Estudo sobre Lucas 9
Estudo sobre Lucas 9
Lucas 9
TERCEIRA VIAGEM (9.1-50)
O ministério do nosso Senhor está se aproximando agora de uma de suas grandes crises. A narrativa de Marcos, que Lucas seguiu até aqui de forma bastante fiel, parece se dividir em duas partes, a primeira contando do Filho do homem que não “veio para ser servido, mas para servir” (Mc 10.45a); a segunda contando daquele que veio “dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45b). Assim, já vimos como a reivindicação de autoridade por parte de Jesus (caps. 4 e 5) levou ao conflito direto com os judeus (caps. 5 e 6); e como ele se preparou para a sua partida ao apontar e treinar apóstolos (cap. 6) e ao ensinar o povo em parábolas que não seriam facilmente esquecidas (cap. 8).
Durante todo o tempo em que esteve com eles, Jesus ensinou os seus seguidores. Agora, Pedro chega ao ponto a que o Senhor os conduziu, e num momento de percepção divina ele enxerga que Jesus é o Messias. A partir desse momento, o ensino se torna mais sombrio no seu tom, pois eles precisam aprender que tipo de Messias ele vai ser, a saber, um Messias sofredor como o Servo de Javé em Is 42-53, “um homem de dores e experimentado no sofrimento” (Is 53.3b). Assim, a partir do momento da confissão em Cesareia de Filipe, Jesus começa a gravar na mente e no coração dos seus discípulos o que o espera (v. 22). (V. um ponto de vista diferente acerca do questionamento do Senhor e da confissão de Pedro no comentário de Mc 8.27-30.)
O material dessa seção encontra paralelo em grande parte em Marcos, que provavelmente foi a fonte de Lucas. Além da confissão de Pedro, três eventos importantes são registrados, todos associados diretamente aos “sofrimentos de Cristo e [às] glórias que seguiriam àqueles sofrimentos” (1 Pe 1.11).
(a) Ele menciona a morte de João Batista. Se o precursor precisa morrer, isso aponta para aquele que deve seguir o mesmo caminho.
(b) A multiplicação dos pães para os 5 mil lembraria o leitor não somente do maná no deserto, mas também do banquete messiânico prometido ao qual ele apontava.
(c) A transfiguração conecta a glória do Cristo transfigurado com o êxodo que ele deve cumprir.
1) A viagem dos Doze (9.1-6,10)
Jesus envia os Doze a uma jornada de pregação. A versão de Marcos é semelhante (6.7-13); Mateus 10.5-42 é mais extenso e inclui algum material que Lucas coloca na recomendação aos Setenta (v. comentário de Lc 10.1-20) e algum material de outro lugar (v. comentário de Mt 10.5-42).
A morte de João (9.7-9)
Os Sinópticos mencionam a morte de João Batista nesse ponto sem afirmarem quando exatamente ela ocorreu. Mateus e Marcos descrevem o evento em detalhes, o terceiro evangelho meramente o menciona, embora seu relato de batismo seja seguido de uma nota (3.19,20) segundo a qual Herodes tinha encarcerado João. (V. comentário detalhado em Mc 6.14-29.)
A multiplicação dos pães para 5 mil (9.10-17)
Esse é o único milagre registrado em todos os quatro evangelhos (Mc 6.30-43; Mt 14.13-21; Jo 6.1-13); Marcos e Mateus também trazem uma segunda multiplicação miraculosa dos pães para 4 mil (Mc 8.1-10; Mt 15.32-39). Marcos conta como Jesus leva os Doze após o seu retorno a um lugar calmo para um período de retiro (Mateus sugere que isso seguiu o recebimento da notícia da morte de João). Mas é impossível conseguir algum descanso, pois a multidão se ajunta e, vendo o grupo cruzar o mar, se apressa pela margem para encontrá-lo na sua chegada na outra margem (um detalhe que Lucas omite). Assim, Jesus prega para eles e, quando o dia está quase terminando, questiona os discípulos acerca do que estes vão fazer para alimentar a multidão. João conta como André e Filipe, que são da região, fazem uma investigação e relatam a presença de um menino que tem cinco pães e dois peixinhos. Os Sinópticos mencionam esse total de comida disponível, mas não o menino. Assim como a recebeu, o Senhor a toma, dá graças, e vendo que a multidão está sentada de maneira ordenada, alimenta todos de maneira miraculosa com base nos cinco pães e dois peixinhos; ainda sobra tanto que enche 12 cestos ou um tipo de bolsa que os discípulos, como judeus piedosos, carregavam para não dependerem da generosidade dos gentios. (V. detalhes na seção de Mc 6.30-44.)
A revelação da sua pessoa e primeira predição do seu sofrimento (9.18-27)
A grande confissão de Pedro em Cesareia de Filipe de que Jesus é de fato o tão esperado Messias é o divisor de águas da narrativa do Evangelho; a partir daí, a sombra da cruz domina toda a história. Jesus se dispôs a ir para Jerusalém, para sofrer lá. Observações detalhadas estão no comentário de Mc 8.2738 e Mt 16.13-27. Lucas faz suas próprias e interessantes contribuições. Ele omite a censura de Pedro a Jesus após a predição da Páscoa e a resposta de Jesus. “A omissão, indubitavelmente, é propositada para evitar um incidente que poderia refletir de forma desfavorável sobre o apóstolo” (Creed, p. 130). Ele também omite a referência a Cesareia de Filipe, mas, por outro lado, inicia de forma característica o seu relato com Jesus orando (v. 18).
A transfiguração (9.28-36)
A transfiguração (v. Mc 9.2-8; Mt 17.1-8) é a continuação natural do incidente anterior, com sua predição de sofrimento. Deus anuncia a sua aprovação do céu como fez quando no seu batismo Jesus voluntariamente abraçou a missão com tudo que sabia que ela acarretaria. Só quando Jesus contou aos seus discípulos o que ele estava enfrentando foi que eles viram a verdadeira glória dele.
Alguns dias após a confissão, ele leva Pedro, Tiago e João à montanha para orar. A sua aparência é transfigurada com glória, e dois visitantes celestiais, Moisés e Elias, conversam com ele com respeito aos seus sofrimentos vindouros. Pedro quer tornar a experiência permanente ao construir três cabanas, assim oferecendo honras iguais a Moisés, a Elias e a Jesus. Do céu, Deus anuncia a singularidade de seu Filho. Então, Moisés e Elias não são mais vistos; permanece somente Jesus.
v. 28. subiu um monte'. Foi num monte que Moisés pediu para ver a glória de Deus, e mesmo que isso não lhe tenha sido concedido, sua face brilhou tanto que ele teve de cobrir o rosto com um véu para proteger o povo (Êx 33.12-23; 34.29-35). Foi também num monte que Elias, que veria a glória de Deus antes de morrer, viu a manifestação do seu poder (l Rs 18). v. 29. Enquanto orava• Um toque característico de Lucas! v. 31. a partida de Jesus: A palavra grega é o nosso termo “êxodo”. Moisés, que tinha conduzido o povo para fora do Egito e para a libertação no primeiro êxodo, fala com aquele cujo êxodo vai trazer libertação do pecado, v. 34. uma nuvem apareceu e os envolveu: A nuvem que obscurece é um símbolo conhecido da Presença divina no AT (cf. Êx 40.34; Lv 16.2; 2Cr 5.13 etc.), v. 35. A mensagem no batismo citada de SI 2.7 e Is 42.1, a voz acrescenta mais uma frase: ouçam-no! (Dt 18.15). v. 36. Jesus ficou só: A Lei e os Profetas serviram ao seu turno e passaram; aquele que é o cumprimento de ambos é o único que permanece.
A cura do endemoninhado (9.37-43)
A experiência no topo da montanha é seguida, como tantas vezes, do retorno devastador às coisas cotidianas. Voltando à colina, mais uma vez eles precisam enfrentar a impotência dos seus colegas discípulos em expulsar um demônio. V. comentário de Mc 9.14-29.
Segunda predição de sofrimento: último ministério na Galileia (9.44-50)
Os versículos finais da primeira seção do relato que Lucas faz do ministério de Cristo incluem:
v. 44,45. A segunda predição do sofrimento (a versão de Lucas é muito breve, não mencionando especificamente nem a crucificação nem a ressurreição).
v. 46-48. Chamando uma criança para ficar ao seu lado, Jesus censura os discípulos por seu desejo de preeminência. Veja um relato detalhado do incidente no comentário de Mt 18.1-5.
v. 49, 50. Uma advertência contra a falta de amor do exclusivismo. Observações mais detalhadas acerca dessa última seção podem ser encontradas no comentário da versão mais abrangente de Marcos (Mc 9.31-41).
VI. O MINISTÉRIO FINAL NA JUDÉIA (9.51—19.27)
A longa seção de 9.51—18.14 é, junto com os dois primeiros capítulos e o último, a contribuição mais distintiva de Lucas à tradição dos Evangelhos. Na superfície, parece simplesmente o relato da última grande jornada que o nosso Senhor fez, depois dos estágios finais do seu ministério na Galileia, para Jerusalém e sua Paixão. Diversos nomes foram sugeridos para essa seção, mas B. H. Streeter (The Four Gospels, cap. viii) disse que a maioria era insatisfatória por tomar por certo alguma coisa. Chamá-la de seção da Peréia omite o fato de que parte da jornada, de todo modo, foi realizada a oeste, e não a leste, do Jordão. A “Narrativa da Viagem” ou o “Documento da Viagem” sugerem a existência de um documento que Lucas incorporou no seu Evangelho; não existe prova alguma de tal documento. O próprio Streeter propõe: “Seção Central”, que não força a situação; outros a chamam de “Grande Interpolação”, percebendo que é no seu todo uma interpolação no quadro geral de Marcos. Mas qualquer que seja o nome dado à seção, Reicke não está exagerando quando a chama de “o enigma central desse evangelho” (The Gospels Reconsidered, ed. Aland, 1960, p. 107).
A questão em debate é se esses capítulos descrevem a “grande jornada” da Galileia para Jerusalém como de fato ocorreu, com os incidentes registrados ocorrendo exatamente onde Lucas os coloca; ou se, por outro lado, ele usa o quadro geral da jornada (que obviamente deve ter ocorrido, visto que os eventos da última semana em Jerusalém seguem um ministério totalmente localizado no Norte) como uma forma conveniente de ajuntar diversos incidentes e ditados não relacionados.
Seria correto dizer que a maioria dos críticos acadêmicos pende para o segundo ponto de vista. “O itinerário de Lucas”, diz T. W. Manson, “é difícil de seguir [...]. Não importa o que mais Lc 9.51—18.14 possa ser, não parece uma crônica” (The Sayings of Jesus, 1949, p. 255-6). O ensaio de Reicke já mencionado é provavelmente a análise séria mais recente da questão. Ele sugere que, encontrando nas suas fontes somente as referências mais breves à transição da Galileia para a Judeia (cf. Mc 10.1; Mt 19.1), Lucas preencheu o que ele considerou uma brecha na sua informação com “(1) instrução dos apóstolos considerados (a) líderes e mestres dos cristãos, i.e., ministros, e (b) missionários; e (2) discussão com adversários e oponentes” (p. 111).
N. B. Stonehouse, por outro lado, embora admita que há dificuldades, argumenta que a seção apresenta um relato inteligível da jornada que de fato ocorreu. Jerusalém, diz ele, está sempre em vista; nunca se perde a vista dessa cidade como o último destino (The Witness of Luke to Christ, p. 114ss). A sua argumentação é bem fundamentada e merece estudo detalhado. Além disso, embora Stonehouse represente o ponto de vista da minoria, ele não está de maneira alguma sozinho; Plummer (p. 60-1), embora não argumente a favor da historicidade da jornada, parece pressupô-la.
1) A jornada para Jerusalém via Samaria (9.51—12.59)
a) Hostilidade samaritana e pretendentes a discípulos (9.51-62)
A decisão definitiva do nosso Senhor foi tomada; o tempo chegou agora para se cumprir aquilo para o que ele se tornou carne. Os seus discípulos não entendem; eles querem clamar para que desça fogo do céu sobre os malcriados samaritanos que lhes rejeitaram a hospitalidade. Entrementes, outros pretendentes a discípulos tentam se associar a ele, mas eles não demonstram percepção alguma das reivindicações totalitárias que o discipulado faz aos homens.
Uma das características estranhas da história do Evangelho é a insensibilidade frequente dos discípulos, especialmente em tempos de crise. Em Mc 10.32-36, por exemplo, a terceira e mais clara predição dos sofrimentos do nosso Senhor evoca de João e Tiago apenas manobras para ganhar vantagens e posições pessoais no reino. Aqui, quando ele se põe no caminho derradeiro para a cruz, os discípulos estão preocupados somente com a vingança espetacular sobre os rudes samaritanos que tinham insultado os seus sentimentos. O fato de essa obtusidade ter sido registrada testemunha de forma intensa a favor da confiabilidade do registro — isso certamente nunca teria sido inventado.
Os samaritanos eram um espinho especial na carne dos judeus. Eles eram descendentes das tribos mistas com que Sargão II da Assíria havia repovoado Samaria depois da queda do reino de Israel em 722-1 a.C. (2Rs 17.24-34, v. tb. F. F. Bruce, Israel and the Nations, 1963, p. 66) e, como tais, não eram de fato judeus por raça. Mas eles adotaram as formas judaicas de adoração e liam a Torá dos judeus, e, quando, após o retorno do seu exílio, os judeus rejeitaram a ajuda dos samaritanos na reconstrução das ruínas, a animosidade se intensificou consideravelmente.
O mal-estar persistia, e o desdém dos judeus por esses pseudojudeus continuava evocando o ressentimento dos samaritanos, o que é bem visível na narrativa do NT. Nesse incidente, a rudeza samaritana suscitou a ira dos filhos do trovão, que queriam permissão para retribuir com juros.
v. 51. Jesus partiu resolutamente em direção a Jerusalém. Talvez um eco do terceiro dos cânticos do Servo: “Por isso eu me opus firme como uma dura rocha” (Is 50.7).
v. 53. Os samaritanos lhe negaram hospitalidade porque ele estava indo para Jerusalém a fim de cumprir as suas obrigações religiosas, ignorando o santuário deles em Gerizim que, na opinião deles, de forma nenhuma era inferior ao de Jerusalém.
v. 54. O texto de Lucas veio a nós de diversas formas ligeiramente diferentes; nesse trecho, as versões apoiadas pelo conjunto maior de evidências textuais são mais breves do que o texto recebido do qual a VA é a tradução (em português, a ACF). Aqui o texto mais longo associa o desejo por vingança com um incidente na vida de Elias (2Rs 1.9ss). Essa referência é omitida em algumas versões (ARA; NVI; cf. nr. da NVI). v. 55,56. A versão mais breve omite as palavras: Vocês não sabem de que espécie de espírito vocês são, pois o Filho do homem não veio para destruir a vida dos homens, mas parar salvá-los. Apesar da incerteza textual, o significado do incidente está claro: o mal não se vence com o mal, mas com o bem.
v. 57, 58. O primeiro pretendente a discípulo, um homem (Mt diz “um escriba”) queria seguir Jesus, que dá aqui a resposta acerca das aves e das raposas. T. W. Manson, descartando a sugestão de que o ditado era simplesmente um provérbio popular, relaciona-o às condições contemporâneas da Palestina. As aves na Bíblia, com frequência, são um símbolo apocalíptico das nações gentílicas (Dn 4.12; Mt 13.32 etc.); raposas na literatura judaica são os aparentados, mas hostis ao povo de Deus; em Lc 13.32, a raposa é Herodes. Assim, todos estão em casa na terra de Israel, tanto os senhores romanos (aves) quanto o intruso edomita (Herodes), exceto o verdadeiro Israel. “O verdadeiro Israel é deserdado por eles, e, se você tentar a sorte comigo e com os meus, está se unindo aos desapossados” (Sayings, p. 72-3). V., no entanto, o comentário de Mt 8.20.
v. 59, 60. O segundo pretendente a discípulo. Outro candidato quer postergar assumir o compromisso com o discipulado até que tenha cumprido o mais sagrado dos deveres filiais, o de enterrar o pai. Mas não há indicação alguma de que o pai já tenha falecido. As reivindicações do reino são superiores: Deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos. Esse ditado, que tem sido muito debatido, é seguido em Lucas da ordem você, porém, vá e proclame o Reino de Deus; em Mateus (8.22) é simplesmente “Siga-me”. v. 61,62. O terceiro pretendente a discípulo (somente em Lucas). A desculpa pela demora é menos válida aqui, sendo simplesmente uma questão de despedidas familiares. A resposta, dada por Jesus, associada ao arador lembra que foi enquanto arava a terra que Eliseu ouviu o chamado de Deus (lRs 19.19ss).