — um cadáver, um osso, um túmulo — e o readmitia à congregação (Nm 19.11–13). Chamai isso de “purificação da carne”, como o texto a chama. É coisa preciosa, ainda que externa: era Deus dizendo ao pecador: “Quero-te de volta ao arraial, quero-te na Minha presença.” O rito era pesado, sim, mas era graça: melhor sete dias fora com a esperança da aspersão do que sete vidas sem Deus e sem esperança no mundo (Ef 2.12).
Mas não vos enganeis: tudo isso era sombra. O sangue animal não penetra a consciência; a cinza não alcança a raiz; a água que corre do cântaro não atravessa o véu do coração. Por isso o Espírito Santo ilumina a igreja com a comparação que desarma as objeções: “quanto mais o sangue de Cristo…” O argumento vai do menor ao maior. Se Deus usou sinais inferiores para manter viva a comunhão do povo, que fará Deus por meio do Seu próprio Filho, “sem mácula e sem defeito” (1Pe 1.19)?
A frase é uma catedral teológica: “o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus.” Aqui está a Trindade em ação na nossa redenção. O Pai é Aquele a quem se oferece; o Filho é o Sacerdote e a Vítima; o Espírito eterno é o sopro, o fogo, o vínculo pessoal que consagra e conduz a oblação do Filho (Hb 9.14; Ef 5.2). Não vos admireis: somente uma obra trinitária poderia purificar o que a queda contaminou tão profundamente.
Notai também o advérbio moral do texto: “sem mácula.” O Antigo exigia vítimas sem defeito exterior; o Novo apresenta uma vítima santa em essência, “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores” (Hb 7.26). O que Deus pedia em figura, Deus providenciou em plenitude. Por isso a pergunta pastoral que se impõe é esta: em que sangue tua consciência repousa? Muitos vivem em religião de “purificação da carne”: remendos, promessas, pequenos ritos, grandes resoluções. Parecem piedosos, mas carregam um santuário interior onde o véu permanece fechado. A consciência rumina, acusa, silencia, volta a acusar. É porque a religião das sombras não chega lá. O evangelho chega. “Quanto mais” o sangue de Cristo “purificará a vossa consciência de obras mortas”.
“Obras mortas” — não passeis depressa por esta expressão. Há duas fileiras nesse cortejo fúnebre. Na primeira, estão os pecados que todos reconhecem: impurezas, mentiras, violências, idolatrias. Mortas, porque são frutos de quem está “morto em delitos e pecados” (Ef 2.1). Na segunda, caminham obras de aparência viva: devoções praticadas como moeda, moralidades erguidas como escada para o céu, reformazinhas para acalmar Deus. Mortas também — porque nascem do orgulho, não da fé; tentam comprar o favor que só pode ser recebido (Rm 4.4–5; Hb 6.1). O sangue de Cristo não serve para polir cadáveres; serve para suscitar vida onde só havia morte. Ele não veio apenas livrar-te de más ações; veio arrancar a raiz do culto falso que se oferece a si mesmo.
E para quê tudo isso? O texto responde: “para servirdes ao Deus vivo.” A purificação do evangelho não é estética; é vocacional. É a abertura do caminho, não para uma sala de estar, mas para o templo. A palavra aqui traduzida por “servir” é a do culto sacerdotal (latreúein). Cristo limpa a consciência para pôr no coração uma batina; lava-te para que te tornes adorador. O objetivo não é deixares de fazer coisas más e continuares onde estavas; é seres introduzido num novo regime: “tendo, pois, irmãos, ousadia para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus… aproximemo-nos” (Hb 10.19–22). Vês a ordem? Sangue que limpa; consciência que repousa; pés que entram; vida que serve.
Talvez digas: “Mas a minha consciência é teimosa; ela conhece pecados que eu conheço, e conhece outros que só Deus e eu sabemos.” Sim, e é por isso mesmo que precisas não do sangue das sombras, mas do sangue de Cristo. O argumento do apóstolo não é psicológico; é teológico. A paz não nasce de persuadir a consciência a se calar, mas de apresentá-la ao único sangue que possui autoridade para calá-la. É Deus quem diz: “Lançarei os vossos pecados nas profundezas do mar” (Mq 7.19); é Deus quem afirma: “Deus é maior do que o nosso coração” (1Jo 3.20). Quando a consciência te acusa com fatos, tu a respondes com o fato maior: “Cristo Jesus é quem morreu; sim, quem ressuscitou; o qual também intercede por nós” (Rm 8.34). E quando ela te tenta com sutilezas — “Mas e aquele pecado específico? Mas e a tua reincidência?” — responde com a gramática do céu: “quanto mais o sangue de Cristo…”
Não negligenciemos a menção do “Espírito eterno”. Alguns tratam a cruz como se fosse um episódio isolado, um gesto bonito de altruísmo. A Escritura não permite. O Filho ofereceu-Se “pelo Espírito eterno”. Quer dizer: a obediência de Cristo não foi apenas impecável; foi animada, ungida, incendiada pelo próprio Espírito Santo (Is 61.1; Lc 4.18). A oblação de Cristo é eterna em valor porque é trinitária em natureza. Por isso ela não expira. O mesmo Espírito que O conduziu ao altar O conduziu ao trono; e do trono Ele envia esse Espírito ao coração purificado, a fim de o fazer templo e oficina de santidade (At 2.33; 1Co 6.19–20). A lavagem é seguida de habitação; a purificação desemboca em presença. Não admira, então, que o autor chame Deus de “Deus vivo”. O culto cristão não é manter tradições diante de um conceito; é servir Aquele que vive, fala, conduz, consola, corrige, envia (Hb 3.12–13; 12.22–24).
E que dizer da fronteira mais terrível — a da morte? Foi ela que tornou impuro o israelita, exigindo água corrente e cinza para o readmitir. O evangelho vai mais longe: não apenas te readmite após tocares a morte, mas te liberta do “pavor da morte” ao anunciar que a própria morte foi tocada e vencida pelo teu Sumo Sacerdote (Hb 2.14–15). A novilha vermelha não podia entrar na tumba; Cristo entrou, desceu ao mais fundo do nosso vale, e de lá saiu, “pelo sangue da eterna aliança”, para ser “o grande Pastor” que te conduz “por veredas de justiça” (Hb 13.20; Sl 23.3). Daí a consequência: quem tem a consciência lavada pelo Seu sangue aprende a olhar para a morte como porteira, não como muralha; a vida inteira muda de rosto.
Permite-me, então, aplicar. Há entre nós quem viva sob uma névoa persistente de culpa. O passado cola-se como poeira à alma; palavras que disseste, decisões que tomaste, oportunidades que trouxeste a pique. Tens feito o que podes: tentas compensar; redobras esforços; fazes promessas; te disciplinas. E, no entanto, a névoa fica. Ouve o evangelho: Deus não te manda fabricar um detergente moral; Ele te manda vir e te deixar aspergir. “Aproximai-vos de Deus… purificados os corações de má consciência, e lavado o corpo com água pura” (Hb 10.22; Ez 36.25–27). Vem com o que tens — que é nada — e recebe o que Ele tem — que é Tudo. Não te peço emoções; peço fé. Não te mando sentir-te limpo; mando-te olhar para o sangue e crer na Palavra que diz: “Se andarmos na luz… o sangue de Jesus, Seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7).
Há também quem viva de obras mortas. Talvez não te reconheças nelas, porque tens horror a pecados grosseiros. Mas obras mortas não são só transgressões; são serviços sem vida, rezas sem coração, obediências para inglês ver, ortodoxia sem ardor, militância sem amor. O sangue de Cristo não foi derramado para te deixar nesse estado; ele purifica para servires. Não te contentes com “não faço mal a ninguém”; busca o privilégio tremendo de seres sacerdote em tudo: no trabalho, no lar, no silêncio, no pranto, no riso. O Deus vivo não procura performances; procura adoradores (Jo 4.23). E adoradores não nascem de esforço nu; nascem de consciências lavadas.
E, por fim, há quem tema que tal mensagem rebaixe a moralidade. “Se dizes ao povo que está tudo limpo, não viverão como querem?” Escuta o texto: o sangue purifica daquilo que te afastava de Deus, para te por inteira e gozosamente a Seu serviço. Graça barata não é graça; é caricatura. A verdadeira graça escreve a lei no coração, e fa-lo dizer: “Já não sou meu; fui comprado por preço” (Hb 8.10; 1Co 6.20). A santidade deixa de ser um fardo imposto e se torna uma música interior que o Espírito compõe no homem novo. E, sim, tropeçamos ainda; mas voltamos ao mesmo sangue — não para legitimar, mas para levantar — porque “com uma única oferta aperfeiçoou para sempre os que estão sendo santificados” (Hb 10.14).
Tomemos, então, a pequena palavra que derruba mundos: quanto mais. Se a sombra te reintegrava ao arraial, quanto mais a substância te introduz no Santo dos Santos. Se a cinza te tocava por fora, quanto mais o sangue te lava por dentro. Se a água corria num cântaro, quanto mais o Espírito eterno flui do trono para fazer de ti templo. E, tendo crido, não hesites: “tendo, pois… aproximemo-nos.” Aproxima-te hoje; aproxima-te sempre. Tua consciência foi feita para repousar, e Deus fez provisão para isso no sangue do Seu Filho. E, uma vez repousada, levanta-te — e serve. Porque foi para isso que Ele te purificou: para que, livre de obras mortas, vivas face a face com o Deus que vive.
C. Sem sangue, não há perdão
“Sem derramamento de sangue não há remissão.” (Hb 9.22)
Poucas sentenças soam tão estranhas ao ouvido moderno quanto esta. Falamos de progresso, de educação, de terapia — e o evangelho começa falando de sangue. Mas não é um capricho religioso nem uma relíquia de cultos primitivos; é uma necessidade moral, a linguagem da santidade de Deus e da gravidade do pecado. Desde o Êxodo, o tabernáculo e “quase todas as coisas” foram purificadas com sangue (Hb 9.18–21); antes mesmo da Lei, altares se erguiam e vítimas eram imoladas; e quando a Lei foi dada, cada ofensa exigia morte vicária, o sangue aspergido no altar e no ofertante (Lv 4–6; 16). Por quê? Porque “a vida da carne está no sangue” e Deus o deu “sobre o altar, para fazer expiação” (Lv 17.11). A vida pelo culpado, o inocente pelo réu — esta é a gramática moral inscrita pela própria santidade de Deus.
Não vos enganeis: as purificações por fogo e água tinham seu lugar, mas apenas para impurezas cerimoniais (Nm 19). Quando a culpa era moral, a resposta divina vinha na forma de sangue. Até a exceção pedagógica do pobre que trazia farinha (Lv 5.11–13) não negava a regra: um punhado era queimado no altar para ensinar que o pecador merecia o fogo do juízo, e que somente uma expiação podia intervir. Tudo apontava para frente. Os sacrifícios, repetidos ano após ano, nunca deram paz final à consciência (Hb 10.1–4); eram sombras de um bem vindouro, setas apontando para o Cordeiro.
É assim que os profetas falam. Isaías vê o Servo “traspassado pelas nossas transgressões” e “fazendo sua alma oferta pelo pecado” (Is 53.5,10). Daniel ouve que ele “fará cessar o sacrifício” ao “expiar a iniquidade” e “trazer justiça eterna” (Dn 9.24,26). Zacarias anuncia “uma fonte aberta… para o pecado e para a impureza” (Zc 13.1). João Batista não apresenta um reformador, mas “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29). E quando o próprio Cristo toma o cálice, interpreta-o assim: “este é o meu sangue… derramado para remissão de pecados” (Mt 26.28). Os apóstolos falam a mesma língua: Deus “adquiriu a igreja com o seu próprio sangue” (At 20.28); “sendo agora justificados pelo seu sangue” (Rm 5.9); “temos a redenção pelo seu sangue” (Ef 1.7); o sangue “precioso, como de cordeiro sem defeito e sem mácula” (1Pe 1.19). Negai a necessidade do sangue, e toda a Escritura se desfaz; mantende-a, e todas as peças se encaixam.
“Sem derramamento de sangue não há remissão.” Esta negativa absoluta humilha o homem e exalta a graça. Ela diz que o pecado é tão maligno que nem lágrimas, nem promessas, nem moralidades podem apagá-lo. O homem natural insiste numa religião sem sangue — um cristianismo de boas intenções, alguns sacramentos, uma respeitabilidade. Mas Deus declara: “não há remissão”. Eli avisou seus filhos: transgressões contra homens podem encontrar mediação; desprezo pela oferta de Deus não tem mediador (1Sm 2.17,25). O autor aos Hebreus é igualmente explícito: rejeitado o sacrifício de Cristo, “já não resta sacrifício pelos pecados, mas certa expectação horrível de juízo” (Hb 10.26–27). O que resta, então? Restam ou as sobras trêmulas de uma autojustiça impotente, ou o sangue do Cordeiro. As sombras da Lei eram muitas; o sacrifício real é um só. Deus não nos envia volta e meia à manjedoura dos bodes; envia-nos, de uma vez por todas, à cruz do Seu Filho.
Contemplai, então, o escândalo e a beleza do evangelho: Aquele que é “santo, inocente, imaculado” oferece-Se “pelo Espírito eterno” a Deus (Hb 7.26; 9.14). Aqui está a Trindade em ação: o Pai é Aquele a quem se oferece; o Filho é o Sacerdote e a Vítima; o Espírito é o unção e o fogo que consagra a oblação. Por isso o sangue de Cristo faz o que sangue nenhum jamais fez: não purifica só o pátio; purifica a consciência, e o faz de modo que não precisa ser repetido (Hb 9.14; 10.14). A linguagem da graça não é “tente novamente”, mas “está consumado” (Jo 19.30).
E que dizer de nós? Este texto nos impede de tratar o pecado como bagatela. Se foi preciso o Calvário para a tua mentira, o teu orgulho respeitável, a tua indiferença religiosa, quem ousará chamá-los de “pequenos defeitos”? O salmista, ao lembrar sua culpa, não recorre a floreios; ele clama por hissopo — o ramo das aspersões — e por uma lavagem que só Deus pode dar: “purifica-me… e ficarei mais alvo do que a neve” (Sl 51.7). É esta a fé bíblica: não nega a imundícia, mas corre à fonte.
Este texto também desfaz o mito piedoso da autojustiça. Misturar obras com o sangue é anular o sangue; é “frustrar a graça de Deus” (Gl 2.21). Paulo, que tinha um currículo irrepreensível, preferiu “não ter justiça própria… senão a que vem pela fé em Cristo” (Fp 3.9). Quando os judeus tentaram “estabelecer sua própria justiça”, tropeçaram (Rm 10.3). E quando alguém toma um rito — a circuncisão, uma obediência qualquer — como título para justificar-se, “Cristo de nada aproveitará” (Gl 5.2,4). Esta é a tolice: trocar a rocha por espuma, o sangue por desempenho, a cruz por currículo. Deixai tais refúgios de mentira; neles “não há remissão”.
Mas, se a negativa é absoluta, o consolo é igualmente absoluto. Justamente porque “sem derramamento… não há”, com derramamento de sangue há remissão. O mesmo apóstolo que ergue o aviso abre o evangelho: “o sangue de Jesus… nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7). Não acrescenteis exceções onde Deus não as escreveu. Adultério e homicídio foram lavados (2Sm 12; Sl 51); blasfemos e perseguidores foram justificados (1Tm 1.13–16); “lavou-nos de nossos pecados no seu sangue” e fez de nós um povo sacerdotal (Ap 1.5–6). A fonte continua aberta (Zc 13.1). O convite permanece: “lavai-vos… ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, se tornarão brancos como a neve” (Is 1.16–18).
E que diremos do amor que assim sangra? O Filho sabia que, se não descesse, não haveria perdão; e, em vez de nos deixar como aos anjos caídos, veio, tomou carne, bebeu até a última gota o cálice que era nosso. “Amou-me e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2.20). É por isso que a igreja canta, e não cessa de cantar: “Àquele que nos ama e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados… a ele a glória e o domínio” (Ap 1.5–6).
Tal é a mensagem: Deus mantém a Sua santidade e salva o pecador. Ele não fecha os olhos para a culpa; Ele a cobre com sangue — não o nosso, não de animais, mas o sangue do Seu Filho. Esta é a pedra angular. Substituí-la, e todo o edifício rui; descansai nela, e tereis paz com Deus (Rm 5.1,9). Vinde, portanto, com a consciência que tendes — pesada, acusadora, inquieta — e ouvi a sentença do céu: “remissão”. E, tendo sido lavados, não volteis às obras mortas; servi, com alegria de resgatados, ao Deus vivo (Hb 9.14).
D. O Santo dos Santos e a Realidade Maior
“Cristo não entrou em santuários feitos por mãos, figura do verdadeiro, porém no próprio céu, para agora comparecer por nós diante de Deus.” (Hb 9.24)
Muitos tropeçam no detalhe do Antigo Testamento: medidas exatas, cortinas com cores definidas, móveis colocados com precisão, um sacerdote que entra numa sala apenas uma vez por ano. Por que tanta minúcia? Porque Deus não estava montando uma feira de símbolos religiosos; estava ensinando o evangelho em linguagem de arquitetura e liturgia. Moisés recebeu o modelo “conforme o padrão mostrado no monte” (Hb 8.5; Êx 25.40). As cópias terrenas foram “purificadas com tais sacrifícios”, para que ficasse claro que “as coisas celestiais” exigiam sacrifícios melhores (Hb 9.23). O Santo dos Santos era uma sala; mas, na catequese de Deus, era também uma janela. Era sombra; por trás dela, a realidade: “o próprio céu” (Hb 9.24).
Considerem o que aquela sala dizia. Ali se manifestava a glória — a shekiná — entre os querubins, sobre o propiciatório, e dali Deus prometia falar (Êx 25.22). O acesso era proibido; apenas o sumo sacerdote, apenas uma vez no ano, “não sem sangue” (Lv 16; Hb 9.7). Dentro, memória e promessa: a arca com as tábuas da Lei, o vaso com o maná, a vara de Arão que florescera (Hb 9.4–5). Deus habitando, Deus interditando, Deus lembrando. Tudo era pedagógico. O brilho no trono de misericórdia era um vislumbre do “esplendor da glória” que enche o céu; o véu era a gramática da santidade; o sangue, a gramática da graça. E os objetos? Cristo é a arca viva, em quem a Lei é guardada e cumprida (Mt 5.17); é o maná verdadeiro que alimenta (Jo 6.32–35); é a vara que brota vida da morte — ressurreição e sacerdócio autenticados pelo próprio Deus.
Mas escutem a boa nova do texto: “Cristo não entrou em santuários feitos por mãos… porém no próprio céu, para agora comparecer por nós diante de Deus” (Hb 9.24). Há um movimento aqui, um contraste deliberado: cópias e o verdadeiro; cortinas e o trono; figuras e Cristo. O autor a Hebreus, com santa ousadia, põe o dedo no centro: por nós. Ele já havia dito: Cristo “se manifestou” uma vez, na consumação dos séculos, “para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo” (Hb 9.26). Ele agora “comparece… por nós” (Hb 9.24). E ele “aparecerá segunda vez… para a salvação” dos que o aguardam (Hb 9.28). Uma obra consumada na cruz, uma presença ativa no céu, uma vinda certa na glória. O evangelho inteiro em três aparições.
“Por nós”: aqui repousa a alma. Ele está lá como Precursor. Um sumo sacerdote levita jamais foi precursor; entrava representando, mas não abrindo caminho. Cristo entrou “como Precursor por nós” (Hb 6.20). É por isso que a esperança funciona “como âncora da alma” que “entra além do véu” (Hb 6.19–20). Ele não subiu para mostrar como os fortes sobem; subiu para que os fracos o sigam. “Na casa de meu Pai há muitas moradas… vou preparar-vos lugar… virei outra vez e vos levarei para mim mesmo” (Jo 14.2–3). O Santo dos Santos estava vedado; o céu, agora, tem lugar com o nosso nome.
Ele está lá como Cabeça e Representante. Tudo o que ele fez, fê-lo em nossa causa e em nosso lugar. Por isso a Escritura fala de nós como “crucificados com Cristo”, “sepultados com ele”, “ressuscitados com ele”; e vai além: “nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (Cl 2.12; Gl 2.20; Ef 2.6). Como? Porque “nossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3.3). O corpo ainda peregrina; a vida já está abrigada. Ele está onde estamos representados; estamos onde ele está aceito. O trono que o recebe, nos resguarda.
E ele está lá como Advogado e Sumo Sacerdote. O levita entrava com sangue alheio; Cristo entrou “com o próprio sangue” (Hb 9.12). O levita queimava incenso; Cristo intercede com mérito (Ap 8.3–4; Hb 7.25). O levita saía apressado; Cristo “vive para sempre” e “pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hb 7.24–25). Não temos um Cristo aposentado, mas um Cristo atuante; não apenas um Gólgota passado, mas um Advogado presente: “se alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 2.1–2).
Como isto nos visita pastoralmente? Primeiro, cura a teologia da orla do átrio. Muitos vivem cristianismo de pátio externo: um certo respeito, um hábito decente, alguma religiosidade — e o véu, para eles, ainda está de pé. O evangelho proclama o contrário: “tendo ousadia para entrar no Santo dos Santos pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos abriu através do véu, isto é, da sua carne… aproximemo-nos com sincero coração, em plena certeza de fé” (Hb 10.19–22). Deus não nos chama a espiar a liturgia; chama-nos a entrar na presença. Não como curiosos, mas como filhos; não por atrevimento, mas por sangue.
Segundo, devolve-nos a segurança que a consciência busca e o legalismo jamais dá. Se o nosso Sacerdote está dentro, aceito, ancorado, como poderemos nós, por quem ele comparece, viver sob pavor servil? “Conservemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel” (Hb 10.23). A fé olha para cima: vê não o seu desempenho, mas o seu Representante; não o humor do dia, mas o mérito perene do Filho. A intercessão dele é o contraponto da acusação do inimigo.
Terceiro, reconfigura a oração e o culto. O altar perfumado estava do lado de fora do véu, mas seu incenso servia ao ministério dentro (Hb 9.4–5). Hoje, nossas orações sobem em nome daquele que ministra diante do trono. Não oramos para convencer um Deus relutante, mas para unir nossa fraqueza à intercessão poderosa de Cristo. Nosso culto não é entretenimento; é aproximação ao “Deus vivo” por meio do “grande Sacerdote sobre a casa de Deus” (Hb 4.14–16; 10.21). É por isso que uma igreja fascinada com a presença de Deus torna-se também uma igreja séria com o pecado, séria com a cruz, séria com a santidade.
Quarto, chama-nos a viver como sacerdócio santo. Se temos livre acesso, não é para voltarmos às “obras mortas”, mas para servirmos (Hb 9.14). “Vós… sois sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo” (1Pe 2.5). Sacrifícios de louvor, de obediência, de misericórdia (Hb 13.15–16). A vida no mundo torna-se vida “diante de Deus”, porque o nosso Sacerdote nos introduziu ali. A ética muda: “buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive… pensai nas coisas lá do alto” (Cl 3.1–2). Não alienação do mundo, mas santificação no mundo pela consciência do trono.
E se alguém pergunta: por que abandonar as cópias, se são belas? Porque agora o Véu rasgou-se (Mt 27.51). Insistir nas sombras quando o Sol se ergueu é desprezo, não piedade. A gravidade de Hebreus ecoa: agarrar-se às figuras e negligenciar o por nós de Cristo é caminhar para “terrível expectativa de juízo” (Hb 10.26–27). Não troque o trono por tapeçarias, a realidade por pedagogia, o Sumo Sacerdote vivo por ritos sem vida.
Levantemos, então, os olhos. O nosso Cristo apareceu uma vez para remover o pecado (Hb 9.26). Ele aparece agora por nós, diante de Deus (Hb 9.24). Ele aparecerá outra vez, “sem pecado, para a salvação” dos que o aguardam (Hb 9.28). Entre a cruz e a coroação, entre o já e o ainda-não, a igreja vive de cabeça erguida, pés na terra e coração no Santo dos Santos. Entremos, confiados no sangue; permaneçamos, sustentados pela intercessão; sirvamos, como sacerdotes do Deus vivo; e esperemos, com júbilo reverente, até que o Precursor nos chame pelo nome e diga: “Vinde” (Jo 14.3; Mt 25.34).
E. Uma vez e para sempre: A segunda vinda de Cristo
“E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo, assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação.” (Hebreus 9:27–28)
Aqui está, em duas frases, a seriedade suprema da vida e a única consolação suficiente para a morte. De um lado, a sentença universal: está ordenado morrer — e uma só vez — e depois disto, o juízo (Hb 9:27; Ec 9:10; At 17:31). Do outro, a resposta divina: o Filho de Deus ofereceu-Se uma vez — e aparecerá de novo — para consumar a salvação dos que O aguardam (Hb 9:28).
Permita-me dizer com toda a franqueza: tudo na sua vida se decide entre esses dois “umas vezes”. Uma vez você morrerá; uma vez Cristo se ofereceu. E todo o seu destino depende de como o segundo “uma vez” lida com o primeiro. Se você lê o versículo 27 sem o 28, terá apenas pavor; se lê o 28 sem o 27, cairá em leviandade. O evangelho une os dois: sob o peso do juízo, coloca a cruz; diante do tribunal, nos dá um Advogado (Rm 8:33–34).
O escritor já disse que Cristo “apareceu” no fim dos tempos para aniquilar o pecado pelo sacrifício de Si mesmo (Hb 9:26), que agora aparece na presença de Deus por nós (Hb 9:24), e que aparecerá segunda vez para salvação (Hb 9:28). Três aparições, uma obra. Passado: expiação realizada. Presente: intercessão contínua. Futuro: redenção consumada. É assim que a fé respira e caminha: olha para trás e descansa; olha para cima e se sustém; olha para frente e se alegra.
Mas voltemos à gravidade do texto. “Aos homens está ordenado morrerem uma só vez.” Não há repetição, não há ensaio geral, não há retorno para corrigir erros. Uma só vez. E “depois disto, o juízo”. O que é mais real para sua consciência — essa sentença de Deus, ou os sofismas de uma cultura que banaliza a morte e ridiculariza o juízo? O homem moderno se refugia no humor, na distração, no ativismo; mas a Escritura não recua: “todos devemos comparecer perante o tribunal de Cristo” (2Co 5:10). A morte não é o fim; é o portal para a presença de Deus — para absolvição ou condenação (Mt 25:31–46).
É aqui que o evangelho ergue sua bandeira: “Assim também Cristo…” Você vê o paralelo? Assim como a morte é única, também o sacrifício de Cristo é único. Se o nosso problema fosse pequeno, bastariam esforços e reformas; mas, porque o nosso problema é o pecado diante de um Deus santo, foi necessário sangue (Hb 9:22), não de bodes e novilhos, mas do Cordeiro sem mácula (1Pe 1:19). Por isso o texto insiste: uma vez. Não é tentativa; é consumação (Hb 10:14). A repetição dos sacrifícios judaicos era confissão de insuficiência; a singularidade do Calvário é a proclamação de eficácia.
E “aos que o aguardam” Ele “aparecerá segunda vez, sem pecado, para a salvação”. “Sem pecado” — não porque Ele tivesse pecado na primeira vinda, mas porque, então, assumiu a questão do pecado; veio tratar do pecado, levando a culpa, suportando a maldição (Is 53:6; Gl 3:13). Na segunda vinda, não há mais o tema do pecado a resolver; há a salvação a manifestar plenamente: corpos transformados, criação renovada, choro cessado (Fp 3:20–21; Ap 21:1–4). A primeira vinda removeu a culpa do pecado; a segunda removerá a presença do pecado.
Permita que eu lhe pergunte, como faria o velho doutor: você está entre os “que O aguardam”? Não se trata de curiosidade sobre datas, nem de febre apocalíptica. Aguardar é postura do coração. É a santa impaciência que chama Cristo de “bem-aventurada esperança” (Tt 2:13), que vive sóbria, justa e piedosamente porque O aguarda. É a noiva que se prepara (1Jo 3:2–3). É a alma que, tendo aprendido a dizer “por causa dEle” quando se aproxima de Deus (Hb 10:19–22), aprendeu também a dizer “vem, Senhor Jesus!” (Ap 22:20).
Talvez você tema o versículo 27. Sua consciência sabe que haverá juízo, e você sente que não pode resistir. Ótimo: esse é o início da sabedoria. Mas não pare aí. Veja o versículo 28: “Cristo se ofereceu para levar os pecados de muitos.” Muitos — homens e mulheres de toda língua e nação; muitos — os que se curvam e se lançam no único refúgio; muitos — pecadores reais, com culpas reais, precisamente como você. A questão, então, não é se há salvação suficiente, mas se você aguarda Aquele que a traz. “A quem muito é perdoado, muito ama” (Lc 7:47); e quem O ama, O aguarda.
E você, crente exausto, que crê e ainda carrega sombras: lembre-se do “agora” do versículo 24. Ele agora aparece diante de Deus por você. Não apenas apareceu no passado; não apenas aparecerá no futuro; agora Ele sustenta sua causa. Quando o acusador enumera falhas, a intercessão do Filho silencia a corte: “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu, ou antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós” (Rm 8:33–34). Alimente sua esperança aí; e deixe que essa esperança molde sua vida — santidade que brota da certeza, vigilância que nasce da esperança (2Pe 3:11–14).
O texto começa com um decreto e termina com uma promessa. O decreto você não pode alterar: você morrerá, e depois virá o juízo. A promessa você pode abraçar: Cristo apareceu uma vez por seus pecados, agora aparece por você, e aparecerá para salvá-lo completamente. Não adie. A fé não é um sentimento vago; é lançar-se inteira e imediatamente sobre Cristo, repousar na Sua obra consumada, viver sob a Sua intercessão presente e ansiar pela Sua vinda gloriosa.
Quando esse dia chegar — e ele chegará — não haverá mais tempo para ajustes. Haverá apenas dois olhares: o pranto dos que não O aguardavam (Ap 1:7) e a alegria indizível dos que O esperavam (1Ts 4:16–18). Em qual você estará? Hoje é o tempo de responder. Hoje é o dia aceitável. Hoje o Cordeiro, que uma vez se ofereceu, diz: “Vinde a Mim” (Mt 11:28). E a Igreja, que O aguarda, responde: “Vem!” (Ap 22:17). Que sua voz se una a essa resposta. E que, naquele grande dia, quando Ele aparecer sem pecado, você o veja não como Juiz a temer, mas como Salvador a abraçar. “Maranata!”
VIII. Concordância Bíblica Comentada
Hebreus 9:1 abre a nova seção com uma frase densa: “Tinha, portanto, também a primeira [aliança] regulamentos (dikaiōmata) de culto (latreía) e o santuário terreno (to hágion kósmikon).” O autor chama a antiga aliança de “a primeira” — o mesmo contraste que já havia estabelecido quando disse que, se ela fosse irrepreensível, não se buscaria lugar para outra (Hebreus 8:7) e que, declarando-se “nova”, a anterior se tornava “antiga” e prestes a desaparecer (Hebreus 8:13). Ao dizer que a primeira “tinha regulamentos de culto”, ele alinha sua leitura com o próprio Pentateuco: “fareis os meus estatutos e os meus juízos” (Levítico 18:3–4, 30), “guardareis os meus preceitos” (Levítico 22:9). Havia calendário, purezas, proibições, prescrições — uma gramática inteira de santidade, expressa, por exemplo, no cuidado pascal de não quebrar osso e não deixar restos até a manhã (Números 9:12), detalhe que, além de obedecido sob a primeira aliança, prenunciava o Cordeiro perfeito. Até os profetas, quando descrevem o futuro templo, falam de “forma da casa, suas saídas e entradas, e todos os seus estatutos e leis” (Ezequiel 43:11), isto é, de uma ordem cultual que catequizava Israel. E quando Lucas nos apresenta Zacarias e Isabel, resume a piedade sob o antigo arranjo assim: “andavam irrepreensíveis em todos os mandamentos e preceitos do Senhor” (Lucas 1:6). Tudo isso é o que Hebreus chama de dikaiōmata latreías: regulações boas, dadas por Deus, que ensinavam Israel a viver diante do Santo.
Mas, desde já, o autor acende a lâmpada do contraste: aquele santuário era kósmikon — terreno. Com isso, liga este versículo a dois pontos-chave já anunciados. Primeiro, à distinção entre o tabernáculo verdadeiro, “erguido pelo Senhor, e não por mãos” (Hebreus 8:2), e a réplica terrena. Segundo, ao caráter provisório das regulações: logo adiante ele explicará que eram “comidas, bebidas e várias abluções, ordenanças carnais impostas até o tempo da correção” (Hebreus 9:10–11). O Antigo Testamento, quando manda “me farão um santuário, para que eu habite no meio deles” (Êxodo 25:8), institui um espaço pedagógico: Deus aproxima-se por meio de formas, para formar um povo. O Novo Testamento, quando adverte “cuidado com as tradições dos homens… segundo os elementos do mundo” (Colossenses 2:8), não desdenha o tabernáculo de Moisés, mas previne contra qualquer tentativa de absolutizar o que era sombra; ou, na linguagem do mesmo capítulo, “sombras… porém o corpo é de Cristo” (Colossenses 2:17). Em suma, 9:1 declara: a primeira aliança possuía (no seu tempo e lugar) um culto regulado e um santuário terrestre; a nova mostrará o original celeste e o culto perfeito.
É nesse cenário que 9:2 entra com a planta baixa do santuário: “Pois foi preparado (kateskeuásthē) um tabernáculo (skēnḗ): o primeiro recinto, no qual estão o candelabro (lychnía), a mesa (trapéza) e a exposição dos pães (próthesis tōn ártōn); a este recinto se chama Santo (hágia).” Hebreus descreve exatamente o que Êxodo manda construir e, depois, mostra sendo construído. A estrutura da tenda está em Êxodo 26:1–30; sua consagração em Êxodo 29:1, 35; a execução fiel da obra em Êxodo 36:8–38 e 39:32–34; a montagem na data marcada em Êxodo 40:2 e a armação em Êxodo 40:18–20. Quanto ao “primeiro recinto” (o Santo), os móveis e sua posição estão em Êxodo 25:23–40 (mesa e candelabro), Êxodo 26:35 (onde colocá-los), Êxodo 37:10–24 (confecção), Êxodo 39:36–38 (apresentação) e Êxodo 40:4; 40:22–24 (instalação final: o candelabro ao lado sul, a mesa ao norte, o incensário diante do véu). A mesa entra porque sobre ela se colocava o pão da presença: “porás sobre a mesa o pão da proposição diante de mim perpetuamente” (Êxodo 25:30), e “porás os pães em duas fileiras, seis em cada fileira, sobre a mesa pura, diante do Senhor” (Levítico 24:5–6). O termo grego próthesis tōn ártōn traduz esse costume: “exposição/colocação dos pães”; sinal de que o Deus que habita no meio do seu povo se dá a ver como o Anfitrião santo que sustenta Israel. Chamar esse recinto de hágia (“Santo”) segue Êxodo 26:33, onde o véu divide o espaço entre o Santo e o Santo dos Santos — uma catequese espacial que ensinava distância e mediação: Deus está no meio, mas só se aproxima por caminho ordenado.
Tudo isso, insiste Hebreus, era real e necessário — e, ao mesmo tempo, preparatório. O tabernáculo de tecido dava forma visível ao tabernáculo celeste; a lâmpada cuja chama o sacerdote mantinha acesa manhã e tarde narrava, dia após dia, que Israel vivia à luz de Deus; a mesa e o pão diante do rosto do Senhor ensinavam que a vida do povo era sustentada pela hospitalidade divina. Quando, mais tarde, o evangelho dirá que o Verbo “eskēnōsen” (armou sua tenda) entre nós (João 1:14, ecoando skēnḗ), que Ele é o pão da vida e a luz do mundo, ficará claro o programa pedagógico do “hágion kósmikon”: trazer-nos até Cristo. Mas Hebreus, por enquanto, apenas põe cada peça em seu lugar — para, logo na sequência (9:3 em diante), mostrar como o caminho através do véu e o serviço anual do sumo sacerdote proclamavam, de antemão, o acesso que o Sumo Sacerdote perfeito nos abriu.
Logo após descrever o “Santo” (o primeiro recinto), o autor nos conduz “para dentro” com uma frase que já carrega evangelho: meta tò deúteron katapétasma (“depois do segundo véu”), skēnḗ (“tabernáculo/compartimento”), hē legoménē hágia hagiōn (“o chamado Santo dos Santos”). Hebreus 9:3 está ecoando, passo a passo, o que foi ordenado e construído em Êxodo: o véu de linho com querubins que separa o Santo do Santíssimo (Êxodo 26:31–33; 36:35–38), a instalação do véu e do mobiliário quando Moisés arma a tenda (Êxodo 40:3, 21) e, séculos depois, o cortinado espesso do templo de Salomão (2 Crônicas 3:14). Essa cortina materializava uma catequese: Deus habita no meio, mas a sua santidade impõe mediação; por isso o acesso ao interior ficava reservado ao sumo sacerdote, uma vez por ano (tema que Hebreus desenvolverá). É exatamente esse ponto que as próprias referências internas de Hebreus destacam: nossa “âncora… entra até o interior do véu” (Hebreus 6:19), e o novo e vivo caminho foi aberto “dia tou katapetásmatos, toút’ estin tês sarkós autou” — tradução: dia (“através”), tou katapetásmatos (“do véu”), toút’ estin tês sarkós autou (“isto é, da sua carne”) — (Hebreus 10:20). Em outras palavras, o véu não era apenas tecido; era sinal de um limite que Cristo viria transpor em seu corpo. Por isso Mateus registra que, no momento da morte de Jesus, “o véu do templo se rasgou de alto a baixo” (Mateus 27:51): o que antes separava agora convida. Até o poema de Isaías 25:7 se deixa ouvir aqui como profecia em tom maior: Deus “destruirá… o véu que cobre todos os povos”, a cobertura que ofusca; em Cristo, o obstáculo cai. Não por acaso, quando Hebreus fala do “Santo dos Santos” (9:3), já prepara a cena de 10:19: temos ousadia para entrar.
Ao nomear o interior, 9:4 descreve seus elementos com precisão teológica e espiritual. Primeiro, menciona “thymiaterion chrysoûn” — tradução: thymiaterion (“incensário”, ou “vaso de incenso”) chrysoûn (“dourado”). O detalhe importa, porque o altar de incenso, em Êxodo, fica diante do véu, no primeiro recinto (Êxodo 30:6). Por que, então, Hebreus liga um thymiaterion ao Santíssimo? Porque a palavra thymiaterion designa, com naturalidade, o turíbulo/incensário levado na mão, e Levítico 16:12 ordena que, no Dia da Expiação, o sumo sacerdote leve um incensário com brasas do altar para dentro do véu, enchendo o lugar de fumo diante do propiciatório. Isto é: o lugar santíssimo é, liturgicamente, o lugar do incensário. Essa leitura também explica a ressonância apocalíptica: em Apocalipse 8:3, um anjo vem com um incensário de ouro e o perfume sobe diante de Deus — imagem do que o Santo dos Santos sempre significou: a presença de Deus recebendo a intercessão.
Vem, então, o móvel central: “hē kibōtòs tês diathḗkēs perikekalymmenē pásē chrýsō” — tradução: kibōtòs tês diathḗkēs (“arca da aliança”), perikekalymmenē pásē chrýsō (“toda revestida de ouro”). Êxodo 25:10–16 descreve sua confecção; Êxodo 26:33 a coloca para além do véu; Êxodo 37:1–5 narra a obra pronta; Êxodo 39:35 e 40:3, 21 registram sua instalação. A arca é, por excelência, o cofre do pacto — o lugar sobre o qual repousa o “kappóret” (assento de misericórdia), onde Deus se encontra com o seu povo. Hebreus, porém, não se limita à caixa; ele abre o conteúdo porque quer pregar com símbolos.
“En hē stamnos chrýsē echousa tò mánna” — tradução: en hē (“na qual”), stamnos chrýsē (“uma ânfora/vaso de ouro”), echousa (“contendo”), tò mánna (“o maná”). Êxodo 16:33–34 mandou guardar um vaso de maná “diante do Senhor” para memória das gerações: sinal de que Israel vive do pão que Deus dá. Guardá-lo junto da arca (a linguagem do Pentateuco é “diante do testemunho”) já apontava para o Santíssimo como tesouro da providência. Em Hebreus, esse detalhe ganha eixo cristológico: quem nos introduz “além do véu” é aquele que, no evangelho, se apresenta como o Pão do Céu; e o Santíssimo, onde Deus está, é também o lugar onde Deus sustenta.
Segue-se “hē rhabdòs Aarōn hē blastēsasa” — tradução: rhabdòs Aarōn (“a vara de Arão”), hē blastēsasa (“que floresceu”). Números 17:5, 8, 10 conta o episódio: Deus faz florescer a vara de Arão, dá-lhe botões, flores e amêndoas, e manda que seja guardada diante do testemunho “por sinal aos rebeldes”, para cessar as murmurações contra o sacerdócio que Ele mesmo escolheu. O que essa vara pregava aos israelitas — que o sacerdócio legítimo é o que Deus faz viver —, Hebreus aplica a Cristo: o nosso Sacerdote pertence a uma ordem que não depende de genealogia humana (capítulo 7) e cuja vida é indestrutível. É sugestivo que o Saltério messiânico fale da “vara do teu poder” (Salmos 110:2) e de um povo que se apresenta “voluntariamente” (110:3); a vara de Arão, viva por milagre, antecipa o sacerdócio vivificante do Filho.
Por fim: “hai pláches tês diathḗkēs” — tradução: pláches (“tábuas”), tês diathḗkēs (“do pacto”). Êxodo 25:16 e 21 ordena: “porás na arca o testemunho que te darei” e “porás o propiciatório sobre a arca… e porás na arca o testemunho”; Êxodo 26:33 recorda que tudo isso pertence ao lado de lá do véu; Deuteronômio 10:2–5 narra o momento em que as segundas tábuas são colocadas na arca; em 1 Reis 8:9 e 2 Crônicas 5:10, quando o templo é inaugurado, acentua-se que ali estavam as tábuas. A teologia é límpida: no coração do Santíssimo está a Lei — não para nos esmagar, mas para ficar sob o propiciatório, coberta pelo sangue no Dia da Expiação. Hebreus quer que você veja esse quadro: pacto (tábuas), providência (maná), sacerdócio escolhido (vara viva) — e, acima de tudo, o trono da graça. Tudo isso conversa com o evangelho: quando o véu se rasga (Mateus 27:51), não se derruba a santidade; cumpre-se a santidade. O acesso não banaliza; santifica. Por isso, quando mais adiante a carta disser que temos ousadia para entrar (Hebreus 10:19) e que Cristo penetrou “além do véu” por nós (eco de Hebreus 6:19), você lembrará destes dois versículos: o mapa do Santíssimo era, desde o começo, um mapa de Cristo.
Logo após descrever o “Santo” (o primeiro recinto), o autor nos conduz “para dentro” com uma frase que já carrega evangelho: meta tò deúteron katapétasma (“depois do segundo véu”), skēnḗ (“tabernáculo/compartimento”), hē legoménē hágia hagiōn (“o chamado Santo dos Santos”). Hebreus 9:3 está ecoando, passo a passo, o que foi ordenado e construído em Êxodo: o véu de linho com querubins que separa o Santo do Santíssimo (Êxodo 26:31–33; 36:35–38), a instalação do véu e do mobiliário quando Moisés arma a tenda (Êxodo 40:3, 21) e, séculos depois, o cortinado espesso do templo de Salomão (2 Crônicas 3:14). Essa cortina materializava uma catequese: Deus habita no meio, mas a sua santidade impõe mediação; por isso o acesso ao interior ficava reservado ao sumo sacerdote, uma vez por ano (tema que Hebreus desenvolverá). É exatamente esse ponto que as próprias referências internas de Hebreus destacam: nossa “âncora… entra até o interior do véu” (Hebreus 6:19), e o novo e vivo caminho foi aberto “dia tou katapetásmatos, toút’ estin tês sarkós autou” — tradução: dia (“através”), tou katapetásmatos (“do véu”), toút’ estin tês sarkós autou (“isto é, da sua carne”) — (Hebreus 10:20). Em outras palavras, o véu não era apenas tecido; era sinal de um limite que Cristo viria transpor em seu corpo. Por isso Mateus registra que, no momento da morte de Jesus, “o véu do templo se rasgou de alto a baixo” (Mateus 27:51): o que antes separava agora convida. Até o poema de Isaías 25:7 se deixa ouvir aqui como profecia em tom maior: Deus “destruirá… o véu que cobre todos os povos”, a cobertura que ofusca; em Cristo, o obstáculo cai. Não por acaso, quando Hebreus fala do “Santo dos Santos” (9:3), já prepara a cena de 10:19: temos ousadia para entrar.
Ao nomear o interior, 9:4 descreve seus elementos com precisão teológica e espiritual. Primeiro, menciona: thymiaterion (“incensário”, ou “vaso de incenso”) chrysoûn (“dourado”). O detalhe importa, porque o altar de incenso, em Êxodo, fica diante do véu, no primeiro recinto (Êxodo 30:6). Por que, então, Hebreus liga um thymiaterion ao Santíssimo? Porque a palavra thymiaterion designa, com naturalidade, o turíbulo/incensário levado na mão, e Levítico 16:12 ordena que, no Dia da Expiação, o sumo sacerdote leve um incensário com brasas do altar para dentro do véu, enchendo o lugar de fumo diante do propiciatório. Isto é: o lugar santíssimo é, liturgicamente, o lugar do incensário. Essa leitura também explica a ressonância apocalíptica: em Apocalipse 8:3, um anjo vem com um incensário de ouro e o perfume sobe diante de Deus — imagem do que o Santo dos Santos sempre significou: a presença de Deus recebendo a intercessão.
Vem, então, o móvel central: kibōtòs tês diathḗkēs (“arca da aliança”), perikekalymmenē pásē chrýsō (“toda revestida de ouro”). Êxodo 25:10–16 descreve sua confecção; Êxodo 26:33 a coloca para além do véu; Êxodo 37:1–5 narra a obra pronta; Êxodo 39:35 e 40:3, 21 registram sua instalação. A arca é, por excelência, o cofre do pacto — o lugar sobre o qual repousa o “kappóret” (assento de misericórdia), onde Deus se encontra com o seu povo. Hebreus, porém, não se limita à caixa; ele abre o conteúdo porque quer pregar com símbolos.
“En hē stamnos chrýsē echousa tò mánna” — tradução: en hē (“na qual”), stamnos chrýsē (“uma ânfora/vaso de ouro”), echousa (“contendo”), tò mánna (“o maná”). Êxodo 16:33–34 mandou guardar um vaso de maná “diante do Senhor” para memória das gerações: sinal de que Israel vive do pão que Deus dá. Guardá-lo junto da arca (a linguagem do Pentateuco é “diante do testemunho”) já apontava para o Santíssimo como tesouro da providência. Em Hebreus, esse detalhe ganha eixo cristológico: quem nos introduz “além do véu” é aquele que, no evangelho, se apresenta como o Pão do Céu; e o Santíssimo, onde Deus está, é também o lugar onde Deus sustenta.
Segue-se: rhabdòs Aarōn (“a vara de Arão”), hē blastēsasa (“que floresceu”). Números 17:5, 8, 10 conta o episódio: Deus faz florescer a vara de Arão, dá-lhe botões, flores e amêndoas, e manda que seja guardada diante do testemunho “por sinal aos rebeldes”, para cessar as murmurações contra o sacerdócio que Ele mesmo escolheu. O que essa vara pregava aos israelitas — que o sacerdócio legítimo é o que Deus faz viver —, Hebreus aplica a Cristo: o nosso Sacerdote pertence a uma ordem que não depende de genealogia humana (capítulo 7) e cuja vida é indestrutível. É sugestivo que o Saltério messiânico fale da “vara do teu poder” (Salmos 110:2) e de um povo que se apresenta “voluntariamente” (110:3); a vara de Arão, viva por milagre, antecipa o sacerdócio vivificante do Filho.
Por fim: pláches (“tábuas”), tês diathḗkēs (“do pacto”). Êxodo 25:16 e 21 ordena: “porás na arca o testemunho que te darei” e “porás o propiciatório sobre a arca… e porás na arca o testemunho”; Êxodo 26:33 recorda que tudo isso pertence ao lado de lá do véu; Deuteronômio 10:2–5 narra o momento em que as segundas tábuas são colocadas na arca; em 1 Reis 8:9 e 2 Crônicas 5:10, quando o templo é inaugurado, acentua-se que ali estavam as tábuas. A teologia é límpida: no coração do Santíssimo está a Lei — não para nos esmagar, mas para ficar sob o propiciatório, coberta pelo sangue no Dia da Expiação. Hebreus quer que você veja esse quadro: pacto (tábuas), providência (maná), sacerdócio escolhido (vara viva) — e, acima de tudo, o trono da graça. Tudo isso conversa com o evangelho: quando o véu se rasga (Mateus 27:51), não se derruba a santidade; cumpre-se a santidade. O acesso não banaliza; santifica. Por isso, quando mais adiante a carta disser que temos ousadia para entrar (Hebreus 10:19) e que Cristo penetrou “além do véu” por nós (eco de Hebreus 6:19), você lembrará destes dois versículos: o mapa do Santíssimo era, desde o começo, um mapa de Cristo.
Ao nomear, no coração do Santo dos Santos, “o propiciatório” e os querubins, o autor de Hebreus não está apenas lembrando mobiliário antigo; ele está pregando teologia com madeira e ouro: “e, por cima dele, querubins de glória fazendo sombra sobre o propiciatório” (Hebreus 9:5). “Propiciatório” é hilastḗrion (tradução: “tampa expiatória/assento de misericórdia”), a tampa da arca onde o sangue era aspergido no Dia da Expiação. O quadro vem de Êxodo 25:17–22; 37:6–9: dois querubins de ouro, voltados um para o outro, com as asas estendidas cobrindo a tampa; é ali que Deus diz “eu me encontrarei contigo, e falarei de cima do propiciatório”. Por isso Levítico 16:2, 13 manda encher de incenso o lugar e velar a glória com a nuvem. Quando a arca entra no oráculo, Números 7:89 registra que Moisés ouvia a voz “de cima do propiciatório, do meio dos querubins”; depois, Israel canta ao “Pastor de Israel, que te assentas entre os querubins” (Salmos 80:1), e treme diante “dAquele que reina… sentado sobre os querubins” (Salmos 99:1). Os textos históricos confirmam o mesmo trono: a arca é levada ao lugar santíssimo (1 Reis 8:6–7) e Ezequias ora ao Deus “entronizado acima dos querubins” (2 Reis 19:15). Tudo converge: a tampa não é mero adorno; é o lugar do encontro, o trono onde a misericórdia é proclamada com sangue. Por isso Paulo ousará dizer de Cristo: “a quem Deus propôs como hilastḗrion” — hilastḗrion (tradução: “propiciação/propiciatório”) — (Romanos 3:25): a tampa, antes sinal, tornou-se Pessoa. E por que os querubins? Porque a salvação é também espetáculo cósmico: “para que agora seja conhecida… a multiforme sabedoria de Deus” aos principados (Efésios 3:10), realidade na qual “os anjos desejam perscrutar” (1 Pedro 1:12). O propiciatório é, ao mesmo tempo, trono, altar, cátedra; e os anjos, por assim dizer, curvam-se sobre o mistério que ele anuncia. É esse mesmo “modelo do propiciatório” que Davi entregou a Salomão ao dar as plantas do templo (1 Crônicas 28:11).
A seguir, o autor move o foco do móvel para o movimento: “Estando assim preparadas estas coisas, ao primeiro tabernáculo entram continuamente os sacerdotes, cumprindo os serviços sagrados” (Hebreus 9:6). A vida no “Santo” era cotidiana. O candelabro se mantinha aceso “de tarde até a manhã” (Êxodo 27:21); o incenso subia manhã e tarde (Êxodo 30:7–8); o holocausto contínuo queimava dia após dia (Números 28:3). Tudo isso compunha a cadência de um povo educado a viver na presença. O episódio de Uzias (2 Crônicas 26:16–19) adverte: não é qualquer um que atravessa com incenso; somente o sacerdote devidamente consagrado serve — o culto tem ordem e limite. Até a cena de Zacarias, em Lucas 1:8–11, revela como Hebreus lê o Antigo: enquanto o sacerdote entra para o incenso, o anjo anuncia que a promessa está a ponto de adentrar a história. Mesmo Daniel 8:11 lembra a gravidade do “contínuo” interrompido: quando o serviço diário é profanado, o povo perde eixo. Hebreus 9:6 evoca esse tamid (o “contínuo”) para, em contraste, preparar o “de uma vez” do nosso Sumo Sacerdote.
Mas o centro do argumento desabrocha no versículo seguinte, quando a liturgia diária dá lugar ao dia único do ano: “Ao segundo recinto [o Santo dos Santos], uma vez por ano, somente o sumo sacerdote [entra], não sem sangue, que oferece por si mesmo e pelas ignorâncias (agnoēmata) do povo” (Hebreus 9:7). Aqui, toda a coreografia de Levítico 16:2–20, 34 se comprime em seis expressões. Mónos ho archiereús (tradução: “somente o sumo sacerdote”): não havia acesso comum; o véu lembrava que o caminho não estava aberto. Hápax tou eniautoû (tradução: “uma vez por ano”): o “contínuo” da rotina cedia lugar ao único do Yom Kippur, quando se tratava do pecado em bloco. Ou chōrìs haímatos (tradução: “não sem sangue”): o acesso custava vida, o sangue aspergido no hilastḗrion pregava que Deus recebe o povo por meio de substituição — daí Êxodo 30:10 mandar que, uma vez por ano, se faça expiação com sangue pelos chifres do altar. Ho prosphérei (tradução: “ele oferece”): a ação não é contemplativa; é oblativa, o sumo sacerdote apresenta sangue como quem leva o povo. Huper heautoû (tradução: “por si mesmo”): o ministro é solidário com os que representa e precisa, ele próprio, de expiação — exatamente o que Hebreus já comentou quando disse que, sob a lei, o sacerdote “oferece por si e pelo povo” (Hebreus 5:3; 7:27). E, por fim, “kai tōn… agnoēmátōn” (tradução: “e pelas ignorâncias do povo”): a Lei distinguia pecados de mão levantada dos por ignorância/fraqueza; havia sacrifício para enganos, desvios e cegueiras do coração (Levítico 5:18), porque Deus conhece a massa de erros que nem nós mapeamos: “quem pode discernir as próprias falhas?” (Salmos 19:12). A história, dolorosa, está cheia desses extravios: Uza, desatento à santidade, estende a mão à arca e cai (2 Samuel 6:7); reis conduzem o povo ao erro (2 Crônicas 33:9); profetas denunciam guias que fazem o povo errar (Isaías 3:12; 9:16), sacerdotes embriagados que tropeçam no serviço (Isaías 28:7), um coração tão enganado que Deus promete “perecerei a sabedoria dos sábios” (Isaías 29:14), e um povo que consulta ídolos e por isso desconhece o caminho (Oséias 4:12). Até a força humana é ironizada: “o valente não escapará” (Amós 2:14). Cada uma dessas linhas diz a mesma coisa: somos ignorantes do que deveríamos saber e fracos onde deveríamos ser firmes — e, por isso, o sumo sacerdote entrava com sangue “pelas ignorâncias do povo”.
Hebreus faz tudo isso para que você veja o contraste que virá logo em seguida: havia um propiciatório coberto de querubins, havia serviço contínuo no Santo, havia um dia único com sangue no Santíssimo — e tudo isso era verdadeiro e, ainda assim, era sombra. Quando o autor mais adiante dirá que Cristo entrou “não em santuário feito por mãos… mas no céu mesmo” (Hebreus 9:24) e que esse acesso já não se repete (Hebreus 9:25), você entenderá o porquê: o mapa da antiga tenda foi desenhado para ensinar a necessidade de trono de graça (hilastḗrion), de sacerdócio fiel e de sangue eficaz. O véu, a rotina e o dia único eram um sermão. E o sermão termina, na plenitude, com um convite: “aproximemo-nos, pois, com confiança, do trono da graça” — thronos tês cháristos (tradução: “trono de graça”) — (Hebreus 4:16), que no tabernáculo se chamava propiciatório e, no evangelho, tem rosto e nome.
O autor acabou de descrever o mapa do santuário e a coreografia do culto; agora ele nos diz o que Deus estava dizendo com essa arquitetura: “significando isto o Espírito Santo” (Hebreus 9:8, transliteração e tradução). O Espírito não fala só por oráculos explícitos; Ele interpreta a própria planta da tenda: “que ainda não estava manifestado o caminho para o Santo dos Santos” — “héōs tês prōtēs skēnês echousēs stasin” — “enquanto o primeiro recinto mantivesse a sua vigência” (transliteração e tradução). A cortina entre os dois espaços era uma frase do Espírito: “ainda não”. É assim que Hebreus sempre lê a Escritura: “kathōs légei to Pneuma to Hágion” — “como diz o Espírito Santo” (Hebreus 3:7, transliteração e tradução), e de novo: “to Pneuma to Hágion kai martyreî hēmin” — “o Espírito Santo também testifica a nós” (Hebreus 10:15, transliteração e tradução). O mesmo Espírito que “guiou” Israel no deserto (Isaías 63:11) e “falou” pelos profetas (2 Pedro 1:21) agora explica que a disposição do tabernáculo era um sinal pedagógico. E, se os antigos resistiram ao Espírito (Atos 7:51–52) ou fecharam os ouvidos quando “bem falou o Espírito Santo por Isaías” (Atos 28:25), é porque não perceberam que tudo aquilo apontava para o acesso que viria.
Mas que “caminho” é esse? Hebreus já disse: não bastava ter um sacerdote “que se compadece, aproximemo-nos” (Hebreus 4:15–16); mais adiante dirá: “echontes parrhēsían eis tḕn eisodon tôn hagiōn” — “tendo ousadia para entrar no Santo dos Santos” — “dia hodoû prosphátou kai zōsēs… dia tou katapetásmatos, toút’ estin tês sarkós autou” — “por um caminho novo e vivo... pelo véu, isto é, a sua carne” (Hebreus 10:19–20, transliteração e tradução). Por isso Jesus, no evangelho, não diz apenas onde fica a porta — Ele é a porta: “Egō eimi hē thýra” — “Eu sou a porta” (João 10:7, 9, transliteração e tradução); e mais: “Egō eimi hē hodós” — “Eu sou o caminho” (João 14:6, transliteração e tradução). O que a cortina fechava, Cristo abriu; o que o mapa sugeriu, o Filho cumpriu — e, por Ele, “temos acesso ao Pai num só Espírito” (Efésios 2:18). Enquanto o primeiro recinto “tinha pé” — funcionava como pedagogo (pense em Gálatas 3) —, a frase era “ainda não”; quando o Filho veio, a frase virou “já”.
Por isso o versículo 9 prossegue: “hētis parabolḗ” — “o qual [arranjo] é uma parábola/figura” — “eis tòn kairòn tòn enestōta” — “para o tempo presente” (transliteração e tradução). A tenda é parábola; a liturgia, figura. Como Adão, “týpos do que havia de vir” (Romanos 5:14, transliteração e tradução), ou como as águas do dilúvio que se tornam “antítipos… que agora vos salva, o batismo” (1 Pedro 3:21, transliteração e tradução), o tabernáculo contava uma história, mas não era o final. O texto explicita a limitação: “kath’ hḗn dṓra te kai thysíai prospherontai” — “por meio da qual se oferecem dons e sacrifícios” — “mē dunámena katà syneídēsin teleiōsai tòn latreuonta” — “incapazes de aperfeiçoar, quanto à consciência, o adorador” (tradução). Eis o ponto nervoso: o problema não era que não houvesse sangue, altar, fumaça e pão; o problema era que tudo isso não alcançava a consciência. O Saltério já sussurrava isso: “zebach kai minchah ouk ḗthelēsas… holokautōmata pelo pecado não te agradam” — “sacrifício e oferta não quiseste… holocaustos pelo pecado não te agradam” (Salmos 40:6–7, transliteração e tradução); “não te deleitas em sacrifícios… o sacrifício de Deus é um espírito quebrantado” (Salmos 51:16–19). Hebreus já havia dito: houve uma “athetēsis” — “ab-rogação” — do mandamento anterior “por causa da fraqueza” (Hebreus 7:18–19, transliteração e tradução); e dirá a seguir que as mesmas ofertas “em nada podem aperfeiçoar” (Hebreus 10:1–4; 10:11). O tempo das figuras foi real — os santos do Antigo Testamento creram e receberam testemunho, “sem contudo alcançar a promessa”, aguardando “algo melhor” (Hebreus 11:39–40) — mas foi tempo de espera, no qual “o Espírito de Cristo indicava os tempos e as circunstâncias” (1 Pedro 1:11–12). A consciência pedia um sangue que não apenas cobrisse, mas purificasse (compare Hebreus 9:13–14).
Essa limitação fica ainda mais nítida no versículo 10, que qualifica o regime antigo: “mónon epì brōmásin kai pómassin kai diaphórois baptismóis” — “tratava apenas de alimentos e bebidas e várias abluções” — “dikaiōmata sarkós” — “ordenanças carnais” — “méchri kairou diorthṓseōs” — “até o tempo da correção/reforma” (transliteração e tradução). As tábuas de pureza eram detalhadas e santas: listas de alimentos puros e impuros (Levítico 11; Deuteronômio 14), cuidados de mesa que, séculos depois, o próprio Deus relativiza em visão a Pedro — “hà ho Theòs ekátharisen, sý mē koinou” — “o que Deus purificou, não declares impuro” (Atos 10:13–15, transliteração e tradução) — e que Paulo não quer que voltem a ser tribunal sobre a consciência dos salvos (Colossenses 2:16). As “várias abluções” (diaphórois baptismois) incluíam toda a pedagogia das lavas e banhos: lavar os sacerdotes (Êxodo 29:4; 40:12), lavar as mãos e os pés antes de ministrar (Êxodo 30:19–21), banhos rituais de purificação (Levítico 14; 16:4, 24; 17:15–16; 22:6), a água da novilha (Números 19), os ritos de lavagem comunitária (Deuteronômio 21:6; 23:11). Não eram caprichos: eram “dikaiōmata” — estatutos — que guardavam Israel e lhe ensinavam a viver separado. Mas eram “sarkós” — concernentes à carne: externos, pedagógicos, incapazes de criar o que sinalizavam. Por isso o apóstolo adverte contra voltar aos “stoicheîa tou kósmou” — “elementos do mundo” (Gálatas 4:3, 9, transliteração e tradução) — e proclama que Cristo “aboliu na sua carne a lei dos mandamentos em dogmas” (Efésios 2:15, transliteração e tradução), e que “se morrestes com Cristo aos elementos do mundo, por que vos sujeitais a dogmas: não toques, não proves, não manuseies?” (Colossenses 2:20–22). A própria carta já tinha dito que a primeira tenda era “kósmikon” — terrena (Hebreus 9:1); aqui, ela é temporária: “méchri kairou diorthṓseōs”. A palavra diorthṓsis significa endireitamento/reforma: Deus prometera um acerto final, quando, na “plenitude do tempo” (plērōma tou chronou, Gálatas 4:4, transliteração e tradução) e na “economia da plenitude dos tempos” (Efésios 1:10), Ele poria de pé o que a parábola indicava. Hebreus já chamou esse futuro de “o mundo vindouro” (Hebreus 2:5) e de “os poderes do século vindouro” (Hebreus 6:5); aqui, ele dá-lhe um nome litúrgico: reforma — o momento em que o caminho se abre, a consciência é purificada, e os “dogmas carnais” cedem lugar ao “corpo” que é Cristo.
Assim, 9:8–10 amarra o que vimos e prepara o que virá: o Espírito estava dizendo algo com véus, móveis e turnos; o sentido era este — “ainda não há caminho” —, até que viesse o tempo da reforma. E quando esse tempo chega, o Caminho tem nome e o véu tem rasgo. O que as abluções lavavam por fora, o sangue de Cristo lava por dentro; o que a dieta marcava na mesa, o Pão vivo cumpre no coração. A parábola se cumpriu; a figura se abriu; a consciência, enfim, descansa.
O argumento de Hebreus 9:13–14 se ergue como um “quanto mais” que fecha a catequese do tabernáculo e abre, de uma vez por todas, o caminho da consciência purificada. Primeiro, o texto aponta para o que Deus já havia ensinado por meio de ritos reais, eficazes no seu próprio âmbito, porém limitados ao exterior: “Pois, se o sangue de bodes e touros, e a cinza da novilha, aspergindo os contaminados, santifica para a pureza da carne” (Hebreus 9:13). O autor evoca, de modo condensado, dois pilares do culto veterotestamentário.
De um lado, o sangue aspergido do Dia da Expiação: o sumo sacerdote levava o sangue para dentro do véu, aspergia o propiciatório diante e sobre a tampa, e assim “fazia expiação pelo santuário por causa das impurezas do povo” (Levítico 16:14, 16). Era Deus ensinando que vida derramada cobria a culpa e removia a contaminação do seu povo. De outro lado, a água de separação feita com a cinza da novilha (a novilha “vermelha” de Números 19): a cinza, misturada com água, era aspergida com hissopo para purificar quem tocara cadáver ou qualquer contaminação de morte; “ao terceiro e ao sétimo dia” (Números 19:12) a pessoa ficava limpa, e quem se recusasse a esse rito permanecia impuro (Números 19:2–21). O mesmo princípio aparece em Números 8:7 (a “água da purificação” para os levitas) e se espalha por toda a pedagogia ritual de Israel: Deus lava, separa, distingue, treinando o coração a entender que santidade não é abstração. Por isso o salmista ora com a língua do culto: “Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo” (Salmos 51:7), eco direto do rito; por isso Ezequiel promete, da parte de Deus: “Aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados” (Ezequiel 36:25); por isso Zacarias abre um quadro messiânico dizendo que seria aberta “uma fonte… para purificação” (Zacarias 13:1). Tudo isso, diz Hebreus, santificava “para a pureza da carne” — isto é, realmente purificava, mas no plano externo, cerimonial, comunitário. Era Deus alfabetizando o seu povo com água, sangue, hissopo e cinza, para que Israel aprendesse a gramática da santidade.
É exatamente aqui que o “quanto mais” de 9:14 ganha peso de ouro. Se assim funcionavam os sinais, quanto mais o próprio Cristo. O versículo é um cometa teológico: “Quanto mais o sangue de Cristo, o qual, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu imaculado a Deus, purificará a nossa consciência das obras mortas para servirmos ao Deus vivo.” Cada sintagma se abre em aliança inteira.
O sangue de Cristo é o cumprimento de tudo o que Levítico exigia: o Cordeiro sem defeito (Êxodo 12:5; Levítico 22:20), o sacrifício que de fato remove o pecado (Hebreus 9:12; 10:14). Essa perfeição moral é expressa na palavra “amōmon” — tradução: “sem mácula”. Toda a legislação que repetia “sem defeito” (Deuteronômio 17:1; Números 28; Levítico 1–4) era uma seta para o Santo que “não conheceu pecado” (2 Coríntios 5:21), o Servo sem engano (Isaías 53:9), o Cordeiro “sem defeito e sem mácula” (1 Pedro 1:19), o Justo em quem “não há pecado” (1 João 3:5). É por isso que o seu sangue é chamado, ainda, de sangue que “nos lava” (1 João 1:7; Apocalipse 1:5): não apenas cobre a sujeira; purifica a consciência.
Esse sacrifício é oferecido “dià pneumátos aiōníou” — tradução: “pelo Espírito eterno”. Há aqui um duplo feixe de luz. Primeiro, a missão messiânica no Espírito: “o meu Servo… sobre Ele pus o meu Espírito” (Isaías 42:1); “o Espírito do Senhor está sobre mim” (Isaías 61:1; Lucas 4:18); Jesus age e testifica “pelo Espírito de Deus” (Mateus 12:28), “falando” e “fazendo” na unção do Espírito (Atos 1:2; 10:38), “a quem Deus não dá por medida” (João 3:34). Segundo, o caráter eterno (aiōnios) do agente e da oferta: o Deus “eterno” (Deuteronômio 33:27), “que habita a eternidade” (Isaías 57:15), “o Deus vivo e eterno” (Jeremias 10:10), manifesta, no sacrifício do Filho, uma eficácia que não se mede por calendário. O Filho “ofereceu-se” (prosēnéngken — tradução: “apresentou-se/ofereceu-se”) uma vez (Hebreus 7:27; 9:25–26), e essa oblação tem a amplitude do “eterno”.
O efeito, então, alcança exatamente onde a parábola antiga não chegava: “kathariei tḕn syneídēsin” — tradução: “purificará a consciência”. Hebreus já havia dito que os dons e sacrifícios mosaicos não podiam “aperfeiçoar quanto à consciência” (Hebreus 9:9); agora proclama que o sangue do Filho o faz. E esse mesmo arco aparece no Novo Testamento todo: Deus “purifica os corações pela fé” (Atos 15:9), e “tendo purificado as vossas almas na obediência à verdade” (1 Pedro 1:22), sois feitos aptos a adorar. A expressão seguinte explica a finalidade: “apò nekrôn érgōn” — tradução: “das obras mortas”. São as obras que cheiram a morte porque brotam de um coração ainda não vivificado (Hebreus 6:1; Colossenses 2:13): tanto os pecados ostensivos quanto a religiosidade sem vida, que tenta fazer-se justa por regras (compare Romanos 6:13, 22; Gálatas 2:19). Cristo nos tira desse ciclo — perdão e vida — para que haja, finalmente, “latreúein Theō zōnti” — tradução: “servirmos/ministrarmos ao Deus vivo”. Toda a Escritura vibra com esse título: “o Deus vivo” (Deuteronômio 5:26; 1 Samuel 17:26; Jeremias 10:10; Daniel 6:26; Atos 14:15; 2 Coríntios 6:16; 1 Timóteo 3:15). E a libertação tem rosto devocional: “livres do medo, o servirmos… em santidade” (Lucas 1:74), “converteram-se dos ídolos a Deus, para servirem ao Deus vivo e verdadeiro” (1 Tessalonicenses 1:9), “para que não vivais mais conforme as concupiscências dos homens, mas segundo a vontade de Deus” (1 Pedro 4:2).
Percebe o encadeamento? O sangue e a cinza do culto antigo purificavam de fato, mas por fora — “para a pureza da carne”. Ao citar Levítico 16 (sangue aspergido no propiciatório) e Números 19 (água com cinza), Hebreus não diminui os ritos; ele mostra o seu lugar no drama: eram sinais de vida numa economia pedagógica, serviam a um povo sob tutela. O “quanto mais” vem declarar que, agora, a fonte prometida jorrou: o Cordeiro sem mácula ofereceu-se no Espírito eterno, e o que a água lavava por fora, o sangue lava por dentro. A consequência é prática: a consciência libertada das “obras mortas” fica disponível para a latreía viva — oração, obediência, misericórdia, culto em espírito e em verdade. E assim, do hissopo do salmista à cruz do Servo, a aspersão se transformou em vida: o Deus que ensinou Israel a lavar as mãos e a carne, em Cristo, lava o coração; o Deus que mandou sangue no velário agora nos chama a entrar — e servir — diante do seu rosto.
O parágrafo de Hebreus 9:15–18 é como um fecho de ouro: pega o fio do tabernáculo e o amarra definitivamente em Cristo, explicando por que Ele é o Mediador, por que foi necessária a morte, e por que sangue sempre esteve no centro da história do pacto.
Tudo principia no versículo 15: Kai dia touto (“e por isso/por esta razão”), diathḗkēs kainḗs (“da nova aliança”), mesitḗs estin (“Ele é o Mediador”). “Mesítēs” é o intermediário que representa ambas as partes e garante o cumprimento do acordo; é o que Hebreus já dissera ao chamar Jesus de “fiador de superior aliança” (Hebreus 7:22) e “mediador de melhor aliança” (Hebreus 8:6), título que retornará com força em 12:24. Paulo o resume assim: “heîs mesítēs Theoû kai anthrṓpōn” — tradução: “um só mediador entre Deus e os homens” (1 Timóteo 2:5). Essa mediação, porém, não é apenas diplomática; é sacrificial. O texto segue: hina… (“para que”), thanátou genoménou (“tendo ocorrido morte”), eis apolýtrōsin (“para redenção”), tōn… parabáseōn (“das transgressões”), epi tēs prṓtēs diathḗkēs (“cometidas sob a primeira aliança”). Em outras palavras: a morte do Mediador era necessária para resgatar os que haviam pecado sob o regime mosaico (e, por extensão, toda a humanidade), cumprindo o que o Servo do Senhor carregaria (Isaías 53:10–12), o que o Ungido seria tirado (Daniel 9:26), o que o Filho destruiria “pela morte” (Hebreus 2:14), ratificando o “sangue da aliança eterna” (Hebreus 13:20) e a oferta “uma vez” (Hebreus 9:28). É exatamente esse o coração da doutrina apostólica: somos “justificados gratuitamente… pela redenção que há em Cristo” e Deus se mostra “justo e justificador” no sangue de Jesus (Romanos 3:24–26); quando éramos fracos, pecadores, inimigos, Cristo morreu por nós (Romanos 5:6, 8, 10); “nele temos a redenção pelo seu sangue” (Efésios 1:7); “Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus” (1 Pedro 3:18). O cântico do céu condensa tudo: “foste morto e com o teu sangue compraste para Deus…” (Apocalipse 5:9; cf. 14:3–4). E para quem vale isso? O versículo 15 conclui: hoi keklēménoi (“os chamados”), tḕn epangelían (“a promessa”), tḗs aiōníou klēronomías (“da herança eterna”). Hebreus chama os crentes de “participantes da vocação celestial” (Hebreus 3:1); Paulo diz que “aos que são chamados segundo o propósito… todas as coisas cooperam para o bem” e que os chamados são também justificados e glorificados (Romanos 8:28, 30; veja ainda Romanos 9:24; 2 Tessalonicenses 2:14). A “promessa” que patriarcas abraçaram pela fé (Hebreus 6:13; 11:13, 39–40; Tiago 1:12; 1 João 2:25) desemboca na “herança eterna” — linguagem que atravessa a Bíblia: o justo tem “herança perpétua” (Salmos 37:18); Jesus fala de “vida eterna” (Mateus 19:29; Marcos 10:17; Lucas 18:18; Mateus 25:34); o Bom Pastor dá vida eterna e ninguém arranca das suas mãos (João 10:28); “o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna” (Romanos 6:23); sofremos “por causa dos eleitos, para que alcancem a salvação com glória eterna” (2 Timóteo 2:10; cf. Tito 1:2; 3:7; 1 Pedro 1:3–4; 5:10). Tudo isso está pendurado na cruz do Mediador.
É aqui que entram os versículos 16–17, esclarecendo juridicamente o raciocínio: por que a morte era indispensável? Porque a palavra central de todo o argumento, diathḗkē, comporta dois campos semânticos: aliança e testamento. O autor explora precisamente o segundo para ilustrar o primeiro: hopou gàr (“pois onde” há uma), diathḗkē (“disposição testamentária/aliança”), thánatou anágkē pherésthai (“é necessário que se apresente morte”), toû diathaménou (“do disponente/testador”) — (Hebreus 9:16). E reforça: “porque um testamento é confirmado sobre mortos; nunca tem força enquanto vive o testador” (Hebreus 9:17). Paulo já havia usado o mesmo princípio jurídico: “mesmo uma diathḗkē humana, ratificada, ninguém a anula ou acrescenta” (Gálatas 3:15, transliteração e tradução). O Antigo Testamento ilustra isso narrativamente quando patriarcas, à beira da morte, confirmam heranças e bênçãos (Gênesis 48:21). E o próprio Cristo, a caminho da cruz, fala como quem deixa legado: “a minha paz vos deixo” — literalmente, aphiḗmi (“deixo como legado”) — “a minha paz vos dou” (João 14:27, nota grega). Assim, a morte do Mediador não é acidente: é a assinatura que ratifica o testamento e, ao mesmo tempo, o sangue que inaugura a nova aliança.
Com isso, o versículo 18 volta-se para o padrão mosaico para mostrar que até a primeira aliança seguiu essa lógica: Hóthen (“por isso/daí”), oudè hē prṓtē (“nem mesmo a primeira”), chōrìs haímatos (“sem sangue”), enkekainístai (“foi inaugurada/dedicada”). Êxodo 24:3–8 é o cenário: Moisés lê “o livro da aliança”, o povo responde “faremos”, e então Moisés toma sangue, asperge o livro e o povo com hissopo, dizendo: “Este é o sangue da aliança” (compare com Êxodo 12:22, onde o hissopo já era instrumento de aspersão). O gesto “dedica/purifica” — exatamente o verbo que Hebreus usa (cf. 9:14; 9:22) — e explica por que, séculos depois, falaremos da nossa própria santificação “pelo sangue” (Hebreus 13:12). A velha aliança entrou em vigor sob sangue; a nova, a fortiori, não poderia ser diferente: o próprio Filho consagra o santuário definitivo com o seu sangue, e, ao erguer o cálice, ecoa Moisés com uma plenitude inaudita — “isto é o sangue da nova aliança”.
Posto assim, o encadeamento é cristalino: (1) Cristo é o Mediador da nova aliança (Hebreus 9:15); (2) como testamento, essa aliança exigia a morte do disponente para entrar em vigor (9:16–17); (3) não é novidade: até a primeira aliança foi inaugurada com sangue (9:18). O que era figura em Êxodo tornou-se substância no Calvário. O que era promessa — chamados que aguardavam herança — tornou-se posse: redenção efetiva, perdão real, “herança eterna” dada por aquele cuja morte ratifica e cuja vida aplica o pacto. E assim, do Sinai ao Cenáculo, da tenda ao trono, ouvimos a mesma música em tom crescente: “sangue que inaugura, Mediador que garante, promessa que se faz herança.”
O escritor nos leva de volta ao Sinai para mostrar que, desde o princípio, Deus ensinou Israel com sangue, água e hissopo — e que tudo isso desemboca no sangue do Messias. Em Hebreus 9:19, ele relembra a cena fundadora: depois de proclamar “todos os mandamentos segundo a Lei”, Moisés “tomou o sangue” — to haîma (sangue) — “dos bezerros e dos bodes, com água, lã escarlate e hissopo, e aspergiu o livro e todo o povo” (a frase de Hebreus ecoa Êxodo 24:5–8). Não foi um gesto isolado. Todo o Pentateuco tinha preparado essa gramática: as ofertas de Levítico 1 (bois, ovelhas, cabras) e 3 (comunhão) já habituavam o povo a ver a vida no sangue; o Dia da Expiação, em Levítico 16:14–18, ensinava que o sangue, levado ao Santo dos Santos, purificava o santuário das impurezas do povo. Até a cor e os instrumentos eram catequese: a lã escarlate (eríon kokkinón, lã tingida de escarlate) e o hissopo (hyssōpos) aparecem nos ritos de purificação do leproso (Levítico 14:4–6; 14:49–52) e na água de separação da novilha (Números 19:6), e reaparecem na Páscoa: “tomareis um molho de hissopo” para aspergir o sangue (Êxodo 12:22). O salmista rezará com a língua do rito: “Purifica-me com hissopo” (Salmos 51:7). E os profetas verão, nessa aspersão, a promessa messiânica: “assim aspergirá muitas nações” (Isaías 52:15); “aspergirei água pura sobre vós” (Ezequiel 36:25). Quando Hebreus diz que Moisés “aspergiu” — errántisen (aspergiu) — “o livro e o povo”, ele está dizendo que Deus selou uma aliança com marcas visíveis nos corpos e no livro: sangue sobre a comunidade e sobre a Palavra (Êxodo 24:8–11). É exatamente essa lógica que o apóstolo Pedro reconhece quando chama a igreja de eleitos “em santificação do Espírito, para obediência e aspersão do sangue de Jesus” (1 Pedro 1:2): a velha aspersão anunciava a nova.
Na sequência, Hebreus 9:20 cita as palavras que definem o rito: “Este é o sangue da aliança que Deus ordenou para vós.” O termo diathḗkē (aliança) é a coluna do argumento. A frase vem de Êxodo 24:8 e é retomada pelo próprio Jesus no cenáculo, quando Ele toma o cálice e diz: “Isto é o meu sangue da nova aliança” (Mateus 26:28; compare Hebreus 13:20 e Zacarias 9:11). O que Moisés fez com o sangue de animais, Jesus cumpre com o seu próprio sangue; o que era figura, agora é realidade. E aquele esclarecimento jurídico de 9:16–17 se encaixa aqui: a diathḗkē entra em vigor por morte; no Sinai, a morte das vítimas ratifica a aliança; no evangelho, a morte do Mediador ratifica a Nova Aliança.
Hebreus 9:21 amplia o foco: não só o povo e o livro foram aspergidos; “também o tabernáculo e todos os vasos do serviço”. É o que narram Êxodo 29:12, 20, 36 e Levítico 8–9: Moisés toma sangue, unge o altar, toca com sangue os chifres do altar, asperge o santuário e os utensílios; em Levítico 16:14–19, o sangue alcança o lugar santíssimo e o altar do incenso; em 2 Crônicas 29:19–22, a reforma de Ezequias repete essa dedicação; Ezequiel 43:18–26 projeta, na visão, um altar purificado a sangue. A lição é a mesma, em todas as etapas: a presença de Deus não se habita com mãos vazias; os espaços do culto são consagrados com sangue porque o Deus santo determina que a vida derramada cubra e limpe tudo o que media entre Ele e o povo.
Por fim, Hebreus 9:22 condensa o princípio numa tese lapidar: “E quase todas as coisas, segundo a Lei, se purificam com sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão.” O “quase” reconhece que havia purificações por água (Números 19; Levítico 14) ou por fogo (objetos passados pelo fogo) e até ofertas de manjares em casos específicos (Levítico 5:11–13). Mas quando se trata de remissão (áphesis, perdão, liberação), a Lei é categórica: “a vida da carne está no sangue… eu vo-lo tenho dado sobre o altar para fazer expiação” — hí to haîma tês psychês exilasetai (porque o sangue faz expiação pela vida) — e por isso o sangue era intocável fora do altar (Levítico 17:11). Os capítulos de expiação listado por Hebreus (Levítico 4–6) repetem o refrão: “o sacerdote fará expiação, e lhe será perdoado” — sempre com sangue (4:20, 26, 35; 5:10, 12, 18; 6:7). É por essa lógica que o autor já havia dito que “sangue de touros e bodes” não pode tirar pecados em definitivo (Hebreus 10:4), e, ao mesmo tempo, é por essa lógica que Cristo “entrou… por seu próprio sangue” (Hebreus 9:12) e que o seu sangue “santifica” de fato (Hebreus 13:12). A antiga economia ensinava com sombras; a nova cumpre com substância. Mesmo os detalhes aparentemente marginais, como a escarlata que tingia a lã nos ritos (símbolo de impureza removida), reaparecem na Paixão em tom paradoxal — a púrpura com que zombam do Rei (Mateus 27:28; Marcos 15:17, 20; João 19:2, 5) acaba proclamando, sem querer, que é Ele quem traz a verdadeira realeza e quem derrama o sangue que sela a Aliança. E se, na Páscoa, o hissopo punha o sangue no umbral (Êxodo 12:22), e, nos ritos, aspergia o impuro (Números 19:18), em Cristo a aspersão atinge onde a Lei não alcançava: o coração (Hebreus 10:22).
Assim, 9:19–22 amarra a Bíblia inteira numa única confissão: Deus nos educou com sangue, água, lã escarlate e hissopo; ensinou-nos que sem sangue não há perdão; e, na plenitude do tempo, entregou-nos o Sangue da Aliança — to haîma tēs diathḗkēs (sangue da aliança) — para que, purificados, sejamos povo do Deus vivo.
O argumento de Hebreus 9:23 começa com uma amarra firme: “Era, pois, necessário que as figuras (cópias) das coisas que estão nos céus fossem purificadas com tais meios, mas as coisas celestiais, elas mesmas, com sacrifícios melhores do que estes.” O autor chama o tabernáculo e o seu culto de hypodeígmata (exemplos, modelos-guia) e, por extensão, de sombra. Ele próprio já o dissera: a tenda terrena era “hypódeigma kai skía” — tradução: “um modelo e sombra” (Hebreus 8:5), e o serviço levítico era “parábolē” (figura) para “o tempo oportuno” (Hebreus 9:9–10). Paulo canta a mesma música: “ha estin skía tōn mellóntōn, tò dè sôma tou Christoû” — tradução: “essas coisas são sombra das que haviam de vir, mas o corpo (a realidade) é de Cristo” (Colossenses 2:17). É por isso que Hebreus 10:1 pode dizer: “Skiàn gar échōn ho nómos tōn mellóntōn agathôn” — tradução: “A Lei possui sombra dos bens vindouros”, e não a eikṓn (imagem plena).
Se as cópias exigiam purificação ritual com sangue animal, quanto mais as realidades que elas prefiguravam pediam a consagração com “sacrifícios melhores”. Não porque o céu tenha mancha moral, mas porque toda aproximação do Deus Santo, em qualquer economia, é feita sob sangue inaugural (Hebreus 9:18–22): é o modo divino de abrir e consagrar o caminho. Daí o encadeamento com o próprio capítulo: Cristo entrou “por um tabernáculo maior e mais perfeito” (skēnēs meízōnos kai teleioteras — tradução: “tenda maior e mais consumada”, Hebreus 9:11), “não por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue” (dià toû idíou haímatos — tradução: “por seu próprio sangue”, Hebreus 9:12), e o fez “pelo Espírito eterno” (dià pneumátos aiōníou — tradução: “pelo Espírito eterno”) oferecendo-se “amómōn” — tradução: “sem mácula” — a Deus, “purificando a consciência” (Hebreus 9:14). Esse “melhor” é justamente o que Hebreus 10:10–17 desenvolverá: “hēgiasménoi” — tradução: “fomos santificados” — “dia tēs prosphorâs toû sōmatos Iēsoû Christoû ephápax” — tradução: “pela oferta do corpo de Jesus Cristo, de uma vez por todas”; e “teteleíōken” — tradução: “aperfeiçoou” — para sempre os que são santificados (Hebreus 10:14). É a mesma necessidade proclamada por Jesus ressuscitado: “Deî patheîn” — tradução: “era necessário sofrer” — “houtōs gégraptai” — tradução: “assim está escrito” (Lucas 24:26, 46); e o mesmo valor confessado por Pedro: o resgate foi com “haímati timíō… amómou kai aspílou” — tradução: “sangue precioso… sem defeito e sem mancha” (1 Pedro 1:19–21). Por isso o Cordeiro é louvado como Aquele que, com o seu sangue, comprou para Deus homens de toda tribo (Apocalipse 5:9), e por isso Ele pode dizer: “Vou preparar-vos lugar” (João 14:3): a preparação desse lugar passa pelo sangue melhor que consagra o acesso. Em suma, 9:23 amarra Hebreus 9:9–10, 9:24, 8:5 e 10:1 a Colossenses 2:17 e irradia pelos demais: as sombras do culto mosaico pediam purificações típicas; a realidade celestial se inaugura com o sangue único do Filho.
Então vem Hebreus 9:24, que mostra onde esse sangue nos coloca: “Pois Cristo não entrou em santuário feito por mãos, figura (antítipo) do verdadeiro, mas no próprio céu, para, agora, aparecer por nós na presença de Deus.” A frase é toda programática. Primeiro, “cheiropoiēta” — tradução: “feitos por mãos” — evoca tudo o que é provisório; “antítupa” — tradução: “figuras correspondentes” — recorda que a tenda terrena era um espelho; mas o Filho entrou “eis autón ton ouranón” — tradução: “no próprio céu”. É a consumação do que o autor já anunciou: Ele é “o ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo” (Hebreus 8:2); Ele veio como “sumo sacerdote dos bens já realizados” (Hebreus 9:11). E é a confirmação do que o próprio Jesus dissera sobre si e o templo: “Destruí este templo, e em três dias o levantarei”— e João comenta: “Ele falava do templo do seu corpo” (João 2:19–21). É também o cumprimento da promessa do êxodo pascal do Messias: “Foi necessário que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória” (Lucas 24:26, 46).
A segunda metade do versículo: “agora, para aparecer na presença de Deus por nós” — abre o coração da intercessão. O verbo emphanízō aqui é litúrgico: o Sumo Sacerdote apresenta-se com nomes sobre os ombros e sobre o peito (Êxodo 28:12, 29), carregando as tribos diante de Deus. É por isso que Hebreus 7:25 declara: Ele “pode salvar completamente os que por Ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles”; é por isso que Paulo canta: “Cristo Jesus… está à direita de Deus, e também intercede por nós” (Romanos 8:34); é por isso que João o chama de “Parákletos” — tradução: “Advogado” — “junto ao Pai… e propiciação pelos nossos pecados” (1 João 2:1–2). A cena inteira está prenunciada naquela liturgia antiga: o sacerdote que entra “uma vez por ano” no Santo dos Santos com incenso e sangue (Levítico 16), a nuvem que cobre a arca (Levítico 16:13), os ombros carregando as pedras do povo (Êxodo 28:12). Mas agora Cristo “não em figura” e “não feito por mãos”: ascende e assenta-se. O Salmo 68:18 já o via “subindo ao alto”; Marcos 16:19 e Lucas 24:51 narram a ascensão; Atos 1:9–11 descreve a nuvem que o recebe; Efésios 1:20–22 e 4:8–11 mostram-no entronizado e derramando dons; Colossenses 3:2 manda fixar o coração lá em cima; 1 Pedro 3:22 sela: Ele está “à destra de Deus”. Tudo isso converge em Hebreus: “tendo, pois, um grande sumo sacerdote, Jesus, Filho de Deus…” (Hebreus 4:14); “o nosso Precursor entrou por nós” (Hebreus 6:20); “tal sumo sacerdote nos convinha” (Hebreus 7:26). E por que entrou? Para aparecer por nós — para pôr, por assim dizer, o nosso nome na sala do trono, como o antigo sacerdote punha as tribos diante do propiciatório (compare com Zacarias 3:1; Apocalipse 8:3, onde o Anjo oferece incenso com as orações dos santos).
É por isso que 9:24 diz que o templo antigo era “figuras” (eco de Hebreus 9:9 e 9:23) e que o verdadeiro é Ele e o céu: Marcos 14:58 opõe o santuário “feito por mãos” ao “não feito por mãos”; Hebreus 1:3 mostra o Filho sentado “à direita da Majestade”; Hebreus 6:20, 7:26, 8:2, 12:2 traçam a mesma linha do trono; e a igreja vive dessa presença: “cheguemo-nos” (Hebreus 10:19–22), porque Ele “aparece por nós”. A velha cópia (Êxodo 26–40; Levítico inteiro) formou a nossa imaginação com ouro, cortinas, sangue e fumaça. Agora, o Original — Cristo — abriu o céu, consagrou o caminho com sangue melhor (Hebreus 9:23), entrou no santuário verdadeiro (Hebreus 9:24) e permanece lá, de pé por nós (compare com Salmos 68:18; Efésios 4:10), e assentado por nós (Salmos 110:1 subentendido; Romanos 8:34). Por isso o culto não é nostalgia de tendas; é ousadia de acesso. Por isso o coração não mora mais em sombras; mora onde Ele está. E é por isso que a nossa esperança não é evocação da cópia, mas resposta à realidade: “Agora (nyn) Ele aparece por nós (hypèr hēmōn) na presença de Deus (tō prosṓpō toû Theoû).”
O autor de Hebreus afasta, de uma vez por todas, a ideia de um Cristo que repete sacrifícios. Ele escreve, em Hebreus 9:25: “ouk hína pollákis prosphérē heautón” — “não para que muitas vezes oferecesse a si mesmo”, “hōsper ho archiereús eiserchetai eis ta hágia kat’ eniautón en haímati allotríō” — “como o sumo sacerdote entra nos santos, de ano em ano, com sangue alheio”. O contraste é intencional: o Dia da Expiação ordenado em Levítico 16 (especialmente Levítico 16:2–34) e reafirmado em Êxodo 30:10 exigia a entrada anual do sumo sacerdote “com sangue”, e Hebreus 9:7 já lembrara esse rito: “uma vez por ano… não sem sangue”. Cristo, porém, não repete esse caminho. Ele não leva “sangue alheio”, mas — como o mesmo capítulo já proclamou — entrou “dià toû idíou haímatos” — “por seu próprio sangue” (Hebreus 9:12, tradução). E se o sacerdote levítico precisava de muitas ofertas, o Messias cumpriu o culto com uma oferta que atinge o âmago da consciência: “dià pneumátos aiōníou heautòn prosēnénken ámōmon” — “pelo Espírito eterno, ofereceu-se a si mesmo imaculado” (Hebreus 9:14, tradução). Daí o desfecho inevitável, que já antecipa Hebreus 10:10: “nós fomos santificados… pela oferta do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez por todas”. Hebreus 9:26, ao ser citado dentro de 9:25 (“como…”), fecha o argumento no próprio Cristo: o que era cíclico no sacerdote de Aarão tornou-se definitivo no Sumo Sacerdote celeste. E o princípio que Paulo pregou — Deus propôs Cristo “como propiciação no seu sangue” (Romanos 3:25) — encaixa-se aqui: não há remissão por séries de gotículas; há remissão porque um sangue perfeito foi de fato derramado.
O versículo seguinte, Hebreus 9:26, explica por que essa repetição seria, além de impossível, teologicamente absurda: “epei édei autón pollákis patheîn apò katabolês kósmou” — “pois, nesse caso, seria necessário que ele muitas vezes padecesse desde a fundação do mundo”. A expressão “apò katabolês kósmou” — “desde a fundação do mundo” — espalha-se pela Escritura para dizer que o plano redentor não nasceu tardiamente: o Reino está “preparado desde a fundação do mundo” (Mateus 25:34), o Filho é amado “antes da fundação do mundo” (João 17:24), e a sua entrega é conhecida “previamente” (1 Pedro 1:20), enquanto o livro da vida do Cordeiro está ligado a essa mesma fundação (Apocalipse 13:8; 17:8). Se a lógica do culto fosse a da repetição, Cristo teria de viver um calvário interminável ao longo de toda a história — o que nega a própria excelência de sua pessoa e obra. Em vez disso, o texto proclama: “nynì dè hápax epì syntelía tōn aiṓnōn” — “agora, porém, uma vez, na consumação das eras” — “eis athétēsin tês hamartías dià tês thysías autoû pephanérōtai” — “para anular o pecado, manifestou-se pelo seu sacrifício”. Essas duas linhas são o coração do evangelho. Primeiro, o tempo: a “consumação das eras” corresponde ao “nestes últimos dias” (Hebreus 1:2), à “convergência” que Deus determinou “na dispensação da plenitude dos tempos” (Efésios 1:10), ao momento em que o que os profetas viram “no fim dos dias” (Isaías 2:2; Miquéias 4:1) e o que Daniel chamou de “o que sucederá no fim” (Daniel 10:14) chegou “a nós”, “sobre quem os fins dos séculos têm chegado” (1 Coríntios 10:11; compare Gálatas 4:1 no argumento pedagógico da Lei). Segundo, o conteúdo: Cristo “se manifestou” — pephanérōtai — não para sugerir um caminho, mas para abolir o domínio objetivo do pecado: “eis athétēsin tês hamartías” — “para a invalidade/ab-rogação do pecado”. Isso cumpre o que o capítulo já preparara: “quanto mais o sangue de Cristo… purificará a vossa consciência das obras mortas” (Hebreus 9:14); e prepara o que virá adiante: “oferecendo um único sacrifício pelos pecados, assentou-se” (Hebreus 10:12), em contraste com qualquer retorno às sombras (Hebreus 10:26).
Esse “manifestou-se” desdobra todo o Antigo Testamento. O bode emissário de Levítico 16:21–22, que levava as culpas para fora, era uma parábola do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (João 1:29). A dor confessada por Davi — “Pequei… leva a iniquidade do teu servo” (2 Samuel 12:13; 24:10) — e a pergunta de Jó — “Por que não perdoas a minha transgressão?” (Jó 7:21) — acham resposta no “hápax” de Cristo, uma vez por todas. Daniel 9:24 sintetizou a agenda: “dar fim à transgressão, pôr fim ao pecado, fazer expiação”; Hebreus 9:26 declara: cumpriu-se. E como se cumpre? Pela oferta. O vocábulo é o mesmo de 9:25 e 9:14: “thysía” — “sacrifício/oferta”. Cristo “ofereceu-se” (Hebreus 7:27) e “entrou por seu próprio sangue” (Hebreus 9:12) para aquilo que a Lei jamais conseguiu realizar (Hebreus 10:4, 10). Paulo canta a mesma verdade com acentos pastorais: “Cristo nos amou e se entregou por nós, oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave” (Efésios 5:2), e “se entregou por nós, para nos remir de toda iniquidade” (Tito 2:14). Pedro a afirma na linguagem da cruz: “ele mesmo levou em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro” (1 Pedro 2:24); “o justo pelos injustos, para conduzir-nos a Deus” (1 Pedro 3:18). João a fixa com objetividade: “nele não há pecado” (1 João 3:5). Tudo converge no altar único do Calvário: “en hēméra ekei”, “naquele dia”, como gostam de dizer os profetas, Deus consumou, de uma vez, o que nenhum rito repetido poderia alcançar.
Perceba, então, como as duas afirmações — “não muitas vezes” (Hebreus 9:25) e “agora, uma vez” (Hebreus 9:26) — abraçam todas as referências: o Dia anual do sumo sacerdote (Levítico 16; Êxodo 30:10) é a pedagogia; o entrar de Cristo com o próprio sangue (Hebreus 9:12) é a realidade; a qualidade de sua oferta, “pelo Espírito eterno” (Hebreus 9:14), explica a unicidade do ato; a santificação “uma vez por todas” (Hebreus 10:10) é o fruto; e o tempo — “consumação das eras” — garante que não esperamos outro ciclo: recebemos o cumprido. Se a Lei pedia que o sumo sacerdote voltasse todo ano, o evangelho anuncia que o Sumo Sacerdote assentou-se; se a Lei lembrava pecados, o evangelho anula o pecado no tribunal de Deus. E é por isso que, ao ler 9:25–26 à luz de Mateus 24:3 (“o fim”), de João 17:19 (“eu me santifico por eles”), de Romanos 6:10 (“morreu, de uma vez”), o nosso coração aprende a adorar com a gramática de Hebreus: hápax — uma vez; ephápax — de uma vez por todas. O culto verdadeiro não espera a próxima rodada; vive da obra consumada.
O versículo ergue uma sentença dupla — inevitável como o nascer do sol e solene como um tribunal: “e, assim como está decretado aos homens uma vez morrer, depois disso, juízo” (Hebreus 9:27). O verbo apókeitai (“está reservado, fixado, decretado”), em paralelo a hápax apothaneîn (“morrer uma vez”), arma o primeiro pilar do texto: a mortalidade como estatuto universal. A segunda cláusula — metà dè toûto krísis (“depois disso, juízo”) — levanta o segundo pilar: responsabilidade última perante Deus. O que Hebreus 9:27 afirma em duas linhas, a Escritura inteira catequiza com histórias, leis, poemas e evangelhos.
Primeiro, a mortalidade como decreto: não uma contingência biológica apenas, mas um veredito moral que começou no Éden. “Pó és e ao pó tornarás” (Gênesis 3:19) é o sino que inaugura a marcha do gênero humano; a partir dali, cada biografia passa a ser escrita entre dois punhados de pó. A sabedoria de uma mulher de Tecoa ecoa o mesmo: “todos havemos de morrer, e somos como água derramada na terra, que não se pode tornar a ajuntar” (2 Samuel 14:14). Jó vai mais fundo: nossos “dias estão contados”, os limites “estabelecidos” (Jó 14:5); não é só que morremos — é que já há hora marcada. Por isso ele confessa: “sei que me levarás à casa determinada a todos os viventes” (Jó 30:23). O saltério transforma isso em oração sóbria: “que homem viverá e não verá a morte?” (Salmos 89:48). E Eclesiastes põe a pá de cal com uma tríplice catequese: todos “vão para um lugar; todos são pó, e ao pó tornam” (Eclesiastes 3:20); “os mortos nada sabem” e “não há obra, nem projeto, nem ciência, nem sabedoria no Sheol para onde tu vais” (Eclesiastes 9:5, 10); por fim, “o pó volta à terra… e o espírito volta a Deus” (Eclesiastes 12:7). Paulo recolhe o fio e dá-lhe a causa: “por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte; e assim a morte passou a todos” (Romanos 5:12). Tudo isso explica a primeira metade de Hebreus 9:27: a morte não é só estatística; é apókeitai — decreto que paira sobre “os homens” como consequência do pecado. É por isso, aliás, que as genealogias repetem o refrão “e morreu” (Gênesis 5:5 e seguintes), que os patriarcas se despedem dizendo “eu morro” (Gênesis 50:24), que Josué fala de si como quem “vai pelo caminho de toda a terra” (Josué 23:14) e Davi se levanta dizendo “eu vou pelo caminho de toda a terra” (1 Reis 2:2): a Bíblia inteira se dobra à gramática do hápax apothaneîn — “morrer uma vez.”
Mas Hebreus 9:27 tem um “depois”: metà dè toûto krísis — “depois disso, juízo.” A doutrina de “juízo eterno” (Hebreus 6:2) não é um adendo tardio; é o complemento necessário de uma morte que, sendo uma vez, não fecha a conta: presta contas. Jó, que chorou a brevidade dos dias, é o mesmo que ergue os olhos: “Eu sei que o meu Redentor vive, e por fim se levantará sobre a terra” (Jó 19:25) — linguagem de tribunal e vindicação. O Pregador, que ensinou a mortalidade, encerra seu livro com a assinatura do Juiz: “Deus há de trazer a juízo toda obra, até as escondidas” (Eclesiastes 11:9; 12:14). Jesus, no discurso escatológico, põe o Filho do Homem assentado “no trono da sua glória”, separando rebanhos, medindo obras de misericórdia, pronunciando destinos (Mateus 25:31–46). No quarto Evangelho, Ele explica o porquê: “como o Pai tem a vida em si mesmo, assim deu ao Filho também ter a vida em si… e deu-lhe autoridade para julgar… vem a hora em que todos os que estão nos sepulcros ouvirão a sua voz: os que fizeram o bem, para a ressurreição da vida; os que praticaram o mal, para a ressurreição do juízo” (João 5:26–29). Os apóstolos pregam a mesma agenda em praça pública: “Deus estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio do varão que constituiu, dando garantia a todos ao ressuscitá-lo” (Atos 17:31). Paulo dobra a ênfase: quem despreza a paciência, acumula “ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus” (Romanos 2:5); e porque Cristo é “Senhor de mortos e vivos”, “cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus” (Romanos 14:9–12). Por isso, recomenda: “não julgueis antes do tempo” — porque “Ele trará à luz o que está oculto” (1 Coríntios 4:5); e adverte: “todos devemos comparecer perante o tribunal de Cristo” (2 Coríntios 5:10). Timóteo recebe a fé com comissão forense: “Cristo Jesus há de julgar vivos e mortos” (2 Timóteo 4:1). Judas vê o quadro final como citação divina: o Senhor “executará juízo sobre todos” (Judas 15). E João, em Patmos, contempla o grande trono branco diante do qual “os mortos… foram julgados” (Apocalipse 20:11 e contexto). Tudo isso não é comentário periférico, mas a explicação da segunda cláusula de Hebreus 9:27: a morte não dissolve a pessoa no nada; ela introduz a pessoa na presença do Juiz. Krísis não é acaso; é comparecimento.
Essa dupla certeza — mortalidade decretada e juízo certo — não paira isolada em Hebreus; ela serve de trampolim imediato para o evangelho que o versículo seguinte canta: “assim também Cristo, tendo sido oferecido uma vez (hápax) para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem relação com o pecado, para a salvação” (Hebreus 9:28). A lógica é perfeita: se está apókeitai (decretado) que morramos uma vez e depois haja krísis, Deus providenciou um sacrifício uma vez (hápax), eficaz para sempre, que nos prepara para o depois. A mortalidade nos nivela; o juízo nos responsabiliza; a cruz nos salva. É por isso que o Novo Testamento transforma o temor da morte em esperança de comparecimento: não iremos sozinhos; iremos por Ele (Hebreus 7:25), nele (Romanos 5:2), com consciência purificada (Hebreus 9:14). E é por isso que o Antigo Testamento, que nos ensinou a cair no pó, também nos ensinou a andar em retidão “lembrando” do juízo — porque nada ficará fora da pauta do trono (Eclesiastes 12:14).
Assim, Hebreus 9:27 não é apenas uma lápide; é um marco. Põe o nosso tempo entre dois termos: hápax apothaneîn — morrer uma vez — e krísis — o juízo. Entre ambos, Deus nos deu Cristo. Quem lê o “assim como… depois disso…” com os ouvidos de Gênesis, Jó, Salmos e Eclesiastes, e com os olhos de Mateus, João, Atos e Apocalipse, entende o chamado de Hebreus: não adie a fé, não trate a morte como distração, nem o juízo como mito. Viva como quem um dia presta contas — e confie como quem já tem Advogado e Propiciação (1 João 2:1–2).
Hebreus 9:28 é um versículo de dois andares. No piso de baixo ele olha para trás, para o Calvário; no piso de cima ele abre a sacada e aponta para a vinda do Rei. O texto diz: “assim também Cristo, tendo sido oferecido uma vez para levar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem relação com pecado, aos que o aguardam, para salvação.” Cada expressão é uma braçada que o autor dá dentro do rio inteiro das Escrituras.
Quando ele afirma “hápax prosenechtheís” (“oferecido uma vez”), amarra o versículo ao argumento imediato de Hebreus 9:25: o Sumo Sacerdote da nova aliança não entra repetidas vezes, como Aarão; a sua oblação é única. É o mesmo arco de Romanos 6:10: “quanto a morrer, morreu para o pecado, de uma vez”, isto é, a morte de Cristo não é cíclica nem simbólica, é histórica e suficiente. Pedro canta a mesma nota: “Cristo padeceu uma vez pelos pecados” (1 Pedro 3:18). E João fixa a finalidade: “nele não há pecado” (1 João 3:5); por isso sua oferta não precisa de duplicatas. A unicidade do sacrifício é a chave que tranca o templo antigo e abre o santo dos santos celeste.
Daí a segunda lâmina: “eis tò pollōn anenegkeîn hamartías” — “para levar os pecados de muitos”. O verbo anenegkeîn (levar para cima, carregar, assumir) é a costura direta com o sacerdócio veterotestamentário. Em Levítico 10:17, Moisés pergunta: por que o pecado não foi comido “para levar a iniquidade da congregação”? Comer a oferta era, em linguagem ritual, carregar a culpa do povo diante de Deus. Em Números 18:1 e 18:23, Deus diz a Arão e aos levitas que levarão a iniquidade do santuário — o culto inteiro dependia de alguém que, representando o povo, assumisse o peso. Mas tudo isso era ensaio. O servo prometido é que, afinal, “tomou sobre si as nossas enfermidades” e “levou as nossas iniquidades” (Isaías 53:4–6); “o justo, levando ele a iniquidade deles” (Isaías 53:11), “levou sobre si o pecado de muitos e intercedeu pelos transgressores” (Isaías 53:12). Quando Jesus diz: “este é o meu sangue da aliança, derramado por muitos para remissão” (Mateus 26:28), Ele está assinando Isaías 53 com seu próprio nome. Paulo, em Romanos 5:15, contrapõe o estrago de Adão ao dom gratuito em muitos por Cristo — os “muitos” de Isaías ecoam nos “muitos” de Hebreus. E Pedro declara em prosa pastoral o que o autor de Hebreus diz em teologia: “ele mesmo levou em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro” (1 Pedro 2:24). O altar mudou de geografia, mas não de lógica: alguém santo assume a culpa do povo para que o povo viva.
O versículo então ergue os olhos da cruz para a esperança: “toîs autòn apekdechoménois” — “aos que o aguardam ansiosamente”. Hebreus conhece bem essa igreja de olhos erguidos: é a comunidade de Filipenses 3:20, cuja “pátria está nos céus, de onde aguardamos o Salvador”; de 1 Tessalonicenses 1:10, que “espera dos céus a seu Filho”; de 2 Timóteo 4:8, para quem há coroa “a todos os que amam a sua vinda”; de Tito 2:13, que vive “aguardando a bendita esperança”; de 2 Pedro 3:12, que “aguarda e apressa” o dia de Deus. O futuro do crente, em Hebreus, não é curiosidade apocalíptica; é postura de vida: esperar Aquele que já entrou por nós.
E quem vem? O texto diz: “ek deuterou… opsétai” — “aparecerá segunda vez”. Esse opsétai (“será visto”, “aparecerá publicamente”) é o cumprimento vívido da expectativa profética: “virá o SENHOR meu Deus, e todos os santos contigo” (Zacarias 14:5). É a promessa do próprio Cristo: “voltarei e vos receberei para mim mesmo” (João 14:3). É o juramento angelical do Olival: “esse Jesus… há de vir assim como para o céu o vistes ir” (Atos 1:11). É a descida sonora de 1 Tessalonicenses 4:14–16, quando “o Senhor descerá… e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro”. É, para quem resiste ao evangelho, a “revelação do Senhor Jesus… em chama de fogo” (2 Tessalonicenses 1:5–9); e, para a igreja exausta, o consolo de 2 Tessalonicenses 2:1: “a vinda de nosso Senhor e nossa reunião com Ele.” João costura tudo numa frase: “quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele” (1 João 3:2). E o Apocalipse pinta o quadro final: “Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá” (Apocalipse 1:7). É isso que Hebreus chama de opsétai: o Cristo que se ofereceu oculto no Gólgota virá manifesta e vitoriosamente.
Entre a primeira e a segunda vinda, há uma diferença decisiva: “chōrìs hamartías” — “sem relação com o pecado”. Na primeira vinda, Ele “veio em semelhança de carne do pecado” e, naquela carne, “Deus condenou o pecado” (Romanos 8:3); “quanto a morrer, morreu para o pecado, de uma vez” (Romanos 6:10). Na segunda, não há mais obra expiatória a cumprir; não há cruz por repetir nem sangue por verter. Ele vem sem pecado — não porque outrora tivesse pecado (Hebreus o nega do começo ao fim), mas porque a obra com respeito ao pecado está consumada. O que Ele traz na volta não é faca e fogo de altar, mas salvação em plenitude.
E é por isso que o versículo termina como começa, mas agora com o rosto virado para a eternidade: “eis sōtērían” — “para salvação”. Isaías 25:9 já ensinara a liturgia do último dia: “Eis que este é o nosso Deus… nós o aguardávamos, na sua salvação nos alegraremos.” Paulo traduz essa alegria em termos de corpo: “aguardamos a adoção, a redenção do nosso corpo” (Romanos 8:23); quando “o que é mortal for absorvido pela vida”, então se cumprirá “tragada foi a morte na vitória” (1 Coríntios 15:54). Filipenses 3:21 detalha o milagre: Ele “transformará o corpo da nossa humilhação”. 1 Tessalonicenses 4:17 dá o abraço: “estaremos para sempre com o Senhor.” E 2 Tessalonicenses 1:10 descreve o clima: Ele “virá para ser glorificado nos seus santos e admirado em todos os que creram.” Essa é a direção do eis sōtērían em Hebreus 9:28: a salvação plena, visível, compartilhada, terminativa.
Tudo, portanto, cabe nessa moldura que o autor ergueu ao longo do capítulo: Cristo foi oferecido uma vez (Hebreus 9:25; Romanos 6:10; 1 Pedro 3:18; 1 João 3:5), para carregar o nosso pecado (Levítico 10:17; Números 18:1, 23; Isaías 53:4–6, 11–12; Mateus 26:28; Romanos 5:15; 1 Pedro 2:24); e voltará (Zacarias 14:5; João 14:3; Atos 1:11; 1 Tessalonicenses 4:14–16; 2 Tessalonicenses 1:5–9; 2 Tessalonicenses 2:1; 1 João 3:2; Apocalipse 1:7) sem relação com o pecado (Romanos 6:10; Romanos 8:3), para entregar a salvação aguardada pelos seus (Isaías 25:9; Romanos 8:23; 1 Coríntios 15:54; Filipenses 3:21; 1 Tessalonicenses 4:17; 2 Tessalonicenses 1:10). E, no meio de tudo, permanece a postura que o texto exige: “apekdechoménois” — esperar com anseio. É assim que a igreja vive entre a cruz e a coroa: com a consciência lavada pela oferta “hápax” — “uma vez” — e com os olhos firmes no opsétai — “aparecerá”.
Índice: Hebreus 1 Hebreus 2 Hebreus 3 Hebreus 4 Hebreus 5 Hebreus 6 Hebreus 7 Hebreus 8 Hebreus 9 Hebreus 10 Hebreus 11 Hebreus 12 Hebreus 13Bibliografia
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