Antigo Testamento: Desenvolvimento Histórico-Crítico
Antigo Testamento: Desenvolvimento Histórico-Crítico
A história posterior situa-se primeiramente sob o influxo do método histórico e da história das religiões. Assim, na opinião de W. M. L. DE WETIE (1806s, 1817),os livros do AT mostram-nos a evolução de suas ideias e ao mesmo tempo nos oferecem a possibilidade de estabelecer a data de origem desses livros. A contribuição básica de DE WETTE consistiu em ter feito a identificação entre o código de [Osias e o Deuteronômio. Ao lado de H. G. A. EWALD (1835ss, 1840s, 1843ss), devemos mencionar ainda W. VATKE (1835), o qual, sob o influxo de HEGEL, descreve a evolução da literatura do AT, tendo por pano de fundo a história de sua religião. Em contraposição, emerge a tentativa de uma renovação da tradição da sinagoga e da Igreja primitiva, por parte de E. W. HENGSTENBERG (1831ss) e K. F. KEIL (1833). Este último se empenhou em provar, p.ex., a autenticidade do Pentateuco e do livro de Daniel, ou a unidade do livro de Zacarias.
Decisiva, porém, foi a pesquisa histórico-crítica, a qual - não obstante os conhecimentos fundamentais adquiridos anteriormente por A. KUENEN (18618s) e K. H. GRAF (1866 - está ligada sobretudo ao nome de J. WELLHAUSEN (1876ss). F. BLEEK (1878), B. STADE (1881ss), W. ROBERTSON SMITH (1881), C. H. CORNILL (1891), S. R. DRIVER (1891) e, como que rematando, C. STEUERNAGEL (1912), prosseguiram com os trabalhos de pesquisa, dentro da linha de WELLHAUSEN. Se, de um lado, DE WETTE havia chegado a um sólido ponto de apoio cronológico, identificando o código de [Osias com o Deuteronômio, do outro lado, KUENEN e GRAF situaram a data do estrato sacerdotal das fontes do Pentateuco no período pós-exílico, enquanto WELLHAUSEN traçava a grande sinopse dentro da qual as fontes, estudadas do ponto de vista literário, formavam um quadro bem definido da história de Israel, no qual, por sua vez, as próprias fontes encontram seus respectivos lugares. Como este quadro simplesmente não concordava com os pontos de vista tradicionais, concentraram-se sobre WELLHAUSEN ataques que perduram até os nossos dias. Inculpam-no de hegelianismo e de evolucionismo, quando não o apresentam, mesmo, como uma encarnação do demônio. PERLITT, no entanto, demonstrou recentemente, com a máxima clareza possível, que tais críticas carecem de fundamento. Na realidade, os próprios adversários de WELLHAUSEN muito aprenderam dele e utilizaram-se de suas verificações e de seu método, mesmo que se tenham empenhado, como H. L. STRACK (1883),E.K. A. RrnHM (1889s), E. KbNIG (1893), W. GRAF BAUDISSIN (1901) e E. SELLIN (1910, 1935), por estabelecer, em suas conclusões, uma síntese conservadora que estivesse em consonância com a perspectiva da sinagoga e da Igreja antiga. Ainda assim, o método puramente analítico e dissecativo provocou mal-estar, expresso no seguinte trocadilho: “Is the Pentateuch Mosaic or a mosaic?” Daí haver autores que, como G. WILDEBÜER (1893), E. KAUTZSCH (1897),K. BUDDE (1906),J. MEINHOLD (1919,3il. ed., 1932),J. A. BEWER (1922) e, tardiamente, A. LODS (1950), tentaram chegar a uma exposição sintética da história da origem do AT, exposição na qual cada livro era isolado da ordem em que se encontram no cânon e estudado em um contexto cronológico. Mas, antes que isto pudesse plenamente se concretizar, surgiu em cena um outro ponto de vista que deu origem a numerosos métodos novos.
4. Novos métodos A metodologia que se liga aos nomes de H. GUNKEL e H. GRESSMANN, parte, por um lado, dos resultados obtidos pela arqueologia do Antigo Oriente e pela orientalística, cuja importância até hoje crescente tem sido plenamente reconhecida, enquanto, por outro lado, aplica ao AT os dados da pesquisa histórica e comparativa das literaturas. A literatura veterotestamentária é vista no âmbito de toda a literatura do Antigo Oriente, ao passo que se investigam as relações entre as duas. Por isso, o interesse dos estudiosos se volta primeiramente para a história das formas do discurso e para os gêneros literários, como igualmente para a história do material e seus motivos. Tanto a forma atual como a história primordial dos textos veterotestamentários passaram a ser objeto de pesquisa.
a) A obra de GUNKEL, realizada sob o influxo da filologia clássica e da germanística, exerceu papel pioneiro com relação à pesquisa dos gêneros literários. Ele parte do pressuposto de que as formas de expressão e os gêneros literários tinham, na antiguidade, uma fisionomia muito mais precisa do que em nossos dias, obedeciam a um certo esquema de construção, apresentavam motivos mais ou menos fixos e possuíam determinado Sitz im Leben [“situação histórica e existencial”] como lugar de origem. O narrador ou o poeta escolhiam o gênero conforme a ocasião e o motivo, prendendo-se, porém, ao esquema básico deste gênero, de sorte que as possibilidades de variações pessoais eram limitadas, ao passo que os aspectos convencionais e típicos eram determinantes. À luz desta constatação, GUNKEL pretendeu substituir o estilo de introdução até então em uso, por uma história da literatura judaico-israelítica, entendida como história dos gêneros e formas literários correntes em Israel, tanto mais que, por este procedimento, se tornava possível, para além dos limites daquilo que fora transmitido por via literária, extrair conclusões, levar em conta o falar e cantares vivos do povo e acompanhar a história primitiva das formas de expressão, recuando até épocas remotíssimas e, de novo, a partir daí, explicar as particularidades dos textos veterotestamentários. É esta maneira de expor que encontramos em HEMPEL. No entretempo, a pesquisa dos gêneros literários apurou-se e evoluiu no sentido do estudo da história das formas, de modo a poder investigar o processo de elaboração e as variações das formas e das fórmulas. Havia aí, também, evidentemente, a tendência de situar o método em primeiro plano ou de lhe atribuir uma posição absoluta, como também a tendência de se ficar limitado apenas a esse método e o erigir em princípio exclusivo ou, quando menos, fundamental, de compreensão, colocação esta a que nos devemos opor firmemente. O estudo da história das formas deve ser realizado com base na diferenciação crítica e literária, e como seu ulterior desenvolvimento, depois de escolhido um de seus numerosos aspectos. Exageros ocasionais da pesquisa dos gêneros literários devem ser corrigidos:
1) O método em si pode ser aplicado ao estudo das unidades linguísticas ou literárias primitivas. O que se discute, porém, é sua aplicação a todos os componentes do discurso, que poderia degenerar numa espécie de “história das formas:”. e a textos mais extensos e mesmo a obras inteiras, cuja estrutura em geral não depende de princípios formais.
2) Discute-se também a superestima que se tem pelos aspectos convencionais e típicos, com prejuízo dos aspectos pessoais e individuais, atitude esta que vai de encontro à estrutura pessoal da fé javista e à sua maneira individual de exprimir esta fé. Esta superestima se baseia menos na mentalidade e nas concepções dos israelitas do que na influência moderna, antipsicológica e anti-subjetiva da Sociologia e das Ciências naturais.
3) Um dos erros desta pesquisa consiste em vincular a instituição às respectivas funções. Parte-se muitas vezes do pressuposto de que as formas do discurso se vinculam a uma determinada instituição permanente, de que sua estrutura reflete e deixa entrever a existência de um acontecimento real (ou cultural), de que se pode identificar o local e a data deste acontecimento, e de que aquele, portanto, que utilizou essas formas do discurso teria exercido um papel dentro da instituição e no decurso do acontecimento (cultual). Assim, enquanto a expressão 5itz im Leben [“situação existencial”] indica em si um determinado motivo - o Sitz im Leben dos funerais de uma pessoa, p.ex., é a sua morte - este mesmo conceito se transforma, aqui, inesperadamente em vinculação com uma instituição geralmente de natureza cultual ou jurídica. Não é difícil de mostrar que esta concepção não leva na devida conta a realidade das situações.
4) Não é exato afirmar que a forma e o conteúdo do discurso estão sempre de acordo. Como prova deste asserto, baste-nos recordar que os profetas usaram a lamentação fúnebre como ameaça ou como ameaça sarcástica. Por conseguinte, é preciso distinguir entre o modo de falar e sua função, entre o Sitz im Leben [“contexto existencial”] original e o Sitz in derRede [“contexto no discurso”].
41b) Também GUNKEL, e GRESSMANN logo depois dele, puseram em movimento e incentivaram principalmente a pesquisa da história dos materiais e seus motivos. Evidentemente que esta pesquisa, levada a efeito sob o impacto dos resultados da arqueologia e da orientalística, estava e ainda está exposta de modo particular ao perigo - ao qual chegou mesmo a sucumbir com o panbabilonismo, na controvérsia do “Babel-Bíblia” - de atribuir os materiais e os motivos do AT o mais amplamente possível ao seu mundo ambiente, deixando de considerar o caráter peculiar da fé javista. Contudo, esta pesquisa continua um instrumento indispensável para investigar a origem e as transformações dos materiais e motivos no mundo ambiente de Israel e no seio do AT, de novo aqui com base na diferenciação crítico-literária e seu ulterior desenvolvimento e sob um aspecto diferente. A pesquisa, no entretempo, se expandiu e se transformou em estudo da história das tradições que procura reconstituir, ao longo do AT, não apenas os motivos em particular, mas as correntes da tradição resultantes da concentração de inúmeros motivos. Observa-se, no entanto, como na pesquisa da história das formas, uma tendência ao unilateralismo e à absolutização, qual seja a de colocar a pesquisa das tradições como único critério e de considerar todas as manifestações do AT como dependentes de umas poucas tradições, as quais, segundo esta perspectiva, percorrem toda a história, depois de haverem passado por diferentes transformações. Assim, na realidade, “não há nada de novo debaixo do sol” (Ec11.9), e aquilo que é especifico de determinado enunciado consiste, em última instância, na forma peculiar da mudança sofrida por uma determinada tradição. Aqui, mais uma vez, é necessário proceder a algumas retificações em benefício das ideias fundamentais e corretas:
1) Muitas vezes, parece que se confunde o aparecimento simultâneo de vários motivos com uma determinada tradição. É preciso, contudo, distinguir entre essa tradição e os motivos que podem simplesmente constituir elementos individuais de uma tradição. A transmissão da história da libertação de Israel da terra do Egito é uma tradição; os elementos da teologia posterior de Sião (p.ex., nos salmos dos filhos de Coré), pelo contrário, não remontam a uma tradição cultual de Jerusalém, de origem pré-israelita, mas constituem um conjunto de motivos individuais”, É preciso por isto muita prudência para não confundir teologúmenos de origem recente com correntes de tradição.
2) Ao binômio forma e função corresponde o binômio tradição e interpretação, podendo este último aparecer sob formas diversas, e não devendo ser reduzido à unidade. Este binômio pode mesmo chegar ao ponto de reduzir a tradição a seu contrário e a revesti-la de nova forma.
3) Em outros casos se deve perguntar se a pesquisa das origens do material utilizado é metodologicamente relevante para a compreensão de seu emprego dentro do texto. Muitas vezes os autores de um texto já não tinham certamente consciência da antiga significação do material e introduziram nele seu próprio significado, que é preciso então captar.
4) Talvez não se possa considerar nenhuma parte do AT, e muito menos os profetas, principal ou exclusivamente sob o ponto de vista da sua vinculação com a tradição ou do binômio tradição e interpretação. Além disto, ocorre, como sempre, uma série mais ou menos considerável de ideias e de afirmações espontâneas ou deliberadas, que não existiam na tradição. Os profetas em particular são, antes do mais, carismáticos que pretendem anunciar a palavra viva de Javé dirigida a eles e não uma tradição.
c) Um outro método que devemos mencionar é o da pesquisa da história da tradição, adotado pelos escandinavos e que não podemos considerar como o oposto ou como uma alternativa para a crítica literária (conforme pensa LENGNELL, sobretudo), ou como tendo a primazia sobre esta. Pelo contrário, devemos entendê-lo como mais um passo no sentido de uma diferenciação crítica e literária (como o fazem, p.ex., M. NOTH, W. BEYERLIN, G. FOHRER). Esta pesquisa se ocupa com o passado dos livros do AT e estuda o desenvolvimento progressivo da tradição, desde as camadas pré-literárias, até seu surgimento por escrito. Estes livros, em sua maioria, não constituem “literatura”, no sentido de terem sido planejados, formulados e escritos por determinados autores, num processo que não volta a se repetir. Pelo contrário, a fixação por escrito representa quase sempre a etapa derradeira do processo de transmissão de um determinado conteúdo, num estágio mais ou menos longo de sua tradição, durante o qual esse conteúdo alcançou afinal sua forma atual. O estudo da história da tradição não considera as unidades do texto apenas do ponto de vista de como sua forma definitiva se concretizou, mas procura seguir todo o processo através do qual as unidades surgiram. Neste método é preciso ter-se em conta a variedade dos materiais do AT, de tal ordem, que não nos permitem reduzi-los a um esquema unitário. Compreende-se que esta pesquisa nem sempre conduz a uma solução segura, pois a tradição não o permite.
d) Recentemente a análise estilística tem sido praticada em escala progressiva, lamentavelmente porém com certa tendência ao unilateralismo e ao exclusivismo, em vez de se procurar a complementação dos métodos até agora existentes. Para a apreciação da musicalidade e da estrutura dos versos, emprego das imagens e processo de composição, aplicam-se aí os princípios da “nova estilística” sugeridos pela ciência da literatura. Assim o faz, p.ex., ALONSO-SCHÓKEL. Evidentemente, existe, por trás disto, o perigo latente de um esteticismo estéril. e) O quadro se amplia, ainda mais, quando se consideram os numerosos outros aspectos enriquecidos por novos conhecimentos e novas perspectivas. Assim, devemos mencionar os resultados da arqueologia e do estudo da topografia, das pesquisas da história dos territórios, e do esforço de esclarecimento dos diversos contextos históricos do Antigo Oriente. As descobertas de textos no deserto de Judá, principalmente nas cavernas de Qumran, fizeram com que muitas questões aparecessem sob uma outra luz, mas ao mesmo tempo colocaram, no mínimo, outros tantos problemas. A pesquisa referente à história da piedade acompanha as ideias e as manifestações da piedade, no que respeita a suas origens, evolução e variações, ao passo que o estudo da história do culto e das funções dentro deste procura identificar as relações existentes entre grandes setores da literatura do Antigo Testamento e o culto, a formação das lendas em torno do culto dos santuários e das festas, a origem e a transmissão das tradições em sua vinculação com o culto em sentido mais amplo. Por fim, O estudo dos problemas da história das redações se volta para a intenção dos compiladores e dos que reelaboraram complexos de extensão maior.
5. A função da introdução. A multiplicidade dos métodos atuais de pesquisa e dos processos de compreensão pode-nos parecer desconcertante. Daí é que se explica talvez a facilidade com que os estudiosos se dedicam a um determinado método, com exclusão dos demais. Justamente cabe à ciência introdutória uma função toda especial nas circunstâncias atuais: ela se deve empenhar por organizar o processo de exposição, de modo diverso daqueles que se observam em obras recentes de introdução à Escritura (EISSFELDT, WEISER, SELLN-ROST), e deve agrupar entre si aqueles livros que apresentem características comuns, independentemente da ordem em que eles aparecem dentro do cânon hebraico do AT. A respeito destes grupos, devem ser destacados primeiramente os seus elementos comuns, desde o pano de fundo histórico do Antigo Oriente, até aos problemas da história das formas e da tradição, e aos fatores que dizem respeito à compilação e à transmissão dos textos e, a seguir, os problemas que se referem à formação e à origem de cada livro do AT, pertencente ao respectivo grupo, tudo isto através de um processo conjunto de análise e de síntese. Por último, o estudo da história do cânon e dos textos deve levar em conta o desenvolvimento posterior do AT.
Fonte: E.SELLIN, G. FOHRER, Introdução ao Antigo Testamento, pp. 38-44.