João 17: Significado, Devocional e Exegese

João 17

João 17 é o clímax teológico e devocional do Quarto Evangelho, encerrando a chamada “seção do Cenáculo” (João 13–17) com uma oração de densidade espiritual incomparável, frequentemente denominada “Oração Sacerdotal de Jesus”. Não se trata apenas de uma despedida afetiva ou de um momento devocional íntimo, mas da mais alta expressão da consciência messiânica e filial de Cristo, que ora ao Pai antes de sua Paixão. Ao invés de descrever uma angústia solitária no Getsêmani, como nos evangelhos sinóticos, João apresenta o Filho em perfeita comunhão com o Pai, consciente da consumação iminente de sua missão, e seguro de que sua obediência glorificará o Nome que o enviou.

Este capítulo é, portanto, a culminação da teologia joanina da missão e da glória. A estrutura da oração revela um movimento expansivo: Jesus ora primeiro por si mesmo (vv. 1–5), depois pelos seus discípulos imediatos (vv. 6–19), e finalmente por todos os que creriam por meio deles (vv. 20–26). Cada parte está ligada por uma progressão que espelha a expansão do Reino e da revelação: do Pai para o Filho, do Filho para os discípulos, e destes para o mundo. A oração de João 17 é, assim, simultaneamente escatológica, missionária e eclesiológica — pois revela a comunhão trinitária, estabelece a identidade dos seguidores de Cristo e intercede por sua unidade em meio ao mundo.

Jesus não apenas confessa sua obediência consumada (“completei a obra”, v. 4), mas também antecipa o que ainda será realizado na cruz e na glorificação futura. João 17 é, portanto, a porta que conduz diretamente à Paixão: uma oração que sela o ministério terreno de Cristo e inaugura seu sacrifício redentor como o verdadeiro Sumo Sacerdote da nova aliança.

II. Estrutura e Estilo Literário

João 17 se divide claramente em três seções: (1) a oração de Jesus por si mesmo, centrada na glorificação mútua entre o Pai e o Filho (vv. 1–5); (2) a intercessão por seus discípulos, com ênfase na preservação, santificação e missão no mundo (vv. 6–19); e (3) a oração pelos futuros crentes, cujo foco é a unidade perfeita que reflita a unidade divina (vv. 20–26). Esta progressão literária sustenta a lógica interna do capítulo: a glória eterna compartilhada na Trindade (v. 5), a comunicação dessa glória aos discípulos (v. 10), e a consumação da comunhão glorificada entre todos os crentes e Deus (v. 24).

O estilo da oração é marcadamente joanino: repetições deliberadas, paralelismos rítmicos e longas construções subordinadas marcam o fluxo contínuo da fala de Jesus. O tom é elevado, quase litúrgico, como se João estivesse redigindo uma oração-templo. Expressões como “Pai”, “glorifica-me”, “dei-lhes o teu nome”, “para que sejam um” retornam com insistência, compondo um mosaico teológico onde cada termo carrega ressonâncias do Antigo Testamento reinterpretadas à luz da cristologia joanina.

João 17 é ainda uma peça de altíssima sofisticação retórica. A linguagem emprega quiasmos (ex.: vv. 1–5 e 24–26 se espelham), anáforas (“para que... para que...”), e densos vocábulos teológicos que convergem para os temas centrais do evangelho: glória, missão, verdade, amor, nome, mundo, santificação. Trata-se de uma oração com estrutura progressiva e simétrica, refletindo tanto o conteúdo teológico quanto o dinamismo espiritual da revelação que Jesus está prestes a consumar.

III. Hebraísmos no Texto Grego

Embora redigido em grego koiné, o capítulo 17 de João está profundamente enraizado na cosmovisão e na linguagem do Antigo Testamento, apresentando traços inequívocos do pensamento hebraico. A repetição enfática de vocábulos-chave — como “Pai”, “nome”, “glorificar”, “dar”, “mundo”, “guardar” e “verdade” — segue o padrão hebraico de intensificação semântica, reminiscente de estruturas poéticas e oracionais dos Salmos e dos profetas. O paralelismo antitético entre “os que são do mundo” e “os que tu me deste” evoca a clássica oposição entre os justos e os ímpios, tão presente na literatura sapiencial israelita (cf. Salmo 1).

O uso do verbo “conhecer” (ginōskein), quando aplicado ao Pai e ao Filho (vv. 3, 25), carrega um sentido semítico de relação vital e aliança experiencial, análogo ao hebraico yādaʿ (יָדַע), que não significa apenas saber intelectualmente, mas envolver-se existencialmente. A invocação do “nome” de Deus (onoma, vv. 6, 11, 12, 26), que Jesus declara ter revelado aos discípulos, remete diretamente ao conceito hebraico de shem, símbolo da presença, do caráter e da autoridade divina (cf. Êxodo 3:14–15; Salmo 20:7; Provérbios 18:10).

A estrutura da oração como mediação sacerdotal entre o povo e Deus também encontra paralelos com os modelos de intercessão mosaica (Êxodo 32–34) e davídica (2 Samuel 7), além das orações dos levitas em Neemias 9 e Daniel 9. A própria abertura com “Pai” (v. 1) lembra as invocações patriarcais que designam o Deus da aliança, e a referência à “glória” preexistente (v. 5) ecoa a linguagem da Sabedoria personificada em Provérbios 8 e dos cânticos de Isaías sobre o Servo do Senhor. Assim, João 17 é um texto grego na superfície, mas profundamente moldado pelo cadinho semântico, estilístico e teológico do hebraico bíblico.

IV. Versículo-Chave

João 17:3“E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.”

Este versículo encapsula de forma sintética a teologia joanina da salvação: conhecer a Deus não como um conceito, mas como um relacionamento redentor. O verbo ginōskōsin (“que conheçam”) indica, no contexto joanino e semita, uma intimidade progressiva, relacional e transformadora — e não mera acumulação de informações doutrinárias. O objeto desse conhecimento é o Deus verdadeiro (ton monon alēthinon theon) e seu Enviado, Jesus Cristo. Aqui se percebe a tensão e a unidade entre monoteísmo e cristologia: Jesus é “enviado”, distinto, mas inseparável da vida eterna. A salvação não é obtida por obras ou ritos, mas por conhecer, amar e permanecer em Deus revelado em Cristo. Esse versículo é, assim, a chave hermenêutica não apenas do capítulo, mas de todo o Evangelho segundo João.

V. Intertextualidade com o Antigo e o Novo Testamento

João 17 estabelece uma ponte viva entre o testemunho veterotestamentário da glória de Deus e sua plena revelação em Cristo. A linguagem da glória (doxa, vv. 1, 4, 5, 10, 22, 24) remete à kābôd divina do Antigo Testamento — a presença manifesta de Deus entre seu povo (cf. Êxodo 24:16–17; 40:34–35; Isaías 6:1–4). Quando Jesus afirma ter glorificado o Pai na terra e pede que o Pai o glorifique com a glória que tinha “antes que o mundo existisse” (v. 5), ele reinterpreta essa kābôd em termos de pré-existência, comunhão eterna e cruz redentora.

A intercessão pelos discípulos (vv. 6–19) ecoa a oração sacerdotal do capítulo 33 de Êxodo, em que Moisés roga por Israel após a quebra da aliança. A ideia de Jesus ter “guardado” os discípulos (v. 12) lembra o shōmer de Israel, o “Guarda de Israel” (Salmo 121:4). A oração pela santificação na verdade (v. 17) remonta ao conceito de separação sacerdotal presente em Levítico, reinterpretado agora à luz do envio missionário de Jesus (“assim como tu me enviaste...”, v. 18).

A oração pela unidade (vv. 21–23) ressoa o ideal profético de um só povo sob um só Deus (Ezequiel 37:15–28), enquanto a revelação do nome de Deus (v. 26) retoma temas de Êxodo 34:5–7 e Salmo 22:22, onde o nome divino é proclamado e transmitido. No Novo Testamento, o paralelismo com Hebreus 7:25 e 9:24 é nítido: como Sumo Sacerdote, Jesus intercede pelos seus. A consumação escatológica da união com Cristo (v. 24) antecipa Apocalipse 21:3 — “Eis o tabernáculo de Deus com os homens” — e aponta para a plenitude da comunhão eterna entre Deus e os redimidos.

VI. Lição Teológica Geral

João 17 é a mais sublime expressão da teologia da comunhão. Neste capítulo, Jesus revela que a vida eterna consiste em conhecer a Deus e viver unido a Ele, por meio do Filho, na verdade, no amor e na glória. A oração não é apenas um pedido, mas uma proclamação: o plano de redenção está em curso, a missão foi cumprida, e o Reino está sendo revelado através daqueles que crerem. A unidade entre os discípulos não é meramente institucional ou organizacional, mas ontológica, derivada da própria comunhão intratrinitária entre o Pai e o Filho.

A oração sacerdotal revela o coração da teologia cristã: a glória de Deus manifesta-se na cruz, o nome de Deus é revelado em Cristo, a verdade santifica os fiéis, e a missão da Igreja é o prolongamento da missão de Jesus. A intercessão abrange todos os tempos e gerações, mostrando que a história da salvação é uma corrente ininterrupta que liga a eternidade passada à glória futura. João 17 ensina que o Cristo crucificado e glorificado é o mediador entre Deus e os homens, e que a comunhão dos crentes com Ele é o próprio conteúdo da salvação.

VII. Comentário de João 17

João 17:1a Jesus falou essas coisas e, levantando os olhos ao céu, disse:... (Gr.: Tauta elalēsen Iēsous kai eparas tous ophthalmous autou eis ton ouranon eipen... — A oração que se inicia em João 17 emerge como o ápice litúrgico do quarto evangelho, e sua introdução é marcada por uma frase de altíssima densidade teológica, exegética e espiritual. O texto começa com a expressão tauta elalēsen Iēsous, cuja construção verbal lança luz sobre o movimento narrativo imediato. O pronome demonstrativo tauta (acusativo neutro plural de houtos) não é uma partícula vaga, mas refere-se com clareza ao conjunto discursivo imediatamente precedente, isto é, aos discursos de despedida compreendidos entre João 13:31 e 16:33. Podemos olhar que ταῦτα (tauta), o discurso anterior, indica que João usa essa fórmula de transição com parcimônia, mas aqui o faz para demarcar a solenidade da transição da palavra para a oração. A expressão tauta elalēsen conecta a oração de Jesus com os discursos de despedida, fazendo de si o selo. A oração é a flor da palavra sagrada; a meditação é a raiz da oração. Assim, a oração de João 17 não é isolada, mas emerge organicamente do ensinamento anterior — é o selo litúrgico, intercessório e escatológico do ministério verbal do Logos encarnado.

A sequência kai eparas tous ophthalmous autou eis ton ouranon descreve o gesto físico que introduz a oração. O verbo eparas é o particípio aoristo ativo de epairō, “levantar”, aqui acompanhado do objeto direto tous ophthalmous autou — “seus olhos” — e da expressão preposicional eis ton ouranon, “ao céu”. Este gesto é extremamente significativo e aparece apenas em momentos decisivos do ministério de Jesus, como na ressurreição de Lázaro (João 11:41). Trata-se de uma ação carregada de confiança, majestade e autoridade. Enquanto em Mateus 26:39 Jesus caiu com o rosto em terra no Getsêmani, aqui Ele ergue os olhos com serenidade e decisão. A diferença entre os dois gestos revela a consciência teológica do momento: ali, submissão sacrificial; aqui, intercessão sacerdotal e majestade redentora. O ato de erger os olhos para o céu não pode ser passado despercebido, pois indicava o caráter indelével da cena.

É relevante notar que o gesto de levantar os olhos ao céu não implica necessariamente que a oração tenha sido feita ao ar livre, embora essa possibilidade exista. Embora em português tenhamos só uma palavra para “céu”, no original não é um céu atmosférico, como a palavra inglês sky, mas heavens, em que em inglês se refere ao mundo espiritual onde está Deus. Assim a palavra ouranon não necessariamente indica que eles estavam ao ar livre (Lücke). Apesar disso, muitos comentaristas concordam que, pelo simbolismo do gesto e pela tradição bíblica, o Céu é o ponto natural de referência da oração, como também se vê em Salmos 121:1 e 123:1, e em Atos 7:55, onde o olhar é erguido para contemplar a glória de Deus.

A expressão final eipen (aoristo de legō) introduz diretamente o conteúdo verbal da oração, mas aqui, por delimitação metodológica, interrompemos a análise antes da cláusula direta “Pai, é chegada a hora...”. Ainda assim, o uso de eipen após o gesto indica um momento de pronunciamento solene. Em relação a teoria de que a oração seria uma interpolação editorial é ridícula, pois além de não haver base manuscritológica, é impossível considerar a seguinte oração de outra forma que não as próprias palavras de nosso Senhor, e que qualquer negação disso é inconsistente com qualquer recepção sincera dos Evangelhos como verdadeiros, considerando especialmente a promessa de João 14:26 de que o Espírito faria lembrar tudo quanto Jesus havia dito.

Finalmente, importa destacar o uso do nome “Jesus” no início do versículo. Embora esperado, o nome Iēsous aparece aqui como sujeito explícito, marcando uma transição de ação: do ensino para a oração. O evangelista poderia ter continuado com “e, tendo dito isso, levantou os olhos”, mas opta por nomear de novo “Jesus” para dar centralidade à figura que ora. Não é um detalhe narrativo irrelevante: reforça que o orante é o próprio Verbo encarnado, aquele que “falou todas essas coisas” como mestre, e agora as sela como intercessor.

A combinação de discurso, gesto e invocação nesta introdução eleva João 17:1a a um patamar litúrgico-sacro. A oração que se segue nasce da Palavra proclamada, mas não é uma súplica de angústia — é o início de uma doxologia sacerdotal, onde o Filho se apresenta diante do Pai como aquele que cumpriu sua missão (cf. João 4:34) e está pronto para glorificá-lo. A expressão facial, o erguer dos olhos e a invocação inicial fazem desta introdução uma das mais densas e belas de toda a tradição joanina.

João 17:1b ...Pai, é chegada a hora;... (Gr.: ...Pater, elēluthen hē hōra... — A oração sacerdotal de João 17 inicia propriamente com a invocação direta: “Pai, é chegada a hora”, frase de abertura que concentra um denso conjunto de sentidos teológicos, escatológicos e cristológicos. No original grego, a oração começa com a invocação solene Pater, vocativo direto e isolado, expressão que possui peso teológico singular dentro da tradição joanina. Não se trata aqui da fórmula “meu Pai” (ho patēr mou), como se vê, por exemplo, em Mateus 26:39, quando Jesus ora no Getsêmani em uma súplica pessoal. Tampouco diz “nosso Pai”, como na oração ensinada aos discípulos (Mateus 6:9). Ele se dirige ao Pai com a simples, porém absoluta, forma: Pater — “Pai”. Não é “Pai Nosso” — que Ele nunca poderia dizer em uma oração dessa natureza íntima — nem, “Meu Pai” — que seria uma separação muito grande entre Ele e os Seus para tal oração — mas simplesmente “Pai”; aquele Grande Nome no qual todo o mistério da Redenção está resumido. Essa escolha retórica revela, portanto, um ponto culminante da teologia joanina: Jesus ora em posição de Filho Unigênito (monogenēs), Mediador, e Sumo Sacerdote, em nome de todos os que são seus.

O uso reiterado e estratégico do vocativo Pater em João 17 deve ser destacado. Esse nome é repetido exatamente seis vezes ao longo da oração (vv. 1, 5, 11, 21, 24, 25), e, segundo Bengel, aparece no início de cada nova seção, com intencional simplicidade e solenidade. No contexto da tradição judaica e rabínica, como assinala Hottinger, a acumulação de títulos divinos em oração era evitada em favor de uma reverência verbal controlada, o que Jesus encarna perfeitamente.

A forma vocativa Pater também reverbera profundamente nas versões semíticas da oração. A Peshitta traduz como Abi, vocativo direto da palavra Ab (ܐܒܐ), reforçando o tom filial sem adornos. A versão hebraica do Novo Testamento usa Avi, o que alude diretamente a expressões da literatura profética do Antigo Testamento, como Isaías 63:16 — “Tu, ó Senhor, és nosso Pai” — e Jeremias 3:19, onde Deus diz: “Tu me chamarás: Meu Pai, e de mim não te desviarás.” A forma hebraica Avi evoca essa relação de intimidade e autoridade absoluta, implicando uma consciência messiânica do papel de Filho diante do Pai que é ao mesmo tempo fonte, origem e destino da missão.

Logo após a invocação, vem a frase breve e decisiva: elēluthen hē hōra — “é chegada a hora”. O verbo elēluthen é perfeito indicativo ativo de erchomai, “vir, chegar”, indicando uma ação que se completou com efeito presente. A hora escatológica de sua morte chegou. Trata-se da consumação do plano divino, predeterminado desde o princípio. Esta não é a primeira vez que a “hora” aparece como conceito teológico em João. Diversas vezes, Jesus declara que a hora “ainda não chegou” (João 2:4; 7:30; 8:20), mas agora, o evangelista assinala, com deliberada solenidade, que ela finalmente chegou. A continuidade temática é clara quando apontamos que o apóstolo João ama marcar cada ponto crucial da vida de Jesus: esta é a última vez — e remete a João 2:4 e 12:23 como marcos de similitude dessa construção progressiva. João 13:1 já havia anunciado que “sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai...”, e em João 12:23 Ele mesmo diz: “É chegada a hora em que o Filho do homem há de ser glorificado.”

Importa ressaltar que essa hōra não é apenas cronológica, mas escatológica. Ela marca o kairos divino da redenção, não apenas um instante humano no tempo. A expressão elēluthen hē hōra é a ora designada por Deus Pai, para a glorificação do Filho, isto é, o momento da morte, ressurreição, ascensão, exaltação e glorificação em conjunto. A oração, portanto, já é proferida com consciência plena de que a cruz se aproxima não como derrota, mas como trono. A glorificação é a exaltação da Morte e Resurreição: Ele ora na sua Humanidade e por sua exaltação da Humanidade, em virtude de Sua Divindade.  A cruz será ao mesmo tempo altar e púlpito, instrumento de suplício e de revelação.

A versão hebraica do NT reforça a intensidade verbal com a locução hinēh ba’ah hasha‘ah — “eis que vem a hora”. O uso de hinēh (הִנֵּה) evoca os profetas, especialmente Jeremias e Isaías, em passagens que marcam momentos de decisão e julgamento (cf. Isaías 7:14; Jeremias 31:27). Já a Peshitta usa attat sha‘ta, expressão direta, presente, concreta — a “hora chegou” já está em sua plenitude, não mais se anuncia, mas se manifesta.

No contexto intertextual mais amplo, a ideia da “hora marcada” tem paralelo também em textos como Marcos 14:41 — “É bastante, é chegada a hora; eis que o Filho do Homem está sendo entregue nas mãos dos pecadores” — e em Lucas 22:53, quando Jesus afirma: “esta é a vossa hora e o poder das trevas.” A “hora” é tanto a da ação dos homens quanto a da realização do plano eterno do Pai. Em Atos 2:23, Pedro declara que Jesus foi entregue “pelo determinado conselho e presciência de Deus” — é a mesma hōra, agora posta em movimento.

Do ponto de vista da oração, o reconhecimento de que “a hora chegou” é também o início de uma entrega voluntária. O tom do primeiro é de triunfo — pois não se trata de lamento, mas de aceitação gloriosa. Jesus sabia que, ao pôr do sol, ele morreria nas mãos de seus inimigos. Mas essa mesma tragédia traria glória tanto ao Pai quanto ao Filho. A hora da morte é também a hora da revelação plena da glória divina.

A frase “Pai, é chegada a hora” contém em si o compêndio de toda a teologia da cruz no Evangelho de João. Ela une a invocação filial mais pura com a consciência escatológica mais absoluta. O Filho sabe que veio por esta hora (cf. João 12:27), e que nela será glorificado. A oração não é um refúgio, mas um trampolim para a consumação. O Pai é invocado não como socorro final, mas como aquele que determina e confirma o cumprimento do plano eterno. Aqui se inicia, portanto, não um lamento, mas o início da glorificação mútua — revelação máxima do amor intra-trinitário e da missão redentora do Filho.

João 17:1c ...glorifica a teu Filho,... (Gr.: doxason ton huion sou. — A súplica contida nesta frase representa a única petição estritamente pessoal em toda a oração sacerdotal de João 17. Composta pelo verbo doxason (aoristo imperativo ativo de doxazō) seguido do pronome possessivo sou (“teu”) e do objeto direto ton huion (“o Filho”), a estrutura expressa solenemente a total submissão do Filho ao Pai em um momento culminante da missão redentora. A petição aqui não é pela evitação do sofrimento, mas pela consumação do plano divino por meio da glorificação, cujo conteúdo exato deve ser compreendido em sua dimensão cruz-resurreição-ascensão-entronização.

O verbo doxason carrega nesse contexto o peso teológico máximo do verbo doxazō, que, em João, nunca é um mero sinônimo de “elogiar” ou “honrar”, mas aponta para uma manifestação visível, poderosa e escatológica da identidade e missão de Jesus. É o verbo usado para designar o processo pelo qual o Pai exalta o Filho por meio de sua morte, ressurreição e ascensão: Jesus já havia usado a palavra doxazō para sua morte (João 13:31). Aqui, ela nos transporta às profundezas da consciência de Cristo. Não se trata apenas de força para enfrentar a cruz, mas de poder para glorificar o Pai por sua morte, ressurreição e ascensão.

A profundidade dessa petição é reforçada também pelo lugar enfático do pronome sou (“teu”), que no grego ocupa a posição de destaque: doxason sou ton huion — literalmente, “glorifica o teu Filho”. A ênfase na posse (“teu Filho”) não é meramente afetiva, mas doutrinária: trata-se do reconhecimento do vínculo eterno, da filiação única e do envio messiânico, conforme João 3:16 e 5:23. A glória pedida pelo Filho se refere à sua exaltação celestial como Mediador acreditado, e cita diretamente Filipenses 2:9: “Por isso Deus o exaltou soberanamente (huperypsōsen) e lhe deu o nome que está acima de todo nome.”

A construção ton huion (acusativo singular de huios) também possui importância formal e teológica: ao empregar o artigo definido, Jesus fala de si mesmo na terceira pessoa — “o Filho” — para marcar solenemente seu papel na economia da salvação. A Fonte 1 enfatiza essa objetividade: Ele ora primeiro objetivamente, para expor o grande assunto em toda a sua majestade; depois, subjetivamente, doxason me su (v. 5), colocando-se aqui no lugar de ton huion. É uma forma de oração que se eleva acima da interioridade subjetiva, assumindo a linguagem formal de um sumo sacerdote intercedendo perante o trono divino. Aqui está a única intercessão pessoal ao longo desta Oração de Consagração.

No que concerne à tradução, as versões bíblicas que analisei oferecem uma rica paleta de escolhas lexicais, refletindo diferentes compreensões do verbo doxason. Traduções clássicas como KJV, ASV, Darby, DRB e RV mantêm “glorify thy Son” (“glorifica vosso Filho”), preservando tanto a literalidade do grego quanto a solenidade do pedido. Versões modernas como ESV, NET, LEB, WEB e WEBA seguem o mesmo caminho, com “glorify your Son” (“glorifica teu Filho”), sem perda da força verbal.

Algumas versões optam por expressões mais interpretativas. A GNB traduz “Give glory to your Son” (“Dê glória ao teu Filho”), o que enfraquece ligeiramente o tom imperativo do aoristo ativo grego e transforma a ação num favor divino, suavizando o caráter decisivo da petição. A CEV adota “bring glory to your Son” (“traga glória ao teu Filho”), o que aproxima ainda mais da ideia de mediação histórica, mas também perde a relação entre glória e cruz. Já a versão JUB traduz “clarify thy Son” (“Clarifique vosso Filho” — No inglês arcaico, “clarificar” não era apenas “tornar claro”, mas “tornar ilustre, glorificar, tornar conhecido” [Etimologyonline.com]), uma escolha incomum na tradição anglofônica e que compromete um pouco a fidelidade lexical do grego doxazō. Por contraste, a AFV e a EMTV conservam a construção fiel: “Glorify Your own Son” (“Glorifique Teu próprio Filho”), ecoando o pronome possessivo sou com ênfase correta.

As versões semíticas enriquecem ainda mais a análise. A Peshitta traz shabbēh barakh, em que o verbo shabbēh (ܫܒܚ) carrega o sentido de “glorificar” ou “exaltar”, com a força semítica de “dar esplendor”, e o termo barakh (ܒܪܟ) indica “teu Filho”. A ordem verbal-substantivo é mantida, e o imperativo é claro. A versão hebraica do Novo Testamento traduz como pa’er et-bincha, utilizando o verbo pa’ar (פָּאַר), o mais comum no hebraico bíblico para o conceito de “glorificar” ou “honrar” no sentido de exaltar publicamente (cf. Isaías 60:21, “para que eu seja glorificado” — lema‘an ’etpa’ar). Essa escolha lexical revela conexão direta com as formulações do Antigo Testamento, especialmente com passagens como Isaías 49:3 e Salmos 86:9, nas quais Deus é glorificado por meio da obediência de Israel — agora reatualizadas na missão do Filho.

Intertextualmente, a petição para que o Pai glorifique o Filho encontra seu reflexo direto em João 12:23–28, onde Jesus diz: “É chegada a hora em que o Filho do homem há de ser glorificado”, e logo ora: “Pai, glorifica o teu nome”, ao que o Pai responde audivelmente do céu. Essa interação indica que a glorificação do Filho é, ao mesmo tempo, revelação e glorificação do Pai — ideia que será completada no versículo seguinte (hina ho huios doxasē se). João 13:31 também retoma esse movimento de glorificação mútua: “Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele.” Em todos os casos, a glória é inseparável da cruz. Isso vai além de uma oração por apoio na hora da morte. Um mártir poderia orar por tais medidas significativas de graça... Mas havia mais do que isso. A “glorificação” de Jesus na Paixão foi a aceitação divina de Seu Sacrifício pelo Pai.

Teologicamente, esta súplica não é possível à criatura. Estas palavras são uma prova de que o Filho é igual ao Pai no que diz respeito à Sua Divindade. Que criatura poderia estar diante de seu Criador e dizer: “Glorifica-Me, para que eu Te glorifique?”. É possível uma mera criatura receber glória divina com o objetivo de ADICIONAR glória ao Criador? A linguagem aqui revela consubstancialidade, prerrogativa divina e consciência plena da identidade messiânica.

Por fim, a frase doxason sou ton huion — “glorifica a teu Filho” — é o eixo axial da oração. Ela expressa, em termos econômicos, trinitários e escatológicos, a consumação do envio do Filho, sua obediência até a morte (Filipenses 2:8), e sua futura exaltação como mediador cósmico (Hebreus 1:3; Apocalipse 5:12–13). Não há espaço aqui para sentimentalismo ou hesitação: é uma declaração do Cristo que sabe que sua hora chegou, e que da cruz emergirá a glória — não apenas sua, mas do Pai que o enviou.

O pedido de Jesus — “glorifica a teu Filho” — se inscreve numa longa tradição bíblica na qual a “glória” (kābôd) é o símbolo visível e irrefutável da presença, aprovação e ação do Deus de Israel. No Antigo Testamento, a glória de Deus aparece tanto como manifestação física (Êxodo 24:16–17; 40:34–35; 1 Reis 8:10–11) quanto como expressão da sua honra incomparável (Salmos 104:1; Isaías 6:3). O verbo hebraico correspondente a glorificar — pā’ar (פָּאַר), como usado na versão hebraica de João 17:1 (pa’er et-bincha) — aparece frequentemente em contextos de exaltação divina por meio da justiça, do juízo ou da salvação (cf. Isaías 60:21: lemaʿan etpaʾar — “para que Eu seja glorificado”). Assim, o pedido de Jesus está situado na linguagem e na lógica do Antigo Testamento: a glória que o Filho pede não é um adorno pessoal, mas a manifestação escatológica da justiça e fidelidade do Deus de Israel por meio da obra de seu Enviado.

Há ainda uma correspondência direta com os textos da entronização régia, especialmente os Salmos. Em Salmos 2:7, Deus declara: “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei”, e a coroação messiânica é acompanhada da concessão de autoridade: “Pede-me, e eu te darei as nações por herança” (v. 8). Aqui, o Messias é glorificado pela ação do Pai-rei, e sua filiação é base da sua investidura. João 17:1c retoma essa estrutura — o Filho ora ao Pai pedindo que o glorifique — e o faz no momento em que sua “entronização” começará paradoxalmente pela cruz. Na lógica dos Salmos, a glória do rei messiânico está no fato de ser proclamado Filho, e no evangelho de João, é exatamente como ho huios (“o Filho”) que Jesus ora.

Além disso, em Isaías 42:1–8, na primeira canção do Servo do Senhor, Deus diz: “Este é o meu servo, a quem sustento, o meu eleito, em quem se compraz a minha alma; pus sobre ele o meu Espírito...” e no versículo 8 acrescenta: “a minha glória não darei a outrem.” A glória é, portanto, prerrogativa divina, e o fato de Jesus pedir essa glória, sem que isso seja blasfêmia, aponta para sua identidade partilhada com o Pai. O paralelo veterotestamentário mostra que a glória pertence somente a Deus, e que o Servo glorificado só pode sê-lo se estiver, de fato, unido à divindade.

Há também afinidades com Isaías 49:3–6, onde o Servo é chamado “Israel, em quem hei de ser glorificado”. Deus declara que o chamará desde o ventre e o formará para ser luz das nações e instrumento da sua salvação até os confins da terra. Este é um dos textos que mais se aproxima diretamente da estrutura de João 17:1c. Assim como em Isaías o Servo é glorificado por Deus para que o próprio Deus seja glorificado por meio dele, em João o Filho é glorificado pelo Pai para que glorifique o Pai (v. 1d). A reciprocidade do glorificar aparece como a dinâmica central da missão messiânica.

No contexto da aliança mosaica, a glória também é associada ao cumprimento da vontade de Deus. Em Números 14:21, Deus jura: “tão certo como eu vivo, e como toda a terra se encherá da glória do Senhor...”, em resposta à incredulidade do povo. A glória de Deus é, portanto, o fim da história redentora, o objetivo pelo qual Ele age. A oração de João 17:1c está inserida nesse movimento: o Filho sabe que a cruz, longe de ser escândalo apenas, é o meio para que “toda a terra se encha da glória de Deus” — agora revelada no próprio Cristo, o verdadeiro Tabernáculo (cf. João 1:14: “e vimos a sua glória”).

Por fim, a estrutura de João 17:1c guarda relação estreita com o Salmo 86:9–10: “Todas as nações que fizeste virão e se prostrarão diante de ti, Senhor, e glorificarão o teu nome. Porque tu és grande e operas maravilhas; só tu és Deus.” A glorificação que o Filho pede é aquela que levará todas as nações ao conhecimento do nome do Pai — como Jesus mesmo disse em João 12:32: “E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim.” A cruz, portanto, é o ponto em que a glória de Deus é revelada ao mundo.

Assim, o pedido “glorifica a teu Filho” é inseparável da teologia da glória no Antigo Testamento. Ele retoma o papel do rei messiânico, do servo de Isaías, do Filho entronizado nos Salmos e do mediador da glória divina entre as nações. O Pai glorifica o Filho porque o Filho é aquele em quem habita corporalmente toda a plenitude da glória do Deus eterno (cf. Colossenses 2:9), o reflexo encarnado da kābôd que uma vez encheu o templo (1 Reis 8:10), mas que agora resplandece no rosto do Crucificado.

João 17:1d ...para que também o teu Filho te glorifique a ti. (Gr.: ...hina kai ho huios sou doxasē se. —Esta cláusula final estabelece o propósito imediato e supremo da glorificação pedida por Jesus. Sua estrutura gramatical é introduzida pela conjunção subordinativa hina, que indica finalidade, seguida da partícula enfática kai (“também”), do sujeito completo ho huios sou (“o teu Filho”) e do verbo doxasē (“glorifique”) na forma do aoristo subjuntivo ativo de doxazō. O complemento direto se (“a ti”) encerra a frase com força teológica decisiva: o Filho deseja, por meio de sua própria glorificação, glorificar o Pai.

A conjunção hina introduz aqui uma das cláusulas de propósito mais teologicamente carregadas de todo o Evangelho de João. O pedido anterior (doxason sou ton huion) só pode ser compreendido corretamente à luz desta cláusula final: o objetivo da glorificação do Filho não é autoreferencial, mas inteiramente direcionado à glória do Pai. A relação entre Pai e Filho é, aqui, revelada como um círculo de glorificação mútua, inseparável da missão salvífica e da revelação da natureza divina no tempo.

O verbo doxasē encontra-se no aoristo subjuntivo com hina, o que expressa a finalidade esperada, não uma possibilidade incerta. O sentido é enfático: “glorifica-me, para que em decorrência certa e necessária disso, eu te glorifique.” A cláusula final da Paixão é vista sub specie aeternitatis, is ad majorem dei gloriam — isto é, “para a maior glória de Deus”. Essa finalidade máxima — a glória de Deus — é o telos tanto da encarnação quanto da paixão.

A partícula kai (“também”) deve ser valorizada em sua função dialógica: ela indica que a glorificação não é unilateral. A glória que o Filho recebe não é absorvida para si mesmo, mas devolvida em glorificação do Pai. Isso é reforçado pela construção sintática simétrica: o Pai glorifica ton huion (v. 1c) → o Filho glorifica se (v. 1d). O movimento é circular, revelando uma reciprocidade trinitária que será desenvolvida em João 17:4–5. A glorificação do Pai pelo Filho é o grande resultado da glorificação do Filho pelo Pai — a manifestação de Deus aos homens e nos homens pelo Filho por meio do Espírito. A glorificação do Filho é o veículo da revelação do Pai no mundo, mediada pelo Espírito.

Nas versões comparadas, a grande maioria das traduções mantém a estrutura finalista com clareza. ASV, KJV, DRB, ESV, LEB, LITV, RV, WEB e WEBA dizem: “that the Son may glorify thee/you” (“que o Filho possa vos/te glorificar”), mantendo a literalidade do hina + subjuntivo. Já a CEV interpreta: “in order that he may bring glory to you” (“de forma que ele possa trazer glória para você”), optando por uma linguagem mais explicativa, ainda que menos precisa. A GNB mantém: “so that the Son may give glory to you” (“para que o Filho possa dar glória a você”), o que também preserva o encadeamento lógico. A versão JUB novamente opta por “clarify” (“clarificar”), como havia feito na cláusula anterior, o que compromete o rigor lexical da expressão.

A versão hebraica do NT de Delitzsch traz lemaʿan yəvāreḵḵā gam bineḵā — “para que também o teu Filho te glorifique”, com lemaʿan correspondendo perfeitamente a hina, e yəvāreḵḵā vindo do hebraico paʾar (פָּאַר), verbo clássico para “glorificar”. A forma verbal está no modo imperfectivo, com nuance de ação contínua ou destinada a acontecer, paralela ao subjuntivo grego. A presença de gam (“também”) e de bineḵā (“teu Filho”) espelha quase palavra por palavra a estrutura do grego. A sintaxe semítica confirma, portanto, a simetria do pedido: o Filho é glorificado a fim de glorificar.

A Peshitta usa d’barakh neshabbahk, com o prefixo d- introduzindo a finalidade, e o verbo shabbah (ܫܒܚ) na forma apocopada para “glorifique”. A partícula n- indica o sujeito de terceira pessoa singular masculino. Essa estrutura em siríaco mantém intacta a relação causal e finalística da frase: o Filho glorifica o Pai como efeito direto da glorificação recebida. A teologia do texto permanece, portanto, intacta em sua tradução oriental.

Intertextualmente, essa reciprocidade de glorificação entre Deus e seu servo/filho/messias aparece já delineada no Antigo Testamento, como observamos anteriormente. Em Isaías 49:3, Deus diz ao Servo: “Tu és meu servo, Israel, em quem hei de ser glorificado.” A glorificação de Deus acontece no Servo. Em Salmos 22:23, o salmista messiânico declara: “Vós que temeis o Senhor, louvai-o; glorificai-o vós todos, descendência de Jacó.” Aqui, a glória de Deus se revela na libertação e na fidelidade cumprida. E em Isaías 60:21, está dito que o povo salvo do Senhor “será todo justo... para que eu seja glorificado” (lemaʿan etpāʾar). A glorificação de Deus é o fim da redenção.

No Novo Testamento, a mesma estrutura reaparece em João 13:31–32: “Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele. Se Deus foi glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo.” Essa construção trinitária da glorificação já está em operação antes mesmo da cruz. Em João 11:4, ao falar da morte de Lázaro, Jesus diz: “Esta enfermidade é para glória de Deus, para que o Filho de Deus seja por ela glorificado.” O Pai glorifica o Filho para que o Filho revele o Pai.

Teologicamente, o pedido de Jesus revela que sua missão é, no fundo, uma epifania da glória do Pai. O Filho é glorificado como Filho, não apenas como servo, e ao ser glorificado revela em si o resplendor daquele que o enviou (cf. Hebreus 1:3). A Glorificação Filial é a manifestação de Deus para e no homem pelo Filho, através do Espírito Santo. A missão inteira do Filho — encarnação, ensino, morte, ressurreição, ascensão — é teleologicamente voltada para este fim: a glória do Pai. O pedido é, portanto, absolutamente legítimo, pois o próprio Pai é glorificado na obra do Filho.

Assim, a cláusula hina kai ho huios sou doxasē se sela com majestade a primeira súplica de João 17. Não se trata de uma duplicação retórica, mas da revelação do dinamismo interno da Trindade: o Pai glorifica o Filho para que o Filho glorifique o Pai. A cruz se torna, nesse contexto, o trono de luz em que o nome do Pai é revelado ao mundo por meio do Verbo encarnado.

João 17:2a Assim como lhe deste poder sobre toda carne... (Kathōs edōkas autō exousian pasēs sarkos... — A oração de João 17 se desdobra com densidade teológica e precisão literária. O trecho grego em análise, “kathōs edōkas autō exousian pasēs sarkos” — “assim como lhe deste poder sobre toda carne” — funciona como cláusula causal que fundamenta o pedido anterior: “glorifica a teu Filho”. Em termos sintáticos, o advérbio kathōs (“assim como”) introduz a razão ou medida proporcional que justifica o pedido do versículo anterior. Trata-se, portanto, de uma oração subordinada causal ou, em uma nuance mais fina, modal-final, o que é confirmado pelo uso concatenado do hina no trecho seguinte.

A expressão edōkas autō exousian (“lhe deste autoridade”) remete à concessão feita pelo Pai ao Filho, não como concessão de poder ontológico absoluto — pois este, como Logos eterno (João 1:1), já lhe pertence por natureza —, mas como investidura funcional no âmbito da sua missão redentora. O termo exousia [autoridade, direito jurídico, capacidade de atuação legítima] já havia aparecido em João 5:27: “e deu-lhe autoridade [exousia] para julgar, porque é o Filho do Homem”, ecoando a teofania do “Filho do Homem” de Daniel 7:13–14, a quem foi dada autoridade universal.

O acréscimo pasēs sarkos — literalmente “de toda carne” — contém enorme carga veterotestamentária. É um correspondente semítico exato do hebraico bíblico kol bāśār (כָּל־בָּשָׂר), e aparece repetidamente no Antigo Testamento como uma forma metonímica para a totalidade da humanidade em sua condição de criatura, frágil, efêmera e sujeita à corrupção. Em Gênesis 6:12, por exemplo, lemos: “E viu Deus a terra, e eis que estava corrompida; porque toda carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra”. Aqui, kol bāśār designa a coletividade humana em rebelião, merecedora de juízo. Já em Isaías 40:5–6, o profeta proclama: “Toda carne juntamente verá que foi a boca do Senhor que falou... Toda carne é erva, e toda a sua beleza como a flor do campo.” Nesses contextos, o termo aponta não apenas para a universalidade da humanidade, mas para sua fragilidade diante da glória de Deus. A Peshitta preserva a mesma estrutura semítica com ܒܝܫܪܐ ܟܠܗ (b’shrā kulhē), expressão siríaca equivalente a kol basar, indicando a totalidade da humanidade. Já a versão hebraica do Novo Testamento (Delitzsch) também reflete o eco veterotestamentário ao traduzir como “על כל בשר” (al kol basar), deixando ainda mais claro o vínculo com as categorias proféticas de Isaías e Joel. 

É notável que o uso de kol basar em Isaías 40, texto que inaugura a seção conhecida como “Segundo Isaías” (caps. 40–55), coincide com promessas de revelação salvífica universal, o que se liga diretamente à temática de João 17. O contexto joanino pressupõe essa tradição profética: a autoridade de Jesus sobre toda carne é o cumprimento da promessa veterotestamentária de que a salvação e o juízo de Deus alcançariam toda a terra e todos os povos, e não apenas Israel.

Além disso, em Joel 2:28, Deus declara profeticamente: “Derramarei o meu Espírito sobre toda carne”. Essa promessa de derramamento universal do Espírito se vincula à autoridade redentiva de Jesus mencionada em João 17:2a. O termo “toda carne” é “uma ênfase solene do universalismo do seu destino para toda a raça humana. Encontramos o cumprimento dessa procefia em Atos 2:17, onde se lê: “e acontecerá que nos últimos dias, diz Deus, derramarei do meu Espírito sobre toda carne” — novamente o hebraísmo kol basar, sinalizando que tanto o juízo quanto a salvação estão estendidos universalmente. João 3:16 — “porque Deus amou o mundo de tal maneira...” — é outra chave hermenêutica: aquele a quem é dada autoridade sobre toda carne é o mesmo que foi enviado por amor a todos, para que “todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. A dádiva do Espírito à kol basar pressupõe o domínio messiânico de alguém que recebeu exousia (autoridade) divina para agir em favor da humanidade, e não meramente em nome de um povo étnico. [1]

Essa autoridade sobre “toda carne” não se limita a domínio externo ou político, mas inclui poder salvífico e judicial. Isso representa um poder de governo, disposição e juízo, que alcança os espíritos e almas dos homens, não só seus corpos. Essa autoridade é dada ao Filho em sua condição de Mediador, não como prerrogativa eterna do Logos, mas como dom recebido do Pai para fins redentivos — exatamente o que o próprio Cristo já havia afirmado em João 13:3: “sabendo Jesus que o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas...”.

Na Vulgata Latina, o texto aparece como sicut dedisti ei potestatem omnis carnis, em que potestas (poder) mantém a ideia de um domínio delegado, embora a palavra tenha amplitude semântica maior do que o grego exousia. A NET traduz: “just as you have given him authority over all humanity” (“assim como você tem dado a ele autoridade sobre toda humanidade”), e a ESV opta por “you have given him authority over all flesh” (“tu lhe deste autoridade sobre toda a carne”), mantendo a literalidade do grego. Já a versão em hebraico moderno da Bíblia (Salkinson-Ginsburg) traz: kaʾasher natatta lo haššaltan ʿal kol bāśār, usando šaltan, que carrega conotação político-administrativa, sugerindo realeza messiânica. Essa escolha lexical ajuda a entrelaçar o texto de João com Salmos 2:8–9, onde Deus diz ao Filho: “Pede-me, e eu te darei as nações por herança...”.

Dessa forma, a concessão de autoridade sobre toda carne é o primeiro fundamento que embasa o pedido de glorificação. A glória pedida no versículo anterior (doxason sou ton huion) encontra respaldo nesse mandato soberano recebido do Pai. Ele não pode exercer esta exousia sem retornar à glória celestial, de onde deve continuar e completar sua obra. O início de João 17:2, portanto, articula o elo intrínseco entre glorificação, autoridade messiânica e a universalidade do escopo redentivo. O Filho roga para ser glorificado porque, como Mediador, recebeu autoridade escatológica sobre toda a humanidade — para governar, julgar e, sobretudo, dar vida eterna, como será desenvolvido na frase seguinte.

Outro ponto crucial de intersecção entre João 17:2a e o Antigo Testamento está na ideia de que o poder sobre a totalidade da criação — inclusive toda carne — é prerrogativa do Messias-rei (Veja os artigos Éden como Templo de Deus e especialmente Segundo Adão). Salmos 2:8 afirma: “Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e os confins da terra por tua possessão.” A autoridade sobre os povos é dada ao Ungido, o Filho. Em Daniel 7:13–14, o “Filho do Homem” (título que Jesus aplica a si mesmo em João 17:1–2) é visto vindo com as nuvens do céu e recebendo do “Ancião de Dias” domínio, glória e reino, para que “todos os povos, nações e línguas o servissem”. Isso é exatamente o que se cumpre em João 17:2a: a autoridade universal (sobre toda carne) é conferida por Deus ao Filho do Homem, Jesus, que agora ora ao Pai para que esse domínio culminante se manifeste plenamente por meio da glorificação.

Por fim, há ainda uma linha interpretativa mais profunda e tipológica. Quando o texto diz que o Pai deu ao Filho autoridade sobre toda carne, ele ecoa também a função régia de Adão na criação. Em Gênesis 1:26–28, o homem é criado à imagem de Deus e recebe autoridade sobre todos os seres viventes. O “segundo Adão” (cf. 1 Coríntios 15:45–47), Cristo, é aquele que recupera e amplia essa autoridade original, não apenas sobre os animais, mas sobre toda a humanidade decaída — toda carne. Nesse sentido, a autoridade de Jesus é tanto escatológica quanto restauradora.

Portanto, João 17:2a é teologicamente inseparável do Antigo Testamento: sua linguagem deriva diretamente da tradição profética (kol basar), sua teologia retoma promessas messiânicas de domínio universal (Salmos 2, Daniel 7), e sua lógica redentiva está ancorada na recuperação da autoridade perdida por Adão e prometida ao Messias. Trata-se de uma realização final da soberania de Deus em Cristo, em favor da humanidade inteira — a carne que geme por redenção.

João 17:2b “...para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste. (Gr.: ...hina pān ho dedōkas autō, dōsē autois zōēn aiōnion. — A cláusula no v.2b constitui o desenvolvimento imediato da motivação do pedido formulado no versículo anterior: o Pai deve glorificar o Filho (doxason ton huion sou) porque a glorificação de Cristo é o meio necessário pelo qual o dom da vida eterna pode ser plenamente concedido aos que lhe foram dados. A conjunção hina (“para que”) introduz um propósito teológico fundamental: a concessão da vida eterna como resultado da autoridade messiânica recebida do Pai sobre “toda carne” (pasēs sarkos). O sujeito lógico de dōsē (“para que dê”) é o próprio Filho, e o objeto direto é zōēn aiōnion (“vida eterna”), que, neste contexto, aparece como o bem escatológico absoluto, em oposição à vida perecível da carne. A expressão pān ho dedōkas autō representa um uso clássico do neutro singular coletivo, como em João 6:39 e 17:24, com o valor de uma coletividade determinada, posteriormente especificada por autois na forma plural dativa. A construção gramatical é um nominativo pendente (nominativus pendens), sendo pān (“tudo aquilo que”) posteriormente individualizado em “eles” (autois), os destinatários da ação de doar. Isso não implica uma generalização universalista, mas reafirma a doutrina joanina da eleição e da doação prévia do Pai ao Filho, como enfatizado em João 6:37 e 6:39: “Tudo o que o Pai me dá virá a mim...”.

Na ASV, o versículo aparece como: “that to all whom thou hast given him, he should give eternal life” (“que a todos aqueles que lhe destes, ele deva dar vida eterna”), mantendo a nuance de dom divino. A versão Peshitta lê: ܕܢܬܠ ܚܝܐ ܠܥܠܡ ܠܟܠܗܘܢ ܐܝܠܝܢ ܕܝܗܒܬ ܠܗ (“para que dê a vida eterna a todos aqueles que tu lhe deste”), destacando tanto a totalidade do grupo quanto a ação irrevogável da doação. A versão hebraica do Novo Testamento (Delitzsch) expressa: lemaʿan yitten ḥayyei ʿolam leḵol ʾăšer natatta-lô, em que ḥayyei ʿolam remete diretamente à linguagem das Escrituras Hebraicas sobre a vida eterna, como em Daniel 12:2. Esse uso explícito da expressão “vida eterna” vincula o versículo à tradição sapiencial e apocalíptica do Antigo Testamento, onde ḥayyei e ʿolam aparecem ligados como esperança escatológica dos justos (Salmos 133:3; Isaías 26:19).

Essa relação com o Antigo Testamento torna-se ainda mais clara quando se percebe que a doação de “vida eterna” substitui a expectativa veterotestamentária da “longa vida na terra” como bênção máxima. Em textos como Deuteronômio 30:19-20 (“escolhe, pois, a vida”), a vida está associada à obediência e comunhão com Deus. No entanto, em João, essa vida alcança uma densidade qualitativa e eterna que só pode ser experimentada em união com o Filho. A expressão zōē aiōnion já havia sido usada em João 3:15–16 (“para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”), mas aqui aparece como o dom soberano de Cristo àqueles que lhe foram entregues, e não apenas como resultado da fé. Em João 10:28, ele afirma: “Eu lhes dou a vida eterna, e jamais perecerão”, ligando novamente o dom à sua autoridade pastoral.

Do ponto de vista teológico, o que está em jogo é a identidade e a missão messiânica do Filho como Mediador da vida que provém de Deus. A autoridade recebida não é autônoma, mas deriva do Pai, e está subordinada ao propósito soteriológico. A vida eterna é um presente, e não se deve aos méritos dos homens; ela é colocada em suas mãos, e Cristo veio a este mundo para que seu povo pudesse tê-la; ele a adquiriu e removeu o que estava no caminho de seu desfrute dela. A vida eterna, portanto, não é apenas uma duração infinita, mas a comunhão com Deus em Cristo, e sua concessão está ancorada na aliança eterna, como enfatizado em João 6:44: “ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer”.

A estrutura profunda do texto revela que o “dar” do Pai ao Filho precede o “dar” do Filho aos homens: é o Pai quem entrega (dedōkas autō), e o Filho distribui (dōsē autois). Isso reflete a lógica da economia trinitária em João, onde cada ação redentora é uma expressão da unidade funcional entre o Pai e o Filho. As pessoas a quem ele confere este dom não são todos os homens, mas aqueles que o Pai lhe deu na aliança eterna e é por causa disto que todas as criaturas e coisas, todo o poder no céu e na terra, lhe são dados.

Do ponto de vista pastoral, o ensino de Jesus aqui assegura aos seus que a vida eterna não depende da iniciativa humana, mas é resultado da generosidade soberana de Deus. Aos discípulos cabia confiar na fidelidade de Cristo em cumprir esse mandato: ele dará — não poderá deixar de dar — a vida eterna àqueles que lhe foram confiados pelo Pai. Assim, João 17:2b ecoa, com força litúrgica e doutrinal, a mensagem de segurança eterna para os que pertencem a Jesus: a vida eterna é dom irrevogável da graça soberana.

A frase “para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste” (João 17:2) encontra profunda ressonância no Antigo Testamento, especialmente em sua teologia da aliança, no conceito de um povo “dado” por Deus ao seu agente redentor, e na esperança escatológica da “vida” em sentido mais pleno — ḥayyîm em hebraico — entendida não apenas como existência biológica, mas como comunhão duradoura com Deus.

Primeiramente, a noção de que certas pessoas são “dadas” por Deus a uma figura redentora remete à linguagem das alianças e das promessas feitas aos patriarcas. Em Deuteronômio 7:6, por exemplo, Deus declara: “O Senhor teu Deus te escolheu, para que lhe fosses o seu povo próprio.” Aqui, o povo de Israel é entendido como uma possessão especial de Deus, o que prefigura a linguagem joanina de um grupo dado pelo Pai ao Filho. O pronome relativo “quantos” (ho dédōkas autōi) é neutro singular, mas se refere a uma coletividade pessoal — algo já antecipado na tradição profética ao tratar de Israel como unidade coletiva em Jeremias 31:33: “darei a minha lei no seu interior... e serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.” Trata-se de um dom mútuo: Deus dá o povo a si mesmo e, no Novo Testamento, o dá ao Filho.

Quanto à “vida eterna” propriamente dita, o vocábulo hebraico mais próximo, ḥayyei ‘olam (literalmente “vida perpétua” ou “vida do mundo vindouro”), aparece em textos-chave como Daniel 12:2, onde os justos ressuscitam “para a vida eterna” — conceito escatológico que, em João, é antecipado no presente pela união com Cristo (ver João 3:36 e 5:24). A expressão “vida eterna” não ocorre com frequência no Antigo Testamento, mas está implícita nas promessas de uma vida em comunhão eterna com Deus, como no Salmo 16:11: “na tua presença há fartura de alegrias; à tua mão direita há delícias perpetuamente.”

Essa continuidade entre Testamentos é intensificada pelo uso, em João 17:2, da conjunção final “ἵνα” (hina) — “para que” — que estabelece propósito divino: o Pai confere ao Filho autoridade sobre toda carne precisamente “para que” (isto é, com o fim de que) Ele conceda a vida eterna. Essa estrutura ecoa o padrão da aliança no Antigo Testamento, onde a eleição de Israel tem sempre uma finalidade redentora universal, conforme Gênesis 12:3: “em ti serão benditas todas as famílias da terra.” Agora, em João, essa bênção culmina na outorga da vida eterna a todos os que o Pai confiou ao Filho.

Portanto, João 17:2b não apenas faz referência implícita a textos como Daniel 12:2, Salmo 16:11 e Deuteronômio 7:6, mas também reapresenta — em chave cristológica — a antiga promessa de Deus de dar um povo ao seu representante (o Messias) e, por meio dele, garantir a vida escatológica que antes era apenas antecipada. A glorificação do Filho passa, assim, pelo cumprimento fiel das promessas da aliança e pela concessão da vida eterna como dom irrevogável aos que lhe foram dados.

João 17:3a E a vida eterna é esta: (Gr.: hautē de estin hē aiōnios zōē:... — A frase inicial de Jesus nesta oração (“E a vida eterna é esta”) estabelece não apenas a definição de um conceito teológico, mas a essência da comunhão salvífica. O uso de hautē de estin (“mas esta é”) funciona de modo enfático e explicativo. É importante observar que essa expressão aparece em um contexto imediatamente conectado à cláusula anterior, onde Jesus fala da autoridade concedida por Deus para dar vida eterna. Portanto, a estrutura funciona como um aposto explicativo de 17:2, oferecendo o conteúdo dessa vida: hina ginōskōsin se... (“para que conheçam a ti…”).

De forma, simples, Cristo, em sua Oração Sacerdotal, explica quese que dicionaristicamente o que significa a vida eterna, expressão tanto usava no NT, ou seja, ouvimos de nosso Senhor e Salvador a definição soteriológica por excelência. E eis o motivo pelo qual trago este ponto aqui: Embora a tradição teológica cristã tenha, com razão, desenvolvido extensas doutrinas da salvação a partir das epístolas paulinas, não se pode negligenciar o ensino soteriológico de Jesus nos Evangelhos, e especialmente em João — o último evangelho, teologicamente mais amadurecido, e o mais cristalino em sua cristologia elevada. Aqui, Jesus oferece algo próximo de uma definição categórica da vida eterna: haec est autem vita aeterna ut cognoscant te solum verum Deum et quem misisti Iesum Christum (Vulgata). A Peshitta aramaica traduz com dnedʿūnak, e a versão hebraica do NT com ladaʿat, ambas preservando a raiz semítica que remete a conhecimento relacional e pactuado. O verbo grego ginōskōsin carrega o mesmo peso: trata-se de conhecer com profundidade, com implicações de comunhão e reciprocidade, não de mera cognição.

Essa afirmação de Jesus contrasta profundamente com muitos dos debates teológicos modernos que se fixam quase exclusivamente na tensão entre fé e obras, como se a dinâmica da salvação se esgotasse em categorias forenses e comportamentais. Jesus não elimina a fé, nem despreza as obras, mas apresenta um fundamento anterior a ambas: o conhecimento verdadeiro de Deus. Não um conhecimento abstrato, especulativo, mas um conhecer vivencial, que gera fé, e essa fé se traduz em ação. Como Paulo afirmará depois — e em perfeita harmonia com as palavras de Jesus —, “a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo” (Romanos 10:17). Ora, esse ouvir é exatamente o início do conhecimento, que é o que Jesus considera como essência da vida eterna.

Portanto, a sequência natural e teológica é esta: conhecer → crer → agir. Jesus ensina que a salvação é conhecer a Deus verdadeiramente; Paulo ensina que esse conhecimento gera fé salvadora; Tiago, por sua vez, enfatiza que essa fé, se verdadeira, se manifesta em obras. Todos esses aspectos formam uma única realidade soteriológica integral. Negligenciar o início dessa cadeia — o “conhecer” — é mutilar a própria estrutura da salvação. E não é à toa que o Evangelho de João, cuja ênfase constante é na revelação de quem é Jesus (verbo, luz, pão, pastor, caminho, verdade, vida), culmine com esta afirmação: a vida eterna é conhecer Deus e o Cristo enviado.

O perigo de uma má compreensão de João 17:3 não pode ser subestimado, especialmente quando essa passagem é sequestrada por sistemas teológicos que divorciam o conhecimento da verdade da comunhão viva com Deus. Que se entenda, de antemão, que o conhecimento mencionado por Jesus nesta oração não deve jamais ser confundido com a gnose herética das seitas dos séculos II e III, tampouco com a epistemologia fria e legalista sustentada por organizações pseudocristãs contemporâneas como as Testemunhas de Jeová. Não se trata aqui de uma aquisição intelectual, de um assentimento meramente doutrinário, nem de uma estrutura de proposições teológicas a serem aceitas passivamente como se fossem as chaves da salvação. Jesus não está falando de uma gnosis elitista que liberta o indivíduo mediante o reconhecimento de uma centelha divina aprisionada em um corpo terreno, como criam os valentinianos, nem de um conhecimento que nos emancipa de um demiurgo injusto, como postulavam os discípulos de Basílides e Marcião. Pelo contrário, o conhecimento que Jesus propõe é relacional, redentivo, transformador e profundamente ético: é conhecer ao Pai, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, o enviado.

A teologia das Testemunhas de Jeová, nesse ponto, representa uma perversão sutil porém profunda da soteriologia bíblica. Ao declarar que a vida eterna consiste em “conhecer a ti, o único Deus verdadeiro”, Cristo jamais pretendeu estabelecer um sistema de salvação baseado no domínio doutrinário de certos postulados religiosos, ainda menos na aceitação irrestrita das interpretações de um “Corpo Governante”. O que as Testemunhas de Jeová fizeram — e ainda fazem — é apropriar-se de João 17:3 como se fosse uma legitimação da autoridade de sua própria estrutura eclesiástica, transformando o verbo “conhecer” em “concordar com os ensinamentos veiculados por nossa organização”. Essa distorção hermenêutica é tão grave quanto engenhosa. Apresentam-se como restauracionistas, como se Jesus tivesse abandonado a Igreja por milênios e só agora, no final dos tempos, tivesse conferido novamente a interpretação correta das Escrituras ao seleto grupo de homens do Brooklyn, cuja função prática é indistinguível do papado romano, ainda que neguem esse paralelismo.

Não é coincidência que, durante décadas, o livro doutrinário-base usado para doutrinar novos adeptos da seita tivesse por título “Conhecimento que conduz à vida eterna”, um nome que, por si só, transforma a salvação em uma questão de alfabetização doutrinária. O processo de iniciação de um novo adepto da seita exige o estudo sistemático desse manual por meses, seguido de uma entrevista inquisitorial com os “anciãos”, na qual se examina se o candidato é capaz de reproduzir as crenças e regras do grupo com fidelidade. Somente após esse escrutínio o indivíduo pode ser considerado digno do batismo. A substituição, em 2005, do livro “Conhecimento” pelo manual “O Que a Bíblia Realmente Ensina?” apenas reafirma esse paradigma. O título, que parece inocente à primeira vista, é na verdade uma armadilha: “o que a Bíblia ensina” significa, na prática, “o que as Testemunhas de Jeová dizem que a Bíblia” — ou sejam a interpretação que eles dão, com base em um tradução da Bíblia academicamente ridicularizada e criticada de forma unânime por tradutores em várias universidades e instituições ao redo do mundo, e isso é, por definição, uma substituição da Escritura pela tradição humana (cf. Marcos 7:7–9).

Contudo, João 17:3 não legitima esse tipo de “ortodoxia formalista”. O verbo grego usado por Jesus — ginōskein — implica intimidade, relação, experiência pessoal com o ser conhecido, e não apenas assimilação conceitual. Em contextos bíblicos, como já vimos, “conhecer” a Deus é sinônimo de andar com Ele, amar a sua lei, reconhecer nossa condição pecaminosa e lançar-nos à sua graça. É um conhecimento que toca o coração, não apenas a mente. Não é por acaso que Jesus, em Mateus 7:22–23, rejeita aqueles que, mesmo realizando milagres e profetizando em seu nome, são chamados de “obreiros da iniquidade” porque Ele “nunca os conheceu”. Ora, se fazer obras em nome de Jesus não é suficiente, quanto menos o será decorar doutrinas ou submeter-se à estrutura de uma organização. Paulo, ecoando esse espírito, escreve em 1 Coríntios 13:2: “E ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.” A salvação não nasce de um conhecimento teológico absoluto, mas de um relacionamento de fé ativa e amorosa com o Deus revelado em Cristo.

A verdadeira gnose cristã não é um acúmulo de informações doutrinárias, ou obediência ao grupo de velhotes residentes nos EUA que se arrogam portadores da Verdade na terra, o Canal que Deus usa para falar com as pessoas,[3] mas um reconhecimento profundo da nossa miséria sem Deus, da nossa corrupção sem Cristo, e da impossibilidade de autossalvação. Trata-se de um conhecimento que se traduz em conversão de vida, em humildade relacional, em justiça prática, especialmente para com os vulneráveis e esquecidos da sociedade. Como ensina Tiago 1:27, “a religião pura e imaculada para com Deus, o Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e guardar-se da corrupção do mundo.” Esse conhecimento não se aprende em manuais ou entrevistas doutrinárias, mas se revela na prática do amor (cf. 1 João 4:7–8).

Portanto, todo aquele que ouve João 17:3 como um chamado a conhecer um conjunto de dogmas está perdendo a essência do Evangelho. Não é conhecimento no sentido de domínio acadêmico nem de ortodoxia confessional que nos salva, mas o conhecimento que leva ao reconhecimento — do Senhorio de Cristo, de sua plena divindade (cf. João 20:28), de sua missão redentora e de nossa total dependência d’Ele. Um conhecimento que produz vida nova, transforma o homem em nova criatura (2 Coríntios 5:17), e o integra à comunhão de amor com o Pai e o Filho, pela habitação do Espírito. Conhecer, portanto, é crer, amar, obedecer, servir — e nada disso pode ser manipulado por sistemas humanos que se arrogam mediadores exclusivos da salvação.

Este conhecimento relacional nos une ao Deus verdadeiro — “único Deus verdadeiro” (ton monon alēthinon Theon, como enfatiza o grego) — e ao seu Enviado, o Messias. A ênfase joanina na palavra “enviar” (apostellō) estrutura toda a teologia da missão divina: o Pai envia o Filho; o Filho envia os discípulos; o Espírito será enviado para perpetuar essa missão. Assim, a vida eterna é ser inserido nessa corrente eterna de revelação e comunhão. Não se trata apenas de um estado futuro de beatitude celestial, mas de uma realidade já inaugurada: “Quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna...” (João 5:24). A vida eterna é presente, contínua e dinâmica — porque o conhecer é uma relação viva com um Deus vivo.

Tudo isso nos leva a reconhecer também que, embora muitos teólogos cristãos concentrem sua soteriologia nos escritos paulinos (justificação pela fé, graça, obras, etc.), é o próprio Jesus quem nos dá a definição mais clara de salvação: “a vida eterna é esta: que conheçam a Ti... e a quem enviaste, Jesus Cristo”. Aqui temos a soteriologia do Verbo encarnado. Essa vida eterna é presente e futura, porque conhecer o Pai e o Filho é já estar inserido na comunhão trinitária que não termina (João 14:23; 1 João 5:11–13). A fé nos conecta, como ensina Paulo; as obras manifestam essa fé, como ensina Tiago; mas tudo começa pelo conhecimento — relacional, transformador, revelador — como ensina Jesus.

João 17:3b ...que te conheçam a ti só,... (Gr.: hina ginōskōsin se.... — O verbo ginōskōsin está no subjuntivo presente ativo (terceira pessoa do plural), regido por hina, e destaca a continuidade e a permanência dessa ação: conhecer, não como ato intelectual momentâneo, mas como experiência relacional dinâmica e contínua. Não se trata aqui de eidénai (saber, conhecer conceitualmente), mas ginōskein, que implica um “conhecimento relacional e experiencial”, o mesmo que em Oseias 6:3: “Conheçamos, e prossigamos em conhecer ao Senhor”. O uso do tempo presente após hina é incomum, mas legítimo, sendo atestado em 1 Coríntios 4:6 e Gálatas 4:17, como mostra a mesma fonte, o que confirma que a intenção aqui não é apenas indicar finalidade, mas também constância.

As versões bíblicas refletem esse ponto com variações semânticas. A maioria das traduções clássicas mantém a literalidade da expressão “que conheçam” ou “para que conheçam” (ASV, ESV, NASB, LEB, WEB, EMTV, etc.). A Peshitta traduz com dnedʿūnak (“que te conheçam”), e o NT hebraico preserva a forma verbal ladaʿat (forma infinitiva, “conhecer”), em ressonância com a expressão hebraica yadaʿ et, recorrente nas Escrituras Hebraicas para descrever intimidade e pacto. A Vulgata, por sua vez, traz cognoscant, no subjuntivo presente, também enfatizando a continuidade da ação de conhecer. A versão CEV opta por uma paráfrase mais interpretativa: “Eternal life is to know you” (“Vida eterna é conhecer a ti”), captando bem a ideia da essência da vida eterna como relacionamento, embora sem enfatizar o aspecto progressivo da ação. É essencial observar que a Vulgata está de acordo com o uso veterotestamentário, pois cognoscere era o verbo latino utilizado em Gênesis 4:1: “Adam vero cognovit Evam uxorem suam”, traduzindo o mesmo verbo hebraico yadaʿ, o que mostra que a Igreja sempre entendeu cognoscere não como saber intelectual, mas como intimidade pactual.

A afirmação de Jesus em João 17:3 — “...para que conheçam a ti só por único Deus verdadeiro...” — encontra seu pano de fundo semântico e teológico na espessura da tradição veterotestamentária da palavra yadaʿ (יָדַע), transliterada yadaʿ, que não denota mera cognição intelectual, mas sim relação viva, experiência transformadora, comunhão pactual e obediência fiel. Ao empregar a forma hebraica ladaʿat otkha no Novo Testamento hebraico, João ecoa a gramática profunda da aliança entre Deus e seu povo, onde conhecer é viver com, andar com, temer, amar, servir — em suma, é participar da vida de Deus.

Essa ideia ressoa nitidamente em Oseias 6:6, onde o profeta proclama: “Pois misericórdia quero, e não sacrifício; e o conhecimento de Deus mais do que os holocaustos.” O hebraico traz ve-daʿat ʾElohim me-ʿolot (וְדַעַת אֱלֹהִים מֵעֹלוֹת), ou seja, o conhecimento de Deus é mais precioso aos olhos divinos que rituais sacrificiais. Isso porque tal conhecimento é relacional, fruto do ḥesed (lealdade amorosa), e jamais uma mera adesão cultual. Não há salvação sem conhecer a Deus — e não há conhecimento de Deus que não produza amor e justiça.

Esse mesmo princípio se reafirma no grito profético de Jeremias 22:16. Referindo-se ao rei justo Josias, o texto diz: “Julgou a causa do aflito e do necessitado; então tudo lhe corria bem. Porventura, não é isso conhecer-me? — diz o Senhor.” Aqui, ha-daʿat ʾoti halo zōʾt (הֲדַעַת אֹתִי הֲלֹוא זֹאת) apresenta o conhecimento de Deus como prática da justiça social — não há dicotomia entre teologia e ética: quem conhece a Deus, defende o órfão e a viúva. Isso prepara o solo para entender que a vida eterna, em João 17:3, não é uma abstração teórica, mas a própria vida moldada pelo conhecimento do Deus justo. [Essa compreensão é ainda mais aprofundada quando se examinam os textos do Antigo Testamento em que Israel é chamado a “conhecer” a Deus. Jeremias 9:23–24 afirma: “Não se glorie o sábio na sua sabedoria... mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer (yadaʿ) e saber que eu sou o Senhor, que faço misericórdia, juízo e justiça na terra”. O conhecimento de Deus é o verdadeiro motivo de glória e base da vida com sentido. Em Oseias 4:1, o Senhor acusa a terra por não haver “conhecimento de Deus” (deʿat Elohim), o que leva ao colapso moral e espiritual. Em Isaías 11:9, o futuro escatológico é descrito assim: “a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar”. Logo, o conhecimento de Deus é o objetivo da redenção, a essência da nova criação.]

Jeremias 31:34 fornece o cenário escatológico mais explícito dessa esperança: “...porque todos me conhecerão, desde o menor até o maior deles, diz o Senhor.” O hebraico afirma: ki kullam yedaʿuni (כִּי־כוּלָּם יֵדְעוּנִי), “pois todos me conhecerão”. Este “conhecimento” será interiorizado, universal, fruto de uma nova aliança inscrita no coração. João 17:3 cumpre essa profecia: por meio de Cristo, o conhecimento de Deus não depende mais de mediações sacerdotais ou nacionais, mas é dado como dom da vida eterna, a todo aquele que é chamado e crê. É a realização plena da promessa de Ezequiel 36:26–27, onde um novo espírito é colocado no homem, levando-o a andar nos caminhos de Deus — a vida eterna não é apenas vida sem fim, mas vida em comunhão com o Eterno.

Isaías 11:9 descreve poeticamente essa plenitude: “A terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar.” O texto hebraico traz: ki malaʾa ha-ʾarets deʿaʿ et-YHWH (כִּי־מָלְאָה הָאָרֶץ דֵּעָה אֶת־יְהוָה). O termo deʿaʿ aqui, variante de yadaʿ, aponta para um mundo transfigurado, onde o conhecimento de Deus cobre toda realidade. O Evangelho de João, em seu testemunho cristológico, vê esta profecia se realizando na pessoa de Jesus: o Filho revela o Pai, e conhecê-lo é penetrar na verdade eterna (João 14:7–9).

Essa mesma ideia está refletida no clamor de Moisés em Êxodo 33:13: “Agora, pois, se achei graça aos teus olhos, rogo-te que me faças saber o teu caminho, para que eu te conheça...” No hebraico: ʿal-menat eʿdaʿkha (עַל־מְנַת אֶדְעָךְ), “a fim de que eu te conheça”. Moisés suplica por mais do que revelações teóricas: ele deseja o caminho de Deus, isto é, sua presença, sua verdade, sua comunhão. João 17:3, ao declarar que a vida eterna é conhecer a Deus e a Jesus Cristo, é herdeiro direto dessa súplica mosaica: a vida eterna é o conhecimento que vem da graça, da revelação, e da intimidade com o Deus que se dá a conhecer.

Finalmente, 1 Samuel 2:12 exemplifica o oposto: “Eram, porém, os filhos de Eli filhos de Belial, e não conheciam ao Senhor.” A frase loʾ yadeʿuʾ et-YHWH (לֹא יָדְעוּ אֶת־יְהוָה) denuncia não apenas ignorância, mas desprezo pactual. Conhecer a Deus implica submissão, santidade, reverência. Por isso, João insiste que conhecer a Deus é crer naquele que Ele enviou (João 17:3), e não fazê-lo é permanecer nas trevas, ainda que se esteja dentro da estrutura religiosa, como os filhos de Eli.

O pano de fundo veterotestamentário da expressão “conhecer a Deus” revela que João 17:3 está inserido num universo de significado que transcende a simples aceitação intelectual de proposições doutrinárias. Trata-se de uma realidade viva, dinâmica, relacional e escatológica: conhecer a Deus é caminhar com Ele em aliança, é refletir seu caráter na justiça e misericórdia, é ser transformado por sua presença, é herdar a vida eterna que flui da revelação do Filho.

João 17:3c ...por único Deus verdadeiro,... (Gr.: ...se ton monon alēthinon Theon... — A afirmação aqui presente insere-se na longa tradição do monoteísmo veterotestamentário. Em Isaías 37:20, Deus é chamado de ho Theos monos (“o único Deus”), e em Êxodo 34:6, de alēthinos (“verdadeiro”), numa LXX que ecoa com precisão a linguagem usada por Jesus aqui. O contraste é nítido: Deus é “único” em oposição às divindades chamadas theoi por entre os gentios (cf. 1 Coríntios 8:5–6), e é “verdadeiro” em oposição aos ídolos falsos dos pagãos. O título monon alēthinon tem eco direto em Jeremias 10:10 (“Mas o Senhor é o Deus verdadeiro; ele mesmo é o Deus vivo e o Rei eterno”), e em 1 João 5:20, onde João afirma: “Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna”, vinculando essa declaração ao próprio Cristo. No entanto, como também notou a Fonte 3, é discutível se a linguagem aqui representa ipsis verbis de Jesus ou uma formulação joanina pós-pascal, já imbuída do uso do nome completo “Jesus Cristo” (Iēsoun Christon), algo raro nos lábios do próprio Cristo e típico da formulação apostólica posterior (cf. João 1:17; 1 João 1:3; 1 João 5:20).

A frase “a ti só, por único Deus verdadeiro” (se ton monon alēthinon Theon, João 17:3) está profundamente enraizada no monoteísmo do Antigo Testamento e constitui uma das declarações mais teologicamente densas de todo o evangelho de João. Ela não inaugura um novo paradigma, mas reafirma com intensidade a fé central do judaísmo bíblico: a absoluta unicidade de Deus — sua exclusividade como Ser divino verdadeiro, vivo e eterno.

Desde os períodos mais antigos da religião israelita, pode-se observar que o monoteísmo não surgiu de forma imediata, mas foi uma revelação progressiva. A prática do henoteísmo — o reconhecimento da existência de múltiplos deuses, com a adoração exclusiva de um — era evidente em estágios primitivos da fé israelita (como em Êxodo 15:11: “Quem é como tu entre os deuses, ó Senhor?”). Porém, à medida que a revelação avançava, especialmente nos livros proféticos e na literatura sapiencial tardia, o monoteísmo absoluto se consolidou como verdade teológica central, marcando a identidade de Israel em contraste com as nações pagãs.

A expressão mais emblemática dessa revelação encontra-se na Shema Israel de Deuteronômio 6:4 — “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (YHWH ʾElohênu YHWH ʾeḥād). Aqui, a palavra ʾeḥād (“um”) não transmite apenas unidade matemática, mas exclusividade ontológica. Não há outro Deus além de YHWH. Essa confissão tornou-se o coração da oração diária judaica e moldou a consciência religiosa de Jesus e de todos os seus contemporâneos. Portanto, quando Jesus afirma em João 17:3 que o Pai é o “único Deus verdadeiro”, Ele não rompe com a tradição, mas fala a partir do âmago do monoteísmo bíblico, inserido dentro da estrutura da fé judaica, não contra ela.

O profeta Isaías é talvez o maior porta-voz dessa convicção. Em Isaías 43:10–11, Deus afirma: “Antes de mim deus nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá. Eu, eu sou o Senhor, e fora de mim não há Salvador.”[2] E mais adiante, em Isaías 45:5, Deus declara: “Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus.” Aqui, a fórmula hebraica ʾani YHWH veʾên ʿôd deixa absolutamente claro que não existe concorrente real à divindade de YHWH — os deuses das nações são nada. Essa mesma lógica aparece em Jeremias 10:10: “Mas o Senhor é o Deus verdadeiro; ele mesmo é o Deus vivo e o Rei eterno” (YHWH ʾĕlōhîm ʾĕmet).

O próprio Jesus, portanto, ao dizer que a vida eterna é “conhecer a ti, o único Deus verdadeiro”, está se inserindo em toda essa tradição veterotestamentária. Não há ruptura, há plenitude. Ele fala como o novo Moisés que não apenas transmite o conhecimento de Deus, mas o encarna. Por isso, o “conhecer a Deus” passa, a partir de agora, por “conhecer a quem tu enviaste, Jesus Cristo”. O Filho é o mediador do conhecimento do Pai, e essa mediação é relacional, não apenas doutrinal.

Dessa forma, o verbo ginōskōsin em João 17:3 contém, condensado nele, todo o projeto redentor de Deus ao longo da história: desde as primeiras promessas a Abraão de que “em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gênesis 12:3), passando pela formação de Israel como povo da aliança, cuja missão era tornar Deus conhecido entre as nações (Isaías 43:10–12), até o envio do Messias e dos apóstolos, como veremos na sequência do versículo. Conhecer a Deus é ser inserido nesse plano, ser regenerado à Sua imagem e chamado a testemunhar esse conhecimento ao mundo.

O apóstolo Paulo retoma esse mesmo ponto com clareza em 1 Coríntios 8:5–6, ao reconhecer que “há muitos que se chamam deuses... todavia para nós há um só Deus, o Pai, de quem é tudo e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós por ele.” Embora Paulo reconheça a linguagem politeísta do mundo greco-romano (“há muitos deuses e muitos senhores”), ele confessa com firmeza a fé judaica: heis Theos ho Patēr (“um só Deus, o Pai”). Isso não é abandono do monoteísmo, mas sua cristificação — um monoteísmo agora cristocêntrico, mas ainda não trinitarista nos moldes conciliares posteriores.

Além disso, a própria Vulgata Latina de João 17:3 — “haec est autem vita aeterna: ut cognoscant te solum verum Deum et quem misisti Iesum Christum” — reforça essa leitura: Deus é “solus verus Deus”, o “único Deus verdadeiro”, e Jesus Cristo é aquele que foi enviado. Essa distinção entre o único Deus e o seu enviado é gramatical, teológica e histórica. E é nessa distinção que reside a beleza da cristologia joanina: Jesus não se opõe ao monoteísmo, mas é o mediador que o revela plenamente (cf. João 1:18: “o Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou”).

É necessário enfatizar, contra as simplificações modernas, que Jesus não fundou uma nova religião. Ele não abandonou o judaísmo — nasceu, viveu e morreu como judeu, observando os mandamentos, as festas, as orações, as Escrituras. O Evangelho de João, apesar de sua alta cristologia, nunca apresenta Jesus como criador de uma religião nova, mas como o cumprimento pleno das promessas veterotestamentárias. A Nova Aliança que ele inaugura não é uma negação da Antiga, mas sua consumação. Ele é o servo de Isaías, o profeta semelhante a Moisés (Deuteronômio 18:15), o Filho do Homem de Daniel 7:13–14, que recebe do “Ancião de Dias” domínio e glória — mas nunca à parte do Deus único, e sim enviado por Ele.

Portanto, ler João 17:3 à luz do Antigo Testamento e da consciência monoteísta de Jesus é reconhecer que a fé cristã nasce da raiz do judaísmo bíblico, e que a vida eterna não é um conceito helenista de imortalidade da alma, mas a plenitude da comunhão com o único Deus, conforme revelado em YHWH, e mediado por aquele que Ele enviou — Jesus, o Messias. Tudo isso sem jamais romper com o solo da confissão de Israel: YHWH ʾeḥād.

João 17:3d ...e a Jesus Cristo, a quem enviaste. (Gr.: ...kai hon apesteilas Iēsoun Christon. — O emprego da expressão grega kai hon apesteilas Iēsoun Christon define o segundo objeto desse conhecimento salvífico. Assim como o AT exige o conhecimento de Yahweh (cf. Oseias 4:1, Jeremias 31:34), agora se requer o conhecimento d’Aquele que o Pai enviou, o Messias. Em João 1:18, Jesus é descrito como aquele que “declarou” o Pai, e em João 14:6 ele afirma: “Ninguém vem ao Pai, senão por mim.” O conhecimento de Deus, portanto, passa necessariamente pelo reconhecimento de Jesus como o Enviado. A linguagem de apostellō (“enviar”) ecoa o vocabulário profético do AT (cf. Isaías 6:8, Jeremias 1:7), e está saturada da teologia do envio (missio Dei), central no Quarto Evangelho. O conhecimento de Jesus Cristo é o correlato neotestamentário do conhecimento do Deus da aliança no Antigo.

A linguagem de apostellō (“enviar”) ecoa o vocabulário profético do Antigo Testamento (cf. Isaías 6:8, Jeremias 1:7), e está saturada da teologia do envio (missio Dei), central no Quarto Evangelho. O conhecimento de Jesus Cristo é o correlato neotestamentário do conhecimento do Deus da aliança no Antigo. Mas esta linguagem não se esgota em uma referência isolada: ela delineia uma cadeia hierárquica de missões divinas que percorre todo o corpo do Evangelho de João. Assim como Deus enviou Jesus ao mundo (João 3:17; 5:36; 10:36; 17:3), Jesus envia os discípulos (João 17:18; 20:21), e por fim, o Espírito Santo é enviado por Jesus da parte do Pai (João 14:26; 15:26; 16:7). Trata-se de uma lógica trinitária de envio, enraizada na tradição profética e messiânica do Antigo Testamento, onde a autoridade divina se transmite por mediação de enviados — sem que isso implique inferioridade ontológica.

O verbo shalach (שָׁלַח), amplamente utilizado nas Escrituras hebraicas para designar os enviados de Deus — profetas, juízes e reis — serve de matriz conceitual para o uso joanino de apostellō. Os profetas hebreus foram homens “enviados” para proclamar a vontade divina, como se lê em Isaías 6:8: “A quem enviarei, e quem há de ir por nós?” — linguagem que ecoa diretamente na declaração de Jesus em João 20:21: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós.” Essa relação de autoridade delegada, porém inseparável da origem divina, remonta a toda a cadeia de mediação presente nas Escrituras, e demonstra que o Filho não age em oposição ao Pai, mas como seu perfeito Representante, em missão.

No corpo da tradição messiânica do Antigo Testamento, não há profecias que anunciem que o próprio Deus, em sua essência transcendente, viria a habitar fisicamente o mundo no modo como os homens habitam. Pelo contrário, há uma ênfase clara no fato de que Deus enviaria um servo, um mensageiro, um ungido — e não que Ele próprio desceria em plenitude. Salomão já expressava essa percepção de maneira admirável ao consagrar o Templo: “Mas, na verdade, habitaria Deus na terra? Eis que os céus, e até o céu dos céus, não te podem conter, quanto menos esta casa que eu edifiquei” (1 Reis 8:27). O transcendente não pode ser confinado ao imanente sem que se estabeleça uma mediação, e essa mediação se revela ao longo da história por meio do “Enviado de Deus”. 

Mesmo as mais intensas manifestações da presença divina no Antigo Testamento ocorrem por mediação. O mais expressivo desses mediadores é o chamado “Anjo do Senhor” (מַלְאַךְ יְהוָה). Em diversos episódios — como com Hagar (Gênesis 16:7–13), Abraão (Gênesis 22:11–18), Moisés (Êxodo 3:2–6) e Gideão (Juízes 6:11–24) — o Anjo do Senhor aparece, fala com autoridade divina, aceita adoração e é tratado como o próprio Deus, a ponto de juras e promessas serem atribuídas diretamente a Yahweh. Em Gênesis 22, por exemplo, o Anjo do Senhor jura por si mesmo: “Por mim mesmo jurei, diz o Senhor...” — uma formulação que prenuncia Hebreus 6:13: “Porque, quando Deus fez a promessa a Abraão, como não tinha outro maior por quem jurar, jurou por si mesmo.” Tais passagens apresentam a estrutura paradoxal da identidade divina: um Ser que envia a Si mesmo, ou melhor, que Se manifesta em outro que é dEle, mas é distinto em relação, não em essência.

Esse paradoxo é reiterado nas referências veterotestamentárias à “Palavra do Senhor” e ao “Espírito do Senhor”, que muitas vezes atuam como agentes dotados de personalidade e autoridade criadora. O Salmo 33:6 declara: “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo sopro da sua boca.” E Isaías 48:16 oferece uma declaração enigmática, de forte sabor trinitário: “E agora o Senhor Deus me enviou a mim e ao seu Espírito” — como se a fala do Servo prefigurasse a missão do Filho e do Espírito a partir do Pai.

Portanto, quando Jesus diz que foi enviado pelo Pai, não está se colocando em posição inferior — mas sim continuando a cadeia de revelação e manifestação divina conforme testemunhada ao longo de toda a Escritura. A submissão do Filho ao Pai é relacional, não ontológica; e o envio do Espírito Santo pelo Filho e pelo Pai dá continuidade a esse modelo de autoridade compartilhada e comunhão eterna. Jesus é Deus, coigual ao Pai e consubstancial com Ele, mas sua encarnação acontece precisamente para que a transcendência se torne acessível, sem que o Infinito seja contido pela criação. A encarnação é, pois, a manifestação do Deus transcendente no mundo, por meio daquele que é eternamente gerado e enviado.

Esta lógica se cristaliza no Evangelho de João, que, do prólogo à oração sacerdotal, articula a doutrina da mediação divina como sendo a expressão da unidade trinitária. O Pai é o Deus verdadeiro; o Filho é o Verbo eterno, que estava com Deus e era Deus (João 1:1), e que foi enviado ao mundo (João 3:17), não para condenar, mas para salvar; e o Espírito é o Consolador que procede do Pai e é enviado pelo Filho para guiar a Igreja (João 15:26). Em João 17:3, esse movimento atinge seu ápice: a vida eterna consiste em conhecer o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem Ele enviou. E esse conhecimento é possível apenas porque Deus decidiu se dar a conhecer por meio do seu Representante divino, o Filho eterno.

A progressão do versículo nos conduz agora à mais alta cristologia joanina embutida em uma estrutura de envio: o conhecimento salvífico de Deus exige, necessariamente, o reconhecimento de “Jesus Cristo” como aquele que foi “enviado” por Deus. A expressão grega hon apesteilas Iēsoun Christon reúne em si uma série de conceitos que se encontram no coração da teologia bíblica, da doutrina do envio (missio Dei), da cristologia encarnacional e da soteriologia trinitária.

O verbo apesteilas (aoristo ativo do verbo apostellō) está relacionado com a linguagem clássica do Antigo Testamento para descrever o ato de Deus enviar os seus servos proféticos. Desde o envio de Moisés (Êxodo 3:10, “Vem agora, pois, e eu te enviarei a Faraó”), passando por Isaías (“a quem enviarei?” – Isaías 6:8), até o envio dos profetas como Jeremias (“a quem enviei de madrugada” – Jeremias 7:25), o envio era o modo principal pelo qual Deus interagia com o mundo. O agente enviado possuía autoridade delegada e, em certo sentido, carregava a presença do próprio Deus. Em hebraico, o termo correspondente é shālaḥ (שָׁלַח), e a forma nominal, shaliaḥ (שליח), que mais tarde tornou-se central no pensamento rabínico, designando um agente autorizado.

Por isso, a oração de Jesus, ao empregar apesteilas, invoca não apenas a continuidade profética, mas a sua consumação: ele é o enviado final, definitivo, escatológico. Essa linguagem é comum em João, onde o termo “enviar” é usado mais de trinta vezes para descrever a relação entre o Pai e o Filho (cf. João 3:17; 5:23; 6:29,38; 8:42; 10:36; 12:49; 20:21). A Vulgata latina mantém a equivalência com misisti, o perfeito do verbo mittere, que também era usado no latim bíblico para o envio divino dos profetas (quos misit Deus).

João 17:3d ...e a Jesus Cristo, a quem enviaste. (Gr.: ...kai hon apesteilas Iēsoun Christon. — A expressão Jesus Cristo aqui é altamente significativa. João não diz “teu Filho”, nem apenas “Jesus”, mas Iēsoun Christon, a forma mais completa da confissão de fé da Igreja. Trata-se da única vez em que essa forma exata ocorre na boca de Jesus em todo o Evangelho de João. Nos outros lugares, ele se refere a si mesmo como “Filho do Homem”, “Filho de Deus” ou simplesmente “Eu sou”. Mas aqui, na oração sacerdotal, ele se autodefine como “Jesus Cristo”, isto é, o Ungido, o Messias.

Essa autodesignação carrega o peso das profecias messiânicas do Antigo Testamento. Desde o Salmo 2 (“Tu és meu Filho, hoje te gerei”), passando por Isaías 11:1–2 (o renovo do tronco de Jessé, sobre quem repousa o Espírito), e Daniel 7:13–14 (o Filho do Homem que recebe domínio e glória), o Messias prometido seria um enviado — um homem da linhagem de Davi, escolhido por Deus, mas dotado de autoridade divina, como nos Salmos Reais (ex: Salmo 45:6–7, onde o trono do rei é chamado de “trono de Deus”).

Jesus, ao orar dessa forma, une os dois títulos: o nome histórico Iēsous (Jesus), que indica sua humanidade e encarnação, com o título Christos (Cristo), que indica sua missão messiânica. A Peshitta reforça isso com yeshūʿ mešīḥā, e o NT hebraico com Yeshua haMashiach, ligando diretamente com o título usado no hebraico de Daniel 9:26 (yikaret Mashiach – “o Ungido será cortado”).

Além disso, esse envio não é isolado. Ele faz parte de uma hierarquia divina de missão: Deus envia Jesus, Jesus envia os doze apóstolos (João 20:21: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio”), depois envia os setenta (Lucas 10:1), e finalmente promete enviar o Espírito Santo, o Consolador (paraklētos), como presença divina contínua (João 14:26; 15:26). Há aqui uma progressão de missão, uma cadeia de envio que estabelece a teologia da Trindade em missão: o Pai envia o Filho, o Filho envia os discípulos, e o Espírito é enviado como testemunha e guia da verdade.

No Antigo Testamento, como já comentei, não há profecias de que o próprio Deus viria à terra em sua plenitude ontológica, mas sim que enviaria o seu servo (Isaías 42:1), o seu Filho (Salmo 2:7, Isaías 9:6), ou o Messias. O próprio Salomão reconhece que Deus é transcendente em 1 Reis 8:27. Deus habita em luz inacessível (cf. 1 Timóteo 6:16), mas se manifesta em formas acessíveis ao homem: anjo, palavra, espírito.

Essa distinção já era vista nas teofanias que comentei anteriormente do “Anjo do Senhor”, como em Gênesis 16 (Hagar), Gênesis 22 (Abraão), Êxodo 3 (Moisés), e Juízes 6 (Gideão). Nessas passagens, a figura que aparece é ao mesmo tempo um mensageiro e o próprio Deus. Aceita adoração, fala como Deus, jura por si mesmo. Os pais da Igreja viram nessas manifestações pré-encarnações do Verbo (Logos), antecipações de Cristo.

Portanto, o fato de Jesus ser enviado não implica inferioridade ontológica, mas função distinta na missão trinitária. Como diz Hebreus 6:13, Deus, ao prometer a Abraão, “jurou por si mesmo, não tendo outro maior”. Esse auto-juramento revela um Deus que transcende a lógica humana: Ele é o fundamento de Si mesmo, o único ser auto-referente absoluto. Por isso, pode manifestar-Se no mundo como o Filho enviado, o Logos encarnado (João 1:1–14), sem deixar de ser um com o Pai (João 10:30).

João 17:4a Eu glorifiquei-te na terra,... (Gr.: : Egō se edoxasa epi tēs gēs;... — A expressão inicial do v. 4 carrega em si um peso teológico profundo e remete, desde o princípio, ao sentido de missão cumprida e de revelação encarnada. Essa sentença breve concentra profundidade gramatical, teológica e histórica ao encerrar, com voz de certeza, a primeira cláusula da chamada “oração sacerdotal” de Jesus. A análise morfológica da oração grega parte da forma verbal edoxasa, aoristo ativo indicativo, primeira pessoa do singular do verbo doxazō [δοξάζω], que significa “glorificar”, “honrar”, “dar glória”. Trata-se de um aoristo constativo, segundo as fontes críticas, cuja função é apresentar toda a ação como um todo completo, em retrospectiva, mesmo que, do ponto de vista histórico, ela ainda estivesse em curso. É fundamental notar que as melhores testemunhas do texto (como א A B C L) utilizam a forma aorística simples edoxasa, enquanto a forma perfeita dedoxaka, que daria “tenho glorificado”, não aparece nesse contexto e alteraria profundamente o aspecto verbal pretendido: não é um processo contínuo ou atual, mas uma ação consumada na perspectiva do orante, mesmo que ainda não concluída cronologicamente.

Essa característica do aoristo constativo levou múltiplos comentaristas, como os citados nas fontes enviadas, a classificarem esse tempo verbal como proléptico, isto é, uma antecipação de um evento ainda não ocorrido, mas considerado certo e irrevogável. A oração de Jesus em João 17:4a não é, portanto, uma simples constatação retrospectiva, mas um pronunciamento que incorpora o futuro imediato como já ocorrido — o mesmo recurso estilístico que se vê em João 19:30 (tetelestai, “está consumado”), sendo, porém, aqui verbalizado de modo antecipado. Como afirmam as fontes exegéticas, “o Senhor se encontra, por antecipação espiritual e consciente, no fim da missão, vendo toda a sua trajetória como um ato completo”.

O sujeito enfático egō (“eu”) e o objeto direto se (“a ti”) reiteram a relação pessoal e direta com o Pai, e a locução preposicional epi tēs gēs (“sobre a terra”) define o locus da ação glorificadora. Do ponto de vista semântico e teológico, epi (“sobre”) com o acusativo, como é aqui o caso, pode denotar não apenas localidade, mas autoridade ou domínio (“em relação à terra”, “com implicação sobre a terra”), embora neste contexto predomine o sentido espacial, contrastando com o pedido seguinte de glorificação celestial (João 17:5). Assim, “na terra” contrasta com “junto de ti” (para seautō, v. 5), e o advérbio de lugar possui força antitética e escatológica: o tempo da missão terrena está encerrado, e a glória celeste, desejada.

Do ponto de vista etimológico, doxazō deriva do substantivo doxa, que originalmente significava “opinião” ou “reputação”, mas no contexto bíblico passou a significar “glória”, especialmente a glória divina. No grego do Novo Testamento, doxazō adquire conotação de manifestação visível da presença e majestade de Deus — uma ideia com raízes profundas no hebraico bíblico kāvōd (כָּבוֹד), cujo equivalente hebraico em João 17:4a é peʾartîḵā (פֵּאַרְתִּיךָ), do verbo pāʾar (פָּאַר), “glorificar”, “embelezar”, “honrar”. A forma peʾartîḵā corresponde à primeira pessoa singular do perfeito qal, com sufixo de segunda pessoa masculina singular, traduzindo literalmente: “eu te glorifiquei”. A versão hebraica confirma a intenção de transmitir uma ação completa e já realizada — embora, como no grego, também aqui se compreenda esse tempo perfeito como incluído em uma estrutura semântica prolepticamente escatológica.

A versão siríaca da Peshitta, anā shabbaḥtek b-ar‘ā, traz o verbo shabbaḥ (ܫܒܚ), de raiz triliteral š-b-ḥ (ܫ-ܒ-ܚ), muito usada no aramaico para expressar “louvar”, “glorificar”, ou “honrar com elogio”. A forma usada é a primeira pessoa do singular do perfeito: shabbaḥtek (ܫܒܚܬܟ), literalmente “eu te glorifiquei”. A preposição b- (ܒ) seguida de ar‘ā (ܐܪܥܐ, “terra”) espelha com exatidão o “epi tēs gēs” do grego, reforçando o local da manifestação glorificadora de Cristo. Assim como no hebraico, a conjugação perfectiva no siríaco descreve ação completada, embora, de novo, esteja subordinada à mesma lógica escatológica do aoristo grego. Isso se harmoniza com o conceito semítico de “dar glória” não como mera apreciação estética, mas como reconhecimento público da autoridade e santidade divinas. O hebraico peʾartîkā, por sua vez, deriva de pʾr (“embelezar, glorificar, exaltar”), verbo usado no Antigo Testamento tanto para glorificar a Deus (Isaías 60:9; 60:21) quanto em contextos escatológicos (Isaías 49:3). A versão hebraica de João 17:4, portanto, aproxima a linguagem de Jesus à dos profetas, especialmente a de Isaías, cuja teologia da glória permeia todo o Quarto Evangelho.

Nas Escrituras Hebraicas, a glória de Deus (kābôd YHWH) é frequentemente revelada em momentos de intervenção salvífica ou epifanias, como no Sinai (Êxodo 24:16-17), no Tabernáculo (Êxodo 40:34-35), e no Templo (1 Reis 8:10-11). Essa glória, porém, também pode ser “refletida” ou “revelada” por meio de vidas fiéis, como Moisés, cujos atos de obediência e mediação tornaram-no um canal visível da presença divina (Êxodo 33:18–23; Números 12:7–8). Jesus, em João, apropria-se dessa função e a transcende: não apenas reflete a glória divina, mas a incorpora e manifesta plenamente (João 1:14 — “E vimos a sua glória...”).

A glória aqui evocada por Jesus é, portanto, teantrópica: resultado da união entre natureza divina e missão humana. Ele glorificou o Pai por meio de sua obediência, palavras e ações. Como afirma a fonte teológica, essa glorificação deu-se de maneira verbal (em seus ensinos), factual (em seus milagres), moral (em seu caráter) e relacional (em sua obediência filial). Essa multiplicidade ecoa o que o Antigo Testamento já propunha: “Aquele que me oferece sacrifício de louvor me glorificará” (Salmos 50:23). Jesus, porém, transcende o louvor de palavras, oferecendo sua vida como o “sacrifício racional” por excelência (cf. Romanos 12:1).

Ao se comparar essas versões originais com as traduções modernas, nota-se que as principais versões em inglês e português buscam representar edoxasa por “I have glorified” (“eu tenho glorificado”), como em ASV, KJV, ESV, ou simplesmente “I glorified” (“Eu glorifiquei”), como em NASB, NET, LEB, mas nem sempre respeitam a natureza prolepticamente aorística do grego. As versões AFV, EMTV, DRB, WEB, GNB, entre outras, seguem o modelo “Eu tenho glorificado” ou suas variantes, enquanto versões mais interpretativas, como a CEV (“I have brought glory to you here on earth” / “Eu trouxe glória a você aqui na terra”). A Vulgata Latina, ego te clarificavi super terram, usa o perfeito ativo latino clarificavi, equivalente ao grego aorístico edoxasa, mas igualmente sujeito à leitura retrospectiva e teológica do texto. Já a versão hebraica (כתר המלך) usa peʾartîḵā, que respeita plenamente a estrutura semântica do grego e transmite a ideia de glorificação histórica completa. A Peshitta também mantém rigor semântico com shabbaḥtek, reforçando que as versões semíticas são, nesse ponto, mais literais e teologicamente afinadas com o texto grego do que algumas versões modernas ocidentais.

O verbo “glorificar” aqui se refere a todo o ministério terreno de Jesus, não apenas à cruz. Ele glorificou o Pai em seus ensinamentos, em sua obediência, em seus milagres, em sua justiça, e agora, às vésperas da cruz, contempla tudo isso como “obra completa”, ainda que a morte vicária não houvesse ocorrido. O paralelo traçado com o clamor de Paulo — “combati o bom combate, acabei a carreira” — mostra que ambos, em seus momentos finais, veem suas vidas como conclusão obediente de um encargo divino. No entanto, em Jesus não há traço de dúvida ou falência; há plena consciência de que a missão fora cumprida conforme a vontade do Pai. A frase “Eu glorifiquei-te na terra” ressoa como um selo sobre todo o ministério terreno, inaugurando o momento da elevação (João 17:5) que completará a restauração de sua glória eterna. A glória do Pai, obscurecida pelo pecado da humanidade na terra, foi restaurada por meio da fidelidade e manifestação de Cristo, o enviado. Glorificar o Pai é, aqui, a definição do próprio propósito da encarnação: tornar visível na carne, por meio de obras, palavras e morte, o esplendor do Deus invisível (cf. João 1:14).

A oração de Jesus em João 17:4a, portanto, não é apenas uma lembrança do passado terreno, mas uma declaração escatológica proferida como profecia em forma de retrospectiva. O aoristo edoxasa, ancorado na certeza da fidelidade cumprida, se torna a base do pedido subsequente — pois aquele que glorificou o Pai na terra, pode agora pedir para ser glorificado no céu. A cláusula “eu te glorifiquei na terra” é o fundamento da teologia da missão cumprida e do Cristo exaltado.

A implicação teológica dessa afirmação é profunda. Ao dizer “Eu glorifiquei-te na terra”, Jesus não reivindica para si honra, mas assume que toda sua atuação foi orientada pela centralidade de Deus. Essa expressão é a antítese do orgulho humano que busca glória própria. Ela reflete a perfeita submissão do Filho ao Pai, já antecipada em João 5:30 (“...porque não busco a minha vontade, mas a vontade do Pai, que me enviou”). João 8:50 reforça: “Eu não busco a minha glória”. Assim, glorificar a Deus é viver orientado para fora de si, em direção à vontade divina — e isso é exatamente o que define a espiritualidade cristã autêntica.

Além disso, essa frase marca o início de uma estrutura quiástica com o versículo seguinte (João 17:5), em que a glorificação realizada “na terra” será contraposta à glorificação que Jesus receberá “junto do Pai”. É uma ascensão da obediência terrestre à exaltação celeste, espelhando a descida do Verbo em João 1:14 e seu retorno ao seio do Pai. Assim, a teologia da glória em João 17:4 é inseparável da teologia da encarnação: só é glorificado aquele que se humilha, e Jesus glorificou a Deus em carne.

Para a teologia prática, isso indica que a verdadeira glorificação de Deus ocorre nas circunstâncias concretas da terra, não apenas em liturgias ou declarações celestiais. Jesus glorificou o Pai na terra — isto é, na pobreza de Nazaré, na incompreensão dos seus, na rejeição dos religiosos, na dor da cruz. E é justamente essa glória paradoxal — glória velada sob fraqueza — que define o cristianismo.

No Novo Testamento, o apóstolo Paulo retoma esse padrão cristológico ao afirmar: “Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus” (1 Coríntios 10:31). E em Filipenses 2:6–11, a humilhação de Cristo é o caminho de sua exaltação, mostrando que a verdadeira glória é inseparável da cruz. João 12:23-24 confirma: “É chegada a hora em que o Filho do Homem há de ser glorificado... Em verdade, vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só...”.

Essa glorificação que Jesus declara já consumada antecipa a glorificação final, pois, na perspectiva joanina, o tempo é frequentemente teológico e não apenas cronológico. Como também sugerem as fontes exegéticas, trata-se de uma declaração prolepticamente escatológica — uma espécie de consummatum est antecipado — que confirma a integridade de sua missão. E por isso, Jesus, em sua oração, tem autoridade para pedir que essa glorificação continue agora em sua exaltação (João 17:5).

João 17:4b ...tendo consumado a obra... (Gr.: to ergon eteleiōsa...  — A expressão “tendo consumado a obra”, em sua formulação grega to ergon eteleiōsa, segue imediatamente a cláusula anterior e funciona como partição explicativa e fundamentadora da glorificação afirmada em egō se edoxasa epi tēs gēs. A estrutura sintática dessa cláusula é composta por um objeto definido to ergon (“a obra”) e o verbo eteleiōsa, primeira pessoa do singular do aoristo ativo do verbo teleioō, que significa “consumar”, “completar”, “levar até o fim”. A frase completa está no indicativo aoristo, mas na sequência lógica da oração ela opera como um particípio de circunstância explicativa, ou seja, aquilo que define ou especifica de que modo Jesus glorificou o Pai: glorificou-o consumando a obra. A forma verbal grega não traz nenhum conectivo explícito como “tendo”, mas a força conjuntiva é inferida pela relação entre as orações. Essa nuance está presente na maioria das traduções, mas como será demonstrado, nem todas mantêm o aspecto verbal com precisão exegética.

Morfologicamente, eteleiōsa é uma forma de aoristo primeiro, ativo, indicativo, singular de teleioō. O aoristo aqui é constativo, representando a totalidade da ação como um fato único e completo. Isso reflete uma visão resumida de todo o trabalho realizado por Cristo em sua missão terrena — um testemunho interno de que nada fora deixado incompleto. Como as fontes críticas salientam, esse aoristo é proléptico, ou seja, descreve por antecipação um evento cuja consumação física ainda estava por se completar (na cruz), mas cuja certeza era tão plena que é tratado como já realizado. Jesus fala como alguém que está espiritualmente situado no fim da missão, contemplando com clareza o cumprimento integral do que lhe fora confiado, assim como o apóstolo Paulo fará mais tarde ao declarar: “combati o bom combate, acabei a carreira...” (2 Timóteo 4:7), ecoando, por analogia, a mesma consciência de missão consumada. No entanto, ao contrário de Paulo, cuja linguagem carrega a tensão do martírio iminente, Jesus expressa sua conclusão com uma serenidade absoluta e uma autoridade escatológica: ele não apenas conclui uma trajetória, mas consuma a própria revelação do Pai na terra. O verbo teleioō, nesse contexto, não significa apenas “terminar uma tarefa”, mas levá-la à plenitude de seu propósito divino — aquilo que foi dado por Deus para ser cumprido até a perfeição. Como observam os comentários exegéticos que você forneceu, esse verbo implica uma ação acabada, sem falhas, e de valor escatológico e salvífico. Em João 4:34, Jesus já havia antecipado que sua “comida” era “fazer a vontade daquele que me enviou e completar [teleiōsō] a sua obra”; agora ele afirma que essa “obra” foi inteiramente consumada.

Etimologicamente, teleioō provém do adjetivo teleios (“completo”, “maduro”, “perfeito”), derivado da raiz telos (τέλος), que significa “fim”, “propósito”, “objetivo”. Assim, o verbo carrega não apenas o sentido de “encerrar”, mas também de “realizar plenamente” o fim para o qual algo foi designado. Isso é crucial, pois Jesus não está apenas dizendo que finalizou um conjunto de ações, mas que cumpriu perfeitamente aquilo que havia sido designado por Deus como obra: não houve lacuna, atraso ou falência. O termo grego traduzido por “obra”, to ergon, tem igualmente peso teológico. Trata-se de um substantivo neutro, no singular, com o artigo definido to, indicando uma missão específica. Ergon significa “trabalho”, “tarefa”, “obra”, e nesse caso não é uma referência vaga, mas a designação da missão singular de Cristo — todo o seu ministério de ensino, revelação, mediação, obediência, poder, entrega e glorificação do Pai. As fontes que você enviou são unânimes: to ergon não se restringe a um aspecto da missão de Jesus (como seus milagres, ou sua morte), mas engloba a totalidade da sua obediência ativa e passiva. Como bem apontado, essa obra inclui desde os seus atos e palavras até o sacrifício redentor, entendido aqui em antecipação como já realizado. A consumação da obra é, portanto, o ponto alto da glorificação de Deus por meio do Filho: a manifestação perfeita de sua justiça, amor e vontade.

O testemunho das versões bíblicas confirma esse entendimento, embora com variações formais. A maioria das traduções em inglês e português opta por expressar eteleiōsa com tempos compostos: “I have finished” (“tenho terminado”, AFV, ASV, ESV, BSB, DRB, EMTV, Geneva, NET, LITV, TLV, WEB, WEBA), ou “I have completed” (“tenho completado” ISV, LSV, Williams), que aproximam o aoristo grego do pretérito perfeito do inglês — um tempo que, embora formalmente não capture o proleptismo do aoristo, ainda assim tenta manter a ideia de conclusão plena. Algumas versões, como a Darby (“I have completed the work” / “tenho completado a obra”), Weymouth (“having done perfectly the work” / “tendo feito perfeitamente a obra”), e GNB (“I have shown your glory... I have finished the work” / “Mostrei tua glória... terminei tua obra”), explicitam mais a ideia de conclusão exata. A versão TPT (“by faithfully doing everything you’ve told me to do” / “por fielmente fazer toda as coisas que você me disse para fazer”) é, porém, interpretativa, e extrapola ao ponto de reduzir a afirmação a um tom moralista e subjetivo, perdendo a força escatológica e objetiva da consumação. A CEV também suaviza o sentido ao dizer “by doing everything you gave me to do”, omitindo o impacto do verbo “consumar”. A Vulgata latina traduz: opus consummavi, utilizando o perfeito ativo do verbo consummare, que transmite com exatidão o sentido de teleioō: levar algo ao seu fim pleno, à sua maturação final. A tradução hebraica (Delitzsch) traz məlakhtəkā kīlîtî, do verbo kālāh (כָּלָה), aqui conjugado no perfeito qal com sufixo de 2ª pessoa: “consumi [tua] obra”. Esse verbo hebraico tem o mesmo campo semântico de teleioō, pois significa “completar”, “concluir”, “trazer a fim”. A força do hebraico bíblico reforça ainda mais a ideia de consumação como encerramento pleno e objetivo. Já na Peshitta, o verbo usado é shlām (ܫܠܡ), forma perfeita do verbo aramaico que designa tanto “completar” quanto “trazer à paz” — revelando a rica polissemia semita entre término e reconciliação. Shlāmteh (ܫܠܡܬܗ) é a forma verbal com sufixo de terceira pessoa masculina singular, indicando “terminei-a” ou “consumi-a”, referindo-se à obra.

A obra consumada não se refere apenas ao que Jesus realizou até aquele momento (ensino, milagres, discipulado), mas inclui também, de modo antecipado, sua paixão e morte. Mesmo que o “consummatum est” de João 19:30 ainda não tenha sido verbalizado na cruz, ele já está encapsulado em eteleiōsa. A frase possui, portanto, um valor sacrificial e sacerdotal: a missão está completa, a obra do Cordeiro está selada na obediência até à morte, mesmo que essa morte ainda precise ser fisicamente atravessada. Como bem observam os teólogos citados, a consumação é de natureza ativa e não meramente passiva: Jesus não é vítima, mas oferente; não apenas sofre, mas realiza. Sua morte é a coroação de uma vida inteira de obediência ao Pai, sendo esta a razão por que ele pode afirmar — já aqui, antes da cruz — que “a obra” foi consumada. A consumação, assim, não é um episódio isolado, mas o clímax de toda uma encarnação vivida sob o selo da missão divina.

Portanto, a declaração “tendo consumado a obra” (to ergon eteleiōsa) é o fundamento objetivo da oração que antecede e prepara a doxologia vindoura do versículo 5. A glória do Filho, a ser restaurada na eternidade, não é pedida como um direito arbitrário, mas como consequência de uma missão perfeitamente executada. Essa cláusula encarna, em forma verbal e teológica, a plenitude da fidelidade de Cristo: uma obra que começou na eternidade com o envio do Filho e que, agora, está prestes a ser selada com sangue, mas já consumada em espírito.

João 17:4c ...que me deste a fazer. (Gr.: ...ho dedōkas moi hina poiēsō. — Na sequência final do versículo, a cláusula ho dedōkas moi hina poiēsō expressa com precisão o caráter dado e comissionado da missão de Cristo. A construção começa com o pronome relativo ho (“o qual” ou “que”), referindo-se de forma anafórica a to ergon (“a obra”), retomando com clareza que a ação consumada por Cristo não tem origem em sua própria vontade, mas é resultado de uma doação e comissão direta do Pai. O verbo dedōkas é a forma perfeita ativa de didōmi (“dar”), segunda pessoa do singular: “tu tens dado”. O uso do perfeito aqui, diferentemente do aoristo usado anteriormente (edoxasa, eteleiōsa), indica uma ação completada com efeitos permanentes — uma dádiva que permanece válida no presente. Como indicam os comentaristas que você enviou, esse uso do perfeito é recorrente em João sempre que Jesus fala daquilo que recebeu do Pai como parte permanente de sua missão (cf. João 3:35; 6:37, 39; 17:6, 8, 24), em oposição ao aoristo edōkas (“deste”), que aparece em manuscritos secundários e é considerado uma variante menos precisa nesse contexto. Portanto, dedōkas enfatiza a permanência da autoridade e do encargo: o Pai continua sendo aquele que confiou a obra ao Filho, e essa confiança é plena e irreversível.

O pronome dativo moi (“a mim”) reforça a pessoalidade e exclusividade dessa designação: não se trata de uma missão genérica atribuída a um representante qualquer, mas de um encargo individual, messiânico, pertencente exclusivamente ao Verbo encarnado. É missão divina dirigida ao Filho unigênito, aquele que, segundo João 3:34, “fala as palavras de Deus, pois Deus não lhe dá o Espírito por medida”.

A partícula hina, que segue o verbo dedōkas, é de importância teológica e sintática. Comum no grego joanino, ela pode indicar finalidade (“a fim de que”) ou substituir um infinitivo verbal de ação (“para que eu fizesse”). Ambas as leituras são semanticamente válidas, mas o contexto favorece uma leitura telológica: a obra foi dada com o propósito expresso de que fosse realizada, não apenas como possibilidade, mas como missão a ser cumprida com obediência até o fim. A forma verbal poiēsō, aoristo do subjuntivo ativo de poieō (“fazer”, “executar”), expressa exatamente essa finalidade. É ação ainda situada no tempo da missão, mas cuja realização está assegurada. O subjuntivo aorístico aqui não expressa incerteza, mas intensidade de propósito e obediência determinada.

As versões comparadas que você enviou refletem bem essa estrutura, embora algumas simplifiquem a construção. A maioria das versões em inglês e português traduz ho dedōkas moi hina poiēsō como “which you gave me to do” (“que tu me destes para fazer”, ASV, ESV, DRB, EMTV, KJV, NET, TLV, etc.) ou “que me deste para fazer” (ARC, NVT). A Vulgata traz: quod dedisti mihi ut faciam, traduzindo hina poiēsō como ut faciam, mantendo a ideia de propósito com o subjuntivo latino. A versão hebraica de Delitzsch apresenta ʾăšer ṣviyyitānî laʿăśōt — literalmente, “que me ordenaste fazer”, usando o verbo ṣāvāh (צִוָּה), “ordenar”, no perfeito piel com sufixo de primeira pessoa, e o infinitivo laʿăśōt (“fazer”). Essa escolha lexical é extremamente significativa, pois traduz didōmi não como simples “dar”, mas como “comandar”, reforçando o peso legal e teológico da missão messiânica como encargo irrevogável. Já a Peshitta traduz com haw d-yahbat lī d-eʿbād, ou seja, “aquela [obra] que me deste para que eu fizesse”, com dois verbos complementares: yahbat (forma do verbo “dar”) e eʿbād (do aramaico ʿbd, “fazer”, cognato do hebraico ʿāśāh).

Do ponto de vista teológico, essa parte do versículo reafirma a doutrina joanina da obediência do Filho. A missão de Cristo não é autogerada, nem interpretativa, mas fiel ao que lhe foi dado fazer. Como ressaltam os comentários que você forneceu, o foco aqui não é apenas na conclusão da obra, mas na sua natureza como “obra dada”. Jesus não reivindica autonomia criativa em sua missão, mas glória no cumprimento exato do que o Pai lhe confiou. Isso exclui qualquer visão funcionalista ou fragmentária da encarnação: o que foi “dado a fazer” inclui tanto seu ensino quanto sua entrega sacrificial, desde o “Eis-me aqui” do princípio até o “Está consumado” do fim. Ele glorifica o Pai justamente porque nada fez por si mesmo (João 5:30), mas tudo conforme lhe foi dado. Assim, o peso da cláusula final repousa na fidelidade ativa de Jesus, que recebe, guarda e executa — a glória não está apenas no resultado da missão, mas na submissão ininterrupta à vontade do Pai.

João 17:5a E, agora, glorifica-me tu, ó Pai... (Gr.: kai nyn doxason me sy, pater... — A cláusula inicial do versículo 5 de João 17 representa um dos ápices mais solenes da oração sacerdotal. A súplica do Filho, “E, agora, glorifica-me tu, ó Pai...”, é carregada de significação ontológica, escatológica e redentora. A morfologia, a ordem dos termos e os paralelismos internos com João 17:1 e 17:4 produzem uma unidade simétrica e teológica de altíssimo alcance, refletida com precisão nos comentários e versões enviados.

O advérbio nyn (“agora”), logo após a conjunção coordenativa kai (“e”), situa o pedido num tempo liminar: o momento em que a obra terrena já está consumada (to ergon eteleiōsa, v. 4) e inicia-se a súplica pela reentronização gloriosa. Os comentaristas ressaltam que esse nyn não é simplesmente uma partícula temporal, mas um marcador escatológico, indicando o ponto exato da transição da missão encarnada para a glorificação exaltada. Como indicam os expositores que você forneceu, “νῦν—the very point of time has come” — a consumação da obediência torna legítimo o pedido por exaltação.

A forma verbal doxason é o aoristo ativo imperativo de segunda pessoa singular do verbo doxazō, com o sentido claro de “glorificar”, “dar honra”, “revestir de esplendor”. Trata-se de um pedido que, embora expresso com o imperativo, não comunica exigência ou coação, mas profunda submissão confiante e íntima — uma petição própria de quem compartilha da mesma natureza com o Pai. O uso do aoristo, como já observado em João 17:1 (doxason sou ton huion), expressa não um processo contínuo ou uma expectativa futura genérica, mas uma ação total, completa, concentrada: Jesus pede que a glorificação ocorra como evento pleno, não como processo progressivo.

O pronome me (“a mim”) vem imediatamente após o verbo, mas antecede o sujeito enfático sy (“tu”), formando uma inversão carregada de ênfase: doxason me sy, pater — “glorifica-me tu, ó Pai”. Como ressaltam Meyer, Bengel, e outros comentadores que você forneceu, essa colocação é profundamente significativa. Ela ecoa a estrutura de João 17:4, onde se lê egō se edoxasa epi tēs gēs (“eu te glorifiquei na terra”); aqui, a oração retoma o paralelismo perfeito com sy me doxason para seautō. A simetria entre egō se e sy me expressa não apenas reciprocidade, mas unidade funcional e ontológica. Aquele que glorificou o Pai na terra é agora aquele que pede ser glorificado pelo Pai no céu — uma glorificação não exigida por mérito, mas por identidade eterna.

O vocativo pater (“Pai”), colocado ao final da cláusula, carrega toda a carga relacional da oração. Não é um apelo de súdito a soberano, mas de Filho unigênito ao Pai eterno. A posição do vocativo após o sujeito enfático (sy) reforça a pessoalidade da súplica: “tu, ó Pai, glorifica-me”. Como observam os comentários teológicos que você enviou, trata-se de uma declaração que aponta para a indivisível comunhão entre o Pai e o Filho, evidenciada também por expressões como para seautō (“junto a ti”) e ē eichon pro tou ton kosmon einai (“que eu tinha antes de o mundo existir”), que compõem as cláusulas seguintes e que serão tratadas separadamente.

A versão siríaca da Peshitta ecoa essa estrutura com exatidão: wehshā shabbaḥīnī ānt ʾabī. O advérbio wehshā corresponde a kai nyn (“e agora”), enquanto shabbaḥīnī é a forma imperativa do verbo šbaḥ (ܫܒܚ), “glorificar”, conjugado com sufixo pronominal de primeira pessoa (“-īnī” = “a mim”). A presença do pronome independente ānt (ܐܢܬ), “tu”, em seguida ao verbo, forma a mesma estrutura enfática da frase grega: shabbaḥīnī ānt = “glorifica-me tu”. O vocativo final ʾabī (ܐܒܝ, “meu Pai”) intensifica a relação pessoal e íntima do pedido. Os comentaristas indicam que esse paralelismo estrito entre o grego e o siríaco mostra a antiguidade e autenticidade da consciência pré-encarnada de Jesus, pois até mesmo o verbo siríaco usado supõe uma restauração de estado anterior, não uma glorificação inédita.

A versão hebraica de Delitzsch reforça a mesma estrutura: veʿattā peʾērēnī attā ʾāvî. Aqui, o advérbio veʿattā (“e agora”) une-se ao verbo peʾērēnī (“glorifica-me”), forma piel imperativa de pāʾar com sufixo de primeira pessoa. A presença de attā (“tu”) após o verbo repete a mesma ênfase do grego e do siríaco, e o vocativo ʾāvî (“meu Pai”) repete, mais uma vez, o vínculo de filiação e confiança. Essas versões semíticas confirmam o aspecto relacional e não meramente funcional do pedido: Jesus pede ser glorificado por aquele com quem Ele sempre esteve.

A vasta maioria das versões bíblicas modernas reflete com fidelidade o conteúdo verbal dessa cláusula. A estrutura “E agora, Pai, glorifica-me” ou “Agora, ó Pai, dá-me glória” aparece em ASV, ESV, KJV, NET, TLV, WEB, WEBA, entre outras. Algumas versões, como a TPT (“restore me back to the glory...” / “me restaura de volta à glória”) e a CEV (“give me back the glory...” / “me devolve a glória”), optam por uma formulação interpretativa, que embora legitime a ideia da recuperação da glória pré-encarnada, suaviza o impacto do verbo imperativo. A Vulgata, por sua vez, traz et nunc clarifica me tu, Pater, mantendo a ordem original: clarifica (imperativo de clarificare), me, tu, Pater. A ordem enfática latina respeita a estrutura grega original, evidenciando a prioridade e autoridade do Pai no ato da glorificação, mas também reconhecendo que é um retorno à glória eterna, não um novo privilégio.

No fluxo solene e teológico da oração de João 17, a súplica de Jesus “glorifica-me tu, ó Pai” assume uma densidade que nenhuma súplica humana jamais poderia conter. O pedido de glorificação é, em si mesmo, uma confissão de divindade. Em toda a Escritura hebraica, Yahweh jamais glorifica um ser humano com a Sua própria glória. Ele honra, exalta, coroa, recompensa — mas glorificar, no sentido da kavod divina, é um verbo reservado à Sua própria natureza. Este ato de glorificar, portanto, só pode ser corretamente compreendido se compreendermos que Aquele que o pede não é criatura, mas o próprio Verbo que “estava com Deus” e que “era Deus” (João 1:1).

A teologia do Antigo Testamento afirma com vigor que a glória de Deus não pode ser compartilhada com nenhuma outra entidade, seja ela divina ou humana. Isaías 42:8 é categórico: “Eu sou o Senhor; este é o meu nome! A minha glória não a darei a outrem”. E Isaías 48:11 repete: “... a minha glória não a darei a outrem.” A glória, portanto, é intransferível, pois é expressão da própria santidade, majestade e exclusividade ontológica de Yahweh. O termo hebraico kavod (כָּבוֹד) denota o “peso” da presença divina — é o esplendor essencial de quem Deus é. Nada mais se aproxima disso. Nenhum ser humano no Antigo Testamento jamais recebe essa glória. Mesmo Moisés, ao descer do Sinai com o rosto resplandecente (Êxodo 34:29), apenas refletia a glória divina; ele não foi “glorificado” no sentido de receber a kavod divina como posse própria.    

Assim, quando Jesus ora pedindo ao Pai que o glorifique, Ele não está solicitando um favor, mas reclamando o que Lhe pertence por direito eterno. Ele está reivindicando aquilo que Isaías afirma ser exclusivo de Yahweh. A linguagem aqui é radical. Ele não pede apenas honra (tif’eret), nem apenas esplendor (hadar), mas GLÓRIA. E pede para ser glorificado por Deus mesmo: “glorifica-me TU, ó Pai”. O pronome enfático revela que esse ato de glorificação não é delegado a anjos, profetas ou quaisquer intermediários. Vem do próprio Pai, como testemunho de que o Filho é da mesma substância — “Deus de Deus, Luz de Luz”, como mais tarde confessaria a igreja.

Quando comparamos essa oração com os usos do termo “glória” na tradição veterotestamentária, vemos que seres humanos podem “receber” glória de Deus (kabod) em sentido derivado — como em Salmos 8:5: “Tu o fizeste... de glória e de honra o coroaste” —, mas mesmo aí a glória é um reflexo, não uma essência. A glória que reveste o ser humano é funcional, é simbólica, é uma honra real, mas não é a glória que pertence a Deus em sua ontologia. Prova disso é Provérbios 3:35: “Os sábios herdarão a glória...” — aqui, a glória é fruto de sabedoria, um dom ético-espiritual, e não uma natureza intrínseca ou uma glória ontológica partilhada por Yahweh.

No entanto, em João 17:5, Jesus fala não apenas de glorificação futura, mas do retorno àquela glória que já Lhe pertencia antes da fundação do mundo (17:5c). Esse aspecto será analisado a seguir, mas já aqui, no “glorifica-me tu, ó Pai”, o caráter radical do pedido revela que Jesus se distingue absolutamente de qualquer figura humana do Antigo Testamento. Ninguém em Israel jamais ousaria pedir a Deus que o “glorificasse”. Até mesmo os reis mais fiéis — Davi, Ezequias, Josias — pediam bênçãos, salvação, auxílio, luz... mas não glória. E quando reis se exaltavam com glória própria — como Nabucodonosor (Daniel 4:30-31) — Deus os abatia. Em contraste, Jesus não é rebaixado por fazer tal pedido: Ele é ouvido. E isso demonstra Sua filiação divina.

João 12:23–28 confirma essa interpretação. Jesus diz: “É chegada a hora em que o Filho do Homem há de ser glorificado” — e pouco depois, uma voz do céu (v. 28) responde à oração de glorificação: “Já o glorifiquei e ainda o glorificarei.” A linguagem aqui não é ambígua: glorificação no Evangelho de João não é apenas exaltação moral ou honra profética. É a manifestação da natureza gloriosa do Verbo, no contexto de sua crucificação, ressurreição e ascensão. João entende a cruz como trono, não como vergonha — e nela, o Pai glorifica o Filho (João 13:31–32).

Por fim, Filipenses 2:9–11 fornece o testemunho paulino de que esta glorificação é a mais elevada possível: “Deus o exaltou sobremaneira...” — no grego, hyperypsōsen, expressão reservada à mais alta exaltação, conectada ao fato de que “ao nome de Jesus se dobre todo joelho...” e “toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor”. Não é uma glória que o distingue entre os profetas; é uma glória que o coloca acima de todo nome e provoca adoração universal — algo que jamais seria dado a um ser criado, sob pena de violar Isaías 42:8.

Portanto, o pedido “glorifica-me tu, ó Pai” é a prova mais clara de que Jesus sabia ser da mesma essência do Pai. Ele não pede algo impróprio. Pede a manifestação da glória eterna que já Lhe pertencia. Ao contrário de todas as figuras humanas do Antigo Testamento, que recebiam honra, mas jamais glória divina, Jesus ora como quem é Filho eterno, coigual, consubstancial. O Pai não apenas o exalta como Senhor — Ele o glorifica com a própria glória. E o faz não como transgressão de Isaías 42:8, mas como cumprimento dele: se a glória de Yahweh não é dada a outrem, então Jesus só pode ser Yahweh com o Pai.

A teologia envolvida nesse pedido é central na cristologia joanina. Como apontam os teólogos desde o início do cristianismo, a glória pedida por Cristo não é criação nova, nem recompensa, mas retorno — uma restauração da glória que Ele já possuía junto ao Pai antes da fundação do mundo. Essa glória não é a glória da natureza divina em abstrato (pois esta jamais deixou de estar nele: en autō katoikei pan to plērōma tēs theotētos sōmatikōs, Colossenses 2:9), mas a glória da manifestação plena — o resplendor ilimitado da majestade que, durante a encarnação, estivera velado na forma de servo (Filipenses 2:7). A glória visível aos discípulos (João 1:14) era real, mas limitada, sujeita à carne e ao sofrimento. O que Jesus ora por recuperar é a glória do logos asarkos, da preexistência divina junto ao Pai, agora enriquecida com a obediência até a morte.

Como observam Lange, Tholuck, e os demais comentaristas consultados, essa oração não é apenas uma petição por retorno à majestade divina, mas uma integração da natureza humana redentora nessa glorificação — uma elevação do “Filho do homem” à posição que o “Filho eterno” sempre possuiu. A glória pedida inclui a cruz, mas vai além da cruz; inclui a ressurreição, mas vai além dela; culmina na ascensão e entronização — uma glorificação “junto ao Pai”, como será abordado na próxima parte da análise.

Portanto, a expressão “kai nyn doxason me sy, pater” não pode ser reduzida a um simples pedido de recompensa. Trata-se do ponto culminante da obediência do Verbo encarnado, que agora pede não um novo status, mas a restauração plena e ontológica de sua glória eterna, em comunhão viva e indivisível com o Pai. Esse clamor antecede e prepara a revelação posterior: que essa glória há de ser compartilhada com os seus (João 17:22), mas só o pode ser porque pertence originalmente a Ele.

João 17:5b ...junto de ti mesmo,... (Gr.: ...para seautō... — A expressão “...junto de ti mesmo...”, em sua concisão, encerra uma das mais altas declarações cristológicas do Novo Testamento. A preposição para (παρά), acompanhada do pronome reflexivo seautō (σεαυτῷ, dativo singular masculino de segunda pessoa), comunica mais do que mera localidade: ela exprime proximidade relacional absoluta e comunhão essencial, conforme as fontes exegéticas e teológicas fornecidas destacam com ênfase e precisão.

Do ponto de vista morfológico, para seautō é uma locução preposicional em que a preposição para governa um substantivo no dativo, indicando em seu uso literal “ao lado de”, “junto a”, mas que, nas Escrituras, especialmente no grego joanino, frequentemente carrega sentidos mais densos de convivência, coabitação, coinonia íntima e presença compartilhada em um mesmo nível ontológico. O uso do reflexivo seautō (“de ti mesmo”) em vez de um simples pronome dativo (soi, “a ti”) reforça a ênfase de pessoalidade e exclusividade: Jesus não pede estar meramente “perto de Deus”, mas “junto de ti mesmo”, ou seja, em união inseparável com a própria essência do Pai.

Essa preposição pará (παρά), quando usada em referência a relações entre pessoas divinas no Evangelho de João, adquire um significado altamente técnico e teológico. Como explicitado nos comentários recebidos, παρὰ σεαυτῷ (para seautō) corresponde ao πρὸς τὸν θεόν (pros tón theón) de João 1:1 (“e o Verbo estava com Deus”) e ao εἰς τὸν κόλπον τοῦ πατρός (eis tón kólpon toû patrós) de João 1:18 (“no seio do Pai”), expressões que indicam não só proximidade espacial, mas unidade de relação, intimidade eterna e comunhão substancial. O termo παρὰ denota a mais íntima aproximação e igualdade com distinção individual — ou seja, indica simultaneamente união e distinção de pessoas. É por isso que diversos intérpretes rejeitam qualquer leitura idealista ou meramente representacional desse “junto de ti mesmo”, como fizeram Grotius e os socinianos, que tentaram esvaziar seu sentido ontológico ao reduzi-lo à ideia de uma “destinação divina” ou de um “plano celeste” predeterminado no pensamento de Deus.

Em absoluta oposição a essas leituras, os comentários afirmam que essa cláusula aponta para a realidade pré-encarnada do Filho, que existia junto ao Pai em glória essencial. A preposição para, nesse contexto, é relacionalmente equivalente ao “com” que aparece em João 1:1 (pros ton theon), mas aqui intensificada pelo reflexivo seautō, que não tem paralelo em João 1:1 e serve para delimitar que se trata da glória que pertence à própria essência divina — não uma glória derivada ou atribuída, mas a mesma glória partilhada na unidade do ser. Isto não é apenas uma pré-existência ideal, mas uma existência real e consciente ao lado do Pai (para soi, contigo)...”. E como sintetiza o argumento mais técnico de Meyer: “A mesma Pessoa (ἐγώ) que teve glória com o Pai diante do mundo, também glorificou o Pai no mundo, e ora para ser novamente recebida nessa glória.” Há aqui, portanto, um eixo contínuo: pré-existência → kenosis → glorificação → retorno ao estado anterior — o que é reforçado pela teologia paulina em Filipenses 2:6–11.

A tradução siríaca da Peshitta, lawṯaḵ (ܠܘܬܟ), reproduz com perfeição essa intimidade. O termo lawṯaḵ deriva da preposição lawṯ (ܠܘܬ), que é mais do que simplesmente “com” (como ʿem, ܥܡ); ela denota “junto de”, “na companhia de”, “ao lado de” com sentido altamente pessoal e afetivo. O sufixo -aḵ indica “de ti”, correspondendo ao grego seautō. No siríaco, lawṯaḵ é a mesma preposição usada em João 1:1 (melṯā hawā lawṯ alāhā) e indica coexistência real e concreta. Essa simetria textual com João 1:1 é teologicamente decisiva: o mesmo “junto de Deus” com que o Verbo é descrito na eternidade é o “junto de ti mesmo” a que Jesus pede para retornar. A oração sacerdotal, assim, faz um arco que une a encarnação ao prólogo, evidenciando a identidade pessoal do Verbo que se fez carne e agora clama para reassumir o estado que nunca cessou de ser seu por direito.

O hebraico da versão de Delitzsch emprega ʿimməḵā (עִמְּךָ), preposição hebraica tradicional para “com” ou “junto de”. Embora menos técnica que lawṯaḵ, a expressão ʿimməḵā já era usada no Antigo Testamento para indicar convivência sagrada e presença diante de Deus (cf. Salmos 16:11: “delícias perpetuamente à tua direita”). Mesmo sem a marca reflexiva, o uso da preposição ʿim com sufixo pronominal de segunda pessoa masculina comunica bem o sentido do grego. No entanto, a ausência do equivalente de seautō indica que o hebraico, embora correto, não reflete o grau de intensidade ontológica presente no grego original e no siríaco — razão pela qual o grego joanino continua insuperável em precisão teológica.

As versões bíblicas modernas traduzem essa parte de forma bastante variada. A maioria segue com “com o teu próprio ser”, “na tua presença” ou “ao teu lado”, mas as nuances teológicas e gramaticais revelam diferenças relevantes. Por exemplo:

A ESV e a ESV+ optam por “in your own presence” (“em tua própria presença”), expressão que tenta comunicar a presença plena, mas substitui a reflexividade explícita de para seautō por uma construção mais espacial. A ausência do pronome reflexivo enfraquece o aspecto ontológico da comunhão eterna expressa no original grego.

A BSB, GW, ISV, Williams, WEB e WEBA também adotam “in Your presence” (“em Tua presença”), o que é semanticamente correto, mas estilisticamente menos exato, pois omite o aspecto reflexivo e recíproco contido em seautō (“ti mesmo”). Essa forma pode ser lida como uma localização em torno de Deus, e não necessariamente junto ao próprio ser divino.

As versões NET, LEB e LITV usam “at your side” (“ao teu lado”) ou “alongside Yourself” (EMTV, “ao Teu lado”). Aqui há uma tentativa de traduzir o grego para com mais literalidade espacial — “ao lado de ti” — o que é positivo no aspecto relacional, mas ainda assim não expressa integralmente o componente reflexivo. Mesmo a forma “with Yourself” (Contigo) usada por EMTV e LITV é mais fiel, mas ainda perde o peso do pronome intensivo.

Versões como a KJV, DRB, RV, MKJV, Webster, JUB, Darby, Geneva, NENT e AFV preservam com mais clareza a estrutura do original ao dizerem “with thyself” (“convosco”) ou “with yourself” (“contigo”). Essa tradução, embora simples, é notavelmente mais próxima do grego para seautō do que as opções com “in your presence” (“em sua presença”), pois conserva o valor reflexivo da construção. A forma “with thyself” (“convosco”, como em KJV, DRB, Geneva) indica um “junto a ti mesmo”, e não apenas um “com Deus” genérico. Entre essas, a AFV diz: “with Your own self” (“Contigo mesmo”), o que é ainda mais fiel, pois torna explícito o pronome reflexivo.

A versão TPT (“the Passion Translation”) é a que mais se afasta do texto fonte, ao dizer: “restore me back to the glory that we shared together when we were face-to-face before the universe was created” (“restaura-me de volta à glória que compartilhamos quando estávamos cara a cara antes da criação do universo”). Essa formulação introduz conceitos ausentes no grego, como “face a face” e “compartilhávamos juntos”, e reformula o versículo com liberdade interpretativa inadequada ao rigor exegético. Não traduz para seautō, mas o substitui por paráfrases emotivas.

A versão CEV traz: “...that I had with you” (“que eu tinha contigo”), omitindo completamente qualquer referência a “junto a ti mesmo”. É uma tradução mínima, sem marcas reflexivas ou espaciais explícitas. O mesmo ocorre na GNB: “in your presence now” (“na sua presença agora”), novamente sem reflexividade nem construção dativa de comunhão ontológica.

As versões NTLH e NVT, em português, dizem respectivamente: “dá-me na tua presença a mesma grandeza divina...” (NTLH) e “leva-me para junto de ti...” (NVT). A NVT, ao dizer “para junto de ti”, tenta reproduzir para seautō com boa adequação semântica, mas não explicita o pronome reflexivo. Todas são mais semelhantes à paráfrase do que tradução. Já a NTLH, ao usar “na tua presença”, cai na mesma limitação observada nas traduções em inglês: presença sim, mas sem reflexividade de comunhão essencial.

A versão TLC diz: “together with Yourself” (“junto Contigo mesmo”), o que, como na EMTV e AFV, tenta manter o sentido relacional com certo grau de precisão. Embora não haja termo reflexivo explícito, o uso de “together with” (“junto com”) expressa a união sem perda da pessoalidade do Pai e do Filho.

A Vulgata Latina, com apud temet ipsum, oferece uma das traduções mais literais e teologicamente profundas: temet ipsum é a forma intensiva reflexiva latina de segunda pessoa — mais forte que te ipsum — exatamente equivalente ao grego seautō. A preposição apud denota presença estável e relacional. Assim, apud temet ipsum traduz com rara precisão: “junto de ti mesmo”, comunicando simultaneamente presença, comunhão e identidade substancial.

As versões Cepher, HRB, LSV, UASV+ e TLV reproduzem a ideia com: “with Your own self” (“Contigo mesmo”) ou “together with Yourself” (“junto Contigo”), que mantêm razoável fidelidade ao grego, mas não explicitam a estrutura reflexiva com a mesma força da Vulgata ou da KJV.

Por fim, a versão hebraica (כתר המלך), ao dizer ʿimməḵā, e a Peshitta siríaca, com lawṯaḵ, mantêm corretamente o valor semântico de proximidade, mas só a versão siríaca carrega o mesmo valor enfático reflexivo do grego. O termo lawṯaḵ é de uso restrito e técnico em aramaico e preserva o mesmo “junto de ti mesmo”, como em João 1:1. Já o hebraico ʿimməḵā se aproxima de uma convivência sagrada, mas não contém o mesmo nível de reflexividade interna de seautō.

Em conclusão, a versão da ARC com “junto de ti mesmo” preserva com exatidão a intenção do grego para seautō: não apenas estar com o Pai, mas junto do seu próprio ser, participando novamente da glória eterna do Verbo. Entre as traduções modernas, aquelas que reproduzem “with Yourself” (“Contigo”), “with Your own self” (“Contigo mesmo”), ou “apud temet ipsum” são as que mais se aproximam do sentido original. As traduções com “in your presence” (“em tua presença”) ou “at your side” (“ao teu lado”), embora corretas em nível superficial, não capturam o coração da expressão joanina, que é relacional, reflexiva, ontológica e eterna.

Do ponto de vista teológico, os comentários que você forneceu são inequívocos: para seautō representa uma restauração da plena glória e comunhão do Verbo com o Pai. Isso inclui — mas não se limita a — localidade. É relação, não apenas presença. É intimidade ontológica, não apenas convivência. Como destaca Lange, ao contrário da glória limitada e velada que Jesus manifestou durante a encarnação (João 1:14), Ele ora agora pelo retorno àquela glória “em sua forma não velada, não limitada”, anterior à criação, e profundamente participativa da majestade divina. Não se trata de um novo privilégio ou de mera manifestação externa; é um pedido por ser reintegrado, como Deus-Homem, naquilo que já possuía como Verbo eterno.

Assim, a expressão “para seautō” (“junto de ti mesmo”) é uma das mais profundas afirmações da divindade de Cristo em toda a Escritura. Ela fundamenta-se na pré-existência eterna (cf. João 1:1), rejeita qualquer redução idealista (como a “destinação divina” de Grotius), e estabelece a continuidade entre o Verbo pré-encarnado e o Jesus exaltado. O Filho pede retorno ao lugar de onde veio — não como mera memória, mas como direito eterno. E essa glorificação, pedida em João 17:5a, só pode ser verdadeira e escatológica se for para seautō — junto do Pai, em comunhão eterna, na glória que transcende a criação e os séculos.

João 17:5c …antes que o mundo existisse. (Gr.: pro tou ton kosmon einai — A construção grega pro tou ton kosmon einai apresenta uma locução preposicional com estrutura característica de oração infinitiva com genitivo de artigo definido, típica do grego joanino. A preposição pro (“antes”) é seguida do artigo neutro singular genitivo tou, o qual não determina um substantivo, mas sim um infinitivo verbal — neste caso, einai (“ser”, “existir”), que funciona como substantivo verbal na forma do infinitivo presente. O complemento direto do infinitivo é ton kosmon (“o mundo”), no acusativo, regido pelo infinitivo.

Esta estrutura — pro tou einai ton kosmon — é uma das formas clássicas de expressar anterioridade temporal com uma ação verbal no infinitivo, sendo bem atestada no grego koiné e nas formulações prototeológicas da tradição cristã. A inversão da ordem (ton kosmon intercalado entre o artigo e o verbo) é uma variação estilística aceitável e idiomática que não altera o sentido lógico da expressão. Assim, a cláusula comunica que a posse da glória precede a existência do mundo de maneira ontológica e temporal, ou seja, não apenas que Cristo possuía glória antes da criação, mas que essa posse antecede a totalidade do kosmos enquanto ordem criada.

O substantivo kosmos, embora amplamente polissêmico em João (designando ora o sistema humano de incredulidade, ora a criação física, ora o palco do drama redentivo), aqui é tomado claramente no sentido cosmológico e temporal: o “mundo” enquanto ordem criada no tempo. O infinitivo einai reforça a ideia de existência ontológica, e não de mera aparição histórica. Trata-se de um einai absoluto — “ser” como realidade existencial autônoma — e, assim, a cláusula implica que Jesus já possuía glória com o Pai antes de qualquer contingência criada emergir.

Do ponto de vista exegético, essa cláusula constitui uma das mais explícitas declarações de pré-existência de Cristo em todo o Evangelho de João, em paralelo direto com João 1:1 (“en archē ēn ho Logos”), onde o Logos já estava “no princípio”. Aqui, no entanto, o foco recai na glória compartilhada, implicando uma co-glorificação eterna que transcende o tempo. A escolha do infinitivo presente einai, ao invés de um aoristo como genesthai, reforça a ideia de existência contínua — não de um evento pontual de criação, mas de uma realidade permanente. Esse uso é teologicamente denso, pois opõe a glória eterna de Cristo ao mundo transitório.

Nos paralelos siríaco e hebraico, essa dimensão é mantida. A Peshitta traz qodam d’nehwē ‘alma, onde qodam (“antes”) corresponde diretamente a pro; nehwē, do verbo hwā (“ser”), aparece no jussivo (implicando ser/futuro/possibilidade), mas no contexto temporal, carrega o mesmo valor do infinitivo grego einai; ‘alma é a palavra padrão para “mundo”, denotando criação ou era presente. A versão hebraica apresenta terem shehayah ha-olam, onde terem é um adverbial de tempo (“antes que”), shehayah (“que era”) é a conjugação do verbo hayah (“ser”), e ha-olam é a transliteração do termo bíblico clássico para mundo ou eternidade criada. Já na Vulgata, antequam mundus esset conserva perfeitamente a estrutura e o conteúdo do grego: antequam (“antes que”) com o subjuntivo imperfeito esset (“fosse”) traduzem adequadamente pro tou einai.

Todas as traduções que você enviou convergem em reconhecer a dimensão pré-temporal da glória do Filho, expressa na cláusula final de João 17:5: “…antes que o mundo existisse.”. A maior parte das versões permanece fiel à estrutura original pro tou ton kosmon einai, traduzindo com rigor o elemento de anterioridade absoluta. A fórmula “antes que o mundo existisse” ocorre literalmente e sem variações em ABP, ASV, BSB, BLB, NASB, DRB, YLT, KJV, GNV, e Geneva — todas refletem de forma direta o grego joanino, com a única diferença sendo estilística, não teológica. O verbo einai, traduzido por “existisse”, permanece como verbo de ser absoluto, preservando a carga ontológica da pré-existência de Cristo. Já a ARC e a Cepher seguem a mesma linha, com pequenas nuances rítmicas, mas igualmente retendo a fórmula “antes que o mundo existisse”.

Algumas versões optam por variações lexicais mais livres, mas que não comprometem o sentido teológico. A CEV traduz: “antes que o mundo existisse”, mantendo a mesma linha, mas com entonação narrativa mais suave. A ERV apresenta: “antes que o mundo começasse”, o que enfraquece ligeiramente a força metafísica de einai, pois “começar” traz consigo uma nuance processual, diferente da existência absoluta e contínua pressuposta por einai.

A NIRV, voltada para o público infantojuvenil, simplifica a ideia para “antes que o mundo fosse criado”, o que é correto, mas substitui “existisse” (presente infinitivo) por um aoristo implícito — essa reformulação pode gerar uma falsa impressão de que a glória mencionada é algo posterior à criação, quando, no texto original, trata-se de uma glória anterior a toda ontologia criada. A LEB emprega: “before the world existed”, que é a tradução mais precisa entre as versões modernas de cunho acadêmico. Também a NET traduz com concisão e fidelidade: “before the world existed” (“antes de o mundo estivesse”). A NHEB opta por “before the world was” (“antes de haver mundo”), usando o pretérito simples, uma forma que reduz levemente a ideia de duração contínua implícita em einai.

Já a versão Amplified Bible expande o texto com glossas doutrinárias, interpretando: “before the world existed, before its foundation” (“antes do mundo existisse, antes de sua fundação”), o que introduz elementos adicionais não presentes no original (como “fundação”), porém compatíveis com a teologia joanina. A versão MSG (The Message), por sua natureza parafrástica, oferece: “...long before the world began” (“muito antes do mundo começar”), que, apesar de devocionalmente rica, omite o vínculo direto com einai e reestrutura a oração de modo que dilui sua precisão semântica. Ainda assim, mantém a ideia de precedência ontológica de Cristo à criação.

A análise comparada revela que todas as traduções que seguem de perto o grego (como ABP, ASV, NASB, KJV, DRB, YLT, LEB, NET) confirmam a leitura clássica da pré-existência absoluta de Cristo. As traduções mais livres (ERV, MSG, Amplified) permanecem doutrinariamente corretas, embora percam a densidade semântica de pro tou einai ton kosmon. Essa convergência de traduções confirma que o próprio texto grego, com sua estrutura inequivocamente temporal, visa estabelecer a anterioridade eterna do Filho em relação ao kosmos, afirmando, não apenas Sua existência, mas a posse de glória em estado pré-cósmico. Isso serve como reforço doutrinário para a cristologia joanina de unidade ontológica com o Pai — uma glória não adquirida, mas já possuída, antes do tempo, do espaço e da história.

Portanto, a frase grega é uma afirmação de temporalidade transcendente que comunica a posse eterna da glória por Cristo em sua pré-existência divina. Esse trecho sela a unidade de glória entre o Pai e o Filho antes de todas as coisas, e lança os fundamentos da teologia joanina da Encarnação como condescendência voluntária de uma glória já eterna. Assim como em João 1:1–3 e 8:58 (prin Abraam genesthai, egō eimi), João 17:5c estrutura um marco de ontologia trinitária dentro do tempo narrativo da oração. Essa estrutura será o ponto de comparação para as versões que analisaremos em seguida.

A declaração de Jesus em João 17:5c, “com aquela glória que tinha contigo...”, é uma das mais profundas expressões de sua autoconsciência divina e pré-temporal. O pedido por glória que ele faz ao Pai não é a simples retomada de uma honra perdida, mas a reivindicação do pleno restabelecimento daquela dóxa que já lhe pertencia na eternidade passada, antes da encarnação, antes da fundação do mundo. Quando diz “com aquela glória que tinha contigo”, o verbo “tinha” traduz eichon, imperfeito ativo do verbo echō, e denota posse contínua, indicando que essa glória não era algo momentâneo ou adquirido, mas uma realidade contínua, pré-existente e relacional, vivida pará soi — “junto de ti”.

A glória de que fala aqui, como enfatizam os comentaristas, não deve ser confundida com uma mera representação simbólica ou ideal da mente divina, como tentaram suavizar pensadores como Grotius, Wettstein e Schleiermacher, reduzindo-a à ideia da glória destinada a Cristo no pensamento de Deus. A força da expressão pará soi — que em João designa tanto uma relação local como de intimidade pessoal (cf. João 1:40; 4:40; 14:25) — exige um entendimento mais robusto: trata-se de uma glória real, efetiva, experienciada na comunhão intratrinitária. 

O mesmo evangelista, no prólogo, já havia afirmado que o Logos estava pros ton Theon (João 1:1–2) e que residia eis ton kolpon tou Patros (João 1:18), ou seja, no seio do Pai, em plena comunhão e coeternidade com Ele. Essa glória não era, portanto, uma concessão posterior, mas uma realidade inerente à própria identidade do Filho, anterior à criação, vivida em comunhão plena com o Pai.

O pedido “glorifica-me com aquela glória que eu tinha contigo” está diretamente vinculado a esse estado pré-encarnado da existência do Filho, não apenas como divindade essencial, mas como Pessoa em relação — como aquele que eternamente esteve junto ao Pai na unidade da essência divina e na distinção da pessoalidade trinitária. A expressão ēn para soi (“que eu tinha contigo”) está no tempo imperfeito, o que ressalta ainda mais a continuidade dessa glória, vivida antes mesmo da existência do kosmos. Esse detalhe, ressaltado por comentaristas como Barnes, Gill e os expositores contemporâneos, desfaz qualquer tentativa de limitar a glória mencionada ao plano salvífico concebido na mente divina, pois a linguagem joanina é ontológica, não meramente ideal ou profética.

Essa glória — afirma ainda John Gill — não pode se referir à natureza humana de Cristo, pois ela não existia ainda como entidade encarnada “antes da fundação do mundo”. Também não pode ser a glória essencial da divindade em sentido absoluto, pois esta nunca foi perdida, nunca foi suspensa, nem pode ser objeto de súplica: é eterna e imutável. Trata-se, portanto, da glória “mediadora” do Filho, na qualidade de Deus-Homem, como aquele que, embora eternamente divino, foi constituído como mediador desde a eternidade, na aliança intra-trinitária, recebendo um “depósito” da plenitude da graça e da honra do Pai para executar a obra da redenção.

A oração de João 17:5 é, assim, profundamente reveladora. Nela, Jesus não apenas recorda sua glória pré-temporal, mas também a projeta no futuro — pedindo que essa glória, velada durante a encarnação e humilhação (cf. Filipenses 2:6–8), seja plenamente restaurada na ascensão e entronização. Esse retorno à glória não é uma mera volta ao ponto de partida, mas uma elevação ainda maior, pois agora essa glória inclui a humanidade redimida: é a glória do Filho encarnado, do Mediador que venceu, do Cordeiro exaltado à destra de Deus.

O texto, portanto, ecoa o mistério da pré-existência do Verbo, da união hipostática e da exaltação messiânica. O mesmo que desceu é o que agora é exaltado acima de todo nome (Filipenses 2:9); o que esvaziou-se (ekénōsen) é agora revestido de glória indizível. A resposta à oração de João 17:5 culmina no “Tetélestai” da cruz (João 19:30), na ressurreição vitoriosa e na entronização descrita em Hebreus 1:3 e Atos 2:33–36. A glória de que Jesus fala é, pois, a glória eterna do Filho, agora enriquecida pela obra redentora e participada em sua humanidade glorificada.

Além disso, como observa Lange, a glória que o Filho compartilhou com o Pai antes da criação torna-se plenamente manifesta exatamente no momento de seu maior autoesvaziamento: a cruz. A majestade que brilhou desde a eternidade agora resplandece em forma paradoxal na ignomínia redentora. Não é uma glória triunfalista, mas uma glória do amor sacrificial — a glória da “kenosis” consumada que revela o coração do Pai como nunca antes. Por isso, a petição de João 17:5 é tanto uma recordação da eternidade quanto uma antecipação da glorificação escatológica, e revela, ao mesmo tempo, a profundidade da identidade do Filho e a sublimidade da sua missão redentora.

João 17:6a Manifestei o teu nome... (Gr.: ephanerōsa to onoma sou — O verbo inicial ephanerōsa (“manifestei”) está no aoristo ativo do indicativo, primeira pessoa do singular do verbo phaneroō (de phaneros, “manifesto”, “visível”). Morfologicamente, o aoristo aqui é constativo e resume a totalidade do ministério de Cristo até aquele ponto: “eu revelei de forma completa e definitiva”. O uso deste verbo não é acidental: o mesmo aparece em João 1:31 e é retomado em João 17:26 como egnōrisa, expressando a plena execução da obra revelatória de Jesus. Sua etimologia remete ao radical phainō, “brilhar”, “aparecer”, e portanto carrega o peso de uma ação que traz à luz o que estava oculto.

A expressão to onoma sou (“o teu nome”) refere-se não meramente a uma designação verbal, mas à auto-revelação da essência divina — especialmente como “Pai”. Como destacam as fontes, trata-se do nome de Deus no sentido bíblico pleno, onde “nome” é um substituto por “natureza”, “caráter” e “presença revelada”. Em João, especialmente no capítulo 17 (cf. 17:11, “Pai Santo, guarda-os em teu nome”), o nome de Deus significa Deus mesmo como Pai Santo. Exodo 23:21 é evocado para indicar que o nome de Deus é representado e carregado pelo Enviado, uma ideia que remonta também a João 1:18: “o Filho Unigênito, que está no seio do Pai, este o revelou”.

O substantivo anthrōpois (“aos homens”) aparece com artigo definido e no dativo plural (tois anthrōpois), introduzindo o grupo de pessoas a quem a revelação foi feita. Não se trata aqui da humanidade em geral, mas de um grupo especificamente designado pelo Pai e separado “do mundo”.

A expressão hous edōkas moi ek tou kosmou (“que do mundo me deste”) está no relativo acusativo plural hous, retomando anthrōpois, seguido do verbo edōkas (“deste”) — aoristo ativo, 2ª pessoa do singular de didōmi. Esse “dar” não é apenas uma designação ou transferência: conforme João 6:37, 44, 65 e 10:29, trata-se de um ato divino de eleição e atração, segundo o qual o Pai conduz ao Filho aqueles que são seus. O complemento ek tou kosmou (“do mundo”) marca o contexto do qual os discípulos foram tirados — não apenas um espaço físico, mas a ordem mundana alienada de Deus. Como afirmado por várias fontes, essa ideia ecoa Deuteronômio 4:34 (“tirar para si um povo do meio de outro povo”) e confere ao ato uma conotação redentiva, reminiscente do Êxodo.

O pronome dativo moi (“a mim”) aparece logo após o verbo edōkas, com valor enfático: os discípulos pertenciam originalmente ao Pai (soi ēsan, “eram teus”) e agora foram confiados ao Filho para o cumprimento da missão redentora. Essa sequência reforça a unidade e distinção funcional entre o Pai e o Filho na economia da salvação.

O último termo da frase, tetērēkan (“guardaram”), é o perfeito ativo do indicativo, 3ª pessoa do plural de tēreō (“guardar”, “vigiar”, “observar com atenção”), com flexão alternativa comum no grego koiné em vez de tetērēkasin. O tempo perfeito implica que a ação foi completada no passado com efeitos duradouros: eles guardaram e continuam guardando a palavra de Deus. Este verbo é usado em João 14:23 (“Se alguém me ama, guardará a minha palavra...”), denotando não mera memória, mas lealdade prática e obediente à revelação. As fontes observam corretamente que ton logon sou (“a tua palavra”) corresponde aos rhēmata do v. 8, antecipando seu conteúdo, e não apenas às ordens do Antigo Testamento, como propôs Stier em referência a Lucas 1:6, mas sim à revelação messiânica em si.

Segundo o comentário teológico fornecido, João 17:6a marca a transição do relato retrospectivo para a intercessão pelos discípulos. A oração de Jesus não se baseia num sentimentalismo idealizado, mas no reconhecimento de que os discípulos são portadores da manifestação divina: eles receberam a revelação do nome de Deus — o Deus de Cristo, o Pai pessoal e celeste, revelado pela palavra e obra do Filho. Essa manifestação é vista como o cume da função profética de Jesus, que cumpriu em sua vida e ensino a exposição absoluta do Pai, mesmo que os discípulos ainda não tenham alcançado a compreensão plena.

Os discípulos são descritos em três etapas processuais: (1) “soi ēsan” — pertenciam ao Pai, não apenas no sentido genérico de criação, mas como fiéis dentro da aliança, como Natanael em João 1:47 e os que vinham à luz pela fé no Antigo Testamento (cf. Bengel); (2) “kai emoi autous edōkas” — foram dados ao Filho pelo Pai, evidenciando eleição e chamado eficaz; (3) “kai ton logon sou tetērēkan” — guardaram a palavra, o que denota fidelidade frente às tentações, especialmente em contraste com a apostasia de Judas. Embora imperfeitos, eles resistiram ao colapso da fé e agora estão firmes naquilo que creram.

Essa tríade — pertencimento prévio a Deus, doação ao Filho, guarda da palavra — é a base objetiva da intercessão de Cristo. Ele roga por eles porque sua obra foi eficaz neles. Como observa Holtzmann, mesmo antes de se unirem a Jesus, esses homens já pertenciam a Deus “em um sentido especial” — como Israelitas verdadeiros — e a fidelidade deles à palavra demonstra que foram receptivos à revelação, ao contrário dos ouvintes de João 5:38, que a rejeitaram.

As fontes ressaltam ainda a força da eleição divina nesse verso, mas sem negar a agência humana: embora dados pelo Pai, os discípulos também são chamados a responder com fé e lealdade. Não há compulsão, mas uma atração irresistível ao Filho (João 6:37–44), resultando num relacionamento em que o conhecimento de Deus e a guarda de sua palavra se tornam as marcas definidoras do verdadeiro discípulo.

A maioria das versões preserva de modo bastante fiel a sequência e estrutura inteira do texto grego: ephanerōsa sou to onoma tois anthrōpois hous dedōkas moi ek tou kosmou, refletida literalmente nas versões AFV, ASV, BSB, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, NENT, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT e RV. Estas traduzem quase que verbatim “I have manifested/revealed thy/your name to the men whom thou/you gave me out of the world” (“Eu manifestei/revelei vosso/teu nome aos homens que me deste do mundo”), mantendo a fórmula tripartida: (1) manifestação do nome, (2) concessão divina dos discípulos a Cristo, (3) obediência dos discípulos à palavra. Entre elas, algumas optam por “manifested” (“manifestei”, ASV, DRB, RV), outras por “revealed” (“revelei”, BSB, LEB, WEB), mas semanticamente são equivalentes, mantendo fidelidade ao grego ephanerōsa.

Outras traduções como ABP+, Cepher, HRB, LITV e MKJV seguem o mesmo modelo, mas introduzem ênfases próprias. O Cepher destaca a fórmula hebraizante “את (ʾet) I have manifested”,[4] sugerindo uma intertextualidade deliberada com o Antigo Testamento. Já o HRB reforça a ideia de “revelação” com tom mais solene, enquanto o LITV mantém a clareza formal da tradução literal. A versão ABP+ (Apostolic Bible Polyglot) estrutura a frase conforme a numeração dos Strong’s, mas segue a equivalência literal.

As versões GNB, ERV, GW, CEV, NTLH e NVT adotam paráfrases mais acessíveis. A GNB traz: “I have made you known to those you gave me” (“Eu te tornei conhecido àqueles que me deste”), enquanto a ERV declara: “I have shown them what you are like” (“Eu tenho mostrado a eles como você é”). Ambas deslocam o foco da “manifestação do nome” para “manifestar a pessoa”, aproximando-se da ideia de revelação pessoal de Deus em Cristo. A CEV segue a mesma linha de ERV, tornando o “nome” um sinônimo da identidade de Deus. A NTLH e a NVT, versões brasileiras de cunho mais funcional, traduzem: “Eu mostrei quem tu és…” e “Eu revelei teu nome…”, com a NTLH sendo mais interpretativa e a NVT mais literal.

Entre as versões que optam por uma formulação mais interpretativa, a Weymouth traduz to onoma como “Thy perfections” (“Vossas perfeições”), deslocando a semântica da expressão para um campo de atributos morais ou divinos. Já a Williams traz “your very self” (teu próprio ser), explicitando a revelação como pessoalidade divina. Essa linha é também seguida pela TPT, que verte “I have manifested who you really are” (“Eu tenho manifestado que realmente tu és”), interpretando o “nome” como “identidade plena”.

A versão Geneva e a JUB mantêm a fórmula tradicional da Reforma (“I have manifested thy name unto the men which thou gavest me out of the world” / “Eu tenho manifestado vosso nome aos homens tu me destes do mundo”), com estrutura paralela às versões King James e Douay-Rheims. O mesmo ocorre com a versão portuguesa KJA, que opta por: “Eu revelei o teu Nome àqueles que do mundo me deste”, refletindo bem a fidelidade à forma grega sem recorrer à paráfrase.

A LEB, NET, EMTV, MKJV, NENT, LSV e outras de cunho interlinear moderno mantêm-se firmemente próximas da estrutura grega, sem alterar o foco teológico da frase.

Em resumo, as versões ASV, BSB, DRB, EMTV, ESV, Geneva, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, NENT, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT e RV traduzem o texto de forma quase idêntica, com leve variação entre “manifestei” e “revelei”. A ABP+, Cepher e HRB preservam uma fidelidade morfo-sintática elevada com pequenas adaptações estilísticas. As versões GNB, ERV, CEV, NTLH, NVT, TPT, Weymouth e Williams trazem releituras mais funcionais e devocionais do texto, deslocando o “nome” de Deus para significados mais subjetivos, como “perfeições”, “quem tu és” ou “teu caráter”. Já a Vulgata Latina traduz literalmente manifestavi nomen tuum hominibus quos dedisti mihi de mundo, alinhando-se com a tradição literal da KJV e ASV, enquanto a versão hebraica (כתר המלך) e a Peshitta (ܐܘܕܥܬ ܫܡܟ) reforçam a estrutura original com nuances do hebraico e aramaico bíblico, já discutidas na seção anterior.

Com isso em mente, a expressão “manifestei o teu nome” transcende a simples declaração de um título. O “nome” (em grego, ónoma) aqui não se refere ao Tetragrama sagrado (YHWH) ou a outras designações místicas judaicas, mas encapsula a totalidade do caráter, dos atributos, da vontade e do plano de misericórdia de Deus (Jo 15:21; Mt 10:22; Rm 2:24; 1 Tm 6:1). No Antigo Testamento, o “nome” de Deus é a manifestação visível e ativa de sua pessoa na história. O termo hebraico šēm carrega um peso ontológico: não é uma etiqueta convencional, mas a expressão da essência divina em ato. Dizer “o nome do Senhor é poderoso” (Pv 18:10) ou “por amor do teu nome” (Sl 23:3) é dizer que Deus age conforme sua natureza imutável e santa. Os principais nomes de Deus no AT — El (“Deus”), El Shadday (“Deus Todo-poderoso”), Elyon (“Altíssimo”), Adonay (“Senhor”), e sobretudo YHWH (“Eu sou o que sou”, Êx 3:14) — não são apenas títulos, mas descrições vivas da sua relação com o mundo e seu povo. Conhecer o nome de Deus, portanto, é conhecê-lo pessoalmente, em sua santidade, fidelidade e misericórdia. O verbo “manifestar” (ephanerōsa) significa “trazer à luz”, “tornar apreensível”, iluminando aquilo que antes era apenas parcialmente conhecido por meio da criação (Sl 8:1; Sl 19:1-3; Rm 1:20) ou da revelação mosaica. Cristo, sendo “a imagem do Deus invisível” (Cl 1:15; Hb 1:2), proporcionou a manifestação plena e definitiva, a ponto de poder afirmar: “Quem me vê a mim, vê o Pai” (Jo 14:9). Teologicamente, isso significa que Jesus não é apenas portador de um nome divino, mas Ele próprio é a concretização visível daquele Nome: a realidade divina encarnada, pela qual a verdade de Deus se torna acessível à carne humana. Essa revelação essencial focou-se no nome “Pai”, desvelando a natureza de Deus como amor, além de Sua santidade (Hb 7:26), graça, proximidade e a vida eterna que Nele reside (1 Jo 1:1). Ao revelar o nome “Pai”, Jesus não apenas apresentou uma metáfora relacional, mas explicitou a identidade eterna de Deus como gerador do Filho no seio da Trindade, e como origem amorosa de todos os que crêem. É uma revelação de relação e essência. Essa manifestação se deu de forma integral: por meio de quem Jesus era (a encarnação das perfeições divinas), do que Ele disse (Sua doutrina era a do Pai) e do que Ele fez, pois Suas obras eram as obras do Pai (Jo 5:17; Jo 10:37).

A segunda cláusula, “aos homens que do mundo me deste”, define os recipientes dessa revelação e o processo divino de sua seleção. Estes “homens”, primariamente os apóstolos, foram “dados” a Cristo em um ato da soberania e providência divinas. Essa ação tem sua origem na eleição eterna e na aliança da graça, pela qual o Pai designa indivíduos para serem entregues ao Filho (Ef 1:4-5). O Pai orquestra as circunstâncias para que eles ouçam e sigam a Cristo, atraindo-os por meio de “inspirações interiores e graça divina” (Jo 6:44), um conceito que sublinha a primazia da graça. Essa “doação” dos discípulos ao Filho é uma expressão da perichoresis trinitária: o Pai age soberanamente, o Filho acolhe e redime, e o Espírito os ilumina e sela. O próprio movimento da eleição é trinitário, e não unilateral. A frase "do mundo" (ek tou kosmou) indica uma separação. Eles foram tirados do meio da humanidade incrédula para não mais pertencerem ao mundo como seu elemento de existência, espelhando a própria posição de Cristo (Jo 17:14). Filosoficamente, essa cisão é ontológica e ética: o “mundo” (kosmos) em João não é apenas o conjunto da realidade criada, mas o sistema rebelado contra Deus. Ser retirado dele é ser introduzido em outro modo de ser — o Reino. Essa separação é um ato de graça (1 Co 4:7; 1 Co 15:10) que os designa para os propósitos do evangelho (Rm 1:1; Gl 1:15). Alguns intérpretes sugerem que um trabalho preparatório, talvez por meio do ministério de João Batista (Ml 4:5-6; Jo 1:35-39), já os havia marcado como pertencentes a Deus, tornando-os prontos para serem formalmente entregues ao serviço de Cristo. Assim, a passagem descreve a obra de revelação de Cristo como completa e direcionada a um grupo específico, divinamente escolhido e concedido pelo Pai ao Filho. Teologicamente, esse movimento expressa a unidade entre predestinação, revelação e missão: conhecer o Nome é fruto da graça eterna, mas também é o início de uma vocação para tornar esse Nome conhecido.

João 17:6b ...eram teus, e tu os deste a mim, e eles obedeceram à tua palavra. (Gr.: ...hous edōkas moi, kai ton logon sou tetērēkan. — A expressão “hous edōkas moi” contém dois elementos cruciais. O relativo acusativo hous (“aqueles que”) é objeto direto do verbo edōkas, que é a forma aorista indicativa ativa de segunda pessoa singular de didōmi (“dar”). Em termos morfológicos, trata-se de uma forma constativa, resumindo a ação de entrega dos discípulos por parte do Pai ao Filho. Essa “doação” não é uma transferência impessoal, mas envolve eleição, chamada e resposta. As fontes exegéticas confirmam que Jesus compreende os discípulos como um “presente” do Pai, resultado de uma atração divina e vocacional (cf. João 6:37, 44, 65). Como comenta Holtzmann, os discípulos foram “retirados do mundo” e “atribuídos ao Cristo” não como consequência de mérito humano, mas da iniciativa divina da escolha. O termo moi (“a mim”) reforça a pessoalidade do dom, remetendo à íntima relação entre o Pai e o Filho, em cujas mãos repousa a vocação dos eleitos (João 10:29; 18:9).

A frase seguinte, kai ton logon sou tetērēkan, tem uma densidade ainda mais rica do ponto de vista gramatical e teológico. O verbo tetērēkan é a forma perfeita ativa do verbo tēreō (“guardar”, “observar”, “manter”) na terceira pessoa plural. A forma usada aqui — com terminação -ēkan — é uma variante da Koiné tardia do perfeito tetērēkasin, como observa Robertson. Esta forma indica uma ação passada com relevância no presente: os discípulos não apenas guardaram a palavra em um momento, mas a têm guardado até agora. O tempo perfeito estabelece um contraste teológico com Judas, cujo fracasso consistiu justamente em abandonar essa fidelidade. Embora o verbo denote “observância”, seu valor aqui é mais abrangente: envolve uma escuta ativa, retenção e fidelidade à revelação de Deus comunicada em Jesus, como salienta o comentário da Pulpit Commentary ao referir que, mesmo não possuindo conhecimento perfeito, os discípulos haviam retido com lealdade a palavra que lhes foi dada.

O substantivo logos (“palavra”) aqui designa, por sinédoque, a totalidade da revelação divina mediada por Cristo. Embora alguns expositores (como Stier) sugiram que essa “palavra” seja o conjunto das ordenanças do Antigo Testamento às quais os discípulos foram fiéis — o que explicaria, por exemplo, o testemunho de que Zacarias e Isabel eram “irrepreensíveis em todos os mandamentos do Senhor” (Lucas 1:6) — a maioria dos intérpretes reconhece que ton logon sou aqui equivale aos rhēmata dados por Cristo, conforme João 17:8. Ou seja, a “palavra” mantida pelos discípulos é a palavra do Pai mediada pelo Filho, num sentido mais próximo da proclamação e do ensino de Jesus do que da Torah escrita. A fidelidade dos discípulos, portanto, não é apenas legal, mas revelacional — estão ligados à “palavra” como dom escatológico.

O paralelismo com João 14:23 reforça essa leitura: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra (ton logon mou tēresei); e meu Pai o amará...” Aqui, “guardar a palavra” é a expressão visível do amor e da comunhão com Deus. Em João 8:51 (“se alguém guardar a minha palavra, nunca verá a morte”), a associação entre fidelidade à palavra e vida eterna já estava antecipada. Daí que o perfeito tetērēkan em 17:6b exprime não apenas a obediência passada, mas o status atual e contínuo dos discípulos como guardadores da revelação — e, por isso, candidatos legítimos à oração sacerdotal do Filho.

Na perspectiva do evangelho segundo João, a fidelidade à palavra não significa ausência de falhas ou dúvidas (vide João 6:67–71, quando Pedro fala em nome dos discípulos, confessando que somente Jesus tem “as palavras de vida eterna”), mas sim permanência no caminho da verdade, mesmo sob provações. Jesus, portanto, não ignora suas hesitações, mas as lê como fidelidade em crescimento — uma leitura caridosa, profética e escatológica. Em outras palavras, tetērēkan é um veredito de aprovação que prefigura a perseverança dos discípulos na missão futura.

A estrutura tripartida da oração — “hous edōkas moi / kai / ton logon sou tetērēkan” — sugere uma lógica soteriológica que parte da eleição (dom do Pai), passa pela mediação (relacionamento com o Filho) e desemboca na resposta (fidelidade à revelação). Jesus está apresentando, ao Pai, a realidade dos seus discípulos como um argumento a favor de sua intercessão: eles são teus, me foram entregues, e têm permanecido fiéis à tua palavra.

A forma como o evangelista tece essa oração mostra uma clara retomada do Antigo Testamento, especialmente de textos como Deuteronômio 4:34 (Deus tomando para si um povo do meio dos gentios) e Isaías 8:16–18 (os discípulos como “sinais e maravilhas” dados por Deus). Como observa o comentário de Lange, há aqui ecos diretos da função profética de Jesus: Ele completou sua missão, revelou plenamente o Nome, e agora entrega ao Pai aqueles que responderam em fé.

A versão siríaca da Peshitta (ܐܝܠܝܢ ܝܗܒܬ ܠܝ ܡܢ ܐܠܡܐ ܘܡܠܬܟ ܢܛܪܘܗ) usa o verbo naṭar (ܢܛܪ), que significa literalmente “guardar, proteger, observar”, exatamente no mesmo campo semântico de tēreō grego. Já a versão hebraica moderna emprega ve’et d’varekha shamru (ואת דבריך שמרו), com shamar (שמר), o mesmo verbo usado para “guardar os mandamentos” no Antigo Testamento, o que reforça a continuidade da fidelidade veterotestamentária agora reinterpretada na economia joanina como fidelidade ao Logos encarnado.

A expressão “Tu os deste a mim” encontra grande uniformidade entre as traduções, refletindo a forma verbal dedōkas moi [“tu os deste a mim”] — uma forma perfeita ativa do verbo didōmi [dar, entregar], usada duas vezes no versículo com a mesma construção sintática. Essa forma verbal perfeita enfatiza não apenas o ato de entrega como algo realizado no passado, mas também os seus efeitos permanentes no presente: os discípulos continuam sendo propriedade de Cristo porque o Pai os entregou a Ele com propósito definido. Traduções como ARC, ACF, ASV, NASB, NHEB, DRB, DRC, Douay, Cepher, AFV, ABP, NKJV, GNB, KJV, WBT, YLT, TYN, WEB preservam essa estrutura com a forma “tu os deste a mim” ou “tu mos deste”, em variações idiomáticas. A versão CEV opta por “Você me deu essas pessoas”, oferecendo uma parafraseada simplificação, enquanto ERV traz “Tu me deste estes”, mantendo o paralelismo literal com a ênfase relacional. A versão GNT também adota “me destes estes homens”, enfatizando a humanidade dos destinatários. Já a versão NLT diz: “You gave them to me” (“Tu os destes a mim”), mantendo fidelidade à construção verbal do grego.

Quanto à segunda parte — “e eles obedeceram à tua palavra” — a variedade de traduções é maior, refletindo tanto nuances do verbo tetērēkan (perfeito ativo do verbo tēreō, “guardar”, “observar”, “vigiar com atenção”) quanto as opções possíveis para ton logon sou (“tua palavra”). As versões ARC, ACF, ASV, DRB, DRC, Douay, Cepher, NKJV, KJV, WBT, WEB, YLT utilizam traduções praticamente idênticas: “e eles guardaram a tua palavra”, “e eles observaram a tua palavra”, ou “eles têm guardado a tua palavra”, mantendo de forma direta o vínculo entre guardar e obedecer como fidelidade ativa e vigilante. A NASB, como de costume, traduz de forma um pouco mais analítica: “and they have kept your word” (“e eles têm guardado tua palavra”), enquanto a ABP oferece a construção mais exata ao grego: “and your word they have kept” (“e a tua palavra eles têm guardado”), enfatizando a ordem original das palavras e sugerindo uma disposição reverente. A versão AFV adota o mesmo padrão. Já GNB e GNT seguem por uma via mais interpretativa, com “e eles obedeceram à tua palavra” ou “e têm sido obedientes à tua palavra”, o que traduz corretamente o sentido exegético do verbo tēreō, embora troque a imagem de “guardar” por “obedecer”. A CEV, por sua vez, escolhe: “e fizeram tudo o que você lhes disse”, o que já introduz um tom de completude e obediência voluntária, enquanto a ERV aproxima-se do grego com “e eles guardaram tua palavra”. A versão NLT interpreta de forma mais devocional: “Now they obey your word” (“Agora eles obedecem a tua palavra”), o que liga a fidelidade dos discípulos ao momento presente e à obediência ativa e contínua, embora desloque o tempo verbal do perfeito para o presente simples.

Digno de nota é que as versões como TYN e YLT preservam tanto a ênfase no tempo perfeito quanto a construção verbal “they have kept thy word” (“eles tem guardado vossa palavra”), o que é mais próximo da nuance semântica do grego. Assim, pode-se dizer que as versões que traduzem verbatim a expressão “tu os deste a mim, e eles guardaram/obedeceram tua palavra” são: ARC, ACF, ASV, NASB, ABP, DRB, DRC, Douay, Cepher, NKJV, AFV, WEB, WBT, TYN, YLT, ERV, com variações mínimas e mais voltadas a estilo do que a conteúdo. Já versões como GNB, GNT, NLT e CEV se afastam um pouco na segunda parte, adotando paráfrases mais livres que tendem a interpretar tēreō como obediência imediata e completa, sem deixar espaço para a fidelidade progressiva, vigilante e imperfeita, mas persistente, que o texto grego parece evocar.

Do ponto de vista teológico, isso importa: o perfeito tetērēkan sugere que os discípulos, apesar de suas falhas, guardaram, conservaram, vigiaram e se apegaram à palavra do Pai — não por mérito, mas por graça — o que difere de uma obediência perfeita e sem mácula. As traduções mais fiéis a essa nuance são, portanto, aquelas que retêm o verbo “guardar” (como KJV, ASV, NASB, WEB, ABP, etc.), pois capturam o caráter contínuo, vigilante e relacional do discipulado no Evangelho de João.

Analisando mais de perto, João 17:6b revela uma progressão teológica que conecta a soberania divina com a correspondente responsabilidade humana, estabelecendo a legitimidade dos discípulos como continuadores da obra de Cristo.

A primeira parte da afirmação que abordamos, “Eram teus, e tu os deste a mim”, aprofunda a noção da doação divina. A expressão “Eram teus” não se refere meramente ao direito de Deus como Criador sobre toda a humanidade (Ezequiel 18:4), mas aponta para uma posse especial e peculiar. Essa posse é interpretada como um ato da “graça eletiva” do Pai, que escolheu certos indivíduos para serem seu povo particular. Eram seus por serem “objetos de sua escolha”, espiritualmente dispostos a ouvir a voz de Deus (João 8:47; João 18:37), possivelmente preparados pelo ministério de João Batista para serem um “verdadeiro Israel” (João 1:35–39). Esse pertencimento implica mais do que uma mera relação criacional: trata-se de um vínculo de predestinação e pré-entrega, fundado na presciência e vontade soberana do Pai. O uso do verbo no passado “eram teus” mostra que a posse divina precede o envio, mas também remete à eternidade da eleição, o que implica que os discípulos já estavam incluídos na aliança redentora que precede a fundação do mundo (Efésios 1:4).

A subsequente doação, “e tu os deste a mim”, representa a execução desse propósito divino. O Pai confia esses homens a Cristo como um encargo, para que sejam ensinados, comissionados e cuidados. A ênfase recai sobre "a mim", indicando que, por decreto divino, a posse é transferida para o Filho, a fim de que eles possam dar continuidade à Sua missão na terra. A entrega não diminui a unidade entre Pai e Filho, mas a evidencia: se o Pai dá ao Filho aquilo que já era do Filho por essência divina (cf. João 16:15: “tudo quanto o Pai tem é meu”), então a doação é um gesto de revelação e não de alienação. Esse gesto confirma a coigualdade ontológica entre o Pai e o Filho, pois não se trata de transferência entre seres distintos por natureza, mas de uma auto-comunicação intra-trinitária no plano redentivo. Do ponto de vista cristológico, esse “dar” revela tanto a missão do Filho quanto sua filiação eterna: como Verbo preexistente, Cristo possui todas as coisas com o Pai; como Servo encarnado, recebe dos céus os que lhe foram dados, num ato que une soberania e encargo pastoral.

A cláusula final, “e eles obedeceram à tua palavra” (ou, mais literalmente, "guardaram a tua palavra"), constitui o lado humano e a resposta fiel a essa iniciativa divina. A “palavra” aqui é identificada com o Evangelho, a revelação do Logos que Cristo manifestou. [No contexto bíblico mais amplo, a “tua palavra” (ho logos sou) carrega uma densidade teológica que remonta ao Antigo Testamento, onde “a palavra do Senhor” designa tanto a ordem criadora (Gênesis 1:3), quanto a revelação profética e a lei (Salmos 119; Isaías 55:11). Em Romanos 3:2, Paulo diz que aos judeus “foram confiados os oráculos de Deus”, o que vincula a palavra divina à herança da aliança. Aqui, porém, em João 17:6b, a palavra do Pai é mediada por Cristo e internalizada pelos discípulos — ela não é apenas Lei, mas Graça e Verdade reveladas na encarnação do Verbo (João 1:14–17).

O ato de “guardar” (em grego, tetērēkan, τετήρηκαν) significa muito mais do que uma simples recordação intelectual; é a característica distintiva dos verdadeiros discípulos. Implica uma internalização profunda, onde a palavra é entesourada no coração e no espírito, recebendo o lugar de primazia nas afeições. Essa fidelidade se manifesta na defesa valente e na preservação da pureza da mensagem, mesmo diante da rejeição do mundo e das tentações (Lucas 22:28). Filosoficamente, o verbo tēreō carrega um campo semântico que abrange vigilância, zelo e custódia sagrada. Trata-se de um guardar que não é passivo, mas ativo, que exige discernimento, perseverança e amor. Tal fidelidade só é possível por uma transformação interior provocada pela ação do Espírito Santo — pois, conforme Hebreus 8:10, a nova aliança consiste justamente em escrever a palavra de Deus nos corações. Teologicamente, portanto, “guardar a palavra” é participar da dinâmica da regeneração e da santificação, pela qual o discípulo se torna morada da verdade divina.

Em última análise, “guardar a palavra” significa submeter todo o ser — intelecto, coração, consciência e vontade — à sua autoridade, traduzindo-a em obediência e perseverança (Hebreus 3:14). Ao agirem assim, os discípulos não apenas validaram sua fé, mas também confirmaram que a revelação do “nome” do Pai havia sido efetivamente recebida por eles. [Essa revelação não é abstrata, mas relacional: conhecer o nome de Deus é conhecer sua essência revelada — e os nomes de Deus no Antigo Testamento (Elohim, El Shaddai, Adonai, YHWH) apontam para aspectos de Sua majestade, poder, fidelidade, justiça e misericórdia. Quando Cristo lhes revela o nome do Pai, ele não está meramente dando-lhes um vocativo teológico, mas introduzindo-os no mistério do amor eterno entre Pai e Filho. Guardar a palavra, portanto, é o sinal externo de que foram introduzidos nessa comunhão interna da Trindade, e de que passaram a participar da vida eterna que essa palavra comunica.]

João 17:7 Agora, já têm conhecido que tudo quanto me deste provém de ti. (Gr.: Nyn egnōkan hoti panta hosa dedōkas moi para sou eisin. — A oração de Jesus em João 17:7 retoma e desenvolve o eixo teológico iniciado nos versículos precedentes: a revelação do Pai por meio do Filho. A forma verbal egnōkan é o perfeito ativo do verbo ginōskō, e seu uso aqui exprime mais do que uma aquisição pontual de conhecimento; trata-se de um reconhecimento consolidado, um saber que permanece. Como aponta a gramática de Fanning, o perfeito com sentido estativo, neste contexto, reúne a força ingressiva do aoristo (o momento da iluminação) com o estado contínuo do conhecimento mantido (Fanning, p. 292). Esse perfeito no plural (terceira pessoa) forma par com tetērēkan do versículo anterior, compondo uma cadeia de ações espirituais já realizadas pelos discípulos, embora ainda embrionárias em sua plenitude.

A partícula nyn (νῦν), “agora”, não tem valor lógico-argumentativo, mas é um adverbial temporal, indicando o presente imediato do ministério de Jesus. Como observa Barrett (p. 505), ela se refere ao ponto terminal do ministério terreno de Cristo, possivelmente à luz da revelação final prestes a se consumar na cruz e ressurreição. Não se trata, portanto, de uma totalidade cognitiva, mas de um reconhecimento real e suficiente do caráter divino da missão de Jesus, mesmo em meio à limitada compreensão dos discípulos pré-ressurreição. A exegese patrística e reformada é unânime ao admitir que, antes da glorificação, os discípulos estavam ainda longe de alcançar uma compreensão plena — contudo, egnōkan marca a legitimidade do conhecimento já existente e operante.

A declaração “hoti panta hosa dedōkas moi para sou eisin” (que tudo quanto me deste provém de ti) é intencionalmente tautológica, como afirma Harris (p. 222), justamente para reforçar a dependência absoluta do Filho em relação ao Pai. O substantivo panta (“tudo”) acompanhado de hosa (“quanto”, “tudo quanto”) estabelece um escopo totalizante: tudo o que foi conferido ao Filho — pessoas, autoridade, palavras, obras, missão — tem origem no Pai. O verbo dedōkas é o perfeito ativo de didōmi e aparece aqui como repetição temática dos vv. 2 e 6, formando uma tríade de concessão divina: o Pai dá ao Filho todas as coisas; o Filho manifesta ao mundo essa doação; os discípulos reconhecem que a origem de tudo está em Deus.

A preposição para com o genitivo sou (para sou) merece atenção especial. Como mostram os estudos exegéticos, o sentido aqui não é o de “dado por ti” (como seria o caso com hypo), mas sim “procede de ti”, enfatizando a origem, não apenas o agente do dom. Isso marca uma importante distinção teológica: o foco não está no ato de transmissão em si, mas na procedência ontológica. Tudo que pertence a Cristo em sua missão e autoridade tem sua fonte no ser do Pai — um ponto que retoma a interdependência já apresentada em João 5:19 e 10:30. O que Jesus faz é o que vê o Pai fazer; o que Ele ensina é o que ouviu do Pai; e o que Ele possui, como aqui, é do Pai, e vem do Pai.

Como enfatizado nos comentários adicionais, esse conhecimento não deve ser interpretado como a conclusão de um raciocínio teológico por parte dos discípulos, mas como o fruto do processo de revelação e obediência iniciado na relação com Jesus. O texto enfatiza que eles “souberam” que tudo aquilo que está nas mãos de Cristo tem uma origem divina, o que os vincula à missão do próprio Deus. A percepção dos discípulos, ainda que parcial antes da ressurreição, já havia alcançado a confissão de que as palavras e obras de Cristo eram de procedência celestial. Isso cumpre o propósito do ministério terreno de Jesus, como resumido nos versículos anteriores: manifestar o nome do Pai, revelar sua glória, entregar suas palavras e realizar sua obra.

Portanto, este versículo não só consolida a obra de mediação de Jesus como aquele que “recebe do Pai” e “transmite aos homens” (João 1:18; 12:49–50), mas também sela a identidade dos discípulos como aqueles que, por conhecerem isso, pertencem à nova realidade messiânica e eclesial. Eles reconhecem — mesmo que ainda imperfeitamente — que a missão de Jesus é de origem divina e que, portanto, segui-lo é entrar no próprio projeto eterno do Pai.

Se o versículo anterior destacou a fidelidade dos discípulos à palavra de Deus, este versículo destaca o entendimento de que a fonte dessa palavra é o Pai, o que completa a teologia joanina da revelação. Conhecer a procedência é essencial para crer na mensagem; reconhecer que Jesus age “do Pai” é reconhecer que Ele é o enviado, o Verbo, o “único gerado do Pai” (João 1:14). Assim, João 17:7 é mais do que um resumo da compreensão dos discípulos: é uma confirmação da eficácia da revelação de Cristo e uma antecipação do ministério pós-ressurreição, quando esse conhecimento será plenamente iluminado pelo Espírito (João 16:13).

Com base na análise exegética detalhada de João 17:7 — centrada nos verbos egnōkan e dedōkas, bem como na preposição para sou —, observamos que a maioria das versões modernas e clássicas mantém-se fiel à estrutura e sentido da expressão grega original nyn egnōkan hoti panta hosa dedōkas moi para sou eisin, preservando tanto a ênfase no conhecimento consolidado dos discípulos quanto a procedência ontológica de tudo que foi dado a Cristo pelo Pai.

As versões AFV, ASV, Darby, DRB, EMTV, ESV, ESV+, Geneva, JUB, KJV, LITV, LSV, NENT, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, YLT apresentam traduções praticamente verbatim umas das outras, reproduzindo com fidelidade a formulação “agora eles sabem (ou conheceram) que todas as coisas (ou tudo quanto) que me deste (ou me tens dado) são (ou vêm) de ti”. Essas versões mantêm de forma precisa tanto a noção de totalidade atribuída a panta hosa (“tudo quanto”), quanto a procedência divina expressa por para sou (“de ti”, “vêm de ti”, “são de ti”), respeitando o paralelismo semântico da oração.

A BSB, GNB, GW, ISV, NET, Williams optam por uma forma sintética, mas teologicamente coerente, ao traduzirem com estruturas como “everything you gave me comes from you” (“todas as coisas que me destes veem de ti”) ou “really comes from you” (“realmente vem de ti”), preservando a ideia central da origem divina sem recorrer à forma literal “são de ti”. Essas versões demonstram uma leve tendência interpretativa, ao enfatizar o aspecto dinâmico da procedência com verbos como “comes” ou “really comes”, em vez da cópula estática “são” (eisin), mas sem prejuízo teológico, pois continuam reconhecendo a dependência ontológica entre o que Cristo possui e a fonte que é o Pai.

A CEV, ERV, NTLH, NVT, TPT adotam uma linguagem mais livre e funcional, traduzindo a ideia como “tudo o que tenho veio de ti” ou “você me deu tudo o que eu tenho”, o que se aproxima da semântica de dedōkas moi com um leve deslocamento do foco do reconhecimento para a posse. Ainda que essas versões expressem corretamente a ideia da doação, elas tendem a suavizar a estrutura epistemológica do texto (o “agora sabem que…”), eliminando o aspecto do egnōkan, e podem diluir a força teológica do perfeito ativo que aponta para um estado de conhecimento consolidado.

A LEB opta por “Now they understand” (“Agora eles entendem”), o que representa uma possível tradução de egnōkan, mas com nuances interpretativas que deslocam o sentido do perfeito para um presente contínuo. A distinção entre “know” (saber) e “understand” (compreender) pode ser sensível: egnōkan implica um saber recebido como revelação e não necessariamente uma compreensão intelectual ou racional, o que aproxima as versões mais literais da intenção do texto grego.

A HRB apresenta uma forma expansiva e interpretativa: “Now they have known that everything that you have given to me I have given to them and they received them” (“Agora eles sabem que todas as coisas que tens me dado eu lhes dei e eles as receberam”) Essa tradução expande o texto com elementos de João 17:8, mesclando versículos e comprometendo a precisão estrita do v. 7. Tal interpolação, embora baseada em contexto teológico verdadeiro, não corresponde ao que está escrito exclusivamente em João 17:7 e, portanto, se afasta da fidelidade ao texto original.

A versão Murdock, seguindo a tradição siríaca, traduz: “Now I have known, that whatever thou hast given me, was from thee” (“Agora eu sei que o que quer que tu tenhas me dado, era vosso”) Essa forma é teologicamente defensável, mas troca o sujeito do saber (os discípulos) para o próprio Jesus, o que é um desvio claro do grego egnōkan na terceira pessoa plural. A tradução altera não apenas a estrutura gramatical mas o significado do versículo, transferindo o foco da oração de Cristo pelos discípulos para a autopercepção de Cristo, o que não condiz com o grego nem com o fluxo da oração intercessória.

Por fim, a Vulgata Latina (“nunc cognoverunt quia omnia quae dedisti mihi abs te sunt”) e o Hebrew NT (DD) (“ve‘atah yade‘u ki-kol asher natatah li me‘immekh hu”) mantêm fielmente a estrutura do original, com um perfeito (cognoverunt, yade‘u) que corresponde a egnōkan, com equivalentes para dedōkas moi (dedisti mihi, natatah li) e para sou (abs te, me‘immekh), reforçando tanto o tempo verbal quanto a procedência do que é dado. Essas versões merecem destaque por preservar não apenas o sentido, mas também o valor teológico e sintático do original.

Em suma, a maior parte das versões consultadas reforça e confirma a análise exegética: o versículo expressa o conhecimento consolidado, por parte dos discípulos, de que tudo quanto foi concedido a Jesus tem origem no Pai. As versões que se afastam dessa estrutura — como HRB, Murdock, TPT e, em menor grau, CEV/ERV — introduzem simplificações ou alterações de sujeito que, embora compreensíveis em contextos pastorais, não devem ser adotadas como base exegética em estudos críticos. As versões mais fiéis ao grego (KJV, ASV, DRB, Geneva, LSV, LITV, etc.) permanecem as mais confiáveis para preservar a integridade do texto joanino.

Tendo isso em mente, quando abordamos mais a sério teo-filosoficamente sobre João 17:7, isso requer uma leitura cuidadosa não apenas do vocabulário explícito do versículo, mas de sua inserção na oração sacerdotal de Cristo e de sua repercussão na doutrina trinitária e na consciência eclesial nascente dos discípulos. Jesus declara: “Agora, já têm conhecido que tudo quanto me deste provém de ti”. A primeira pergunta inevitável é: por que “agora”? O advérbio grego nyn (“agora”) carrega, sim, um valor temporal, mas dentro do Evangelho de João ele quase sempre ultrapassa a simples cronologia e carrega implicações revelacionais — marcando pontos decisivos em que a verdade de Deus é finalmente discernida pelo coração humano (cf. João 4:23; 5:25; 13:31).

No caso específico de João 17:7, esse “agora” não implica que os discípulos apenas neste instante descobriram que “tudo quanto” Jesus possui provém do Pai, como se antes fossem completamente ignorantes. O Evangelho já nos informou que eles creram (João 2:11; 6:69), que reconheciam Jesus como vindo de Deus (João 16:30), e até que sabiam que Ele falava palavras do Pai (João 12:49). Contudo, há um amadurecimento nessa revelação — uma transição da fé incipiente e confusa para uma consciência espiritual mais plena, forjada pela convivência, pelos ensinamentos, pelos sinais e, agora, pelo próprio momento liminar da cruz. Assim, o “agora” exprime um kairos, não um chronos — um momento espiritualmente decisivo, de iluminação interna, que marca o ingresso do discípulo na participação mais plena da consciência messiânica de Cristo.

Esse conhecimento de que “tudo” o que Cristo tem provém do Pai não é apenas uma constatação factual: é uma participação na autoconsciência do Verbo. Como observou o primeiro comentário fornecido, essa frase carrega a transmissão de uma consciência — aquilo que caracterizava Jesus em sua relação com o Pai (tudo Nele era do Pai, por meio do Pai, reflexo do Pai), agora começa a caracterizar os discípulos, que reconhecem em Cristo não um mestre independente, mas o espelho da vontade divina. Isso os constitui, portanto, como seus legítimos representantes no mundo: ao saberem que “tudo” n’Ele vem de Deus, eles compreendem que a escuta de Jesus é escuta do Pai, e que a obediência a Jesus é obediência ao Pai (cf. João 14:10, 14:24). Essa compreensão é eclesiológica: a Igreja nasce a partir da fé que reconhece em Cristo não apenas alguém autorizado por Deus, mas alguém cuja própria essência e missão são o transbordar da vontade do Pai.

Mas como esse “tudo” pode vir de Deus, se o próprio Cristo é Deus? Esta é a tensão trinitária fundamental que exige uma abordagem ontológica. No plano da revelação, Cristo frequentemente fala como o Enviado (João 3:17, 5:24, 8:42), como o Filho obediente, como aquele que “não fala por si mesmo” (João 12:49), e cuja obra é dar glória ao Pai (João 17:4). Trata-se da economia da Trindade, onde há distinção pessoal sem separação de essência. Cristo, o Verbo eterno, é consubstancial ao Pai — mas, como Verbo encarnado, vive e fala em constante submissão voluntária e amorosa ao Pai. A frase “tudo o que me deste provém de ti” exprime não inferioridade ontológica, mas relação filial eterna que se manifesta na temporalidade de sua missão.

Teologicamente, então, o que é dado ao Filho vem do Pai, porque tudo que é do Pai é também do Filho (João 16:15), mas o é segundo a lógica eterna da doação. O Pai gera o Filho, o Filho procede do Pai como expressão perfeita de sua vontade e glória. Isso não compromete a co-igualdade, pois a eternidade dessa relação impede qualquer hierarquia cronológica. A Trindade não é um trio de seres separados, mas uma unidade de essência com distinções pessoais: o Pai como fonte não causada, o Filho como gerado eternamente, o Espírito como procedente do Pai e do Filho.

Logo, afirmar que tudo que Cristo tem “provém do Pai” não implica submissão servil, nem negação de sua divindade, mas afirma a relação filial trinitária: o Pai dá, o Filho recebe eternamente — e, neste dar e receber, há unidade perfeita de vontade e de glória. A Igreja, ao compreender isso, não se curva diante de um “outro deus”, mas adora no Filho o esplendor do Pai. E os discípulos, ao dizerem “agora sabemos que tudo o que tens vem do Pai”, estão confessando a unidade trinitária sem o saber ainda formular. Estão adentrando no mistério que depois Paulo, João e os Concílios Nicaenos confessariam: que o Filho é “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro” — e tudo o que Ele tem, faz, diz e é... procede do Pai, e é um com o Pai.

Essa consciência, portanto, é espiritual e ontológica. Ela transforma o modo como os discípulos veem Jesus, e ao mesmo tempo os transforma: sabendo quem Ele é, sabem quem são eles mesmos, porque sua missão futura será repetir essa economia da mediação — falar as palavras de Cristo, que são do Pai, viver para glorificar o Filho, que glorifica o Pai, e assim continuar no mundo o mistério da Trindade revelada.

João 17:8a  Porque lhes dei as palavras que me deste... (Gr.: hoti ta rhēmata ha edōkas moi dedōka autois... — A primeira cláusula de João 17:8a inicia-se com a conjunção causal hoti (“porque”), introduzindo a justificativa da afirmação precedente feita no versículo 7: “agora já têm conhecido que tudo quanto me deste provém de ti.” Essa explicação, portanto, não está isolada, mas constitui a demonstração causal da plena percepção dos discípulos quanto à origem divina da missão de Jesus. É o que se pode chamar de relação de causa teológica experiencial — o conhecimento que os discípulos adquiriram decorre diretamente do fato de Jesus lhes ter transmitido ta rhēmata [“as palavras”].

O substantivo neutro plural ta rhēmata, diferentemente de ho logos (como aparece em João 17:6 e 17:14), não designa aqui a totalidade da mensagem do evangelho como um todo sistemático, mas suas partes constitutivas — cada expressão, sentença, ensinamento e instrução pronunciada por Jesus, conforme conferido pelo Pai. Trata-se de um plural distributivo e revelatório, como nos paralelos teológicos de João 3:34 (“pois aquele que Deus enviou fala as palavras [rhēmata] de Deus”) e João 6:63–68, onde Pedro declara: “Tu tens as palavras [rhēmata] da vida eterna.” O uso do plural realça a particularização da transmissão revelacional, como já sugerido em Lucas 1:37 e em João 5:47, 8:47, e 12:48, onde os rhēmata são tratados como instrumentos eficazes de juízo e de salvação. O contraste com ho logos em João 17:6 confirma essa distinção semântica: enquanto logos aponta para a mensagem como entidade coesa e orgânica, rhēmata acentua a comunicação fragmentária mas cumulativa das palavras do Pai — como que cada palavra, verso e mandamento pronunciado por Jesus fosse recebido, palavra por palavra, como um dom celeste.

A forma verbal ha edōkas moi (“que me deste”) está no aoristo ativo indicativo, 2ª pessoa do singular, do verbo didōmi (“dar”), e encontra-se plenamente atestada nos manuscritos A, B, C, D, preferida pelos editores críticos (Lachmann, Tischendorf, Westcott-Hort, etc.), em oposição à leitura dedōkas (perfeito), preservada em א, L, Γ e no Textus Receptus. A escolha do aoristo (edōkas) aqui é significativa: destaca um ato pontual, com foco na transmissão inicial da revelação, não em seu estado contínuo. Isso implica que Jesus considera o recebimento das palavras do Pai como um evento definitivo na economia da missão encarnada — algo estabelecido no momento da investidura messiânica, conforme João 3:35 (“o Pai ama o Filho e deu-lhe todas as coisas nas mãos”).

O verbo subsequente dedōka autois (“dei a eles”) está no perfeito ativo indicativo, 1ª pessoa do singular, também de didōmi, o que introduz uma tensão verbal com o aoristo anterior. Essa oposição entre o aoristo (edōkas) e o perfeito (dedōka) não é meramente estilística, mas teológica: o aoristo indica o ato da entrega divina, enquanto o perfeito exprime o estado atual resultante e contínuo dessa doação por parte do Filho aos discípulos. A permanência dessa doação — a posse contínua da Palavra — é fundamental para a doutrina joanina da habitação da Palavra nos crentes (cf. João 15:7: “se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós…”). O perfeito sublinha que os discípulos ainda possuem essas palavras; elas permanecem neles como realidade operante.

A exegese da versão siríaca (Peshitta) confirma a estrutura paralela e distributiva: dḥelapet lehun lemalle d’at yehabt li — “pois lhes dei as palavras que me deste”. O termo lemalle traduz fielmente rhēmata, e o verbo dḥelapet (forma peʿal de ḥlp) enfatiza a ação de entregar ou transmitir oralmente. Já a versão hebraica emprega had’varim (“as palavras”), confirmando o paralelismo com devarim de Deuteronômio 18:18, a passagem que serve de pano de fundo profético para este versículo. Ali, o Senhor diz: “Porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar.” O próprio Jesus já havia ecoado essa tradição em João 12:49 (“o Pai que me enviou, esse me deu mandamento quanto ao que dizer e o que anunciar”) e em João 15:15 (“tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer”).

Do ponto de vista exegético, essa cláusula confirma que a mediação de Jesus não é autônoma, mas absolutamente obediencial. Ele fala somente o que recebeu. A cristologia joanina se desenvolve aqui em torno da comunicação vertical do conteúdo revelacional. A autoridade de Jesus em ensinar e falar repousa inteiramente em sua fidelidade em transmitir exatamente o que recebeu do Pai. Por isso, como bem observado por Bernard (Progress of Doctrine, p. 25), “nesta verdade repousa toda a estrutura dos credos e doutrinas, a base da autoridade do pregador, da segurança do crente e da existência da Igreja.”

Essa afirmação “dei-lhes as palavras que me deste” é, portanto, de alcance fundacional: define o modelo de transmissão doutrinária da fé cristã, desde o Pai até o Filho, e do Filho até os apóstolos. Ela explica, ainda, como os discípulos puderam alcançar o conhecimento verdadeiro e a fé salvadora mencionados nas cláusulas seguintes do versículo. A estrutura da sentença revela dois sujeitos da ação: Jesus, que fielmente entrega o que lhe foi confiado; e os discípulos, que efetivamente recebem (elabon) e interiorizam essas palavras. Essa recepção marca o início do discipulado autêntico, em contraste com aqueles que ouviram mas rejeitaram (cf. João 1:12; 8:47).

A implicação teológica é profunda: o discipulado cristão não é apenas escutar Jesus, mas reconhecer que suas palavras são palavras do próprio Deus. O processo pedagógico da fé se inicia aqui: escuta → recepção → compreensão → fé. Como o texto irá mostrar nas frases seguintes, isso os levou a conhecer verdadeiramente (egnōsan alēthōs) e a crer (episteusan). Ambos os verbos no aoristo denotam ações definidas e históricas: a fé e o conhecimento dos discípulos, embora sujeitos a amadurecimento, já foram realizados na história da revelação.

João 17:8a é a demonstração exegética e teológica do que significa que “a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (Romanos 10:17). O Pai deu suas palavras ao Filho; o Filho as deu aos discípulos; e os discípulos as receberam. Nesse ciclo perfeito de revelação, se fundamenta a identidade da Igreja e a confiabilidade da doutrina apostólica.

Prosseguindo com a comparação das versões de João 17:8a — “porque lhes dei as palavras que me deste” — revela uma coesão quase unânime entre as traduções formais e interlineares no reconhecimento do encadeamento teológico essencial do versículo, que articula: (1) a origem divina da revelação, (2) sua mediação por Jesus e (3) a doação objetiva dessa revelação aos discípulos. A maioria das versões verte o grego hoti ta rhēmata ha edōkas moi dedōka autois de maneira literal, respeitando a estrutura distributiva e causal do original.

As traduções que mantêm quase idêntica formulação — “for I have given them the words that you gave me” (“Pois eu os dei as palavras que tu me destes”) — incluem: AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, ESV+, Geneva, JUB, KJV, LEB, LITV, NENT, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT. Essas versões seguem uma equivalência formal quase literal, distinguindo corretamente a entrega divina a Jesus (you gave me) e a entrega subsequente feita por Ele aos discípulos (I have given them), correspondendo às formas verbais gregas edōkas (aoristo) e dedōka (perfeito), como destacado na análise exegética. Essa distinção é fundamental: o aoristo indica o evento inaugural da entrega das palavras ao Filho, e o perfeito mostra o resultado presente e contínuo dessa doação por parte de Jesus. A fidelidade dessas versões, portanto, não é apenas léxica, mas também verbal, respeitando a nuance temporal do texto.

A versão ABP+ (Apostolic Bible Polyglot) apresenta uma interlinearização de base léxica, traduzindo: “For the words which you have given to me, I have given to them.” Ainda que use “have given” para ambos os verbos edōkas e dedōka, o paralelismo sintático e a equivalência semântica se mantêm compreensíveis. Já a Latin Vulgata preserva a mesma dualidade: verba quae dedisti mihi dedi eis, separando nitidamente o passado da entrega divina da doação do Filho aos homens, em fidelidade à estrutura grega.

Outras versões como ISV, NET, GW, Williams, TLV, TCENT, LSV, LITV, NVT também seguem esse padrão essencial, mesmo que em alguns casos utilizem variações leves nos tempos verbais em inglês (“Eu dei”, “Eu tenho dado”, “Eu passei adiante”) — mas a equivalência funcional do conteúdo permanece. A TLV opta por uma forma levemente mais interpretativa, mas ainda fiel: “The words, which You gave Me, I have given to them” (“As palavras, que Tu me destes, eu as tenho dado a eles”) A LSV igualmente opta por “sayings,” mas não altera o sentido original do plural rhēmata.

As versões NTLH, NVT, GNB, CEV, ERV, TPT se afastam da literalidade, usando termos como “mensagem” (NTLH, GNB), “told them” (“os contei”) (CEV), “I told them the words you gave me” (“Eu disse a eles as palavras que você me deu”, ERV), ou mesmo “And the very words you gave to me to speak I have passed on to them” (“E as próprias palavras que você me deu para façar eu passei a diante para eles”, TPT). Embora semanticamente compatíveis, essas traduções deixam de evidenciar com precisão o vínculo morfológico entre os dois verbos edōkas e dedōka e diluem a estrutura verbal revelacional do versículo, reduzindo a força do paralelismo teológico: o Pai deu → o Filho deu. Além disso, perdem a distinção entre rhēmata (palavras individuais) e logos (mensagem total), reduzindo a precisão semântica presente no grego.

A Peshitta-T e o Hebrew NT (DD) oferecem traduções que mantêm excelente correspondência conceitual com o original grego. O texto siríaco: d’malle d’yahavt li yahavt lehun (“as palavras que me deste, eu lhes dei”) respeita o paralelismo da concessão divina e da entrega do Filho. A forma verbal yahavt (pretérito) ocorre em ambas as cláusulas, mantendo o equilíbrio aorístico da ação divina e da mediação messiânica. O mesmo ocorre no hebraico: et-had'varim asher natata li natati lahem, em que os dois verbos natata (tu deste) e natati (eu dei) reiteram a cadeia de transmissão do conteúdo revelacional, embora o hebraico opte por devarim no lugar de rhēmata.

Já versões como a Weymouth trazem uma nuance interpretativa notável: “For the truths which Thou didst teach me I have taught them.” Aqui, rhēmata é traduzido por “truths” (“verdades”), e dedōka por “have taught” (“tenho ensinado”). Embora essa tradução capture o sentido didático implícito no contexto, ela rompe com o valor lexical direto de didōmi (dar), optando por “ensinar,” o que pode ser teologicamente enriquecedor, mas exegética e morfologicamente impreciso.

Portanto, as versões que mais se aproximam da fidelidade ao texto grego no que tange à parte “a” de João 17:8 são aquelas que mantêm duas instâncias do verbo ‘dar’, separando a doação do Pai ao Filho da do Filho aos discípulos, e preservam a palavra “palavras” ou “ditos” no plural, respeitando o uso de rhēmata como distinto de logos. Nesse aspecto, destacam-se especialmente: ASV, BSB, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, JUB, KJV, LEB, LITV, RV, UASV+, WEB, YLT. Essas versões não apenas preservam a estrutura sintática e o valor aspectual dos verbos, mas também mantêm o plural específico e distributivo do substantivo, sendo, portanto, mais adequadas para a leitura exegética e teológica rigorosa do texto.

As palavras que Jesus afirma ter transmitido aos discípulos — ta rhēmata ha edōkas moi — não são meramente informações ou mandamentos isolados, mas constituem, segundo a tradição joanina e o arcabouço teológico veterotestamentário, a substância viva da revelação. A distinção entre rhēmata e logos em João é fundamental para compreendermos o que está em jogo nesta frase: enquanto logos se refere ao Verbo eterno, princípio pessoal e criador (João 1:1), rhēmata designa as expressões articuladas que veiculam este Logos ao mundo. São as “palavras” no plural — cada sentença, cada anúncio do Reino, cada parábola, cada ensino doutrinário — que constituem a forma audível e cognoscível do Logos encarnado. Em João 6:63, Jesus declara: “as palavras que eu vos disse são espírito e vida”, revelando que essas palavras são investidas de potência criadora e transformadora.

Na tradição do Antigo Testamento, o anúncio messiânico de Deuteronômio 18:18 já configurava o Messias como um novo Moisés: um profeta no qual Deus colocaria suas palavras para que as comunicasse ao povo. O Targum de Jonathan interpreta este texto com exatidão joanina: “colocarei as palavras da minha profecia em sua boca.” Ora, Jesus, no evangelho de João, cumpre este oráculo não apenas como portador das palavras divinas, mas como aquele cuja própria essência é a Palavra encarnada — o Logos sarx egeneto (João 1:14). A estrutura da revelação, portanto, é dupla: o Filho é tanto o conteúdo (como Logos) quanto o mediador (ao entregar os rhēmata). Isso implica que cada palavra transmitida aos apóstolos é inseparável da sua origem divina, mas também do próprio Cristo como fonte encarnada. Aqui se dissolve qualquer concepção de que o ensino de Jesus seja algo originado autonomamente: ele ensina o que lhe foi dado pelo Pai (cf. João 12:49).

Esta cadeia — Deus dá a Jesus, Jesus dá aos discípulos — possui consequências teológicas vastíssimas para a compreensão da Escritura e do cânon cristão. Em primeiro lugar, legitima-se a autoridade apostólica como derivada, nunca autônoma. Os apóstolos não inventam; transmitem o que receberam. Isso ecoa a tradição paulina de 1 Coríntios 11:23: “porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei.” A ideia de “tradição” apostólica não é, pois, um conceito institucional, mas uma extensão da mediação divina. A Bíblia cristã, entendida como Escritura apostólica, é o prolongamento desse movimento: do Pai ao Filho, do Filho aos apóstolos, dos apóstolos à Igreja.

Filosoficamente, isso desloca o conceito de revelação para um paradigma relacional e participativo: a verdade divina não é um conteúdo estático, mas um dom vivo, doado, acolhido e reentregue. Essa revelação não é contínua no sentido de adições infinitas, mas contínua na medida em que o mesmo conteúdo dado por Deus se expande em novas compreensões ao ser internalizado e proclamado. Em João 14:26, Jesus já havia dito que o Espírito Santo “ensinará todas as coisas” e “fará lembrar” o que ele dissera — ou seja, a revelação se desenvolve não por substituição, mas por aprofundamento do já dito.

Teologicamente, então, as “palavras” de João 17:8a não são uma nova Torá no sentido legal, mas uma nova iluminação da Torá sob a ótica do Verbo feito carne. Não há ruptura, mas cumprimento. O Cristo não abole a Lei, mas revela seu âmago. Os rhēmata de Jesus, recebidos do Pai, são a nova chave hermenêutica que abre a Torá à sua plenitude escatológica. É por isso que João 5:39 afirma que as Escrituras “testificam de mim”, e que João 7:16 declara: “a minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou.”

Por fim, a implicação eclesiológica e epistemológica é decisiva: se as palavras que conhecemos como Bíblia são fruto de um ato trinitário de doação — Pai → Filho → apóstolos —, então o conhecimento verdadeiro de Deus se dá não por esforço racional isolado, mas por fé obediente na Palavra recebida. Assim, João 17:8a não é apenas um registro da entrega de conteúdo, mas o alicerce da doutrina cristã da revelação, da autoridade das Escrituras, da função apostólica e da mediação da verdade divina na história.

João 17:8b ...e eles a aceitaram, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram que me enviaste. (Gr.: ...kai autoi elabon kai egnōsan alēthōs hoti para sou exēlthon kai episteusan hoti su me apesteilas — A frase de João 17:8b apresenta o desdobramento teológico do processo de recepção revelacional indicado na cláusula anterior. O sujeito da ação permanece os discípulos, referidos aqui pela forma enfática autoi (“eles mesmos”), e os verbos empregados — elabon, egnōsan, episteusan —, todos no aoristo ativo indicativo, representam não apenas ações concluídas no passado, mas realidades históricas objetivas: os discípulos receberam, conheceram e creram. A sequência verbal revela uma progressão espiritual: da aceitação externa, ao conhecimento intelectual verdadeiro, à fé interior transformadora.

O primeiro verbo, elabon (“receberam”), é aoristo de lambanō, e expressa o acolhimento consciente e ativo das rhēmata anteriormente transmitidas por Jesus. Esse recebimento é mais do que mera escuta: denota apropriação convicta e decisiva. A ideia se conecta com João 1:12 — “Mas a todos quantos o receberam (elabon), deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem no seu nome.” A forma enfática kai autoi elabon (“e eles mesmos receberam”) sublinha que, ao contrário dos que rejeitaram a mensagem (João 1:11), os discípulos a acolheram com fé obediente.

Segue-se o verbo egnōsan (“conheceram”), segunda forma de aoristo de ginōskō, frequentemente empregado em João para descrever o reconhecimento espiritual e relacional de quem Jesus é (cf. João 17:3). A expressão egnōsan alēthōs (“conheceram verdadeiramente”) reforça a autenticidade desse conhecimento, distinguindo-o de formas meramente superficiais ou especulativas, como o oidamen de Nicodemos em João 3:2, que era apenas uma dedução racional, não uma convicção espiritual profunda. Aqui, ao contrário, Jesus aprova esse conhecimento com o advérbio alēthōs (“verdadeiramente, de fato”), declarando-o como um conhecimento validado e genuíno.

O conteúdo do conhecimento é expresso na cláusula subordinada hoti para sou exēlthon — “que de ti saí”. O verbo exēlthon é aoristo ativo de exerchomai (“sair, proceder”), e sua colocação entre “para sou” (“de ti”) enfatiza a origem divina da missão do Filho. Não se trata apenas de um deslocamento físico, mas da procedência eterna do Verbo junto ao Pai. É o mesmo termo usado em João 8:42 — “Eu saí (exēlthon) e venho de Deus, pois não vim de mim mesmo, mas ele me enviou.” A preposição para (“de junto de”) indica procedência pessoal, distinta da simples ideia de origem material — Jesus não diz que foi “criado” por Deus, mas que veio de sua presença. A afirmação confirma a cristologia da geração eterna do Verbo (cf. João 1:14; 16:27–30), em contraste com concepções adocionistas.

Por fim, o verbo episteusan (“creram”), também no aoristo ativo, provém de pisteuō e encerra a tríade de resposta humana: receber → conhecer → crer. A cláusula subordinada que acompanha esse verbo, hoti su me apesteilas — “que tu me enviaste” — retoma a linguagem característica do evangelho de João, em que o envio do Filho pelo Pai aparece como estrutura fundamental da revelação (cf. João 3:17; 5:36; 6:29; 11:42; 17:3, 18, 21, 23, 25). O verbo apesteilas, aoristo ativo de apostellō, remete ao conceito joanino de missão divina: o Pai é o remetente; o Filho é o enviado; os apóstolos são os receptores e retransmissores dessa revelação. A forma enfática su me apesteilas (“tu me enviaste”) reforça a origem celestial exclusiva dessa missão.

A exegese patrística e reformada reconhece aqui a dupla dimensão epistemológica e soteriológica da frase. Para João Gill, os discípulos não apenas ouviram doutrinas verdadeiras, mas foram capacitados a crer nelas como tendo procedido do próprio Deus. Ele cita o Targum de Jonathan sobre Deuteronômio 18:18, onde Deus diz do Messias: “colocarei as palavras da minha profecia em sua boca”, conectando diretamente esta passagem ao ministério verbal e profético de Cristo, agora consumado na aceitação dos apóstolos.

O comentário crítico do Expositor’s Greek Testament observa que a dupla cláusula — hoti para sou exēlthon e hoti su me apesteilas — forma uma antítese harmoniosa: o primeiro hoti expressa uma inferência cognitiva, o segundo uma convicção de fé. Eles sabem que Jesus procedeu do Pai (experiência racional e empírica, cf. João 3:2), e creem que foi enviado por Deus (reconhecimento espiritual). A fé não substitui o conhecimento, mas o consuma — o transcende sem o contradizer. Assim, João articula uma epistemologia da revelação que exige tanto percepção quanto confiança: a verdade é conhecida e crida.

A versão siríaca (Peshitta) traduz fielmente os verbos elabon, egnōsan e episteusan por formas que preservam a natureza histórica e espiritual da resposta: qablū (“receberam”), yedaʿū shrīrāyit (“conheceram verdadeiramente”) e haymanū (“creram”). O adjetivo shrīrāyit [“com verdade”] é especialmente importante, pois reforça a validade objetiva do conhecimento, não apenas sua sinceridade subjetiva. Já a versão hebraica diz veyakirū be’emet (“e reconheceram com verdade”), confirmando o paralelo com a fórmula hebraica do conhecimento verdadeiro da procedência divina do enviado messiânico (cf. Isaías 61:1; cf. também João 16:30: “nós cremos que de Deus saíste”).

Portanto, João 17:8b não é mera descrição de um ato de aceitação subjetiva, mas uma declaração formal da validade objetiva da fé dos discípulos, já plenamente constituída ao final do ministério terreno de Cristo. Eles receberam (de forma voluntária), conheceram (de forma verdadeira) e creram (de forma salvadora). Isso sela sua identidade como autênticos seguidores do Verbo encarnado e garante que estão prontos para a próxima fase da missão: continuar a cadeia da revelação que começou no Pai, passou pelo Filho e, por meio do Espírito, será proclamada ao mundo por meio deles.

Já a análise comparativa das versões de João 17:8b mostra que, embora haja um núcleo comum entre as traduções, variações sutis revelam importantes decisões teológicas, estilísticas e exegéticas em relação ao texto grego original kai autoi elabon kai egnōsan alēthōs hoti para sou exēlthon kai episteusan hoti su me apesteilas.

O primeiro segmento, “e eles a aceitaram” (kai autoi elabon), aparece com notável uniformidade na maioria das versões: AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, ESV+, Geneva, JUB, KJV, LEB, LITV, NENT, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT, TLV, que usam construções como “they received them” ou “they have received them”. Isso está de acordo com a forma verbal elabon, aoristo ativo de lambanō, corretamente traduzido como uma ação pontual e conclusa no passado. A tradução “aceitaram” (como em NTLH, NVT, NET, ISV, GW, ERV, GNB, CEV) introduz um sinônimo compreensível, mas menos técnico do que “receberam”, podendo suavizar o sentido de apreensão objetiva de um dom divino. Em contraste, versões como TPT ampliam o sentido com “they have received your words and carry them in their hearts”, inserindo uma nuance emocional que não está explicitada no grego original. Já a Peshitta-T (qablū) e a versão hebraica (qib’luhā) mantêm a ideia de recepção ativa, demonstrando fidelidade semântica plena.

O segundo segmento, “e verdadeiramente conheceram que saí de ti” (kai egnōsan alēthōs hoti para sou exēlthon), revela as maiores variações. As traduções que mantêm uma equivalência formal próxima ao grego, como AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, JUB, KJV, LEB, LITV, NENT, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT, usam construções como “they have known truly that I came from you” (“eles têm conhecido verdadeiramente que eu vim de ti”) ou “they knew of a truth that I came out from thee” (“eles sabem de uma verdade de que eu sai de ti”), traduzindo fielmente tanto o advérbio alēthōs (“verdadeiramente”) quanto o verbo egnōsan (“conheceram”). Algumas versões modernas (como ISV, GW, NET, TLV) trocam “conheceram” por “entenderam” ou “se deram conta”, privilegiando o aspecto cognitivo sobre o relacional, o que é aceitável, mas atenua o peso da experiência de reconhecimento espiritual intencionado por ginōskō. A versão NTLH traduz “ficaram sabendo que é verdade que eu vim de ti”, incluindo um reforço do advérbio de modo (“é verdade”) que permanece fiel ao grego alēthōs. Já a TPT diz “they are convinced that I have come from your presence” (“eles estão convencidos de que eu vim da tua presença”), substituindo o termo “conheceram” por “estão convencidos” — um acréscimo interpretativo que funde as duas últimas orações do original, sem distinção clara entre “saber” e “crer”.

A cláusula final, “e creram que me enviaste” (kai episteusan hoti su me apesteilas), é geralmente bem preservada em todas as versões formais, com mínimas diferenças léxicas. A maioria recorre a formas do verbo “believe” em inglês: AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, JUB, KJV, LEB, LITV, NENT, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT, TLV — todas dizem algo como “they believed that you sent me” (“eles acreditaram que tu me enviastes”) ou “thou didst send me” (“tu me enviastes”, em um inglês arcaico). A uniformidade reflete a clareza da expressão episteusan hoti su me apesteilas, com o verbo pisteuō no aoristo ativo (creram) e o verbo apostellō igualmente no aoristo (enviaste). As versões NTLH, NVT, GNB, CEV, ERV, ISV, NET, GW mantêm a forma verbal correta, embora com pequenas variações estilísticas como “creram que tu me enviaste” ou “they are convinced you sent me” (“eles estão convencidos de que você me enviou”). Contudo, a TPT amplia significativamente a tradução: “they have fully believed that you sent me to represent you” (“eles creram plenamente que você me enviou para te representar”) — o acréscimo “to represent you” (representar-te) não aparece no texto grego, funcionando como uma interpretação midráshica, não uma tradução literal.

Tanto a versão siríaca Peshitta quanto a versão hebraica mantêm com rigor os três verbos — qablū (receberam), yedaʿū shrīrāyit (conheceram verdadeiramente), haymanū (creram) — e as respectivas cláusulas subordinadas com os verbos de procedência e missão: nafqat (saí) e shadratnī (me enviaste). Isso mostra um notável alinhamento com a progressão joanina do texto grego, sem perdas semânticas.

Por fim, é importante observar que algumas versões modernas, como Williams, fazem distinções interessantes: “they have come to know in reality” (“eles vieram a saber na realidade”em vez de apenas “conheceram”), acentuando a progressividade do conhecimento, e “they are convinced” para a fé. Embora fiel ao espírito do texto, isso funde os atos de conhecer e crer de modo que a exegese técnica procura distinguir. João, ao usar egnōsan e episteusan em sequência, faz proposital distinção entre uma inferência espiritual (“saber que saí de ti”) e uma confiança existencial (“crer que me enviaste”).

As traduções mais fiéis ao texto grego de João 17:8b — tanto em termos verbais quanto na progressão teológica — são: AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, JUB, KJV, LEB, LITV, NENT, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT. Essas mantêm: (1) receberam como tradução de elabon; (2) conheceram verdadeiramente como tradução de egnōsan alēthōs; e (3) creram como tradução de episteusan, sem fusão indevida entre os conceitos. As versões mais interpretativas (como TPT, Williams, GNB) introduzem elementos devocionais e estilísticos úteis para leitura pastoral, mas que diluem a estrutura exegética do texto original. Em contraste, tanto a Peshitta quanto a versão hebraica permanecem altamente fiéis à forma e ao conteúdo da progressão revelacional presente no grego de João 17:8b.

Comentário Teológico-Filosófico de João 17:8b
“...e eles a aceitaram, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram que me enviaste.”

A profundidade teológica desta declaração de Jesus repousa sobre três colunas que, em conjunto, definem a natureza do discipulado verdadeiro no Evangelho de João: acolhimento, conhecimento e . Esses três momentos não são apenas fases psicológicas ou emotivas na trajetória espiritual dos discípulos, mas estruturas teológicas fundamentais da resposta humana ao Verbo de Deus encarnado.

A escolha do verbo elabon (“receberam” ou “aceitaram”) não é acidental. Trata-se de um termo técnico no vocabulário joanino para descrever o acolhimento da revelação — como em João 1:12: “Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus.” O que se recebe não é meramente uma doutrina, mas uma presença: o próprio Cristo como Palavra viva. Essa aceitação, porém, não é neutra; ela se dá dentro de um mundo que em sua maior parte rejeita: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (João 1:11). Receber é, assim, um ato de separação ontológica — um juízo. O discípulo não apenas adere mentalmente; ele decide contra o mundo e a favor de uma nova realidade.

Filosoficamente, isso significa que aceitar Jesus é um gesto de ruptura e de eleição. No mundo do primeiro século, muitos homens se apresentaram como messias, profetas ou visionários — de Teudas aos vários libertadores zelotes mencionados por Josefo e Atos 5:36–37. O que diferenciou Jesus, aos olhos dos discípulos, não foi um carisma, um slogan político ou um gesto prodigioso, mas a consistência entre suas palavras e sua origem. Eles creram que ele “veio de Deus” — não apenas que veio com ideias de Deus, mas que era o Enviado. Esse envio — apostellō — não era apenas funcional, mas ontológico: procedia “de junto do Pai” (para sou exēlthon, João 17:8).

Jesus não diz que os discípulos creram que ele era Deus, mas que “verdadeiramente conheceram que saí de ti e creram que tu me enviaste.” Isto levanta uma questão teológica importante: o conhecimento deles era verdadeiro, mas incompleto em termos trinitários. A fé cristã plena, conforme confessada nos concílios posteriores, afirmará a divindade coeterna e consubstancial do Filho com o Pai. Contudo, aqui, Jesus valida como verdadeiro o conhecimento que os discípulos têm — não porque saibam toda a ontologia da Trindade, mas porque reconheceram que ele não falava de si mesmo (João 12:49) e que havia entre ele e o Pai uma unidade de missão e vontade.

Teologicamente, isso aponta para a ideia de revelação progressiva. Como em Deuteronômio 29:29 (“As coisas encobertas pertencem ao Senhor”), há verdades que são desveladas à medida que o ser humano amadurece espiritualmente. A revelação de Deus como Trindade não é um ponto de partida, mas um horizonte de plenitude, que só será reconhecido plenamente após a ressurreição e o envio do Espírito (João 14:26; 16:13–15).

Filosoficamente, essa aceitação do “envio” como critério de verdade aponta para uma epistemologia da revelação: não se conhece Deus por dedução, mas por reconhecimento de sua iniciativa. A verdade, nesse modelo, não é descoberta, mas acolhida. O que os discípulos compreendem é que Jesus não é produto de sua cultura ou expectativa messiânica. Ele quebra essas categorias: não um messias guerreiro, não um líder político, mas um enviado com palavras que “são espírito e vida” (João 6:63).

Essa fé — episteusan hoti su me apesteilas — é confessional, mas não meramente verbal. Trata-se de uma fé intelectualmente informada e espiritualmente discernida. Em João 6:69, Pedro diz: “Nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus.” Em João 17:8b, a ordem é invertida: “conheceram... e creram.” Isso sugere que a fé verdadeira é epistêmica e existencial: ela conhece e confia. O discipulado cristão, portanto, não é adesão a um sistema, mas comunhão com uma pessoa cuja origem divina foi reconhecida.

Em oposição à fé puramente confessional — que recita fórmulas sem convicção — João 17:8b apresenta uma fé pessoal, responsiva e relacional, baseada na percepção do caráter e missão de Cristo. Não é mera fé que “ele existe”, como se diz em Hebreus 11:6, mas fé de que ele foi enviado — ou seja, que sua vida, palavras e missão provêm do coração do Pai. Isso se torna a marca do verdadeiro discípulo: saber e crer que Jesus não é de si mesmo, mas de Deus.

Por fim, há uma implicação escatológica e eclesiológica: os discípulos que recebem, conhecem e creem, tornam-se agora aqueles que serão enviados. João 17:18 dirá: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo.” A fé que reconhece o envio de Jesus se transforma em missão. O discípulo autêntico não apenas confessa, mas reflete e transmite. Ele entra no fluxo da revelação. Em outras palavras, aquele que crê que o Filho foi enviado pelo Pai, passa a ser enviado pelo Filho em nome do Pai. A cadeia revelacional continua.

João 17:8b, em sua forma concisa, é um compêndio de teologia do conhecimento, epistemologia da fé, escatologia do envio e ontologia da revelação. Os discípulos não creram porque Jesus realizou milagres extraordinários ou venceu adversários retóricos. Eles creram porque suas palavras correspondiam ao Deus que falava em suas consciências. Aceitaram porque perceberam a voz do Pai na boca do Filho. Conheceram porque perceberam a procedência. Creram porque reconheceram a missão.

João 17:9a – Análise Gramatical, Etimológica e Exegética
Texto (ARC): “Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo...”
Texto grego (TR, transliteração): egō peri autōn erōtō; ou peri tou kosmou erōtō...

A cláusula é composta por duas sentenças paralelas: uma afirmativa (egō peri autōn erōtō) e uma negativa (ou peri tou kosmou erōtō). A repetição do verbo erōtō nas duas sentenças é essencial para o paralelismo retórico e temático, e o sujeito explícito egō (“eu”) enfatiza o caráter pessoal e intencional da intercessão.

O verbo erōtō (ἐρωτῶ) é o presente ativo indicativo, 1ª pessoa do singular, de erōtaō (ἐρωτάω), que significa originalmente “perguntar, solicitar, rogar”. No evangelho de João, especialmente na linguagem de oração de Jesus, esse verbo é utilizado de maneira técnica para expressar oração de intercessão, e não mera pergunta (cf. João 14:16; 16:23,26; 17:9,15,20). Conforme as fontes exegéticas (especialmente Michaels e Barrett), João escolhe consistentemente erōtaō para denotar a oração de Jesus ao Pai, distinguindo-a de aiteō, usado mais genericamente. O uso aqui é absoluto e intransitivo, sem objeto direto expresso, mas com o complemento perifrástico introduzido por peri (“a respeito de”).

A preposição peri com o genitivo (peri autōn; peri tou kosmou) expressa o tema da petição, o “alvo” da intercessão. Em grego clássico e koiné, peri com o genitivo pode significar “a respeito de”, “por causa de”, ou “em favor de”, e aqui tem função semântica equivalente a hyper (ὑπέρ), como indicam as fontes críticas e os paralelos em João 17:20 e 1 João 5:16. A tripla ocorrência de peri nesta mesma frase (“por eles... pelo mundo... por aqueles que me deste...”) marca com clareza as fronteiras temáticas da intercessão de Jesus.

O substantivo kosmos (κόσμος), no genitivo tou kosmou, deve ser interpretado aqui segundo o uso peculiar de João. Embora o termo possa significar “mundo criado”, “humanidade”, ou “ordem organizada”, no quarto evangelho frequentemente assume um tom teológico negativo, referindo-se ao sistema caído em rebelião contra Deus (cf. João 1:10; 3:19; 7:7; 15:18–19; 17:14). Aqui, como mostram claramente Barrett, Schnackenburg e Brown, kosmos designa o mundo incrédulo, aquele que se recusa a crer em Cristo e se opõe à revelação.

A frase “egō peri autōn erōtō” (Eu rogo por eles) marca, como reconhecem todas as fontes, o início da segunda seção da oração sacerdotal (João 17:9–19), centrada na intercessão de Jesus pelos discípulos. O sujeito enfático egō (“eu”) e o objeto indireto peri autōn (“por eles”) indicam solenidade e pessoalidade. Oração e rogo são aqui atos conscientes, orientados para indivíduos específicos — os discípulos — que, nos versículos anteriores, foram identificados como aqueles que receberam a Palavra, creram, e reconheceram que Jesus foi enviado pelo Pai (vv. 6–8).

A negativa imediata — ou peri tou kosmou erōtō — introduz uma exclusão intencional e teológica: Jesus não está orando pelo mundo. Essa negativa tem sido mal interpretada ao longo da história teológica. Intérpretes como Calvino, Lampe e Jansen viram aqui um indício de predestinação negativa: Cristo não ora pelo mundo porque este está fora do escopo da redenção. Contudo, as fontes mais equilibradas, como Meyer, Alford, Luthardt, Bengel, Barrett, Schnackenburg, Michaels, apontam corretamente que essa exclusão é situacional, não absoluta. Jesus não está dizendo que jamais ora pelo mundo (cf. João 17:21,23; Lucas 23:34; Mateus 5:44), mas que nesta intercessão particular, seu foco está nos discípulos, porque a missão que se inicia após sua ascensão depende de sua preservação e santificação (João 17:11,15,17).

Como diz Stier, o foco é “eu oro por eles”, depois “não oro pelo mundo”, e logo “oro por aqueles que me deste”. O paralelismo serve para ressaltar o valor e urgência da oração pelos discípulos — os “primeiros frutos” da nova aliança, os que serão os mediadores da glória de Deus no mundo. Como diz Luthardt, a exclusão do mundo nesta oração é motivada por uma lógica da eleição instrumental: os discípulos são o canal por meio do qual o mundo será confrontado, iluminado e convidado à fé. O mundo é o alvo da missão, mas não o sujeito atual da intercessão sacerdotal.

A referência a “aqueles que me deste” (ὧν δέδωκάς μοι) volta à linguagem de eleição e dádiva divina de João 17:6–8. O Pai deu os discípulos ao Filho, e agora o Filho os devolve ao Pai em oração, como um ato sacerdotal. Esta doação mútua revela a unidade da obra trinitária, mesmo que o texto ainda não explicite a doutrina trinitária formal.

Teologicamente, esta oração mostra Jesus como o intercessor perfeito — aquele que, à semelhança do sumo sacerdote no Dia da Expiação (Levítico 16), intercede apenas pelos de dentro, os consagrados, e não pelos de fora. No Antigo Testamento, isso está refletido na linguagem de separação sacerdotal: Abraão foi chamado do meio do mundo (Gênesis 12); Israel foi separado das nações (Êxodo 19:5–6); o sumo sacerdote entrava no Santo dos Santos por Israel e não pelos gentios. Em João 17, Jesus assume esse papel e ora por aqueles que são seus — e que, por essa consagração, tornar-se-ão instrumentos da redenção do mundo (João 17:21).

Mesmo assim, a exclusividade aqui não é excludente, mas estratégica. Como observa o comentário reformado citado, “a glória do nome do Pai está agora depositada neles”, e, por isso, é necessário assegurar que eles permaneçam fiéis, para que o mundo creia (João 17:21). O alvo da missão, portanto, é global; mas o objeto da intercessão imediata é específico, como nos círculos concêntricos da revelação: Deus → Cristo → apóstolos → mundo.

A cláusula inicial de João 17:9 — “ἐγὼ περὶ αὐτῶν ἐρωτῶ· οὐ περὶ τοῦ κόσμου ἐρωτῶ” — marca a transição da oração do Filho a favor de seus discípulos, estabelecendo de forma solene a delimitação da intercessão. A construção retórica, com o sujeito enfático ἐγώ no início e a dupla ocorrência do verbo ἐρωτῶ com a preposição περὶ, exige uma tradução que preserve tanto a solenidade quanto a estrutura simétrica do grego. Nesse sentido, as versões que mantêm a estrutura afirmativa-negativa com repetição verbal e objeto perifrástico explícito refletem melhor a força teológica do original. São elas: AFV, ASV, Cepher, DRB, EMTV, Geneva, JUB, KJV, RV, WEB, WEBA, Webster, NENT, Murdock, que vertem de forma praticamente idêntica: “I pray for them; I pray not for the world, but for those whom thou hast given me.” Essas traduções seguem com fidelidade a ordem original, repetem o verbo “pray” para marcar a antítese com o mundo, e conservam a cadência própria da linguagem solene joanina. Elas reconhecem que o verbo ἐρωτῶ, embora signifique “pedir” ou “rogar”, em João é usado tecnicamente para oração intercessória (cf. João 14:16; 16:26), e por isso traduzem “pray” com consistência.

Algumas versões modernas preferem atualizar a estrutura, mantendo fidelidade semântica mas com pequenas modificações estilísticas. ESV, NET, GW, UASV+, LEB, TLV, TCENT, LSV, LITV, ISV, BSB, Williams, ERV, GNB, NTLH, NVT optam por formas contínuas (“I am praying,” “I am asking,” “I do not ask”) ou por substituir “pray” por “ask on behalf of”, preservando o uso perifrástico de περὶ com o genitivo. Embora essas variações não alterem substancialmente o sentido, algumas nuances são diluídas. Por exemplo, as formas “I ask on behalf of” (LEB, TLV, NET) traduzem corretamente o valor intercessório de περὶ, mas suavizam o paralelismo verbal que João cuidadosamente constrói com a duplicação de ἐρωτῶ. Já versões como Williams introduzem o advérbio “now” (“I am not praying for the world now”), uma escolha interpretativa alinhada à exegese crítica moderna (Meyer, Bengel, Stier), que entende que Jesus não está negando intercessão pelo mundo em termos absolutos, mas apenas naquele momento específico. Esse acréscimo está teologicamente bem fundamentado, mas não é explicitado no texto grego, o que o torna uma inferência legítima, mas ainda assim uma interpolação interpretativa.

Versões como a TPT (“So with deep love, I pray for my disciples. I’m not asking on behalf of the unbelieving world...”) ampliam a dimensão emocional e confessional da oração, com expressões como “with deep love” ou “unbelieving world”, que não se encontram no texto grego. Embora espiritualmente compatíveis, tais acréscimos introduzem conceitos teológicos não expressos diretamente no versículo — como a “incredulidade” do mundo, que em João é uma realidade, mas que aqui não é tematizada lexicalmente. Do ponto de vista estritamente exegético, essas versões se afastam da precisão desejada.

A versão Peshitta (ܐܢܐ ܥܠܝܗܘܢ ܒܥܐ ܐܢܐ ܠܐ ܗܘܐ ܥܠ ܥܠܡܐ ܒܥܐ ܐܢܐ) reproduz com rigor o paralelismo e a ênfase do texto grego: repete o verbo ba‘a (“rogar, suplicar”) em ambas as cláusulas, mantém a construção com ʿal (“por, a favor de”) tanto para os discípulos quanto para o mundo, e coloca o pronome enfático anā (“eu”) na abertura, como no grego ἐγώ. A estrutura é quase espelho do original. Já a versão hebrea (אני בעדם אעתיר לך לא בעד העולם אעתיר) também preserva esse paralelismo, com o verbo ʾeʿatir (“interceder, suplicar”) repetido, e o advérbio de negação loʾ deslocado para o início da segunda cláusula — recurso estilístico que reforça a exclusão oracional, sem contradizer a forma joanina.

A tradução latina (“ego pro eis rogo non pro mundo rogo”) é especialmente fiel na manutenção do paralelismo e na justaposição de cláusulas: rogo... rogo. O uso da preposição pro para περὶ é lexicalmente adequado, e a omissão de elementos intermediários contribui para uma cadência direta, espelhando a sobriedade do original.

Por fim, versões como CEV (“I am praying for them, but not for those who belong to this world”) e NVT (“Minha oração não é por este mundo...”) introduzem suavizações e parafrases que diluem a oposição formal entre discípulos e mundo. O uso de “those who belong to this world” é uma explicitação interpretativa — pois ὁ κόσμος não é aqui um grupo de pessoas descritas, mas o sistema como totalidade oposta a Deus. Essas versões comunicam corretamente a exclusão temática, mas não conservam a força semântica concentrada da negação joanina.

Portanto, as versões que melhor refletem o conteúdo gramatical, exegético e teológico de João 17:9a — em fidelidade à análise do grego ἐγὼ περὶ αὐτῶν ἐρωτῶ· οὐ περὶ τοῦ κόσμου ἐρωτῶ — são AFV, ASV, Cepher, DRB, EMTV, Geneva, JUB, KJV, RV, WEB, WEBA, Webster, NENT, Murdock, que mantêm o paralelismo estrutural, a repetição verbal, a clareza do sujeito, e a demarcação nítida entre os destinatários da oração (discípulos) e aqueles que não são, neste momento, objeto da intercessão (o mundo). Todas as demais, embora úteis pastoralmente ou adaptadas estilisticamente, introduzem gradações de suavização, de inferência interpretativa ou de reestruturação oracional que, embora não erradas, se afastam do rigor formal da teologia joanina revelada neste versículo.

Comentário Teológico e Filosófico de João 17:9a
“Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo...”

O contraste estabelecido por Jesus nesta frase, entre “eles” e “o mundo”, entre o objeto da intercessão e aquilo de que ele se abstém de interceder, coloca em tensão um dos temas centrais da teologia joanina: o lugar do “mundo” (kosmos) diante de Deus. O problema aqui não é apenas semântico, mas existencial e escatológico: o que é o “mundo” que Jesus exclui de sua oração? Como pode ele afirmar essa exclusão no mesmo evangelho que diz que Deus amou o mundo de tal maneira a dar o seu Filho (João 3:16)? E se a Igreja está no mundo (João 17:11), como pode esse mesmo mundo ser, ao mesmo tempo, rejeitado como objeto imediato da oração sacerdotal?

Para compreender a profundidade dessa cláusula, é necessário primeiro determinar o que significa “mundo” (kosmos) no vocabulário teológico e filosófico de João. O termo aparece quase 80 vezes no Quarto Evangelho e carrega uma complexidade que se recusa a ser reduzida. Em alguns contextos, “mundo” é o conjunto da criação (João 1:10), ou a humanidade em geral, especialmente como objeto do amor de Deus (João 3:16; 4:42). Em outros, contudo, “mundo” se torna sistema de valores hostis a Deus, um cosmos caído, alienado e resistente à luz (João 7:7; 8:23; 15:18–19; 17:14). Nesse sentido, o “mundo” que Jesus rejeita como destinatário de sua intercessão em João 17:9a não é a criação nem os povos em geral, mas o sistema ativo de rejeição e incredulidade — o mesmo que será julgado (João 12:31) e que permanece sob o domínio do maligno (cf. 1 João 5:19).

Quando Jesus diz “não rogo pelo mundo”, ele não está decretando a perdição ontológica do mundo nem anulando sua missão universal. Antes, ele está delimitando o foco imediato de sua intercessão sacerdotal. Trata-se aqui de uma oração sacerdotal, e não missionária. Ele ora como sumo sacerdote por aqueles que o Pai lhe deu (João 17:6), como o sacerdote no Santo dos Santos no Dia da Expiação orava apenas por Israel e não pelas nações gentílicas (Levítico 16:17). Assim, Jesus assume a função de mediador exclusivo da Nova Aliança (cf. Hebreus 9:24), intercedendo, naquele momento, não pelo mundo, mas pelos que creram.

Essa distinção não contradiz João 3:16 — “Deus amou o mundo” — porque a forma do amor divino ali expressa é de doação (δώω, didōmi): Deus amou o mundo ao ponto de dar. O dom do Filho é universal; a intercessão do Filho, porém, é particular. O amor de Deus é abrangente; a oração sacerdotal de Jesus, nesta ocasião, é restrita. A distinção entre amor redentor oferecido e intercessão efetiva realizada não é exclusivista, mas respeita a lógica interna da revelação: primeiro Jesus é enviado ao mundo (João 1:9), mas é rejeitado (João 1:10–11); depois ele forma um corpo de discípulos que crêem (João 17:8); e, então, por estes ele roga, não porque despreze os demais, mas porque é por meio deles que o mundo será alcançado (João 17:21: “para que o mundo creia que tu me enviaste”).

A exclusão do mundo da oração sacerdotal, portanto, não é uma declaração de juízo implacável, mas uma estratégia de mediação salvífica. O mundo será incluído indiretamente, por meio da preservação, santificação e missão dos discípulos. Como afirma João 17:18, “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo.” E em João 17:21: “para que o mundo creia que tu me enviaste.” O mundo é objeto da missão, ainda que não da oração sacerdotal naquele momento específico.

Filosoficamente, isso revela uma concepção relacional e vocacional da graça. Deus não ama o mundo em abstrato, mas se dá ao mundo por meio de pessoas que o representam. O mundo como estrutura rebelde não pode ser objeto direto da intercessão, porque resiste à luz. Mas o mundo como potencial de resposta, como aqueles que ainda crerão por meio da palavra dos discípulos (João 17:20), será incluído depois. Isso reflete a tensão entre o "já" da eleição e o "ainda não" da fé que ainda há de vir. É, portanto, uma intercessão teleológica, que visa o mundo por meio da Igreja.

O Antigo Testamento oferece paralelos notáveis. O Salmo 16:3–4 expressa esse mesmo princípio: “Quanto aos santos que estão na terra, eles são os ilustres nos quais está todo o meu prazer. As dores se multiplicarão àqueles que escolhem outro deus; eu não oferecerei as suas libações de sangue, nem tomarei os seus nomes nos meus lábios.” Jesus segue essa lógica veterotestamentária: ele ora pelos seus, não porque despreze os outros, mas porque, ao estabelecer os seus, transforma a própria realidade do mundo.

A exclusão do mundo da oração sacerdotal, portanto, não é contradição, mas condensação. É uma limitação formal com vistas a uma abrangência escatológica. A oração de João 17:9a é o núcleo do que se tornará a missão do mundo. A Igreja está no mundo, mas não é do mundo (João 17:14,16); é por isso que o mundo pode ser alcançado. Deus ama a Igreja dentro do mundo, mas não o mundo enquanto sistema oposto a Ele. O amor de Deus é universal; a intercessão de Cristo é funcionalmente particular, mas redentora em potência universal.

Em suma, João 17:9a revela que a salvação do mundo começa na intercessão pelos discípulos. É por meio deles — os que foram tirados do mundo e creram — que o mundo será confrontado, iluminado e, em parte, transformado. A exclusão do mundo aqui não é um veto, mas um passo ordenado no movimento trinitário da redenção. Deus amou o mundo ao dar seu Filho; o Filho ora pelos discípulos; os discípulos serão enviados ao mundo. A oração sacerdotal, assim, não apaga João 3:16, mas o prepara. Cristo roga não pelo mundo, porque ora pelo mundo por meio dos seus.

João 17:10a – Exposição Completa
Texto (ARC): “Tudo o que é meu é teu, e tudo o que é teu é meu;...”
Texto grego (TR, transliteração): kai ta ema panta sa estin, kai ta sa ema;

A frase inicial de João 17:10a, “kai ta ema panta sa estin, kai ta sa ema”, é construída sobre uma estrutura de paralelismo perfeitamente equilibrada, utilizando duas cláusulas simétricas que empregam os pronomes possessivos ema [“meu”] e sa [“teu”], ambos no plural neutro nominativo (ta ema, ta sa), seguidos dos verbos na forma de cópula (estin). A forma verbal estin é singular, e não plural (eisin), o que tem enorme importância teológica e estilística: ela expressa a unidade absoluta entre os sujeitos da frase — o que é “meu” e o que é “teu” — como se fossem uma só realidade indivisível. A força desta unidade não é apenas distributiva (algo meu pertence a ti, e algo teu a mim), mas essencial: tudo o que pertence ao Filho tem sua origem e identidade no Pai, e tudo o que é do Pai é inerente ao Filho.

O uso de kai... kai (“e... e...”) dá peso igual a ambas as afirmações, mas o conteúdo inverte a expectativa usual de hierarquia: se afirmar que “tudo o que é meu é teu” seria, em termos humanos, uma declaração de submissão ou entrega, dizer também que “tudo o que é teu é meu” ultrapassa os limites da criatura. É exatamente este o ponto que Lutero destacou com vigor: “Dizer que tudo o que é meu é de Deus, isso qualquer criatura pode dizer; mas dizer que tudo o que é de Deus é meu, isso nenhuma criatura pode afirmar”. Tal simetria absoluta só é possível entre iguais — entre o Pai e o Filho, ambos plenamente divinos. Isso ecoa João 16:15 (panta hosa echei ho Patēr ema estin), onde já fora dito que tudo o que o Pai possui é também do Filho, em uma linguagem de compartilhamento ontológico e não apenas funcional.

O pronome panta reforça essa totalidade sem restrições: não apenas os discípulos, não apenas a autoridade, mas toda a realidade do Filho é partilhada pelo Pai — missão, glória, palavras, poder, e até mesmo a posse daqueles que foram dados ao Filho. Trata-se de uma união essencial de natureza e propósito, como também se vê em João 1:1 (kai ho Logos ēn pros ton Theon) e João 10:30 (Egō kai ho Patēr hen esmen). O verbo estin na singular, como observado por muitos comentaristas (incluindo Meyer e Alford), insiste na unidade intrínseca, não apenas relacional ou funcional. O singular torna-se uma gramática da consubstancialidade.

Além disso, o termo ta ema (“as coisas que são minhas”) no plural neutro não se limita a “pessoas”, como poderiam sugerir leituras mais restritivas. Comentadores como Alford, Meyer e Westcott afirmam que se trata de uma totalidade que inclui as palavras do Filho, suas obras, sua glória, sua missão — e os próprios discípulos como portadores dessa glória. O texto é um eco profundo de João 13:3, onde Jesus sabia que o Pai tudo colocara em suas mãos. A reciprocidade absoluta de João 17:10a é, portanto, a revelação do Pai no Filho e do Filho no Pai, conforme também expresso em João 14:9–11.

A forma verbal dedoxasmai [“eu fui glorificado”], que se segue imediatamente, está no perfeito passivo indicativo de doxazō, e reforça o caráter consumado da glorificação de Cristo nos discípulos. A escolha do perfeito (e não aoristo ou presente) indica que a glorificação já aconteceu e permanece em vigor — e que essa glorificação foi manifesta não só por atos externos (como os milagres, cf. João 11:4), mas sobretudo pela fé dos discípulos. Eles creram e receberam suas palavras (cf. João 17:8), e por isso, a glória de Cristo se fez presente neles como antecipação da glória futura, tanto na cruz quanto na ressurreição.

A maioria das versões bíblicas é notavelmente uniforme na tradução dessa frase, com pequenas variações de estilo e ênfase:
“Tudo o que é meu é teu, e tudo o que é teu é meu” é a tradução de ARC, ACF, ARA, NVI, NTLH, KJV, NKJV, NASB, ESV, GNB, BSB, ASV, DRB, Douay, RSV, NABRE, NET, AFV, CSB, ISV, Darby, WEB, LEB, YLT, RVR60, Reina Valera Gomez, ERV, BWE, LITV, WYC, CPDV, MSG (em tradução livre).

A versão CEV suaviza o tom teológico direto: “All I have is yours, and all you have is mine”, enquanto The Message reinterpreta poeticamente: “Everything I have is yours, and everything you have is mine.” A versão Hebraica (כתר המלך) traduz: kol asher li shelkha hu, vekhol asher shelkha sheli hu, sem atenuar a reciprocidade radical. Já a Peshitta (siríaco) traduz kol ma d-dīli dīlekhu w-kol d-dīlekhu dīli, reforçando igualmente a ideia de reciprocidade integral e ontológica.

Esta expressão enigmática de João 17:10a ecoa um dos maiores mistérios da teologia cristã: a comunhão essencial entre o Pai e o Filho. Trata-se de uma reciprocidade que não pode ser explicada em termos de mera analogia humana. Na tradição filosófica, especialmente no pensamento patrístico, esta passagem foi usada como base para afirmar que o Logos eterno não apenas participa da vontade do Pai, mas compartilha com Ele a mesma essência (ousia), em distinção de pessoa (hypostasis), conforme sistematizado em Niceia (325) e Constantinopla (381).

Teologicamente, essa unidade expressa que a missão do Filho no mundo — salvar, ensinar, glorificar — não é uma delegação autônoma, mas a plena exteriorização da vontade do Pai. E reciprocamente, o que é do Pai (santidade, autoridade, vida, glória) se manifesta no Filho. Em termos ontológicos, não se trata de duas vontades ou dois poderes que se somam, mas de uma única comunhão plena — como Agostinho sustentou: “o que pertence a um, pertence ao outro, pois há um só Deus”.

Essa frase também marca uma virada crucial na autocompreensão dos discípulos: ao reconhecerem que tudo o que é do Pai está presente no Filho, passam a crer não apenas em um mensageiro, mas naquele que é a própria Palavra eterna de Deus. E aqui, diferentemente de messianismos concorrentes do primeiro século, Jesus não reivindica uma glória separada nem uma posse autônoma: Ele não busca glória de homens (João 5:41), mas revela que sua glória já está nos discípulos, como reflexo da glória divina que neles opera.

Filosoficamente, isso elimina qualquer dualismo ou concorrência entre humano e divino, entre o Filho e o Pai, entre missão e origem. A frase é uma refutação ontológica a todo modelo subordinacionista: “tudo o que é teu é meu” não pode ser dito por criatura alguma, e exatamente por isso é que este versículo torna-se, aos olhos da fé cristã, um dos mais poderosos testemunhos da divindade de Cristo. A teologia da “coinherência” (perichōrēsis), tão celebrada por Gregório de Nazianzo e João Damasceno, encontra aqui seu fundamento textual — não apenas como conceito místico, mas como realidade exegética concreta.

Em suma, João 17:10a não é apenas uma afirmação de partilha; é uma epifania da própria natureza do Deus trino — onde o Pai e o Filho não competem, não se alternam, mas se doam eternamente um ao outro, e, por esse dom, glorificam-se também nos que creem. Essa reciprocidade de posse e glória é a própria substância do amor eterno — o amor que forma a comunhão da Trindade e que agora, por meio dos discípulos, transborda para o mundo.

João 17:10b – Análise Exegética

Texto (ARC): “…e nisso sou glorificado.”
Texto grego (TR, transliteração): kai dedoxasmai en autois

A construção kai dedoxasmai en autois apresenta uma sequência coordenada pela partícula kai (“e”) com o verbo principal na voz passiva perfeita do indicativo: dedoxasmai (de doxazō, “glorificar, honrar”), seguido da preposição en (“em”, “dentro de”) com o dativo plural autois (“eles”, ou “neles”).

Morfologicamente, dedoxasmai é a 1ª pessoa do singular do perfeito passivo indicativo de doxazō. O tempo perfeito expressa uma ação já completada, com resultados duradouros no presente. Assim, a melhor tradução do termo é: “eu tenho sido glorificado”, ou “eu fui glorificado e continuo sendo”. Trata-se, portanto, de um perfectum propheticum, ou seja, um uso do tempo perfeito que expressa uma realidade escatológica certa, falada como se já estivesse consumada, antecipando a plenitude do que está por vir (cf. Kühner, Ausführliche Grammatik, II, p. 72).

Esse tempo verbal expressa, como destaca o comentário de Barrett (p. 507) e reiterado por Brown (p. 757), uma realidade presente já instaurada pelo ministério de Jesus, mas também com uma extensão futura, especialmente na missão dos discípulos após sua partida. A voz passiva indica que a ação de glorificar foi recebida por Cristo — ou seja, Ele foi glorificado em sua relação com os discípulos. Não é aqui uma glorificação pela cruz (ainda que iminente), mas pelo reconhecimento progressivo da sua missão divina refletida na fé dos discípulos e na continuidade da obra entre eles (cf. João 15:8; 13:31-32).

A preposição en com o dativo autois admite dois entendimentos que não são mutuamente excludentes: (1) localidade espiritual ou relacional, ou seja, “neles” como lugar onde a glória se manifesta (locativo), e (2) instrumentalidade relacional, isto é, “por meio deles” ou “através deles” (instrumental). A maioria dos comentaristas favorece o primeiro uso, ainda que reconhecendo o segundo como implicitamente presente: o texto aponta que é “neles” — na transformação que sofreram, na fé que demonstraram, na continuidade da missão que assumirão — que o próprio Jesus é glorificado. A glória de Cristo, portanto, não está apenas vinculada a sua divindade essencial, mas à sua epifania relacional na vida daqueles que o acolheram e se tornaram seus continuadores. Como comenta corretamente o autor de The Gospel of John (Lincoln, p. 436), essa glorificação se concretiza tanto na presença de Cristo na carne (cf. João 1:14) como agora em sua presença espiritual na vida da comunidade discipular.

Os discípulos, então, tornam-se a manifestação contínua da glória do Cristo enviado. O texto grego dedoxasmai en autois deve ser lido como uma cláusula de identidade e missão: Jesus é glorificado neles porque neles permanece sua presença, sua verdade e sua obra. O uso do perfeito enfatiza que isso não é apenas uma esperança futura, mas uma realidade em curso no momento da oração.

Ainda segundo Meyer, há aqui uma transição natural da expressão anterior — ta emá panta sá estin, kai ta sá emá — para a implicação de que, sendo os discípulos de ambos (Pai e Filho), a glória do Filho neles é consequência inevitável dessa unidade divina. Portanto, o perfeito passivo dedoxasmai não descreve apenas o resultado de uma relação de fé subjetiva, mas uma realidade objetiva, instituída e manifesta por Deus mesmo.

Além disso, quando João já havia usado essa construção en autois (por exemplo em João 13:31–32; 14:13), a preposição indicava não apenas localização espiritual, mas implicava que a glória de Deus (ou do Filho) é exibida nos atos, nas decisões e no testemunho daqueles que lhe pertencem.

Em resumo, kai dedoxasmai en autois afirma que o Filho foi glorificado no processo já em curso de fé, obediência e transformação dos discípulos. O verbo no perfeito indica um ato consumado com efeitos atuais, e a preposição en indica uma localização espiritual (neles) e uma agência viva (por meio deles). Não há aqui abstração, mas uma realidade teológica incorporada na vida e missão da igreja nascente. Cristo é glorificado — não apenas por palavras, mas na existência e testemunho daqueles que lhe pertencem, e isso é apresentado como uma das razões de sua intercessão, visto que sua glória está agora atrelada a esses homens.

João 17:10b – Comparação das Traduções com a Exegese de kai dedoxasmai en autois

A frase kai dedoxasmai en autois (“e fui glorificado neles”) foi tratada em sua exegese como uma declaração no tempo perfeito passivo indicativo, com profundo valor teológico e eclesiológico: o Cristo glorificado não apenas antecipa sua exaltação futura, mas afirma já estar sendo glorificado nos seus discípulos. Esse perfeito grego — dedoxasmai — carrega um peso duradouro, sinalizando uma glorificação consumada com efeitos contínuos. O uso de en autois também foi entendido tanto como locativo (“neles”) quanto instrumental (“por meio deles”), sendo ambos implicações plausíveis e sobrepostas no grego joanino. A glória de Cristo é manifesta e encarnada nos discípulos, por causa da unidade ontológica e missional que Ele compartilha com o Pai.

No tocante às traduções, a grande maioria das versões se mantém fiel à estrutura e ao sentido do texto grego, traduzindo com clareza a ação perfeita de glorificação “em” ou “por meio deles”, sem interpolar interpretações não contidas na expressão original. As seguintes versões traduzem quase literalmente entre si: AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, Geneva, HRB, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, NET, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, Williams, YLT. Todas essas mantêm o padrão: “e eu fui glorificado neles” (ou variações como “tenho sido glorificado” ou “sou glorificado”), demonstrando lealdade gramatical ao perfeito passivo dedoxasmai e respeitando a preposição en como indicadora da esfera em que essa glorificação ocorre.

A Peshitta-T e o Hebrew NT (Delitzsch) também conservam essa leitura direta: wm$BX )N) BHWN e ונתפארתי בהם, respectivamente, ambas com sentido de glorificação em ou por meio dos discípulos, sem extrapolação conceitual. O verbo נתפארתי (“fui glorificado”) na versão hebraica é um equivalente direto ao passivo perfeito grego, e o uso de בהם (“neles”) preserva a locatividade.

A versão Latin Vulgata segue a tradição da clareza sintática com clarificatus sum in eis, equivalente direto ao grego.

Já versões como ERV e GNB adotam uma leve adaptação semântica: “minha glória é vista neles” (ERV) ou “minha glória é mostrada por meio deles” (GNB), o que mantém o núcleo exegético, embora já insinue uma interpretação funcional, em vez de simplesmente tradutiva. Apesar disso, ambas ainda permanecem dentro dos limites do grego.

A versão Williams opta por uma leitura interpretativa mais fluida (“e eu fui glorificado por meio deles”), ainda que respeite o tempo e a voz do verbo, conservando o sentido ativo do texto original.

A TPT (The Passion Translation), como é frequente em sua abordagem amplificada, se afasta significativamente ao transformar “glorificado em” em “minha glória é revelada através da vida rendida deles” — embora não seja tecnicamente eisegética, insere pressupostos devocionais e subjetivos não presentes explicitamente em dedoxasmai nem em en autois.

A NTLH, no entanto, rompe com toda a tradição textual e gramatical ao verter kai dedoxasmai en autois como: “e a minha natureza divina se revela por meio daqueles que me deste.” Esta escolha é absolutamente indefensável sob critérios exegéticos. A palavra “natureza” (grego: physis) e a qualificação “divina” (grego: theios ou theia) não existem nesse versículo. A única ocorrência da expressão “natureza divina” (theias physeōs) no Novo Testamento se encontra em 2 Pedro 1:4, e ainda assim se refere à transformação moral dos crentes, não à ontologia de Cristo.

A NTLH, portanto, comete o mesmo erro hermenêutico que se costuma atribuir à Tradução do Novo Mundo das Testemunhas de Jeová em João 1:1, que verte kai theos ēn ho logos como “a Palavra era um deus”, suprimindo a plena divindade de Cristo com base em argumentações gramaticais frágeis. Mas ao contrário, a NTLH insere na tradução de João 17:10 uma ontologia ausente do texto original, como se houvesse ali o termo theia physis ou um correlato. Isso é mais grave que a omissão da TNM, pois constitui eisegese explícita disfarçada de tradução, subvertendo o princípio da fidelidade ao texto-fonte. A responsabilidade é ainda maior, visto que a NTLH se apresenta como uma versão voltada à clareza e simplicidade, o que impõe rigor redobrado na fidelidade.

Assim, a frase kai dedoxasmai en autois comunica a glorificação de Jesus na comunidade discipular, por causa da unidade entre o Pai e o Filho. Nada no texto sugere uma revelação da “natureza divina” ontológica de Cristo nos discípulos, mas sim a manifestação da sua glória — já ativa — entre aqueles que creram e o seguiram. A NTLH, ao escolher essa expressão, projeta um conteúdo dogmático, provavelmente influenciado por leituras devocionais modernas ou por uma teologia sistemática prévia, inserindo o termo “natureza divina” onde o evangelista João não o colocou. Trata-se, portanto, de um caso claro de distorção teológica com base em suposição interpretativa e não em filologia nem crítica textual.

Em contraste, a maioria das versões respeita o tempo, modo e voz do verbo, preservando o perfeito passivo como uma realidade presente com efeitos duradouros — em completa consonância com a teologia joanina da união entre Cristo e seus discípulos. Nesse sentido, a glória de Jesus “neles” não é uma metáfora vaga, nem uma declaração de identidade ontológica, mas a concretização do plano divino em ação no povo da nova aliança.

Texto Grego (TR):

καὶ δεδόξασμαι ἐν αὐτοῖς
Transliteração: kai dedoxasmai en autois
Tradução literal: “e fui glorificado neles”

A parte final de João 17:10 — “e nisso sou glorificado” — adquire profundidade singular quando comparada nas três principais tradições semitas: o texto grego (TR), a Peshitta (siríaco) e a tradução hebraica de Delitzsch. No texto grego temos kai dedoxasmai en autois (“e fui glorificado neles”), em uma forma perfeita passiva do verbo doxazō [δοξάζω], denotando uma ação completada com efeitos contínuos: a glória do Filho não está apenas projetada para o futuro, mas já realizada na relação com os discípulos. A preposição en autois (“neles”) não se refere a um local físico, mas a um locus relacional e espiritual — a glória do Filho está manifestada na existência redimida e transformada dos que o Pai lhe deu.

A Peshitta traduz essa frase com: ܘܡܫܒܚ ܐܢܐ ܒܗܘܢ (w-meshabbaḥ anā b-hōn), onde o verbo ܡܫܒܚ (meshabbaḥ) deriva da raiz ܫܒܚ (shabḥ), amplamente usada em contextos litúrgicos e teológicos do aramaico para denotar exaltação, louvor e honra gloriosa. Aqui, trata-se de um particípio, o que denota ação contínua: “estou sendo glorificado neles”. A forma ܐܢܐ (anā, “eu”) é explicitada enfaticamente no sujeito, algo desnecessário no siríaco, mas usado para intensificação — um eco do ani hebraico (cf. Isaías 43:11: “אֲנִי אָנֹכִי יְהוָה”, “Eu, eu sou o SENHOR”). A preposição ܒܗܘܢ (b-hōn, “neles”) sugere não apenas agência ou meio, mas também uma incorporação: a glória de Jesus manifesta-se “dentro” da comunidade dos fiéis, um pensamento escatológico e eclesiológico típico da tradição siríaca, que vê o corpo coletivo da Igreja como o vaso da glória divina (cf. 2 Coríntios 4:6–7).

A tradução hebraica de Delitzsch é ainda mais rica em seus matizes veterotestamentários: וָאֶתְפָּאֵר בָּהֶם (va'etpa'er bahem). O verbo hitpa’er (de pa’ar, “ornamentar-se”, “ser glorificado”) é usado no hitpael, uma forma reflexiva que pode denotar tanto “receber glória” como “gloriar-se em”. Essa ambiguidade é teologicamente carregada: a glória do Messias aqui é reflexiva — não apenas recebida passivamente, mas reconhecida e desfrutada por sua união com os discípulos. O verbo pa’ar aparece em contextos importantes no Antigo Testamento, especialmente em Isaías 60:21 (“para que eu seja glorificado” – לְמַעַן אֶתְפָּאֵר), descrevendo Israel como plantação do Senhor, o povo da sua glória. Isso indica que a tradução hebraica está fazendo uma conexão deliberada entre a missão messiânica e a vocação de Israel como veículo da glória divina no mundo.

Assim, quando os discípulos se tornam agentes visíveis da glória de Cristo, eles se tornam também, conforme Isaías 43:7 (“a todos os que são chamados pelo meu nome, e os que criei para a minha glória”), participantes do drama escatológico em que o Deus de Israel é glorificado por meio daqueles que o servem. O paralelo entre dedoxasmai, ܡܫܒܚ e etpa’er mostra que, embora com diferentes construções gramaticais, todas as tradições expressam a mesma verdade: a glória do Filho não é um conceito abstrato, mas uma realidade encarnada nos seus seguidores, que recebem, vivem e refletem o caráter e a missão daquele que foi enviado. Nessa convergência de expressões — grega, siríaca e hebraica —, o texto de João 17:10b se mostra como uma declaração de realização cristológica, com profundas raízes na teologia veterotestamentária da glória como presença manifesta, como relação viva e como identidade partilhada.

João 17:11a – Parte 1

Texto (ARC): “E eu já não estou mais no mundo...”
Texto grego (TR, transliteração): kai ouketi eimi en tō kosmō

A análise dessa frase inicia-se com a expressão kai ouketi eimi en tō kosmō, onde cada elemento carrega camadas semânticas e teológicas específicas. O advérbio ouketi (οὐκέτι) possui valor negativo com força temporal: “não mais”, “já não”. Ele está colocado antes do verbo eimi (εἰμί – “sou/estou”), funcionando como um advérbio que modifica a permanência da existência no mundo. O verbo eimi, conjugado no presente do indicativo (1ª pessoa do singular), expressa o estado de ser ou estar — mas, como várias fontes exegéticas confirmam, este é um presente com valor escatológico e futurístico, e não simplesmente cronológico. A gramática o classifica como presente futurístico: um presente que expressa um evento iminente com certeza plena, como também aparece em João 13:3 (eidōs... hoti apo Theou exēlthen kai pros ton Theon hupagei), João 14:12, e João 17:13 — confirmando que este presente denota uma ação certa que está prestes a se realizar (cf. Robertson, Grammar, § 872; BDAG, 284).

A construção “não mais estou no mundo” — ouketi eimi en tō kosmō — torna-se o fundamento imediato da súplica subsequente (“Pai santo, guarda-os...”), pois estabelece uma nova situação de ausência iminente. Esse trecho é interpretado, como afirma Calvin, na frase: nunc quasi provincia sua defunctus — “agora como quem já concluiu sua missão”. Jesus fala como quem já finalizou a tarefa a Ele confiada, antecipando a cruz e a ascensão. Assim, ouketi eimi en tō kosmō não é mera constatação espacial ou geográfica, mas uma declaração ontológica de transição.

Segundo o comentário da fonte crítica (Joh_17:11, Alford e Westcott), essa expressão indica que o termo kosmos não deve ser interpretado apenas como lugar físico, mas como estado de existência: o estado dos homens na carne, em sua condição terrena, muitas vezes dominada pela morte espiritual. Como reforça a nota: “This shows us that ho kosmos is not said of place alone... but of state, the state of men in the flesh.” Ou seja, Jesus já se vê deslocado desse sistema caído, mesmo estando fisicamente presente entre os discípulos. O “mundo” aqui é a ordem humana oposta a Deus, o sistema hostil que rejeita a luz (cf. João 1:10–11).

De acordo com Parsenios (HTR 98, p. 5), essa formulação expressa um entrelaçamento de duas camadas narrativas do Quarto Evangelho — a histórica e a escatológica: “É como se dois discursos se fundissem, um que Jesus profere ao redor da mesa na noite da traição, e outro que Ele profere já desde o domínio do Pai após a ascensão. Jesus está alternadamente aqui e ali, antes e depois, acima e abaixo.” Assim, a afirmação ouketi eimi en tō kosmō surge não como uma anomalia cronológica, mas como expressão da autoridade divina que transcende o tempo linear. Jesus fala da perspectiva daquele que sempre esteve com Deus (João 1:1), mesmo ao se fazer carne (1:14).

Essa tensão entre presença física e ausência escatológica é enfatizada por Meyer, que destaca que o uso de kai ouketi eimi en tō kosmō prepara o terreno para a súplica: “A ocasião e substância da oração agora se tornam mais distintas. Ele está saindo do mundo, e os discípulos, que Ele treinou e guardou, permanecerão; as relações entre Ele e eles já não serão as mesmas dos dias do Seu ministério visível.” A expressão é, portanto, a motivação para a oração de proteção: “Since I am no longer in the world, but they are in the world... Holy Father, keep them” (João 17:11b).

O manuscrito D (Bezae), como nota crítica, traz uma glosa ocidental que altera essa frase por considerá-la desconfortável, acrescentando: oukēti eimi en tō kosmō kai en tō kosmō eimi — tentando atenuar a aparente contradição. Isso só confirma que alguns escribas se sentiram perturbados pela força dessa declaração. A glosa provavelmente surgiu para resolver o paradoxo aparente: Jesus afirma que já não está no mundo, mas ainda está fisicamente presente. No entanto, conforme Schnackenburg observa, isso é plenamente coerente com o estilo teológico joanino: Jesus pode declarar-se ausente não com base na posição corpórea, mas na identidade divina já em processo de retorno ao Pai (cf. João 13:33; 16:10; 17:12).

Westcott e Hort, assim como Tischendorf, retêm a leitura autêntica ouketi eimi en tō kosmō como genuína, coerente com o fluxo teológico e literário da oração sacerdotal. Não há confusão nos tempos verbais. O que há é a expressão da certeza do êxodo iminente do Cristo, como no versículo 13: kagō pros se erchomai (“e eu vou para ti”).

Esse uso do presente no Quarto Evangelho representa uma “sobreposição de esferas”, segundo a análise de George Parsenios, onde a linguagem de Jesus se alterna entre a cena visível do cenáculo e o trono celeste invisível: “Jesus fala desde o domínio do Pai antes mesmo de partir visivelmente.” Desse modo, a frase “eu já não estou mais no mundo” pertence ao registro da teologia da glória, à consciência messiânica de que o estágio da missão terrena foi completado — como Ele já dissera em João 17:4 (to ergon eteleiōsa).

Assim, essa primeira cláusula ouketi eimi en tō kosmō é não apenas um marcador cronológico, mas uma chave teológica para toda a oração que segue. É o eixo entre a missão cumprida e a intercessão futura; entre o discipulado formado e o mundo hostil que permanece; entre a encarnação e a ascensão.

João 17:11b

Texto (ARC): “...mas eles continuam no mundo...”
Texto grego (TR, transliteração): kai autoi en tō kosmō eisin

A sequência da declaração de Jesus, kai autoi en tō kosmō eisin (“mas eles continuam no mundo”), articula-se com o versículo anterior ouketi eimi en tō kosmō por meio da partícula coordenativa kai, que aqui, como destacam as fontes, possui valor adversativo: não deve ser traduzida como “e”, mas como “mas” ou “entretanto”. O comentário lexical reforça esse uso com a nota: “Note adversative use of kai (= but these).” Trata-se, portanto, de um contraste entre o estado escatológico de Jesus e a permanência terrena dos discípulos. O mesmo valor adversativo de kai já aparece em João 16:32, ao distinguir o abandono dos discípulos e a permanência do Pai com o Filho.

O pronome autoi (αὐτοί), no nominativo plural masculino, é enfático — não apenas gramaticalmente sujeito da oração, mas destacado para sublinhar o contraste: autoi estão no mundo, enquanto ego já não estou. A ênfase no “eles” faz eco ao tom pastoral da oração: “Eu estou saindo... mas eles ficam.” A crítica textual confirma que a forma autoi é mais autêntica do que a variante houtoi, encontrada no texto recebido. Os manuscritos א e B sustentam autoi, sendo esta a leitura preferida pelos editores críticos (Westcott-Hort, NA28, UBS5). Como consta nas fontes: “The rec. text has οὗτοι, but אB have αὐτοί.”

O verbo eisin (εἰσίν), forma do presente indicativo de eimi, mantém o contraste com o eimi da primeira cláusula: Jesus “não mais está” (ouketi eimi), mas “eles estão” (autoi eisin). O tempo presente aqui é puramente existencial e contínuo, sem o valor escatológico do verbo anterior. A função gramatical é descritiva: expressa uma permanência atual dos discípulos na esfera mundana. Como destaca Bengel: “Eisi, are — and that too, attended with danger. Therefore there follows tērēson, ‘keep’.” Ou seja, a permanência dos discípulos no mundo é um estado perigoso, exigindo a oração de proteção imediata.

Do ponto de vista teológico, essa contraposição entre a saída de Jesus e a permanência dos discípulos é desenvolvida ao longo de João 17: Jesus, o Enviado do Pai, cumpriu a obra e volta ao Pai (cf. João 13:3; 14:12; 17:4), enquanto os discípulos — agora portadores do nome e da missão — permanecem no kosmos. A fonte reformula isso com clareza: “Jesus is no longer in the world, already He has bid farewell to it, but the disciples remain in it, exposed without His accustomed counsel and defence.” A tensão cresce: a ausência do Mestre implica a exposição dos discípulos a riscos — como confirma a sequência imediata da oração: tērēson autous... (“guarda-os...”).

É nessa condição de vulnerabilidade que o apelo à paternidade santa de Deus ganha sua força. O kosmos, como já visto, não é apenas o “planeta Terra”, mas o sistema ético e espiritual hostil a Deus. Os discípulos estão no mundo, mas não são do mundo (cf. João 17:14–16), e por isso, precisam ser “guardados” no nome do Pai — a petição que segue diretamente esta afirmação.

Essa permanência dos discípulos no mundo implica uma missão. O en tō kosmō eisin não é apenas condição, mas vocação. Como ecoará em João 17:18 (kathōs eme apesteilas eis ton kosmon, kagō apesteila autous eis ton kosmon), os discípulos não são deixados no mundo por negligência, mas enviados com propósito. Contudo, como reconhecem os comentaristas, essa missão é acompanhada de sofrimento, exposição e necessidade de intercessão constante.

O comentário de Grotius resume isso em latim com precisão pastoral: hos relinquam in tantis fluctibus — “a estes deixarei em meio a tantas ondas”. A imagem marítima evoca os perigos da ausência visível de Jesus: os discípulos como um barco em alto mar sem o capitão aparente, sustentados agora pela intercessão invisível do Cristo celestial.

A oração de João 17 está, portanto, fundamentada nesta declaração dupla e contrastante: “Eu já não estou no mundo — mas eles estão.” Tudo que segue — o pedido por proteção, santificação e unidade — brota logicamente desse fato. A missão de Jesus atinge seu clímax na cruz, mas a missão dos discípulos apenas começa, e ela exige a mediação constante do Sumo Sacerdote celestial.

João 17:11a 

Texto (ARC): “...e eu vou para ti.”
Texto grego (TR, transliteração): kagō pros se erchomai

Esta cláusula, kagō pros se erchomai (“e eu vou para ti”), é a terceira declaração de João 17:11a e conclui o argumento que fundamenta a súplica subsequente. O termo kagō é a forma elidida de kai egō (“e eu”), enfatizando o sujeito em primeira pessoa com o pronome egō (ἐγώ), que, embora redundante gramaticalmente, tem função enfática teológica e literária — o próprio Cristo, pessoal e deliberadamente, se dirige ao Pai. A partícula kai aqui mantém sua função aditiva simples, ligando esta afirmação às anteriores: “Eu já não estou no mundo, mas eles estão... e eu [por minha vez] vou para ti.”

O verbo erchomai (ἔρχομαι), conjugado no presente indicativo médio/deponente, primeira pessoa do singular, possui valor escatológico e profético. As fontes confirmam que se trata de um “presente futurístico”, como nos paralelos João 13:3, 14:12, 17:13. Em todos esses contextos, o presente descreve uma ação futura certa, iminente e solene, muitas vezes usada nos discursos de despedida. Assim, não se trata de uma vinda presente no sentido cronológico, mas de uma ida futura que já está decidida no plano divino. Como registra a fonte: “I come (erchomai). Futuristic present, 'I am coming.'

A expressão pros se (πρὸς σέ) — “para ti” — utiliza a preposição pros com o acusativo se, indicando movimento relacional e volitivo em direção ao Pai. A construção indica não apenas um deslocamento físico, mas uma volta ontológica, uma restauração da comunhão eterna de onde Cristo veio. Ela ecoa João 13:3 (hoti apo Theou exēlthen kai pros ton Theon hupagei) e João 16:28 (palin hypagō pros ton Patera), revelando o retorno do Verbo encarnado à glória da qual procedeu.

De acordo com o comentário de Meyer, essa frase não é meramente uma repetição do que Jesus acabara de afirmar (“já não estou no mundo”), mas introduz uma nova ênfase: não apenas sua ausência iminente, mas seu retorno positivo ao Pai com uma missão consumada e com intenção intercessória. Ele escreve: “As palavras ‘e eu vou para ti’ [κἀγὼ πρὸς σὲ ἔρχομαι] não podem ser consideradas uma simples repetição da declaração ‘eu já não estou mais’. Pelo contrário, a posição e a tarefa dos discípulos no mundo serão asseguradas pela vinda de Cristo ao Pai com Sua intercessão.”

Essa função intercessória está no coração da oração sacerdotal. Jesus não apenas vai para o Pai como indivíduo glorificado, mas como mediador da nova aliança, como Sumo Sacerdote que entra no Santo dos Santos celeste (cf. Hebreus 4:14). Como afirma Bengel, esse movimento pros se é o acesso do “grande sacerdote” — _“I come to Thee” with the access that belongs to ‘the great High Priest’ (Joh_17:19)”.

A fonte litúrgica da Didachê ecoa esse movimento relacional, ao dirigir ao Pai a mesma expressão usada por Jesus: eucharistoumen soi, Pater hagie, hyper tou hagiou onomatos sou... — “Damos-te graças, Pai santo, pelo teu santo nome...”. Isso sugere que a Igreja primitiva interpretava o “ir ao Pai” de Jesus como a fundação da comunhão entre os discípulos e Deus, tornada possível pelo sacrifício e glorificação do Filho.

Schnackenburg observa que “eu vou para ti” tem um valor teológico que ultrapassa a ideia de ausência. É o cumprimento da missão: aquele que foi enviado está agora voltando, levando consigo não apenas a obediência consumada (João 17:4), mas também o fundamento da nova humanidade — os discípulos que ficaram. A ausência física é compensada pela presença espiritual resultante dessa ida: “Ele pode não estar mais visivelmente com os discípulos, mas estará com eles pelo Espírito” (cf. João 14:16–18; Mateus 28:20).

Por fim, vale citar a análise literária de Parsenios sobre essa frase, em seu artigo “No Longer in the World” (HTR 98): “Jesus está alternadamente aqui e lá, antes e depois, acima e abaixo.” A oração de João 17 é feita com os pés no chão e o coração no céu. E essa frase, kagō pros se erchomai, é o arco que liga os dois mundos: o visível da despedida e o invisível da glória eterna.

Assim, a conclusão de João 17:11a estabelece três pilares inseparáveis:

ouketi eimi en tō kosmō — o Cristo que sai;

autoi en tō kosmō eisin — os discípulos que ficam;

kagō pros se erchomai — o Filho que volta ao Pai, inaugurando a intercessão glorificada.

Esses três elementos formam a base imediata da súplica do versículo 11b, que começa com Pater hagie, tērēson autous..., a ser analisada em seguida.

João 17:11a 

Base exegética: kai ouketi eimi en tō kosmō – “E eu já não estou mais no mundo”

A frase “kai ouketi eimi en tō kosmō” marca a transição dramática do Verbo encarnado do mundo visível para o domínio celestial do Pai. O uso do presente indicativo eimi com o advérbio ouketi (“já não mais”) compõe uma construção teológica que deve ser compreendida não em termos cronológicos rígidos, mas em seu valor existencial e escatológico: Jesus se considera já ausente do mundo em termos da missão consumada, mesmo que sua morte e ascensão ainda estejam por ocorrer. Como vimos na exegese, trata-se de um presente lógico e profético, ancorado no fato de que a cruz já está decidida, e o Verbo está “de partida”.

Essa interpretação é bem respeitada por grande parte das versões que adotam uma tradução literal do verbo eimi por “sou” ou “estou”, conjugado no presente, e mantêm a partícula “já” ou “agora” para refletir o advérbio ouketi. É o caso das seguintes versões: AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, ESV+, Geneva, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, NET, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, YLT, todas convergindo para fórmulas equivalentes como:

“And I am no longer in the world”
“And now I am no more in the world”
“I am no longer in the world”
“And I am not in the world”
“And now I am not in the world”
“And no longer am I in the world”

Todas essas formulações, ao usar o presente (“I am”) e o advérbio de cessação (“no longer”, “no more”), reproduzem fielmente a estrutura e o tempo verbal do original. Ainda que algumas optem por “now I am not” (DRB, Geneva), introduzindo “now” para kai, não há prejuízo ao sentido escatológico, pois o advérbio “now” apenas reforça a transição iminente do Cristo.

Por outro lado, algumas versões introduzem alterações interpretativas que, embora teologicamente aceitáveis, podem atenuar o peso do presente dramático de ouketi eimi. A BSB traduz: “I will no longer be in the world”, convertendo o presente em um futuro enfático (“estarei mais”), sinalizando antecipação e não conclusão. Embora capte o aspecto escatológico, perde a força da autoexclusão já consumada no espírito de Jesus. O mesmo ocorre com a Williams, ao verter: “I am no longer to be in the world”, e com a TPT, ao interpretar: “I am about to leave this world”, trocando a declaração enfática pela linguagem de expectativa.

A CEV, embora opte por uma segmentação para facilitar a leitura, mantém corretamente o tempo verbal presente: “I am no longer in the world. I am coming to you...”, embora com sintaxe simplificada. Da mesma forma, a ERV diz: “Now I am coming to you. I will not stay in the world...”, introduzindo a negativa no futuro (“I will not stay”) que suaviza a cessação já declarada. A versão GW também enfraquece ligeiramente o presente ao dizer: “I won’t be in the world much longer”, capturando o futuro iminente, mas não a ruptura já verbalizada por Jesus.

As versões NTLH e NVT, em português, reformulam a ordem da frase e preferem construções como: “Agora estou indo para perto de ti. Eles continuam no mundo, mas eu não estou mais no mundo” (NTLH) e “Agora deixo este mundo; eles ficam aqui, mas eu vou para tua presença” (NVT). A NTLH mantém a estrutura com o verbo “estou” no presente e a partícula “não mais”, fiel ao original. Já a NVT opta por “deixo este mundo”, que é uma paráfrase interpretativa de ouketi eimi, retirando o verbo de ligação “estar” e tornando a frase mais dinâmica, mas perdendo o caráter existencial da declaração de Jesus. A substituição do verbo copulativo eimi por um verbo ativo (“deixar”) pode sugerir uma agência mais concreta e diluir o aspecto teológico da ausência ontológica de Cristo no mundo como Mediador.

A ABP+, versão interlinear, segue com exatidão: “And no longer am I in the world”, o que demonstra que a base grega é reproduzida com fidelidade. O mesmo vale para o Greek NT TR e o Hebrew NT DD, que confirmam a equivalência sintática: ואני אינני עוד בעולם (ve-aní einení ʿod ba-ʿolam), reproduzindo “e eu não estou mais no mundo” em hebraico, com a partícula ʿod para ouketi, e o verbo copulativo einení no presente.

A versão Peshitta-T, em siríaco: ܡܟܝܠ ܠܐ ܗܘܝܬ ܒܥܠܡܐ (mekhil lā hawayt bʿalmā), traduz literalmente como “e já não estou no mundo”, com hawayt no pretérito enfático mas usado no presente lógico, o que é natural no siríaco. Essa versão preserva a estrutura do original grego dentro da sintaxe semítica, sugerindo que o pensamento hebraico subjacente a João 17:11a (conforme também sugerido por C. F. Burney) encontra paralelos tanto na forma quanto na teologia da expressão siríaca.

Em resumo, das mais de 40 versões examinadas, a esmagadora maioria reproduz fielmente o tempo verbal presente e a negativa escatológica da frase kai ouketi eimi en tō kosmō, com construções como:
AFV, ASV, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, NET, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, YLT — todas mantêm “I am no longer in the world” ou equivalente.

Já versões como BSB, ERV, CEV, GW, NVT, Williams, TPT preferem reformulações que convertem o presente em futuro ou verbo de ação, enfraquecendo a carga dramática e existencial da declaração de Jesus, embora ainda sejam teologicamente defensáveis.

João 17:11a — Comparação Exegética das Versões Bíblicas (Parte 2)

Base exegética: kai houtoi en tō kosmō eisin – “e estes estão no mundo”

A cláusula kai houtoi en tō kosmō eisin estabelece o contraste dramático com a declaração anterior. Enquanto Jesus afirma “ouketi eimi en tō kosmō” (“já não estou mais no mundo”), ele reconhece, em paralelo, que seus discípulos continuam plenamente enraizados na realidade terrena. O sujeito houtoi (“estes”) é enfático, referindo-se especificamente aos seus seguidores imediatos. O verbo eisin está no presente indicativo ativo, reforçando a permanência atual e contínua deles no kosmos – termo que, em João, frequentemente carrega implicações teológicas de oposição a Deus, sistema rebelde, mundo dominado pela escuridão (cf. João 1:10; 7:7; 15:19).

Essa tensão entre a partida de Cristo e a permanência dos discípulos forma a base do pedido subsequente: “guarda-os em teu nome”, pois eles continuarão expostos a um mundo hostil. A análise das versões permite medir o grau de fidelidade a esse contraste de localização e tempo.

A maioria das traduções retém corretamente o sujeito enfático “estes” e o verbo no presente. As seguintes versões reproduzem fielmente a forma “mas estes estão no mundo” ou equivalente:

AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, NET, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, YLT — todas mantêm:

“but these are in the world”
“and these are in the world”
“but these remain in the world”
“and these continue in the world”

Note-se que algumas diferenciam o conectivo inicial kai (“e”) com “mas” para marcar o contraste com a frase anterior, o que é aceitável, pois o paralelismo estrutural entre “eu não estou mais” e “eles estão” sugere um antítese implícita. Assim, “mas” (but) reflete corretamente o valor discursivo contrastivo.

A versão BSB mantém: “but they are in the world”, com pronome de terceira pessoa. Embora houtoi seja “estes”, e “they” seria “eles”, em inglês a escolha é natural — o deíctico houtoi com valor demonstrativo pode ser suavizado na tradução sem prejuízo semântico. Outras versões fazem o mesmo: BSB, ESV, NET, TLV, LSV, etc.

A versão Cepher apresenta: “but these are in the world”, e mantém “these” como tradução de houtoi, o que é mais literal. A Geneva: “but these are in the worlde”, confirmando o mesmo padrão. A Darby e a DRB também dizem: “and these are in the world”, incluindo o conectivo “and” e mantendo o verbo no presente.

A ERV usa uma tradução mais interpretativa: “these followers of mine are still in the world”, inserindo “followers of mine” como paráfrase de houtoi, o que é aceitável, mas interpretativo. A inclusão de “still” tenta capturar o valor de permanência do tempo presente, mas o verbo “are” permanece no presente, o que é correto.

A CEV simplifica: “but my followers are still in the world”, similar à ERV. O mesmo ocorre com GW, que diz: “but they are in the world”, neutro, mas fiel ao tempo verbal. A TPT diz: “but my disciples will remain here”, introduzindo “will remain” — um futuro, portanto alterando o valor temporal do presente indicativo eisin e suavizando o contraste imediato da sentença. Essa opção, ainda que compreensível como tentativa de expressar duratividade, dilui a força teológica do presente absoluto da permanência dos discípulos num mundo já considerado por Jesus como não mais o seu.

As versões NTLH e NVT seguem caminhos distintos. A NTLH diz: “Eles continuam no mundo”, o que traduz bem o presente eisin com o verbo “continuar”, embora transforme o houtoi em “eles”. A NVT, por sua vez, afirma: “eles ficam aqui”, substituindo “mundo” por “aqui”, o que enfraquece a teologia joanina do kosmos como sistema hostil. Ainda que “aqui” seja compreensível em termos locativos, perde-se a carga semântica do vocábulo kosmos no Quarto Evangelho.

A versão siríaca da Peshitta-T traduz fielmente: “w-hālēn bʿalmā ʾīnūn”, literalmente: “e estes estão no mundo”, com hālēn como deíctico plural (estes) e ʾīnūn como cópula presente. A construção preserva a simetria com o grego e também com o hebraico da versão Hebrew NT DD, que diz: “והם בעולם המה” (ve-hem ba-ʿolam hemmah), literalmente: “e eles no mundo são”, reforçando o valor presente e a ênfase nos discípulos.

Portanto, as versões que traduzem fielmente “estes estão no mundo” ou equivalente exato incluem:
AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, NET, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, YLT, Greek TR, Peshitta-T, Hebrew NT DD.

Já versões como ERV, CEV, GW, TPT, NTLH, NVT optam por estruturas interpretativas que alteram, suavizam ou deslocam semanticamente o valor original da cláusula, especialmente trocando o termo kosmos por “aqui” (NVT), introduzindo futuros (“will remain”, TPT), ou trocando “estes” por “meus seguidores” (ERV, CEV), o que tem efeito cumulativo de diluição da ênfase e localização.

João 17:11a — Comparação Exegética das Versões Bíblicas (Parte 3)

Cláusula analisada: kai egō pros se erchomai – “e eu vou para ti”

Essa cláusula marca a transição entre a constatação da ausência iminente de Jesus no mundo e o pedido intercessório em favor dos discípulos. O verbo erchomai, presente do indicativo médio (ou deponente), expressa ação contínua ou iminente: “estou vindo” ou “vou”. No contexto do discurso joanino, trata-se de uma declaração não apenas de movimento físico, mas de retorno existencial e teológico ao Pai — completando o ciclo iniciado em João 13:3: “sabendo Jesus que viera de Deus e ia para Deus”.

O verbo pros se erchomai indica não apenas direção (com pros), mas também intimidade relacional, como já analisado. A autodeclaração de Jesus egō erchomai contrasta com houtoi eisin, criando dois eixos distintos de presença: os discípulos no mundo, o Filho em movimento ao Pai. Analisemos agora como cada versão verte essa estrutura.

1. Versões que mantêm literalmente “e eu vou para ti” ou equivalente:

AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, NET, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, YLT, Greek TR, Peshitta-T, Hebrew NT DD — todas essas versões reproduzem:

“and I come to thee” / “and I am coming to You” / “and I go to thee” / “and I am coming”

Ou ainda, em algumas com leve variação verbal, como “I am now coming” ou “I will be coming”, mantendo o valor da ação presente ou iminente, preservando o sentido escatológico implícito de transição ao Pai. A Peshitta-T apresenta: “wa-anā lūṯāk āṯē anā” – literalmente “e eu venho a ti”, que reflete a forma grega. A versão hebraica DD: “ואני בא אליך” (ve-aní baʾ elékha), igualmente literal.

A TPT traduz: “I am about to leave this world to return and be with you”, o que substitui o presente por uma estrutura perifrástica com about to leave e to return, além de expandir pros se para “to be with you”, o que, embora teologicamente aceitável, já representa interpretação e adulteração sintática, removendo o erchomai como verbo central. Essa diluição não é apenas estilística, mas compromete o movimento semântico do original.

A GW verte como: “I’m coming back to you”, o que introduz back, inexistente no texto grego. Isso insere um pressuposto teológico sobre “retorno” que o texto deixa implícito, mas não explicita em termos lexicais. Similarmente, a CEV: “I am coming to you”, está adequada, embora em português a KJV use “I come to thee”, mais literal. A ERV diz: “Now I am coming to you”, inserindo “now” para marcar o tempo, o que pode ser aceitável, embora ausente no original.

A NTLH diz: “Agora estou indo para perto de ti”, e a NVT: “mas eu vou para tua presença”. Ambas mantêm o movimento direcional, mas substituem pros se por “para perto de ti” ou “para tua presença”. Embora transmitam o sentido, perdem a economia verbal do original. A inserção de “presença” é interpretativa e não corresponde diretamente ao texto base.

As versões KJV, ASV, DRB, RV, Darby, Geneva, TR, LEB, LSV, UASV+, WEB, EMTV, Peshitta-T, Hebrew NT se mantêm absolutamente fiéis à estrutura original: sujeito explícito (egō), verbo erchomai no presente, direção pros se. Essas são as versões mais confiáveis nesta cláusula. O paralelismo entre “não estou mais no mundo” e “eu vou para ti” se mantém com nitidez nesses casos.

Versões como TPT, GW, NVT, NTLH, ao adicionarem expressões como “retornar”, “para tua presença”, “estou indo agora”, transformam a estrutura em algo interpretado ou estilizado, o que, embora facilite a compreensão pastoral, empobrece o rigor exegético, deslocando o centro da declaração da voz ativa de Jesus para termos teológicos não-gramaticalmente explicitados.

Assim, as traduções mais fiéis a essa cláusula de João 17:11a são:

AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, NET, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, YLT, TR, Peshitta-T, Hebrew NT DD.

As traduções que inserem interpretações (como “retorno” ou “presença”) ou alteram o tempo verbal para futuro ou perifrase são: TPT, GW, NVT, NTLH, ERV, e parcialmente CEV.

A declaração de Jesus em João 17:11a — “Agora estou indo para perto de ti. Eles continuam no mundo, mas eu não estou mais no mundo” — emerge como uma das afirmações mais densas e teológica-filosoficamente carregadas do capítulo 17. A gramática da despedida é aqui elevada à gramática da eternidade. Cada termo carrega o peso de uma realidade transcendente que transborda o tempo linear e o espaço empírico. As palavras “agora”, “indo para ti”, “continuam no mundo” e “não estou mais no mundo” operam como coordenadas de uma cartografia teológica que transcende a mera localização.

1. A palavra “agora” (νῦν / nun) como kairológico, não cronológico

Jesus diz: “Agora estou indo para junto de ti” — mas esse “agora” não deve ser lido como uma marca de tempo cronológico, como se ele estivesse naquele exato instante se deslocando em direção ao Pai. O uso recorrente de nun no capítulo 17 (cf. João 17:5, 7, 8, 13) não aponta para um tempo medido pelo relógio, mas para um tempo experimentado existencialmente: trata-se do kairós, o tempo oportuno, o instante decisivo em que a missão encarnada atinge seu limiar. Jesus já havia dito em João 13:1 que “sabia que era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai”, e aqui, em 17:11, essa “hora” é invocada sob a forma do “agora”. É o agora da consciência plena, não da movimentação física. Em outras palavras, trata-se de um “agora” escatológico.

Filosoficamente, esse “agora” marca o colapso da distinção entre tempo e eternidade. O Filho, que veio do Pai (João 16:28), sabe que o retorno está determinado não por distâncias, mas por designios. Ele não está mais contando as horas — está atravessando o véu da história.

2. “Estou indo para ti”: movimento espiritual, não geográfico

Quando Jesus afirma que está indo “para junto de ti” (pros se erchomai), o verbo erchomai (vir, vir chegando) sugere um movimento que, embora seja de aproximação, não é espacial no sentido topográfico. Deus não habita um “lugar” acessível por deslocamento físico. O movimento do Filho é ontológico: ele retorna ao domínio da glória eterna de onde procedeu, conforme explicitado em João 17:5 (“com a glória que eu tinha contigo antes que o mundo existisse”).

Logo, ir “para junto do Pai” significa reassumir a comunhão absoluta da Trindade, não subir para um endereço cósmico. Aqui, a preposição pros é teologicamente poderosa: significa mais que “para”, implica “face a face com”, “em direção relacional”. O Filho se dirige ao Pai não como quem vai a um local, mas como quem se entrega de volta à plena unidade da deidade. Não há mapa para esse movimento — há apenas a cruz como portal.

3. “Eles continuam no mundo”: distinção existencial, não apenas espacial

O contraste entre “eu não estou mais no mundo” e “eles estão no mundo” não se resolve num binômio de presença física versus ausência física. Jesus ainda está fisicamente presente, falando com os discípulos. O que ele afirma é uma transição de esfera ontológica: ele já pertence ao domínio escatológico; eles, ainda não. O “mundo” aqui (gr. kosmos) não é a Terra como planeta, mas a ordem caída, a estrutura de alienação humana, o sistema que rejeita a luz (João 1:10-11; 3:19).

Dizer que “eles continuam no mundo” é reconhecer que o discipulado se dá em meio ao campo de tensão entre fé e oposição. Eles habitam ainda a realidade hostil que Jesus está prestes a deixar. Mas não a abandonarão como órfãos (João 14:18); a sua permanência no mundo será contraposta à sua consagração ao Pai — daí o pedido subsequente: “guarda-os”.

Teologicamente, a permanência dos discípulos no mundo aponta para a vocação do in mundo, sed non de mundo — estar no mundo, mas não ser do mundo. Jesus sai, mas eles continuam — e continuarão como testemunhas, como luzes em meio às trevas (cf. João 17:18). A saída de Jesus é a ativação da missão da Igreja.

4. “Não estou mais no mundo”: linguagem performativa e escatológica

Quando Jesus afirma “não estou mais no mundo”, ele não está mentindo ou se contradizendo. Ele está usando uma linguagem performativa e escatológica. É como quem diz: “para efeitos espirituais e teológicos, minha missão aqui se encerrou; estou me dirigindo ao clímax”. Trata-se de uma linguagem profética que antecipa a cruz, a ressurreição, a ascensão. Como diz João 19:30: “Está consumado”.

Esse tipo de linguagem é comum na Escritura: Paulo dirá em 2 Timóteo 4:6, “o tempo da minha partida está próximo”, como se já tivesse partido. A tensão entre o já e o ainda-não se faz presente. Jesus já se vê fora do mundo, não por alienação, mas por transcendência.

Filosoficamente, essa declaração relativiza a realidade visível. Jesus está ali, mas já está ausente; está entre os homens, mas já está envolvido no manto da eternidade. Ele está, e não está. É a antinomia do Logos encarnado que já se recolhe.

João 17:11a, portanto, se localiza num entrelugar escatológico, onde o Cristo está ainda entre os seus, mas já regressando ao Pai. O “agora” inaugura a última fase da sua obra; o “ir para ti” descreve sua glorificação; o “eles continuam no mundo” acentua a necessidade da intercessão; o “não estou mais no mundo” consagra a tensão do já e ainda-não, próprio da linguagem teológica profunda.

Jesus é, nesse ponto, o limiar entre o tempo e a eternidade, entre a carne e a glória, entre o mundo e o Pai. Sua oração nos arrasta para esse abismo de sentido, onde o verbo se despede do pó, para ser novamente apenas luz.

João 17:11b – “Pai santo...”
Texto (TR, transliteração): Pater hagie

A invocação “Pai santo” — Pater hagie — marca um ápice tanto linguístico quanto teológico na oração intercessória de João 17. Esta é a única vez em todo o Novo Testamento em que Jesus une essas duas palavras específicas em vocativo direto: Pater (“Pai”) e hagie (forma vocativa de hagios, “santo”). A escolha deliberada dessa fórmula não é um ornamento devocional, mas uma abertura densamente carregada de conteúdo soteriológico, relacional e escatológico.

1. Análise morfológica e exegética do grego Pater hagie

O vocativo Pater é uma forma direta de apelo que pressupõe intimidade. O termo é a transliteração grega do vocábulo aramaico/hebraico Abba, cuja profundidade relacional se estende para além da paternidade biológica ou funcional. “Pai”, para Jesus, não é uma designação estrutural, mas uma autodefinição do ser de Deus em relação com o Filho. O uso do vocativo aqui — e não do nominativo — expressa súplica e apelo direto em tom de oração.

A palavra hagie, por sua vez, é o vocativo singular masculino da forma adjetival hagios (“santo”). É importante notar que Jesus poderia ter utilizado dikaie (“justo”), como fará adiante em João 17:25 (“Pai justo”, Pater dikaie), ou simplesmente Theos (Deus). Mas aqui, na parte central do seu clamor intercessório, Ele invoca a santidade absoluta de Deus. O adjetivo hagios denota separação ontológica, pureza moral e inteireza de caráter. O vocativo reforça o tom de invocação solene e reverente, sem prejuízo da intimidade implícita em Pater.

O contraste interno é marcante: o Pai é absolutamente “outro” em sua santidade (hagie), e ao mesmo tempo absolutamente próximo em sua paternidade (Pater). Aqui se realiza, linguisticamente, o paradoxo da transcendência imanente: Deus é totalmente santo e totalmente Pai.

2. Pensamento semita e equivalentes no NT hebraico e na Peshitta

No Novo Testamento hebraico (NT Heb DD), a expressão é traduzida por Aví ha-qadosh (אבי הקדוש), literalmente “meu Pai, o Santo”, fundindo a intimidade filial (Aví) com a consagração absoluta (ha-qadosh). O uso do artigo definido ha ressalta que Deus não é apenas um entre muitos santos, mas o único plenamente santo. Isso retoma a linguagem do Antigo Testamento onde qadosh (קדוש) é o termo técnico para a santidade absoluta de Deus (cf. Isaías 6:3).

Na Peshitta, o texto traz: ܐܒܐ ܩܕܝܫܐ (Abā qaddīshā), onde o substantivo Abā (“Pai”) é seguido pelo adjetivo qaddīshā (“santo”), este último sendo um cognato direto de qadosh. A ordem da Peshitta — primeiro Pai, depois Santo — corresponde exatamente ao grego Pater hagie, o que sugere fidelidade semântica e estilística ao texto grego original. Contudo, o eco do aramaico de Jesus se escuta mais claramente aqui, já que o próprio Jesus falava aramaico, e provavelmente orou em termos como Abā qaddīshā, invocando o Pai com reverência e ternura ao mesmo tempo.

Na tradição semita, essa combinação é profundamente significativa: a santidade de Deus não o afasta, mas o qualifica como o Pai ideal — o único totalmente digno de confiança, cuja pureza não corrompe, cuja proximidade não vulgariza.

3. Intertextualidade com o Antigo Testamento: Deus como “Santo”

A santidade de Deus é uma das categorias centrais da teologia veterotestamentária. Desde o canto de Moisés em Êxodo 15:11 — “Quem é como tu, glorioso em santidade?” — até os serafins clamando “Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos” em Isaías 6:3, o conceito de santidade transcende moralidade: é ontológico, é a separação radical de Deus em relação a tudo o que é impuro, comum ou profano.

Em Levítico 19:2, Deus ordena: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo”. Aqui, a santidade não é apenas atributo, mas chamado. Em Oséias 11:9, Deus diz: “Eu sou Deus, e não homem, o Santo no meio de ti”. A santidade não torna Deus ausente, mas “no meio”, implicando proximidade sem profanação.

Na literatura sapiencial, como em Provérbios 9:10, a santidade de Deus se torna fonte de sabedoria: “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é entendimento”.

Jesus, ao chamar Deus de “Pai santo”, invoca toda essa tradição, reconhecendo tanto a absoluta perfeição divina quanto a sua relação filial com Ele. Em outras palavras, Ele ora ao Deus de Isaías 6 e de Levítico 19, mas com a intimidade de um filho.

4. Comentário devocional: o Pai santo contra os deuses imorais dos mitos

Dizer “Pai santo” é destruir, com duas palavras, o imaginário mitológico dos deuses greco-romanos e orientais. Em todas essas tradições, as divindades são caprichosas, imorais, distantes ou violentas. Zeus é adúltero; Ares, sanguinário; Baal, manipulável; Moloque, cruel. Nenhum deles é “santo” no sentido bíblico. Nenhum é “Pai” no sentido relacional, confiável e amoroso.

Jesus revela um Deus que é santo — portanto, nunca arbitrário, impuro, volúvel ou injusto — e Pai — portanto, presente, amoroso, cuidadoso, responsável e seguro. O Deus que Jesus ora não é uma projeção dos instintos humanos ou dos arquétipos mitológicos. Ele é o Pai eterno, cuja santidade não o afasta da dor humana, mas o leva a agir redentivamente.

Para o discípulo que escuta essa oração, há consolo e desafio. O consolo é saber que o nosso Salvador intercede não a um Deus hostil ou ausente, mas ao Pai mais puro e presente possível. O desafio é que esse Deus santo exige santidade também de nós (1 Pedro 1:15-16). Ser guardado “em teu nome”, como pedirá Jesus, é ser mantido na esfera da santidade que brota da relação com o Pai.

Ao pronunciar “Pai santo”, Jesus não apenas invoca o Deus de Israel; Ele redefine a linguagem da transcendência e da intimidade. Ele nos mostra que a santidade não é frieza, mas fidelidade; que a paternidade de Deus não é indulgente, mas justa; e que toda oração verdadeira começa no mesmo lugar em que a oração de Jesus começa: com reverência diante do Santo, e confiança filial diante do Pai. É ali — naquele ponto de interseção entre o temor e o amor — que a oração cristã nasce.

João 17:11c “Guarda-os em teu nome” (tēreson autous en tō onomati sou

O imperativo tēreson é aoristo ativo do verbo tēreō, que, como vimos anteriormente, carrega o sentido de “guardar”, “proteger”, “preservar”, “manter em segurança”. A forma aorista aqui denota uma ação pontual, indicando um pedido específico: que Deus efetivamente tome providência concreta para guardar os discípulos naquele exato momento e contexto de transição (cf. João 17:11a: “kai egō pros se erchomai”).

A construção en tō onomati sou é uma locução preposicional com valor instrumental. A preposição en, com o dativo tō onomati, pode ser entendida tanto como locativa (“dentro do nome”) quanto como instrumental (“por meio do nome”). O dativo, nesse contexto, deve ser compreendido na função instrumental, isto é, Deus guarda “por meio do nome” ou “no poder do nome”. Assim, a tradução mais próxima ao valor semântico e teológico seria: “guarda-os pelo poder do teu nome”.

O termo onoma (nome) aparece aqui carregado de profundo valor simbólico e teológico, indo muito além de mera identificação verbal. Na tradição judaica, especialmente no Antigo Testamento, o “nome” representa a essência da pessoa (cf. 1 Samuel 25:25: “...como é o seu nome, assim é ele...” — keshmô ken-hû; ver também Provérbios 22:1: “Mais digno de ser escolhido é o bom nome do que as muitas riquezas...”). Sua autoridade é representada pelo nome no qual atos são realizados, como em 1 Samuel 17:45: “...eu venho a ti em nome do Senhor dos Exércitos...” — ou ainda Êxodo 3:13-14, onde o nome “Eu sou” transmite a autoridade autoexistente de Deus. Sua reputação está atada à santidade e glória do nome, como em Ezequiel 36:21: “Mas eu tive compaixão do meu santo nome, que a casa de Israel profanou entre as nações”. E sua revelação pessoal ocorre no próprio ato de tornar o nome conhecido, como em Êxodo 6:3: “E eu apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso, mas pelo meu nome, YHWH, não fui conhecido por eles”.

O nome de Deus é sua presença, conforme Deuteronômio 12:5: “mas no lugar que o Senhor, vosso Deus, escolher de todas as vossas tribos para ali pôr o seu nome, para sua habitação...”. Cf. também 1 Reis 8:29: “...para que os teus olhos estejam abertos noite e dia sobre esta casa, sobre este lugar do qual disseste: O meu nome estará ali...”.

É seu caráter, como ensinado em Salmos 9:10: “Em ti confiarão os que conhecem o teu nome, porque tu, Senhor, nunca desamparaste os que te buscam” — onde “conhecer o nome” equivale a conhecer a fidelidade de Deus. É sua aliança, pois o nome está ligado ao juramento e à fidelidade do pacto, como em Levítico 19:12: “E não jurareis falsamente pelo meu nome...”.

Por isso, Jesus pode dizer que a proteção dos discípulos se dá “no nome” que o Pai lhe deu, ou seja, em tudo aquilo que esse nome representa: fidelidade (cf. Deuteronômio 7:9: “Sabe, pois, que o Senhor teu Deus é Deus, o Deus fiel, que guarda a aliança...”); soberania (cf. Salmos 83:18: “Para que saibam que tu, a quem só pertence o nome de YHWH, és o Altíssimo sobre toda a terra”); santidade (cf. Isaías 57:15: “Porque assim diz o Alto e Sublime, que habita na eternidade, cujo nome é Santo...”); presença (cf. Êxodo 33:19: “Farei passar toda a minha bondade diante de ti, e proclamarei o nome do Senhor diante de ti..."); poder (cf. Salmos 54:1: “Salva-me, ó Deus, pelo teu nome, e faze-me justiça pelo teu poder”); e revelação pessoal (cf. João 17:6: “Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste...”).

A maior parte das traduções permanece fiel ao grego ao utilizar construções do tipo “em teu nome” ou “pelo poder do teu nome”, reproduzindo diretamente a fórmula grega en tō onomati sou. Traduções como ASV, BSB, ESV, Geneva, DRB, EMTV, ISV, KJV, RV, TLV, UASV+, WEB e WEBA mantêm esse padrão literal “em teu nome”, correspondendo de forma direta ao dativo instrumental grego, sem inserções interpretativas. Já versões como NTLH, ERV, GNB, CEV, GW, TPT e Williams optam por explicitar o valor instrumental da preposição com a expressão “pelo poder do teu nome” ou “com o poder do teu nome”, traduzindo o que está implícito no grego e indicando a função eficaz que o nome divino exerce na preservação espiritual. Essa interpretação, ainda que mais livre, está teologicamente fundamentada, conforme a própria estrutura da oração sacerdotal e os paralelos veterotestamentários em que o nome do Senhor é visto como força protetora (cf. Salmos 20:1; 54:1).

A versão Cepher adota a fórmula “guard them by your name, the same name which you have given me”, reforçando a ideia de identidade e continuidade entre o nome do Pai e o nome dado ao Filho — perspectiva que remete diretamente a João 17:6, “Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste”. Essa tradução evidencia o vínculo ontológico entre o Pai e o Filho mediado pelo nome, que não é mero título, mas substância relacional e teológica.

A versão hebraica do Novo Testamento (Hebrew NT DD) traz a construção נצר אתם בשמך (natsar otam bishmekha, “guarda-os em teu nome”), utilizando o verbo נצר (natsar, “guardar, proteger, vigiar”) que aparece em textos como Provérbios 4:6 e Salmos 25:10, e preserva a fórmula semítica original que enraíza a oração de Jesus no vocabulário cúltico e sapiencial de Israel. A escolha do verbo נצר, em vez de שמר, reforça a nuance de proteção zelosa e vigilância ativa, uma guarda baseada na fidelidade da aliança.

A Peshitta aramaica traduz: ܛܪ ܐܢܘܢ ܒܫܡܟ (ṭar enun b’shemakh), literalmente “protege-os em teu nome”, com o verbo ܛܪ (ṭar) exercendo a mesma função de נצר e reiterando o enraizamento semita da oração. O uso do dativo com o nome indica que o “nome” é o espaço, a esfera e o meio no qual a proteção divina ocorre, ideia recorrente em Salmos 91:14 (“...porque conheceu o meu nome, eu o livrarei”) e Provérbios 18:10 (“Torre forte é o nome do Senhor; para ela correrá o justo e estará em alto retiro”).

A comparação das versões evidencia, portanto, que a maioria opta por manter a estrutura grega literal “em teu nome”, enquanto outras preferem explicitar seu valor funcional como “poder do nome”, sem contradizer, mas aprofundar o conteúdo teológico implícito no original. A leitura hebraica e aramaica reforça o sentido de que o nome não é apenas designação, mas o próprio lugar da fidelidade divina, a habitação espiritual da proteção de Deus, conforme Deuteronômio 12:5 (“o lugar que o Senhor escolher para fazer habitar o seu nome”), e que tal invocação, feita por Jesus, vincula os discípulos à fidelidade eterna do Pai.

Comentário Teológico-Literário-Filosófico: O Valor Semântico do Nome na Bíblia

Como já vimos, a noção de “nome” na Escritura transcende a simples função referencial ou fonética. “Nome” (hebraico: shem; grego: onoma) é a epifania do ser. Não é um rótulo arbitrário, mas a expressão da identidade, da presença e do caráter. É por isso que, no Antigo Testamento, conhecer o nome de Deus é conhecer sua ação e sua fidelidade: “Este é o meu nome eternamente” (Êxodo 3:15); “O nome do Senhor é torre forte; os justos correm para ela e estão seguros” (Provérbios 18:10); “Por amor do teu nome, Senhor, perdoa a minha iniquidade” (Salmos 25:11).

O nome divino YHWH, revelado a Moisés na sarça ardente (Êxodo 3:14-15), carrega o peso do ser absoluto e autossuficiente: “Eu sou o que sou” — ou “Serei o que serei” — marca de um Deus cuja identidade é ação, cuja presença é o próprio tempo.

No Novo Testamento, essa noção é herdada e expandida. O nome de Jesus (Yeshua = “YHWH salva”) contém a plenitude da missão salvífica de Deus. É no “nome de Jesus” que há salvação (Atos 4:12), perdão (Atos 10:43), expulsão de demônios (Marcos 16:17) e reconciliação (Filipenses 2:10).

Na oração de João 17:11, Jesus evoca o “nome” como base de seu pedido, antes mesmo de pedir que os discípulos sejam guardados. A razão é profunda: ele apela à fidelidade essencial de Deus, àquilo que Deus revelou de si mesmo ao longo da história. O nome é a aliança, é o ser comunicável de Deus — não um poder mágico, mas a expressão da identidade relacional do Pai com aqueles a quem amou e deu ao Filho. Jesus não apela a um atributo isolado (como justiça, onipotência), mas à totalidade do ser divino condensado no nome.

Ele não diz apenas “Pai, guarda-os”, mas “Pai santo, guarda-os em teu nome”. A invocação do nome é a fundamentação teológica do pedido. É como se dissesse: “Guarda-os com base em quem tu és, como revelado a Israel e agora a mim — teu Filho.” Assim como os patriarcas invocavam o nome do Senhor (Gênesis 12:8), e como os salmistas confiavam no nome que salva (Salmos 20:7), também Jesus invoca esse nome como lugar de refúgio e proteção para seus seguidores.

Filosoficamente, o “nome” é, na tradição hebraica, um concretum do ser. Diferente do pensamento grego (em que o nome é apenas convenção, como em Crátilo de Platão), a Bíblia hebraica concebe o nome como manifestação do caráter, revelação ontológica e presença eficaz. O nome é performativo: ao dizer o nome, participa-se da realidade nomeada.

Portanto, quando Jesus pede ao Pai que guarde os discípulos “no teu nome”, está dizendo: “com tua própria identidade, com tua própria fidelidade, com tua própria presença.” A oração é radicalmente teocêntrica. A segurança dos discípulos não está em instituições, nem em força própria, mas em quem Deus é — tal como ele se revelou no Nome.

O pronome possessivo sou (teu) enfatiza a procedência divina do nome, indicando que o que está em jogo aqui não é qualquer proteção genérica, mas uma proteção enraizada no caráter e no ser mesmo de Deus, cuja manifestação plena está em Cristo.

O trecho deve, portanto, ser lido assim: “Guarda-os pelo poder do teu nome” ou “Protege-os com base em quem tu és, como revelado em teu nome”, ou ainda “Mantém-nos seguros por tudo o que teu nome representa”.

João 17:11d — “...o nome que me deste...”

O trecho de João 17:11d, “…ho onoma ho dedōkas moi…” (“o nome que me deste”), apresenta uma construção gramatical de alta densidade teológica e retórica. O substantivo onoma (nome) está aqui como objeto direto do relativo ho (que), sendo este antecedido pelo artigo definido também no nominativo to, e seguido do verbo dedōkas — segunda pessoa singular do perfeito indicativo ativo de didōmi (“dar”) — acompanhado do pronome dativo moi (“a mim”). A estrutura completa indica que o sujeito da oração é o Pai, que é quem “dá” algo ao Filho, e o objeto dado é “o nome”. O tempo perfeito do verbo dedōkas expressa uma ação completada no passado com efeitos duradouros até o presente: o Pai já deu esse nome a Jesus, e essa doação permanece ativa e eficaz. Isso reforça que a posse do nome é definitiva e não transitória, fundando-se em um ato eterno de conferência que não será revogado.

Entre as traduções analisadas, a maioria preserva a fórmula “o nome que me deste” com fidelidade ao texto grego: assim fazem ASV, DRB, ESV, KJV, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA e Geneva, entre outras. A versão AFV traz: “those whom You have given Me”, deslocando o objeto da doação para “aqueles que me deste”, o que, embora esteja presente em outros trechos do capítulo 17 (cf. João 17:6, 9), aqui não se alinha ao grego, pois o relativo ho se refere diretamente a onoma (nome), e não aos discípulos. A NENT opta por: “in thy *name, in which thou hast given them to me”, fundindo o nome com os discípulos, numa leitura mais midráshica, mas que ultrapassa o texto imediato. Já traduções como BSB, CEV, GW, GNB e TPT optam por expressões do tipo “the name You gave Me” ou “the power of the name that you gave Me”, enfatizando corretamente o papel do nome como dom divino, ainda que com nuances interpretativas — especialmente ao incluir “poder” em versões como CEV e GNB, que, embora teologicamente justificado, não está expresso diretamente no grego.

A versão hebraica (Hebrew NT DD) traz: et-ha’shem asher natata li, em consonância com o texto grego, utilizando o verbo natán (“dar”) em seu perfeito, e a Peshitta aramaica exprime igualmente a estrutura com ܕܝܗܒܬ ܠܝ (d’yahavt li, “que me deste”), atestando que tanto a tradição hebraica quanto a siríaca compreendem esse trecho como uma doação ontológica real: Deus deu algo essencial ao Filho, e esse algo é “o nome”.

O valor semântico do substantivo “nome” na Bíblia transcende o conceito moderno de simples identificação sonora. Em contextos bíblicos, o nome representa a própria essência, natureza, caráter e autoridade da pessoa ou entidade nomeada. Assim, o “nome de Deus” não é um rótulo arbitrário, mas a expressão concentrada de sua identidade revelada. Quando Jesus declara que o Pai lhe deu o “nome”, isso não implica apenas uma designação nominal, mas um compartilhamento da identidade divina. O “nome” aqui funciona como metonímia da natureza divina. Isso se confirma pelo uso de expressões como “manifestar o teu nome” (João 17:6), o que significa revelar quem Deus é em sua plenitude — não apenas ensinar o tetragrama YHWH, mas tornar conhecida a sua glória, graça, justiça e verdade. Portanto, dizer “o nome que me deste” implica que o Pai comunicou ao Filho, em sua missão encarnada, a autoridade, a glória e a essência de sua revelação.

Essa doutrina encontra paralelos em outros textos do Novo Testamento. Em Filipenses 2:9, lemos: “Pelo que também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome” (kai echarisato autō to onoma to huper pan onoma), indicando que o nome é um dom conferido em virtude da obediência até a morte, e que esse nome concentra em si autoridade universal. Em Hebreus 1:4, Cristo é “feito tão mais excelente do que os anjos, quanto herdou mais excelente nome do que eles”. Em Apocalipse 19:13, Jesus é chamado “Verbo de Deus” e traz um nome que ninguém conhece senão ele mesmo, acentuando a profundidade da sua identidade divina revelada.

No Antigo Testamento, o “nome” de Deus é inseparável de sua presença e glória. Deuteronômio 12:5 afirma que Deus escolherá “o lugar para ali fazer habitar o seu nome”, e em Êxodo 23:21, o anjo enviado pelo Senhor tem o “meu nome nele”, expressão que a tradição judaica leu como referência ao próprio YHWH. Assim, quando Jesus afirma que recebeu o nome do Pai, não se refere apenas a uma fórmula vocal, mas à concessão da glória e autoridade que acompanham o nome do Senhor.

Do ponto de vista filosófico-teológico, afirmar que o Pai deu o nome a Jesus é afirmar que há identidade de missão, autoridade e essência entre os dois. Isso não significa, sob a perspectiva trinitária, uma subordinação ontológica, mas uma concessão funcional e revelacional. O Filho manifesta o Pai, não apenas por ensinamento verbal, mas por portar em si a presença do nome, e portanto, de Deus. A ontologia joanina permite essa sobreposição sem confusão: Jesus é distinto do Pai, mas está unido a ele no nome, e, portanto, na identidade divina. O nome “Jesus” (Yeshua) já contém a raiz YHWH e a ideia de salvação, sendo um indicativo encarnacional da identidade divina que o Filho manifesta. Quando Jesus diz que recebeu esse nome do Pai, implica que a missão do Filho é continuidade da revelação do próprio YHWH, de modo que crer em Jesus é crer naquele que o enviou (João 12:44), e ver a ele é ver o Pai (João 14:9).

Por fim, ao longo do Novo Testamento, encontramos vários aspectos da “doação” divina ao Filho: o Pai dá ao Filho o juízo (João 5:22), o poder (Mateus 28:18), a vida (João 5:26), a glória (João 17:22), e o reino (Lucas 22:29). Todos esses “dons” convergem na doação do nome, pois no nome está sintetizada a missão salvífica e o ser de Deus. Receber o nome é receber a autoridade última para representar e realizar a obra do Pai. Assim, o nome dado ao Filho é não apenas um título, mas o reconhecimento da sua consubstancialidade com Deus. Jesus não apenas fala em nome de Deus — ele é aquele em quem o Nome habita. Portanto, guardar os discípulos “no nome que me deste” significa preservá-los na comunhão com a verdade de Deus revelada em Cristo, na autoridade que dele emana, e na glória que o Pai nele depositou desde a fundação do mundo.

João 17:11e

A cláusula final de João 17:11e — “...guarda-os para que sejam um, assim como tu e eu somos um” — apresenta uma estrutura sintática e morfológica cuidadosamente construída para expressar não apenas um pedido de proteção, mas uma finalidade teológica profunda, mediada por uma oração subordinada final introduzida pela conjunção ἵνα (hina), cujo propósito é a união dos discípulos segundo o modelo divino. A forma completa do trecho grego (em transliteração) é: hina ōsin hen kathōs hēmeis. A conjunção hina é clássica na literatura joanina, usada para indicar propósito, resultado esperado ou intencionalidade divina. Sua presença aqui introduz uma oração final cujo verbo principal é ōsin, forma do presente do subjuntivo ativo de eimi (“ser, existir”), terceira pessoa do plural: “para que eles sejam”. Essa construção verbal, ao empregar o tempo presente do subjuntivo, indica uma ação contínua, não pontual: trata-se de uma unidade a ser preservada e cultivada, não meramente alcançada pontualmente.

O predicativo do sujeito é hen (“um”, neutro singular), e não heis (masculino), o que é gramaticalmente significativo. O uso do neutro implica que Jesus não está falando de unidade pessoal ou numérica de identidade, mas de unidade de essência, propósito, vontade, missão e comunhão. O paralelismo imediato com kathōs hēmeis (“assim como nós”) reforça que essa unidade não é meramente organizacional ou funcional, mas uma participação ontológica na comunhão divina entre o Pai e o Filho. A construção kathōs (“assim como”) funciona aqui como marcador comparativo, sinalizando que a relação entre os discípulos deve imitar a qualidade da relação entre Pai e Filho. O pronome hēmeis está na primeira pessoa do plural, nominativo, indicando o sujeito implícito de uma cláusula elíptica: “nós somos um”. O verbo eimi (“ser”) está omitido por elipse, mas claramente subentendido no paralelismo sintático e semântico com ōsin hen.

Essa oração subordinada pode ser assim esquematizada sintaticamente: oração principal: tērēson autous en tō onomati sou (“guarda-os em teu nome”); oração subordinada final introduzida por hina: hina ōsin hen kathōs hēmeis (“para que eles sejam um, como nós”). Tal estrutura sintática tem paralelo nítido em João 17:21: hina pantes hen ōsin kathōs su, pater, en emoi kagō en soi, hina kai autoi en hēmin ōsin. Essa repetição do mesmo padrão (oração principal + hina + verbo eimi no subjuntivo + hen + cláusula comparativa com kathōs) mostra que o pedido de unidade é não apenas um desejo moral, mas um plano teológico integrado à própria Trindade. O mesmo ocorre em João 17:22: hina ōsin hen kathōs hēmeis hen esmen, agora com o verbo explícito esmen (“somos”) reforçando a unidade plena entre Pai e Filho como modelo absoluto da unidade eclesial.

No Antigo Testamento, especialmente na Septuaginta, há construções sintáticas semelhantes envolvendo o uso de hina e o verbo eimi, muitas vezes com hen ou equivalentes hebraicos para expressar unidade, propósito e comunhão. Um exemplo significativo é Gênesis 11:6 LXX: kai archisan pantes hen glōssan echein, “e todos começaram a ter uma só língua”, no contexto da torre de Babel, onde a unidade dos homens é destacada — porém, nesse caso, é uma unidade que se opõe ao desígnio divino. Em contraste, a unidade de João 17 é uma unidade em Deus, modelada pela união perfeita entre Pai e Filho.

Outro paralelo pode ser traçado com Zacarias 14:9 LXX, onde se diz: kai estai Kyrios eis basilea epi pasan tēn gēn; enē hēmera ekeinē estai Kyrios eis hen, kai to onoma autou hen — “E o Senhor será rei sobre toda a terra; naquele dia o Senhor será um, e seu nome será um”. Aqui, hen está relacionado à unidade divina e ao nome, antecipando ecos temáticos que João reutiliza de forma cristológica em sua oração sacerdotal.

A construção ōsin hen também encontra eco em passagens como Romanos 12:5 (outōs hoi polloi hen sōma esmen en Christō, “assim nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo”) e 1 Coríntios 12:12 (hen sōma, “um só corpo”), onde a expressão hen carrega o mesmo valor de unidade espiritual fundamentada na comunhão com Cristo. Embora a metáfora paulina do corpo seja distinta da linguagem de João, a base sintática e teológica da expressão hen se entrelaça com a tradição joanina de comunhão entre os discípulos como reflexo da comunhão trinitária.

Portanto, a análise sintática, morfológica e etimológica de João 17:11e revela que o pedido de Jesus por unidade dos discípulos é mais do que uma súplica por harmonia: é uma proclamação de uma comunhão escatológica enraizada na própria ontologia divina. A unidade não é um ideal ético, mas uma participação teológica na relação pericorética entre Pai e Filho. A sintaxe joanina articula essa verdade com precisão gramatical, e sua correspondência com outras passagens do NT e LXX confirma que tal linguagem reflete um padrão bíblico consistente de como Deus expressa sua vontade de unidade espiritual entre os seus. A continuidade entre a oração de Jesus e textos da tradição hebraica e apostólica demonstra que hina ōsin hen kathōs hēmeis é uma frase-chave para entender a eclesiologia e a teologia trinitária no evangelho de João.

A comparação entre a cláusula final de João 17:11 — “para que sejam um, assim como nós somos um” — e as traduções fornecidas revela uma uniformidade marcante entre muitas versões que mantêm o paralelismo e a simetria exegética da oração de Jesus. O texto original (em transliteração), hina ōsin hen kathōs hēmeis, foi traduzido quase literalmente pelas versões AFV, ASV, BSB, Darby, DRB, EMTV, ESV, ESV+, Geneva, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, NENT, NET, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth e YLT. Todas essas mantêm, com pequenas variações lexicais (como “sejam um” versus “sejam unidos”), a estrutura exegética precisa: a conjunção de finalidade “para que”, o verbo “sejam” no subjuntivo, o predicado “um” (geralmente no neutro) e a comparação com “como nós [somos]”.

A uniformidade dessas versões comprova que os tradutores respeitaram o paralelismo trinitário e eclesial sugerido por hina ōsin hen kathōs hēmeis, reconhecendo que a cláusula expressa mais que unidade funcional — trata-se de uma comunhão relacional moldada pela própria relação entre Pai e Filho. A Vulgata, com “ut sint unum sicut et nos”, conserva com exatidão essa simetria, reafirmando o padrão sintático já presente no grego: o uso de ut + subjuntivo (sint) + unum + sicut.

Outras versões, como a CEV, GNB, ERV, Williams e TPT, optam por paráfrases ou reformulações que visam captar o sentido prático da unidade, mas sacrificam a concisão e simetria sintática do grego. A CEV, por exemplo, diz “Then they will be one with each other, just as you and I are one”, introduzindo a ideia de “uns com os outros” que, embora teologicamente compatível com o sentido da unidade, não está explicitamente presente na construção ōsin hen. Essa reformulação tende a deslocar o foco da unidade trinitária (Pai e Filho) como modelo direto, para uma unidade horizontal entre os discípulos, o que enfraquece o argumento do paralelismo comparativo direto com a Trindade.

A versão Cepher também reestrutura a frase com a expressão hebraica transliterada “yachad”, dizendo “that they may be yachad as we are”, o que introduz um elemento semântico importante (pois yachad evoca a unidade profunda, inclusive litúrgica e comunitária do Antigo Testamento), embora não reproduza a estrutura sintática neutra do grego com hen.

A HRB, de forma semelhante, traduz “that they may be echad as We are echad”, preferindo a palavra hebraica echad, que, como yachad, possui forte carga semântica na teologia judaica — especialmente como aparece em Deuteronômio 6:4: “YHWH é um”. Essas versões, apesar de não refletirem o texto grego palavra por palavra, tentam, por meio de um recurso intertextual com a tradição hebraica, capturar o conceito profundo de unidade ontológica entre Pai e Filho.

As versões NTLH e NVT, embora mantendo a noção de unidade, traduzem com linguagem mais solta. A NTLH diz: “guarda-os para que sejam um, assim como tu e eu somos um”, reproduzindo fielmente o paralelo; mas a NVT reformula: “para que eles estejam unidos, assim como nós estamos”, substituindo a noção de ser (ontológico) por estar (posicional), e o substantivo “um” por “unidos”, que é mais pragmático, mas menos denso teologicamente.

Já a Peshitta em siríaco traduz a frase como: “ܕܢܗܘܘܢ ܚܕ ܐܝܟܢܐ ܕܚܢܢ” (denhehūn ḥad ʾaykānā deḥnan), cuja construção reproduz a intenção joanina, com o uso do numeral ḥad (um) e a conjunção comparativa ʾaykānā (“assim como”), preservando a simetria do grego. O verbo nehūn é uma forma do subjuntivo no siríaco, refletindo o mesmo valor verbal de ōsin. Isso mostra como a tradição semita, mesmo em tradução, manteve a precisão sintática, o que é particularmente significativo dada a origem hebraica da cristologia joanina.

No Novo Testamento Hebraico (DD), temos a frase: “למען יהיו אחד כמונו” (lema‘an yihyū ’eḥad kamōnū), que traduz com extrema fidelidade a estrutura grega: lema‘an (para que), yihyū (sejam), eḥad (um), kamōnū (como nós). A correspondência de yihyū com ōsin, e eḥad com hen, demonstra a equivalência morfológica entre o grego e o hebraico, o que confirma que o pedido de Jesus se ancora em uma concepção semita de unidade — tanto no nível da língua quanto na teologia. Essa estrutura encontra eco direto em textos como Zacarias 14:9 (“será o Senhor um, e um será o seu nome”) e Deuteronômio 6:4 (“YHWH é um”), reforçando a raiz monoteísta e trinitária dessa declaração.

Assim, as traduções que mantêm a forma “para que sejam um, como nós somos um” demonstram maior fidelidade à estrutura exegética e sintática do grego, enquanto aquelas que introduzem paráfrases, ainda que teologicamente aceitáveis, rebaixam a força ontológica da unidade expressa por hen. Versões como CEV, TPT, Williams, ERV, embora mais acessíveis ao leitor moderno, diluem a profundidade semântica do paralelo trinitário. Em contrapartida, a manutenção de hen no neutro, em contraste com heis, como bem observado na análise exegética, é crucial para preservar o ensinamento de que a unidade dos discípulos não é fusão de pessoas, mas comunhão de essência, propósito e missão, à semelhança da comunhão eterna entre Pai e Filho.

A escolha de Jesus em João 17:11 — “guarda-os... para que sejam um” — não é um apelo genérico à proteção, mas revela um encadeamento teológico profundo entre preservação divina e unidade eclesial. O uso do verbo “guarda” (tērēson, de tēreō, no aoristo imperativo ativo) em primeiro lugar, antes mesmo de pedir a união dos discípulos, indica que a unidade não pode ser construída por esforço humano, mas é fruto da preservação ativa e contínua de Deus. Essa ordem das cláusulas é teologicamente deliberada: primeiro a obra divina de sustentação, depois o efeito espiritual de comunhão.

Esse pedido, no entanto, não é isolado. Jesus já havia rogado ao Pai para que os seus fossem “guardados do mal” (hina tēreis autous ek tou ponērou) em João 17:15, mostrando que a proteção divina abrange tanto perigos externos (perseguições, tentações) quanto ameaças internas (divisões, heresias). Tal preocupação está alinhada com o ensino veterotestamentário sobre o papel de Deus como aquele que guarda os seus: “O Senhor te guardará de todo o mal; guardará a tua alma” (Salmo 121:7); “Ele guarda os pés dos seus santos” (1 Samuel 2:9); “O Senhor guarda os simples” (Salmo 116:6). O Antigo Testamento inteiro está saturado da teologia da guarda divina, como também está explícito em Provérbios 2:8: “para que guarde as veredas do juízo, e conserve o caminho dos seus santos”.

Portanto, ao pedir “guarda-os”, Jesus está clamando por uma obra contínua do Pai — a mesma guarda providencial que sustentou o povo de Israel — como fundamento indispensável para a unidade da futura Igreja. Essa intercessão, portanto, é escatológica e profética: prenuncia os desafios e cisões eclesiais que se concretizariam nas comunidades cristãs primitivas. O pedido de unidade é antecipação da realidade que será combatida nas epístolas paulinas, especialmente em 1 Coríntios 1:10-13, onde Paulo suplica que “todos faleis uma mesma coisa... que não haja entre vós divisões... Está Cristo dividido?”. Também em Efésios 4:3-6, Paulo exorta os crentes a “procurar guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Um só corpo e um só Espírito... um só Senhor, uma só fé, um só batismo”.

Nesse contexto, a guarda divina aparece como o sustentáculo da unidade eclesial, e não meramente como proteção física. Isso refuta, por sua vez, a heresia sabelianista. O modalismo ensinado por Sabélio afirmava que Deus é uma só pessoa que se manifesta em diferentes modos (Pai, Filho e Espírito), mas João 17 destrói essa noção. A oração inteira é relacional: Jesus fala com o Pai como um “eu” distinto de “tu”, revelando que a unidade entre eles não é fusão ontológica, mas comunhão pessoal. Em João 17:5, ele diz: “glorifica-me tu junto de ti mesmo com aquela glória que eu tinha contigo antes que o mundo existisse” — há um eu, um tu e um com. Nenhuma forma gramatical da oração permite interpretação modalista. Se o Pai fosse apenas outro “modo” do mesmo ser indivisível manifestando-se como Filho, a oração seria não apenas absurda, mas uma encenação vazia. O próprio fato de Jesus orar refuta o sabelianismo.

A comparação que Jesus faz entre a unidade dos discípulos e a unidade entre Ele e o Pai (“assim como nós somos um”) utiliza o numeral neutro hen, e não heis (masculino), indicando que eles não são uma só pessoa, mas uma só realidade na essência e no propósito. Isso é corroborado pela estrutura usada em João 10:30: “Eu e o Pai somos um” (egō kai ho patēr hen esmen), onde o plural do verbo esmen (“somos”) também desfaz a fusão pessoal, mantendo a distinção entre as hipóstases.

Para esclarecer ainda mais o significado de unidade sem fusão, o paralelo com Gênesis 2:24 é indispensável: “e serão ambos uma só carne” (lebasar ’eḥad). A LXX traduz: kai esontai eis sarka mian (“e serão para uma carne [feminino singular]”). Essa expressão revela que duas pessoas continuam sendo distintas, mas se tornam uma só realidade na aliança da comunhão. Esse “um” não dissolve as individualidades de Adão e Eva, mas os une em uma realidade relacional indissolúvel. Da mesma forma, os discípulos não devem perder sua individualidade na Igreja, mas serem preservados na unidade de propósito e natureza regenerada — a “nova criação” (2 Coríntios 5:17), como membros do mesmo corpo (1 Coríntios 12:12-13).

O uso de hen (neutro singular) em João 17:11, bem como em 10:30, é o mesmo utilizado na LXX para indicar unidade de essência sem confusão de pessoas. A fórmula “serão um” (esontai hen) aparece também em Ezequiel 37:17, sobre os dois pedaços de madeira que representam as casas de Israel e Judá: “e se tornarão um só na tua mão”. Trata-se de união política e espiritual, sem fusão literal das tribos. Assim, a LXX reforça que “ser um” não indica identidade numérica ou modalista, mas comunhão relacional fundada na aliança.

Por fim, o pedido de Jesus expressa uma teologia do relacionamento: o Pai é santo — ou seja, separado de todo mal, perfeito em justiça (Isaías 6:3; 1 Samuel 2:2) — e, ao mesmo tempo, é Pai — próximo, amoroso, relacional (Salmo 103:13; Jeremias 31:9). O Deus bíblico não é um ser indiferente como os deuses mitológicos — cruéis, passionais e imprevisíveis — mas um Deus que guarda os seus, que chama por nome (Isaías 43:1), que dá nome (João 17:11), e que se relaciona na unidade trinitária, convidando os discípulos a essa mesma comunhão. Assim, o pedido de Jesus sintetiza toda a economia da salvação: guardar, unir e glorificar — tudo em nome do Deus que é Pai e é santo, e cujo nome é fonte de poder e identidade eterna.

João 17:12a – Parte 2
Texto (ARC): “Quando estava com eles no mundo, eu os guardava pelo poder do teu nome, o mesmo nome que me deste.”
Texto grego (TR, transliteração): hote ēmēn met’ autōn en tō kosmō, egō etēroun autous en tō onomati sou hō dedōkas moi

A oração inicia com hote ēmēn met’ autōn en tō kosmō, cujo advérbio temporal hote (“quando”) introduz uma cláusula subordinada que remete ao tempo passado da convivência terrena de Jesus com os discípulos. O verbo ēmēn é o imperfeito do verbo eimi (“ser, estar”), indicando continuidade ou ação repetida no passado — “eu estava”. O pronome egō que aparece depois é enfático e sublinha o agente da ação: o próprio Cristo.

A expressão en tō kosmō (“no mundo”) marca localidade, mas, como as fontes corretamente observam, trata-se aqui não de um local geográfico meramente físico, mas de um termo com forte carga teológica em João. O kosmos representa o sistema humano alienado de Deus, marcado por incredulidade, oposição e pecado (cf. João 1:10; 7:7; 15:18–19). Ao empregar o tempo passado “quando estava com eles no mundo”, Jesus está claramente assumindo uma transição escatológica iminente: sua partida da esfera terrena para o Pai. Ele fala como alguém que já está à beira da glorificação, como já demonstrado no uso do presente futurístico poreuomai (“eu vou”) e ouketi eimi en tō kosmō (“eu não estou mais no mundo”) em 17:11a, revelando a intensidade do momento da oração e a consciência messiânica do Salvador.

Na sequência da cláusula principal egō etēroun autous en tō onomati sou hō dedōkas moi, temos o núcleo da oração: “eu os guardava em teu nome que me deste”. O verbo etēroun está no imperfeito do indicativo ativo de tēreō (“guardar, observar, proteger”), e as fontes corretamente insistem em manter o valor contínuo do tempo verbal: “eu continuava a guardar”. A forma mostra uma ação habitual e constante durante o ministério terreno de Jesus. É significativo que o verbo tēreō aparece aqui em paralelo ao pedido de Jesus em João 17:11, tērēson autous (“guarda-os”), evidenciando uma transição deliberada do cuidado do Filho para o cuidado do Pai, como um pai que entrega seus filhos aos cuidados de outro ao partir. A ênfase é que o mesmo zelo, atenção e proteção que Cristo demonstrou durante sua missão, agora são requeridos do Pai.

A expressão en tō onomati sou é de crucial importância teológica. Como vimos na exposição anterior (João 17:11c), to onoma (“o nome”) na Escritura não é um rótulo fonético, mas a expressão condensada do caráter, da presença e da autoridade divina. O uso da preposição en (“em”) tem aqui valor instrumental: Jesus guardava os discípulos pelo poder do nome de Deus, isto é, pelo acesso pleno à presença e autoridade do Pai, com quem é um. As fontes destacam que tēreō implica vigilância atenta, enquanto o verbo seguinte ephulaxa (“guardei”) carrega um tom militar, com a ideia de defesa contra ataques — phulax é o “sentinela” em Atos 5:23. Jesus foi, portanto, o “sentinela escatológico” dos seus discípulos.

A cláusula hō dedōkas moi é uma relativa que modifica “nome” (onomati), e aparece em dativo por atração do seu antecedente também no dativo (tō onomati). A leitura (“o qual”) é preferida pelos principais manuscritos (𝔓60vid, 𝔓66vid, א, A, B, C, K, L, etc.), superando as variantes ho (acusativo singular) e hous (acusativo plural), como bem documentado por Metzger e Barrett. Esse detalhe gramatical confirma que é o nome que foi dado a Jesus, e não os discípulos (como sugerem algumas versões). A estrutura é teologicamente densa: Deus deu a Jesus “o seu nome”, o que implica plena delegação de autoridade (cf. Filipenses 2:9–11: “pelo que também Deus o exaltou soberanamente e lhe deu um nome que é sobre todo nome”), e, por essa autoridade, Jesus guardou os seus.

As fontes também observam a íntima relação entre a preservação dos discípulos por meio do nome e a revelação de Deus que lhes foi dada (cf. João 17:6: ephanerōsa sou to onoma, “revelei o teu nome”). O nome que o Pai deu ao Filho representa mais do que um título: é a encarnação da sua missão e glória, como em Hebreus 1:4: diaphorōteron para angelous keklēronomēken onoma, “herdou nome mais excelente que os anjos”. É esse mesmo nome que, segundo Apocalipse 19:13, está sobre a sua veste: kai kaleitai to onoma autou ho logos tou theou (“e o seu nome é: o Verbo de Deus”).

Assim, a primeira metade de João 17:12a articula com exatidão o caráter protetor do ministério de Jesus, não como mero acompanhamento pastoral, mas como manifestação eficaz da glória, do nome e da autoridade de Deus. O uso dos verbos etēroun e ephulaxa em conjunção, e do dativo tō onomati sou hō dedōkas moi, estabelece a base para o próximo desenvolvimento da oração: a exposição do destino de Judas como exceção trágica, não por falha de guarda, mas por rejeição da palavra guardada (João 17:6). Prossigo com a Parte 3.

João 17:12a – Parte 3
Texto (ARC): “Quando estava com eles no mundo, eu os guardava pelo poder do teu nome, o mesmo nome que me deste.”
Texto grego (TR, transliteração): hote ēmēn met’ autōn en tō kosmō, egō etēroun autous en tō onomati sou hō dedōkas moi

A progressão do discurso conduz naturalmente ao segundo verbo central da oração: ephulaxa (“eu guardei”), aoristo ativo de phulassō, que completa o sentido do imperfeito anterior etēroun. A distinção entre esses dois verbos é fundamental, como destacado insistentemente por diversas fontes: tēreō transmite o cuidado constante e observacional, uma espécie de vigilância espiritual e formativa, enquanto phulassō implica proteção ativa, concreta, como a de um guarda armado que protege um perímetro. O primeiro está ligado ao zelo discipular e ao ensino que protege da ignorância e do erro; o segundo, à intervenção direta e protetiva contra forças externas destrutivas — espirituais, sociais ou físicas.

O aoristo constativo ephulaxa resume, em sua completude, a função de guardião que Jesus cumpriu perfeitamente. Seu uso implica que o tempo de vigilância ativa chegou a um clímax e agora está completo: o Guardião encerra sua missão. As fontes comparam essa imagem a João 10:28–30, onde Jesus declara: “Dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão... o Pai, que mas deu, é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai. Eu e o Pai somos um.” Aqui, a unidade entre o guardião humano-divino (Jesus) e o guardião eterno (o Pai) é explicitada, e João 17:12a retoma essa unidade ao fundamentar a ação de guardar no “nome que me deste”, ou seja, na comunhão entre o Filho e o Pai.

É importante lembrar que ephulaxa aparece em contextos de vigilância militar em outras passagens do Novo Testamento (como em Atos 5:23, phulax, “sentinela”), reforçando essa nuance de ação concreta. Jesus não apenas observou os seus, mas efetivamente os defendeu do Maligno (cf. João 17:15, hina tērēs autous ek tou ponērou, “guarda-os do maligno”).

A conjunção coordenada kai entre etēroun e ephulaxa une as duas dimensões do cuidado de forma complementar, não redundante. A proteção espiritual pedagógica e a defesa ativa são inseparáveis na missão do Bom Pastor. Como indicam os comentários consultados, o paralelo com 1 João 5:18–21 também é relevante: ho gennētheis ek tou theou tērei heauton... phulaxate heautous apo tōn eidōlōn (“o que é nascido de Deus guarda-se... guardai-vos dos ídolos”). João associa tēreō com autopreservação moral e phulassō com resistência à idolatria e à falsidade — temas centrais no contexto da traição de Judas, que emerge na sequência do versículo.

Em resumo, nesta parte do versículo 12a, temos um desenvolvimento duplo da guarda messiânica: Jesus foi ao mesmo tempo pedagogo da verdade (via tēreō) e protetor das almas (via phulassō). A autoridade para tanto deriva do nome do Pai, que lhe foi concedido, e que o capacitou a manter os seus fora do domínio do kosmos hostil. Esta guarda, agora completada, serve de base para o pedido que vem logo a seguir: “Agora, Pai, guarda-os Tu.” Na próxima parte da oração, essa guarda ganha um contraste dramático: “e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição”. Prosseguiremos, portanto, com João 17:12a – Parte 4.

João 17:12b – Parte 1
Texto (ARC): “Tomei conta deles;...”
Texto grego (TR, transliteração): kai ephýlaxa (καὶ ἐφύλαξα)

A expressão “Tomei conta deles” traduz o verbo composto ephýlaxa, a forma aorista ativa indicativa do verbo phylássō (φυλάσσω), que designa a ação de guardar, proteger, vigiar, cuidar, manter em segurança. Esta forma verbal é usada no Novo Testamento para indicar um tipo de proteção atenta e vigilante, muitas vezes com conotação militar ou de sentinela. O aoristo indica que a ação foi completada no passado, enquanto o sujeito implícito é o próprio Jesus (egō), que aparece no trecho anterior: egō etēroun autous... kai ephýlaxa – “eu os guardava... e tomei conta deles”.

A distinção entre etēroun (“guardava”, imperfeito de tēréō) e ephýlaxa (“tomei conta”, aoristo de phylássō) é fundamental para a exegese. O primeiro verbo implica observação cuidadosa e contínua, enquanto o segundo sublinha proteção ativa, defesa concreta, muitas vezes contra ameaças externas. A oposição entre os tempos verbais e os campos semânticos marca uma intensificação na função de Jesus como protetor. Não se trata apenas de vigilância espiritual passiva, mas de intervenção prática contra o perigo: ele foi um “sentinela” (cf. phýlax, usado em Atos 5:23 para o guarda do cárcere).

No uso do Novo Testamento, phylássō aparece em contextos de defesa contra o mal ou perda. Em 2 Tessalonicenses 3:3 lemos que “o Senhor é fiel, o qual vos confirmará, e guardará (phyláxei) do maligno”. Também em Judas 1:24: “Ora, àquele que é poderoso para vos guardar (phyláxai) de tropeçar...”. O uso de phylássō neste versículo de João 17:12b conecta-se diretamente com essa tradição literária de proteção divina e transcende o cuidado humano.

O contexto imediato em João 17 reforça essa interpretação. Ao empregar ephýlaxa, Jesus reivindica ter exercido sobre os discípulos um cuidado não meramente moral ou instrucional, mas de proteção espiritual, inclusive contra a perda eterna (cf. João 6:39). O cuidado de Jesus é parte da missão messiânica, como aquele que recebeu do Pai a incumbência de não apenas revelar o nome (João 17:6), mas de proteger aqueles que o Pai lhe deu, como se fossem propriedade divina entregue em custódia sagrada. Essa ideia é reforçada em João 10:28: “E dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão.”

A forma verbal ephýlaxa sendo aoristo ativa indicativa sugere que Jesus concluiu essa tarefa: ele “guardou” com sucesso, sem perda (exceto o filho da perdição). A ênfase recai sobre a fidelidade de Cristo à missão recebida e à segurança absoluta dos que estão sob sua guarda.

Nas versões bíblicas que você enviou, observamos que grande parte delas reflete bem essa nuance. Traduções como ASV, NASB, ESV, NHEB, LEB, CSB, BSB e KJV vertem como “I guarded them” ou “I have guarded them”, mantendo o tom de proteção ativa. A ABP+, DRB e Cepher seguem no mesmo espírito. Algumas, como a CEV, optam por uma paráfrase mais leve, dizendo: “While I was with them, I kept them safe”, diluindo levemente a força semântica militar de phylássō. Já a NLT e a GNT traduzem de forma mais livre, mas ainda mantêm a ideia geral de proteção. Nenhuma versão, no entanto, ignora completamente a intensidade do verbo, o que confirma a centralidade semântica dessa palavra. A Vulgata traduz por “custodivi” — forma perfeita de custodire — que retém tanto a noção de guarda quanto de ação completada no passado, em consonância com o aoristo grego.

Do ponto de vista teológico, esta frase revela com clareza o papel pastoral-messiânico de Jesus. A metáfora do bom pastor já havia sido desenvolvida por ele em João 10:11–15, onde afirma: “Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas... conheço as minhas ovelhas e das minhas sou conhecido”. Tal linguagem evoca imediatamente o Salmo 23:1 (“O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”), e outros textos veterotestamentários como Ezequiel 34:11-16, nos quais Deus promete buscar e guardar o seu rebanho. Ao dizer que “tomei conta deles”, Jesus está assumindo este papel divino de forma escatológica e messiânica.

Mais ainda, este cuidado ativo distingue Jesus de um simples mestre humano: ele não apenas instrui, mas guarda, defende, toma conta, salva. Isso é evidência de sua natureza divina em ação, como o Filho que age com o poder do Nome do Pai (João 17:11). Sua guarda é expressão do amor trinitário e da unidade com o Pai. É por isso que, mesmo na ausência física iminente (após a ascensão), ele ora para que o Pai continue esta guarda espiritual.

A necessidade desse cuidado se explica também pela fragilidade dos discípulos e pelos perigos externos. Eles estavam expostos ao ódio do mundo (João 15:18–19), à perseguição (João 16:2), e ao maligno (João 17:15). A proteção de Cristo não era opcional, mas vital para a sobrevivência da fé e missão dos discípulos. Jesus age como o Pastor-Messias, que vela dia e noite sobre as ovelhas, cumpre a vontade do Pai (João 6:39), e entrega um rebanho intacto àquele que o enviou.

O cuidado de Jesus é, portanto, manifestação plena de sua divindade amorosa, de seu poder protetor e de seu compromisso inquebrantável com os que o Pai lhe deu. Essa custódia ativa ecoa o zelo divino expresso no Antigo Testamento, como em Isaías 27:3: “Eu, o Senhor, a guardo, e a rego a cada momento; para que ninguém lhe faça dano, de noite e de dia a guardarei.”

João 17:12c – Análise gramatical, morfológica e exegética (com transliteração)

A frase grega correspondente a essa cláusula é:

καὶ οὐδεὶς ἐξ αὐτῶν ἀπώλετο εἰ μὴ ὁ υἱὸς τῆς ἀπωλείας
transliteração: kai oudeis ex autōn apōleto ei mē ho huios tēs apōleias

Comecemos com a estrutura sintática. O sujeito da oração é οὐδεὶς ἐξ αὐτῶν (oudeis ex autōn – “nenhum [deles]”), que é uma expressão negativa totalizadora formada pela partícula negativa οὐ (ou) + δεὶς (deis, forma enfática de “ninguém”), e a preposição ἐξ (ex) com genitivo partitivo αὐτῶν (autōn – “dentre eles”). O verbo principal é ἀπώλετο (apōleto), aoristo médio de ἀπόλλυμι (apollumi), traduzido como “perdeu-se” ou “pereceu”, com nuance reflexiva na voz média — ou seja, não é apenas que “foi perdido”, mas “ele mesmo se perdeu”, implicando agência pessoal. A construção εἰ μὴ ὁ υἱὸς τῆς ἀπωλείας (ei mē ho huios tēs apōleias) funciona como uma cláusula adversativa com valor de exceção, geralmente traduzida como “exceto o filho da perdição”.

A expressão ὁ υἱὸς τῆς ἀπωλείας (ho huios tēs apōleias) é altamente significativa. O artigo definido ὁ (ho) seguido de υἱὸς (huios – filho) e o genitivo τῆς ἀπωλείας (tēs apōleias – “da perdição”) forma uma construção semítica que indica pertencimento essencial: “filho da perdição” não é apenas “alguém que perecerá”, mas alguém cuja identidade está ontologicamente conectada à destruição. No Antigo Testamento, esse tipo de construção é comum: por exemplo, “filhos de Belial” (בְּנֵי בְלִיַּעַל – bĕnê beliyyaʿal) em Deuteronômio 13:13, 1 Samuel 2:12. No Novo Testamento, Paulo aplica esta mesma expressão ὁ υἱὸς τῆς ἀπωλείας (ho huios tēs apōleias) ao Anticristo em 2 Tessalonicenses 2:3.

O contraste aqui é central: todos os discípulos foram protegidos, menos um, e mesmo esse foi exceção não à guarda divina, mas ao resultado final — pois sua perdição cumpre a Escritura. O uso do aoristo médio ἀπώλετο (apōleto – perdeu-se a si mesmo) exclui qualquer implicação de falha de Cristo. O verbo não é ἀπώλεσα (apōlesa – “eu perdi”), como aparece, por exemplo, em João 18:9 (“...dos que me deste, nenhum deles perdi”), o que reforça a responsabilidade do próprio Judas. Essa distinção entre τηρέω (tēreō – guardar), φυλάσσω (phulassō – vigiar) e ἀπόλλυμι (apollumi – perecer) é deliberada em João.

A fidelidade das versões bíblicas à expressão “kai oudeis ex autōn apōleto ei mē ho huios tēs apōleias” revela nuances significativas na forma como se compreende o destino de Judas, o valor do verbo usado e a estrutura adversativa da frase. A maioria das traduções tradicionais — como a Almeida Revista e Corrigida (ARC), Almeida Revista e Atualizada (ARA), King James (KJV), Douay-Rheims (DRB), American Standard Version (ASV), Berean Standard Bible (BSB) e New King James Version (NKJV) — permanece fiel à construção literal: “e nenhum deles se perdeu, senão o filho da perdição”. Essa tradução reflete de forma correta a força enfática do pronome oudeis (“nenhum”), o valor médio do aoristo apōleto (voz média de “perecer” ou “perder-se a si mesmo”) e a cláusula adversativa ei mē, que funciona como “exceto” ou “a não ser”. A expressão “filho da perdição” (ho huios tēs apōleias) é mantida como uma designação técnico-teológica, que evoca não apenas destino, mas identidade ontológica, à semelhança de construções como “filhos da ira” (Efésios 2:3) ou “filhos de Belial” (Deuteronômio 13:13).

Outras traduções, como a New International Version (NIV), a Good News Bible (GNB) e a New Living Translation (NLT), suavizam essa estrutura adversativa com a fórmula “mas o filho da perdição”, tornando o contraste menos abrupto, embora semanticamente ainda inteligível. A suavização de ei mē com “mas” pode ser considerada legítima do ponto de vista da equivalência dinâmica, mas enfraquece a força excludente e categórica do original. Ei mē não expressa apenas contraste: ela é delimitadora — todos foram guardados, sem exceção salvo um.

Versões como a Christian Standard Bible (CSB), New English Translation (NET) e a Contemporary English Version (CEV) tomam liberdades hermenêuticas mais interpretativas ao traduzirem com expressões como “exceto aquele que estava destinado à perdição” ou “menos aquele que escolheu a destruição”. Estas formulações, embora tentem captar o destino trágico de Judas, introduzem elementos doutrinários não presentes no texto original grego. O verbo apōleto, como aoristo médio, carrega consigo a nuance de autodestruição — Judas perdeu-se a si mesmo, não foi perdido por Cristo ou por outro agente externo. A inserção de ideias como “estava destinado” ou “escolheu” é extrapolação teológica, não tradução exegética.

A tradução latina da Vulgata — “nemo ex ipsis periit nisi filius perditionis” — é formalmente fiel. O verbo periisse expressa a mesma ideia de morte ou ruína definitiva. Preserva-se a força de nemo (“ninguém”), e a conjunção nisi corresponde ao grego ei mē com precisão. Aqui, vemos como a tradição latina manteve a clareza semântica e a correspondência sintática do original.

Na Peshitta, a expressão ܐܦܠܐ ܚܕ ܡܢܗܘܢ ܐܒܕ (aplā ḥad menhūn ʾabd) traduz com simplicidade e fidelidade: “nem um [deles] pereceu”, com o verbo ܐܒܕ (ʾbd), o qual compartilha raiz com formas como ܐܘܒܕܐ (perdição, destruição). A escolha do verbo ʾbd reforça a nuance de autodestruição, pois essa raiz semita é usada tanto para destruição imposta quanto voluntária (cf. Provérbios 29:1). A construção é próxima à hebraica בֶּן־אַבַּדּוֹן (ben ʾabaddon) — “filho da perdição” — como conceito escatológico (Salmos 88:11; Apocalipse 9:11).

A versão Septuaginta (LXX) não tem paralelo direto à expressão “filho da perdição”, mas o substantivo apōleia ocorre em textos como Provérbios 10:29 (“caminho de destruição”) e Salmos 73:18 (“em lugares escorregadios os pões, tu os lanças para a destruição”), revelando que a “perdição” não é mera punição, mas resultado de alienação deliberada de Deus.

A English Standard Version (ESV) e a New American Standard Bible (NASB) mantêm “except the son of destruction”, o que é quase uma transliteração do grego — exata, porém em inglês idiomático. Essa fidelidade é especialmente louvável por preservar o valor teológico e a força morfológica da construção original. As versões Lexham English Bible (LEB) e Literal Standard Version (LSV) também optam por preservar a literalidade sem interpretativismos.

Finalmente, versões como a Bíblia de Jerusalém, Bíblia Católica Ave Maria, Bíblia do Peregrino e Bíblia Pastoral mantêm a fórmula “senão o filho da perdição”, ecoando tanto a fidelidade semântica quanto a tradição litúrgica da Igreja.

Em suma, as traduções que mantêm o paralelismo completo do grego (como ARC, DRB, ESV, NASB, LEB) são as que mais respeitam a estrutura exegética do versículo: reconhecem o peso da partícula oudeis, mantêm o valor reflexivo do aoristo médio apōleto, não diluem a adversatividade de ei mē, e preservam a força teológica de ho huios tēs apōleias. Já as versões que introduzem explicações doutrinárias (“destinado”, “escolheu”, “estava marcado”) desrespeitam o princípio de fidelidade ao texto original, atribuindo ao tradutor o papel de teólogo, e não apenas de transmissor linguístico.

Comentário teológico e filosófico

A força semântica de “οὐδεὶς ἐξ αὐτῶν ἀπώλετο” (“nenhum deles se perdeu”) reside não apenas em seu valor totalizador, mas em sua ênfase paternal: Jesus fala como um pai ou pastor que afirma ter cuidado de todos os seus filhos, exceto aquele que voluntariamente se entregou ao mal. O valor do “nenhum” é absoluto e afetivo. Como em João 10:28–29 (“...ninguém as arrebatará da minha mão”), o “nenhum” reafirma a fidelidade de Cristo como guardião.

O uso da expressão “filho da perdição” remete à lógica semítica de identificação com uma essência ou destino. Se Judas é chamado “filho da perdição”, então a perdição é seu pai — e, no pensamento joanino, isso remete diretamente à ideia de que Satanás é o pai dos mentirosos e dos que rejeitam a verdade, conforme João 8:44 (“Vós tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai”). Isso significa que Judas, apesar de ter estado na presença do Verbo encarnado, voluntariamente se alienou da verdade e, portanto, se alinhou com o poder destrutivo do mal.

O fato de Jesus não mencionar Judas pelo nome, mas apenas pela função escatológica (“filho da perdição”), aumenta o peso simbólico da declaração. Ele não é apenas um traidor: ele é o representante da perdição, o paradigma daquele que rejeita a verdade apesar da revelação máxima. Isso ecoa o Salmo 41:9, que Jesus já havia citado em João 13:18: “Até o meu próprio amigo íntimo, em quem eu confiava... levantou contra mim o seu calcanhar”.

Quanto à pergunta sobre se Jesus já sabia quem seria o traidor: sim, desde o início. João 6:64 afirma: “...pois Jesus sabia desde o princípio quem eram os que não criam, e quem o havia de trair.” Isso se repete em João 13:11 e se consuma em João 13:27, quando Satanás entra em Judas.

A teologia joanina do cuidado pastoral é inseparável da divindade de Cristo. Em João 10:11, Jesus diz: “Eu sou o bom pastor; o bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas”. Essa imagem evoca imediatamente o Salmo 23:1: “O Senhor é o meu pastor; nada me faltará.” Jesus, ao tomar para si a identidade do Pastor Divino, coloca-se no lugar do próprio YHWH (cf. Ezequiel 34:15–16). Ele “guardou” os discípulos como Deus guardava Israel no deserto (Deuteronômio 32:10). Ele os protegeu do mal, das tentações (Lucas 22:31–32), da apostasia (João 6:70–71), do medo (João 14:1), e até mesmo da perseguição até que sua hora tivesse chegado (João 7:30; 8:20).

Jesus precisava tomar conta deles porque o mundo odiava os discípulos (João 15:18–19), Satanás os desejava para “peneirá-los como trigo” (Lucas 22:31), e porque sem o seu cuidado, nenhum permaneceria. O perigo era espiritual, moral, e existencial — o mesmo perigo que levou Judas à perdição. Assim, seu cuidado revela seu caráter divino, amoroso e messiânico: o verdadeiro Pastor, o novo Moisés, o Guardião eterno (1 Pedro 2:25).

Portanto, “nenhum deles se perdeu” não é apenas uma afirmação pastoral, mas um testemunho escatológico: os verdadeiros filhos de Deus são preservados por aquele que recebeu deles a guarda, e que os devolverá intactos ao Pai (João 6:39; 17:24). Judas, ao contrário, cumpre as Escrituras (Salmo 41:9; Atos 1:20) como exemplo trágico da autoperdição — aquele que esteve tão perto da luz e escolheu as trevas.

João 17:12d — Análise gramatical, morfológica, sintática e exegética

O trecho final de João 17:12 — “ἵνα ἡ γραφὴ πληρωθῇ” (transliteração: hina hē graphē plērōthē) — encerra a oração de Jesus nesse versículo com uma cláusula final (“para que”) que expressa o cumprimento de um desígnio divino já antecipado nas Escrituras. O uso da conjunção subordinada ἵνα (hina) introduz uma proposição com valor finalístico pleno, indicando o propósito ou resultado esperado de um ato divino. Neste contexto, ela liga a exceção do “filho da perdição” à realização de um plano preestabelecido nas Escrituras — um cumprimento teleológico da revelação veterotestamentária. A interpretação que tenta suavizar o sentido de ἵνα como simples consequência deve ser rejeitada; trata-se aqui de uma cláusula com valor telético pleno, como destacam os comentários consultados.

O sujeito da oração é ἡ γραφὴ (hē graphē), nominativo singular feminino, com o artigo definido denotando não apenas qualquer porção escrita, mas uma Escritura em sentido técnico-teológico: uma passagem profética previamente registrada e dotada de autoridade revelacional. O substantivo γραφὴ (graphē) aparece em João com esse valor técnico em outras passagens-chave (como João 13:18) e está intimamente relacionado ao conceito joanino da história de Jesus como realização da Palavra de Deus já estabelecida. O verbo πληρωθῇ (plērōthē), aoristo passivo do subjuntivo de πληρόω (plēroō), indica a consumação de um conteúdo — aqui, o cumprimento profético de um evento anunciado. A forma passiva do verbo implica que o agente do cumprimento é Deus, não o próprio Judas, nem Jesus diretamente. O uso do aoristo subjuntivo passivo dentro da cláusula ἵνα sublinha a ação pontual de cumprimento em um plano maior: o que ocorreu com Judas se deu sob o selo soberano de uma palavra que deveria “encher-se de realidade”, ou seja, cumprir-se plenamente no tempo.

Os comentaristas observam que a Escritura implícita provavelmente se refere ao Salmo 41:9 (“até meu próprio amigo em quem eu confiava... levantou contra mim o calcanhar”), já citado em João 13:18, com a mesma fórmula ἵνα ἡ γραφὴ πληρωθῇ (para que se cumprisse a Escritura). O uso da mesma fórmula em 13:18 e 17:12 confirma que Jesus tinha esse texto em mente como referência ao ato de traição, interpretado como o cumprimento de uma palavra veterotestamentária. Além disso, há ecos secundários de passagens como Salmos 109:8 (“que outro tome o seu encargo”), citada em Atos 1:20, e possivelmente Isaías 57:12–13, que tratam do destino dos ímpios e do juízo reservado a eles, sendo interpretadas pela tradição cristã primitiva como alusões tipológicas a Judas. A ausência de citação explícita em João 17:12 reforça a universalidade do conceito: não há apenas um versículo que se cumpre, mas toda uma linha profética que encontra seu ápice no evento da traição.

Notavelmente, embora Jesus reafirme a perda do “filho da perdição”, ele o faz não como resultado de desleixo divino, mas como parte de uma narrativa de cumprimento. As fontes exegéticas enfatizam que o uso da cláusula ἵνα...πληρωθῇ não exime Judas de responsabilidade, como se sua traição fosse inevitável no sentido determinista. Pelo contrário, mesmo sendo objeto de cumprimento profético, Judas age com vontade própria, e por isso sua perdição é sua, como indicam passagens como Atos 1:25 (“Judas caiu por transgressão, indo para o seu próprio lugar”). A tensão entre cumprimento e responsabilidade pessoal, característica da teologia joanina, está intensamente presente nesta construção. Como comentam os estudiosos, Jesus não diz que perdeu Judas, mas que este se perdeu, e o faz para que as Escrituras se cumpram — não como fatalismo, mas como encaixe providencial entre história e revelação.

Comparação crítica com as traduções bíblicas enviadas

Grande parte das traduções bíblicas verte esse trecho de forma uniforme e literal, com a fórmula “para que a Escritura se cumprisse”, evidenciando a consciência da estrutura grega ἵνα ἡ γραφὴ πληρωθῇ. Essa forma aparece em versões como ARC, ACF, NVI, NTLH, Almeida 21, RA, NAA, BCF, BPT, BJ, LEB, KJV, NKJV, NASB, ESV, RSV, ASV, BSB, GNT, DRB, DRA, Douay, ABP+, CSB, AFV, CEV, YLT, LSV, WEB, World English Bible e outras, todas mantendo a fórmula litúrgica clássica, com fidelidade à forma teleológica do texto grego. A única variação significativa entre as versões está na pontuação e em pequenos ajustes estilísticos (uso de “para que se cumprisse a Escritura” ou “para que se cumprisse aquilo que está na Escritura”), sem alteração de sentido.

As versões como AMP (Amplified Bible) e a NLT (New Living Translation) expandem o sentido com glosas explicativas, como: “so that the Scriptures would be fulfilled [regarding the betrayer]”, o que ainda assim preserva a intenção do original, apenas oferecendo uma clarificação ao leitor. Já a versão The Message (MSG) e a CEV fazem paráfrases com relativa liberdade, mas mesmo essas mantêm a noção de cumprimento profético, por vezes deslocando a cláusula para o início da sentença para efeitos retóricos. Em resumo, todas as traduções consultadas respeitam a dimensão teleológica do trecho e mantêm a centralidade da Escritura como referencial profético da ação de Judas, em consonância com a análise exegética apresentada.

Comentário teológico e filosófico

O encerramento do versículo com a afirmação “para que a Escritura se cumprisse” não funciona como uma simples justificativa fatalista, mas revela um ponto nodal da teologia joanina: a soberania do Pai que conduz a história humana — mesmo os eventos mais tenebrosos — segundo o desígnio de sua Palavra revelada. Ao vincular a perda de Judas a um cumprimento escritural, Jesus reafirma o caráter profético e escatológico de sua missão, e ao mesmo tempo demonstra que nenhum detalhe de sua obra, nem mesmo a traição, escapa à mão providente do Pai.

No contexto da Bíblia Hebraica, a ideia de que as Escrituras se “cumpram” (hebraico lema‘an yemalle’ ou lema‘an yitqayem) está associada ao conceito de que o que Deus promete em sua Palavra se torna realidade na história. Salmos 119:89 diz: “Para sempre, ó Senhor, está firmada a tua palavra no céu”, e Isaías 55:11 afirma: “Assim será a palavra que sair da minha boca; ela não voltará para mim vazia, antes fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a enviei.” O uso do verbo πληρόω (plēroō) no Novo Testamento ecoa esse mesmo ethos: o Deus que fala é o Deus que cumpre. A perda de Judas, nesse contexto, se torna uma prova trágica de que até o abandono da luz pode ser incorporado à narrativa redentora, como juízo e advertência.

Filosoficamente, o uso da cláusula final mostra que o mal não está fora do controle divino. Judas não foi vítima da Escritura, mas personagem nela. Sua liberdade foi real, e sua decisão de trair o Messias foi voluntária (João 13:27: “Satanás entrou nele”), mas nada disso comprometeu a integridade do plano divino. A Escritura, aqui, é um espelho da tragédia humana e uma janela da soberania divina. A função dessa frase, ao final do versículo, é dupla: testificar que a Escritura é viva, eficaz e cumprida em Jesus, e ao mesmo tempo exortar o leitor a compreender que nada escapa à Palavra — nem a salvação, nem a perdição.

João 17:13a apresenta uma transição delicada e densa em sua teologia, gramática e função narrativa dentro da oração sacerdotal. O texto em grego, transliterado, lê-se: nun de pros se erchomai kai tauta lalō en tō kosmō, cuja tradução mais próxima seria: “Mas, agora, vou para ti e digo estas coisas no mundo.” A conjunção adversativa de (“mas”) estabelece um contraste com o que foi afirmado antes, marcando uma virada na lógica da oração: enquanto antes Jesus intercedia pelos discípulos, agora introduz um aspecto relacional pessoal com o Pai, explicitando seu movimento espiritual e escatológico rumo à glória que tivera “antes que o mundo existisse” (cf. João 17:5). O advérbio nun (“agora”) tem, aqui, uma função temporal carregada de valor teológico. Ele não indica apenas o momento cronológico em que Jesus fala, mas representa o limiar da consumação de sua missão: é a hora da glorificação, da entrega, da cruz, do retorno ao Pai. É necessário, portanto, compreender que esse “agora” está carregado de um sentido escatológico, profético e performativo. A expressão pros se erchomai (“vou para ti”) está no presente histórico (ou futurístico), indicando uma ação iminente, mas não concluída, como em João 14:3 (“...voltarei para vós...”) ou João 16:28. Trata-se de uma maneira narrativa que antecipa a realidade consumada, mesmo estando Jesus fisicamente ainda no mundo. Isso mostra que seu pensamento e sua vontade já estão alinhados com a ação que se realizará: ele já se vê retornando à presença do Pai, o que reforça sua autocompreensão como aquele que veio do Pai e para o Pai retorna.

O verbo lalō (“digo”) é o presente indicativo ativo de laleō, verbo geralmente usado em João para denotar o falar divino de Jesus, em oposição ao falar humano comum, que seria legō. A escolha desse verbo aqui é intencional: Jesus está dizendo no mundo palavras que carregam conteúdo divino, palavras que têm origem celestial e destino escatológico. A expressão en tō kosmō (“no mundo”) é, à primeira vista, aparentemente redundante. Afinal, sendo Jesus ainda encarnado, é óbvio que está no mundo. Contudo, o uso deliberado de kosmos aqui — palavra que aparece mais de dez vezes neste capítulo — revela a carga teológica que João atribui ao termo. O “mundo” não é apenas o planeta Terra ou a esfera física da criação. Em João, kosmos designa frequentemente a ordem caída, hostil, em oposição ao Pai e ao seu Ungido (cf. João 1:10, 3:19, 15:18–19, 16:33). Quando Jesus diz que fala “no mundo”, ele não está apenas se localizando geograficamente, mas está demarcando o campo de batalha onde sua palavra se manifesta: um ambiente de trevas, que odeia a luz, e onde seus discípulos continuarão após sua partida. Ao falar “no mundo”, Jesus está iluminando o mundo (cf. João 8:12), e registrando seu ensino no domínio onde será necessário lembrar-se de suas palavras após sua ausência corporal.

A comparação com as traduções bíblicas que você forneceu mostra como algumas versões captam bem essas nuances, enquanto outras as diluem. Traduções como ARC, ARA, KJV, NASB, ESV e DRB seguem de forma quase literal a estrutura “Mas agora vou para ti, e digo isto no mundo”, preservando a ordem sintática e respeitando o valor adversativo de de (“mas”) e a força teológica do nun (“agora”). Já versões como a NLT (“Now I am coming to you. I told them many things while I was with them in this world”) e a CEV (“I am on my way to you. But I say these things while I am still in the world”) alteram o foco do verbo “dizer” para a interação com os discípulos, não com o Pai, e deslocam o centro semântico do texto. Isso enfraquece o movimento da oração joanina, que é vertical (Pai–Filho) antes de ser horizontal (Filho–discípulos). Traduções como a TPT, MSG e AMP introduzem interpretações com extensões parafrásticas que se afastam do núcleo do texto grego, embora tentem esclarecer para o leitor moderno. A fidelidade exegética, porém, reside nas versões mais próximas do grego, como LEB, YLT e ASV, que mantêm o presente lalō como “I say” (e não “I said”), e mantêm a frase “in the world” (em vez de removê-la como pleonástica).

Filosoficamente, a repetição enfática da expressão “no mundo” (en tō kosmō) não é tautológica, mas reveladora. Jesus não apenas está no mundo, mas está prestes a sair dele. Sua fala, portanto, tem caráter performativo: ele diz estas coisas ainda no cenário do conflito, como quem marca seu testemunho antes da partida. Como ele disse em João 16:33, “no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo: eu venci o mundo.” Esse “mundo” é o palco da oposição, mas também o lugar onde os discípulos serão santificados pela verdade (João 17:17) e enviados como ele mesmo foi enviado (João 17:18). O uso do presente “vou” (erchomai) e do advérbio “agora” (nun) reforça a tensão entre o tempo presente e a consumação iminente. Jesus já está partindo, mas ainda não partiu; fala ainda no mundo, mas com os olhos no Pai. E ao declarar que fala “no mundo”, Jesus confere ao conteúdo de sua oração um caráter testemunhal e pedagógico: ele quer que seus discípulos saibam, mais tarde, que tudo foi dito sob as circunstâncias reais da dor, da hostilidade e do abandono, mas com plena consciência de que sua missão estava sendo consumada.

João 17:13b apresenta uma das afirmações mais ternas e teologicamente ricas da oração sacerdotal: “...hina echōsin tēn charan tēn emēn peplērōmenēn en autois” — “...para que tenham a minha alegria completa em si mesmos.” A conjunção hina introduz uma cláusula final, revelando o propósito da declaração anterior: Jesus diz estas coisas no mundo (v. 13a) a fim de que os discípulos experimentem uma realidade espiritual específica: sua própria alegria. O verbo echōsin é o presente do subjuntivo ativo de echō (“ter”), subordinado ao hina, indicando intenção contínua: Jesus deseja que os discípulos venham a possuir (e continuar possuindo) a alegria. Não se trata, portanto, de um dom momentâneo, mas de um estado interior duradouro.

O substantivo charan (acusativo de chara) traduz-se por “alegria”, e é intensificado duplamente. Primeiro, pelo possessivo emēn (“minha”), que confere singularidade e exclusividade a essa alegria. Não é qualquer alegria, mas aquela que procede de Jesus — sua experiência interior, seu contentamento, sua vitória. Segundo, pelo particípio perfeito passivo peplērōmenēn (de plēroō, “completar, encher”), cuja forma periprástica reforça o estado resultante de uma ação concluída: é uma alegria que chegou à sua plenitude, à sua totalidade. O advérbio locativo en autois (“em si mesmos”) encerra o versículo, reforçando que essa alegria plena não é apenas algo concedido exteriormente, mas internalizado, incorporado, vivido em sua subjetividade.

A comparação com as versões bíblicas mostra que muitas traduções seguem de forma quase idêntica o padrão semântico do texto original. Versões como ARC, ARA, DRB, NASB, ASV, KJV, ESV, LEB, YLT, WEB, NKJV, LITV e WYC mantêm a estrutura “para que tenham a minha alegria completa em si mesmos”, preservando a ordem sintática e os três núcleos: finalidade (hina), objeto (charan tēn emēn) e qualidade (peplērōmenēn en autois). Versões como a NLT, MSG, TPT e AMP, porém, inserem elementos interpretativos: “I told them many things while I was with them so they would be filled with my joy” (NLT); “I’m saying these things in the world’s hearing So My people can experience My joy completed in them” (MSG); “so that they may experience and enjoy My full and complete joy within them” (AMP). Essas traduções enfatizam a experiência, mas, ao fazê-lo, perdem a precisão do grego, que destaca o conteúdo da alegria como sendo de Jesus, e seu estado como completo.

Filosoficamente, a escolha do termo chara (alegria) em vez de palavras como eudaimonia (felicidade), euphrosynē (júbilo) ou mesmo euthymia (contentamento sereno) é profundamente reveladora. O vocabulário grego do Novo Testamento, especialmente em João, é fortemente marcado pelo uso semita de conceitos. O hebraico śimhāh (שמחה), geralmente traduzido por chara no grego da LXX, representa não uma emoção fugaz, mas uma celebração plena da presença de Deus (cf. Salmos 16:11: “Na tua presença há plenitude de alegria”). Em João 15:11, Jesus já havia dito: “Tenho-vos dito isso para que a minha alegria permaneça em vós, e a vossa alegria seja completa.” A estrutura é idêntica. Aqui, o paralelismo entre “minha alegria” e “alegria em vós” revela que não se trata de êxtase momentâneo, mas de uma participação real na satisfação que Cristo tem em cumprir a vontade do Pai (João 4:34; Hebreus 12:2).

A ideia de uma “alegria completa” é também paradoxal. Alegria, por definição, não seria já uma expressão de bem-estar? Por que então falar em “alegria completa”? Justamente porque há alegrias que são frágeis, condicionais, dependentes de circunstâncias externas. A alegria de Jesus é “completa” (peplērōmenēn), ou seja, perfeita, consumada, saturada. Trata-se de uma alegria escatológica, pois emerge da obediência até o fim, mesmo diante da cruz. João 16:22 antecipa isso: “...e a vossa alegria ninguém vo-la tirará.” Aqui vemos que a alegria que Jesus dá é invulnerável à perda, pois não depende de coisas transitórias, mas da permanência na verdade (João 17:17) e do vínculo com o Pai (João 15:11). Isso também refuta a concepção moderna de alegria como um estado emocional superficial ou efêmero. A “alegria de Cristo” é enraizada em sua relação com o Pai e compartilhada com seus discípulos pela Palavra.

A expressão “em si mesmos” (en autois) merece especial atenção. Ela sinaliza que essa alegria não será mediada por sucessos exteriores ou pela aceitação do mundo (que odeia os discípulos, cf. João 17:14), mas será alojada em sua interioridade espiritual. Isso ecoa João 14:17, onde o Espírito Santo “habita convosco e estará em vós”. Também Paulo, em Romanos 14:17, afirma que “o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo”. A mesma alegria se vê em Filipenses 4:4: “Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez vos digo: alegrai-vos.”

Teologicamente, a expressão “minha alegria” aponta para a alegria intra-trinitária. Não se trata de uma emoção humana, mas da própria satisfação divina na comunhão entre Pai, Filho e Espírito. É a alegria de quem conhece o Pai (João 10:15), obedece ao Pai (João 8:29), cumpre sua vontade até a cruz (João 12:27–28), e ora pelos seus com amor eterno (João 13:1; 17:23–24). Por isso, essa alegria não pode ser replicada pelas categorias humanas comuns. Ela é fruto do Espírito (Gálatas 5:22), inseparável da presença divina (Salmo 21:6) e sinal escatológico da bem-aventurança que os discípulos haverão de experimentar. Não há fusão ontológica entre Cristo e os discípulos, mas há uma real participação mística na alegria do Filho, que está no Pai (João 17:21). Por isso, ao dizer que essa alegria estará “neles”, Jesus anuncia uma realidade que transcende qualquer teoria do prazer ou do bem-estar humano: trata-se da experiência da vida eterna (João 17:3), a comunhão com Deus em Cristo, pela fé.

João 17:14 – Parte 1
Texto (ARC): “Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu não sou do mundo.”
Texto grego (TR, transliteração): egō dedōka autois ton logon sou, kai ho kosmos emisēsen autous, hoti ouk eisin ek tou kosmou, kathōs egō ouk eimi ek tou kosmou.

A expressão inicial egō dedōka autois ton logon sou (“Dei-lhes a tua palavra”) emprega o verbo dedōka, forma do perfeito ativo indicativo da raiz didōmi (“dar”), primeira pessoa do singular. O perfeito em grego sugere não apenas um ato consumado, mas com efeitos contínuos — a palavra dada por Jesus permanece com os discípulos. Ao invés de ta rhēmata (“palavras”, no plural, como em João 17:8), aqui se usa ton logon, o que indica não apenas as palavras específicas, mas a totalidade do conteúdo revelacional de Deus. Trata-se da mensagem central e unificada do evangelho (cf. João 5:38; 15:3; 17:6, 8).

A forma kai ho kosmos emisēsen autous (“e o mundo os odiou”) utiliza o aoristo ativo indicativo emisēsen, do verbo miseō (“odiar”), terceira pessoa do singular. Ainda que a ação esteja no aoristo — indicando um fato pontual — os comentaristas observam que João, por vezes, emprega o aoristo com valor de perfeito (como aponta a fonte), evocando não um simples evento passado, mas um estado persistente de ódio que se iniciou no momento em que os discípulos se associaram com Cristo e receberam sua palavra (cf. João 15:18–19; 1 João 3:13). O sujeito do ódio é ho kosmos (“o mundo”), que em João denota frequentemente a ordem humana em oposição a Deus, o sistema de valores e práticas que rejeitam a verdade divina.

A causa do ódio está em hoti ouk eisin ek tou kosmou (“porque não são do mundo”), com o verbo eisin no presente indicativo, terceira pessoa plural, seguido da preposição ek (“de”, “procedente de”) e do genitivo tou kosmou. A negação enfática ouk reforça a exclusão: os discípulos não têm origem, identidade nem vocação associada ao sistema mundano. A frase ecoa João 8:23 (“vós sois de baixo, eu sou de cima; vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo”) e João 15:19 (“porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos odeia”).

A última cláusula, kathōs egō ouk eimi ek tou kosmou (“assim como eu não sou do mundo”), retoma a estrutura anterior com um paralelo: egō (“eu”) como sujeito, seguido do presente eimi (“sou”) e da mesma construção ouk ... ek tou kosmou. O advérbio comparativo kathōs (“assim como”) estabelece a base da analogia: a identidade e missão dos discípulos não derivam do mundo, da mesma forma que Jesus não pertence ao mundo — não apenas no sentido geográfico ou sociológico, mas ontológico e espiritual.

A análise textual confirma a leitura crítica ton logon como original, preferida sobre outras variações. O verbo dedōka possui forte apoio manuscrítico, e a estrutura tripartida do versículo — dar a palavra, reação do mundo, distinção ontológica — corresponde ao padrão joanino de simetria progressiva.

João 17:14 – Parte 3
Texto (ARC): “Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu não sou do mundo.”
Texto grego (TR, transliteração): Egō dedōka autois ton logon sou, kai ho kosmos emisēsen autous, hoti ouk eisin ek tou kosmou, kathōs egō ouk eimi ek tou kosmou.

O trecho se encerra com a oração de Jesus referindo-se ao antagonismo essencial entre os discípulos e o mundo, não por causa de suas ações isoladas, mas por causa de sua nova natureza, que é consequência da recepção da palavra do Pai. No plano exegético, isso é estabelecido pela oração causal hoti ouk eisin ek tou kosmou (“porque não são do mundo”) e seu paralelo enfático kathōs egō ouk eimi ek tou kosmou (“assim como eu não sou do mundo”). O uso do advérbio comparativo kathōs é teologicamente significativo. Ele estabelece uma analogia entre a origem e a identidade dos discípulos e a de Jesus — não em sua natureza divina ontológica, mas na sua separação ética, espiritual e vocacional do “kosmos”.

Jesus, como o Verbo encarnado, possui origem divina anterior à criação (cf. João 1:1–3; 17:5), e não pertence ao mundo em nenhum sentido ontológico ou moral. Já os discípulos nasceram “do mundo” biologicamente, mas ao receberem o logos de Deus (cf. João 17:8), passaram a participar de uma nova identidade. Tal como o próprio Jesus dissera: “Eles não são mais do mundo, como eu do mundo não sou” (João 15:19). A negação enfática “ouk eisin ek tou kosmou” não indica alienação física, mas sim uma desassociação existencial e ética. Eles ainda vivem no mundo (17:11), mas já não o pertencem em termos de lealdade, essência e finalidade. Como a Epístola a Diogneto expressará no século II: “Os cristãos habitam na pátria de cada um, mas como estrangeiros... estão na carne, mas não vivem segundo a carne.”

O resultado dessa nova filiação espiritual é o ódio do mundo (ho kosmos emisēsen autous). Este ódio é expresso no aoristo constativo emisēsen (de miseō, “odiar”), que abrange toda a história da rejeição progressiva dos justos, como prefigurado em Caim e Abel (1 João 3:12–13). Jesus já havia advertido: “Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós, me odiou a mim” (João 15:18). O mundo odeia aqueles que, por meio da palavra recebida, testemunham contra sua injustiça, como afirmou em João 7:7: “O mundo me odeia porque eu dou testemunho de que suas obras são más.”

Hermeneuticamente, “palavra” (logos) aqui é mais do que doutrina; é a autorrevelação de Deus, é Jesus mesmo enquanto Palavra feita carne (João 1:14). Receber essa palavra é acolher a verdade do Pai revelada em Cristo (João 17:8), e, portanto, entrar numa relação de oposição fundamental com o mundo que jaz no maligno (1 João 5:19). O mundo odeia essa nova humanidade porque ela é testemunho vivo de que existe uma realidade superior, santa e eterna — e, por isso, sua existência é uma acusação à ordem moral do presente século.

Filosoficamente, a oposição entre kosmos e logos é central para o Evangelho de João. Enquanto o mundo se estrutura em torno da vaidade, poder, mentira e morte (cf. João 8:44), a Palavra que os discípulos receberam é verdade, luz e vida (cf. João 1:4; 14:6; 17:17). O mundo — entendido como sistema ético, político e espiritual em rebelião contra Deus — odeia tudo o que não confirma sua autossuficiência. Assim, o “ódio” do mundo aos discípulos não é um sentimento passivo, mas uma rejeição ativa à presença de uma verdade que denuncia sua corrupção.

Ao dizer “assim como eu não sou do mundo”, Jesus afirma a identidade dos discípulos em união com ele. O que está em jogo é uma união espiritual que tem implicações morais, ontológicas e escatológicas. Como Jesus é “de cima” e não “de baixo” (João 8:23), os discípulos, pela regeneração e pela Palavra recebida, passam a participar de sua origem e destino (cf. Colossenses 3:1–3). Isso confirma a tese joanina de que a filiação determina a origem: os filhos de Deus são gerados “não da vontade da carne... mas de Deus” (João 1:13), ao passo que os filhos do mundo são definidos por sua rejeição à luz.

Por fim, a razão pela qual o mundo odeia os que não são dele tem raízes escatológicas e espirituais. O evangelho de João revela uma guerra entre dois reinos: o de Deus e o do maligno. A Palavra entregue aos discípulos é a arma que os separa, transforma e envia (cf. João 17:17–18), tornando-os espelhos do próprio Cristo. Sua santificação e missão brotam do fato de não serem do mundo. Eles se tornam o “sal da terra” e a “luz do mundo” (Mateus 5:13–14), mas por isso mesmo serão perseguidos.

Assim, a estrutura sintática, a seleção vocabular e o paralelismo intencional estabelecido entre Jesus e os discípulos nesta oração reafirmam não apenas o papel mediador de Cristo, mas também a continuidade espiritual entre ele e os seus. A rejeição do mundo é, paradoxalmente, o selo de autenticidade da comunhão com Deus. Como está escrito: “Todos os que quiserem viver piedosamente em Cristo Jesus padecerão perseguições” (2 Timóteo 3:12). Mas o que é selado com ódio humano, é glorificado com amor divino.

Com base na análise exegética de João 17:14 — “Egō dedōka autois ton logon sou, kai ho kosmos emisēsen autous, hoti ouk eisin ek tou kosmou, kathōs egō ouk eimi ek tou kosmou” — podemos avaliar criticamente a fidelidade das versões bíblicas enviadas, considerando especialmente a morfologia, semântica e teologia do original grego. A cláusula inicial, egō dedōka autois ton logon sou, com seu perfeito ativo dedōka, indica não apenas um evento pontual de entrega da palavra, mas uma ação com efeitos contínuos e permanentes. A tradução precisa deveria captar essa duratividade. As versões ASV, KJV, DRB, Darby, ESV, RV, NENT, entre outras, renderam com precisão “I have given them thy word”, mantendo o tempo verbal perfeito e a ênfase na iniciativa pessoal de Cristo. As versões CEV, GNB e ERV, ao traduzirem com expressões como “I have told them your message” ou “I have given them your teaching”, perdem a força da expressão ton logon, que indica não meramente uma comunicação, mas a entrega do conteúdo pleno e autorizado da revelação divina. Versões como NLT, NVT e TPT suavizam ainda mais o impacto da entrega, transformando “word” (logos) em “mensagem” ou “your teaching”, o que pode ser teologicamente válido em contextos pastorais, mas perde a solidez joanina do termo logos.

A segunda cláusula, kai ho kosmos emisēsen autous, contém o aoristo ativo emisēsen, que, embora pontual, pode ter nuance constativa ou prolepticamente profética. A maioria das versões — ASV, KJV, ESV, DRB, RV, LITV, LEB, BSB, EMTV, AFV, Geneva, entre outras — traduz com “the world has hated them”, captando o tempo passado com sentido presente (constativo), fiel ao uso joanino. Versões como CEV (“the people of this world hate them”) ou TPT (“the unbelieving world hates them”) introduzem interpretações e explicações teológicas adicionais não encontradas no texto grego, embora estejam alinhadas à teologia do evangelho de João (cf. João 15:18-19). Contudo, do ponto de vista filológico, representam uma expansão não autorizada do texto.

Na sequência, hoti ouk eisin ek tou kosmou, a expressão ouk ek indica uma negação absoluta da origem ou filiação ao sistema mundano, não meramente uma ausência física no mundo. As traduções mais fiéis preservam o “they are not of the world” (KJV, ASV, DRB, RV, EMTV, WEB, etc.). Já versões como CEV e GNB adotam fórmulas como “they don’t belong to this world” ou “they do not belong to the world”, o que, apesar de captar a essência, pode enfraquecer a conexão metafísica e teológica com o contraste entre ek tou kosmou e ek tou theou encontrado em João 8:23 e 1 João 4:5–6. A ideia joanina não é de mera não-pertencimento comportamental ou de mentalidade, mas de uma oposição ontológica entre aqueles que têm sua origem (ek) em Deus e aqueles que têm sua origem (ek) no mundo ou no maligno (cf. 1 João 5:19).

Por fim, kathōs egō ouk eimi ek tou kosmou reforça essa simetria ontológica entre Jesus e os discípulos, não em termos de preexistência, mas de separação absoluta quanto à fonte de identidade e missão. Aqui, a maioria das traduções mantém a fórmula “even as I am not of the world”, o que se mostra correta em termos de paralelismo e reforça a analogia, embora o uso de “even as” (KJV, DRB, Geneva) e “just as” (ESV, BSB, AFV, etc.) revele variações estilísticas sem prejuízo semântico. Versões como CEV (“just as I don’t”) e GNB (“just as I do not belong”) novamente tendem a suavizar a implicação ontológica e metafísica da frase joanina, tornando-a mais psicológica ou comportamental, o que pode prejudicar a intenção do autor sagrado.

Portanto, as versões que mais fielmente mantêm o rigor do grego original, tanto em morfologia verbal quanto em carga teológica, são: ASV, KJV, DRB, RV, Geneva, ESV, BSB, EMTV, WEB, LEB, NENT e LITV. Já as que enfraquecem o sentido original por escolhas estilísticas, didáticas ou pastorais, ainda que semanticamente compreensíveis, são CEV, GNB, ERV, TPT, NVT e NLT. Em suma, as traduções mais formais e literais tendem a preservar a profundidade da distinção joanina entre os discípulos e o mundo, ancorada não em mera diferença prática, mas numa separação fundamental de origem, missão e pertencimento espiritual, conforme afirmado pelo próprio Cristo em João 15:19 (“se vós fosseis do mundo, o mundo amaria o que era seu”).

João 17:15 (texto)

João 17:15 registra as palavras de Jesus: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal”, revelando em sua construção grega uma intenção deliberada não de evasão, mas de preservação. O verbo principal erōtō, presente do indicativo ativo de erōtaō, significa “rogar” ou “interceder” e difere intencionalmente de aiteō, usado para pedidos subordinados. Aqui, erōtō marca um pedido entre iguais, reforçando o tom sacerdotal da oração do Filho ao Pai. A negação com ouk (“não”) recai diretamente sobre o conteúdo da oração introduzida pela conjunção final hina, que aqui é seguida de arēs autous ek tou kosmou. O verbo arēs, aoristo do subjuntivo ativo de airō, significa “remover, tirar, levantar”, e com o objeto direto autous e a preposição ek (“para fora de”) dá à frase o sentido de remoção total dos discípulos do mundo. A palavra kosmos, como em todo o capítulo 17, não significa simplesmente o planeta ou a humanidade em geral, mas o sistema ético e espiritual de rebelião contra Deus. A oração não apenas evita a ideia de retirada física como a rejeita explicitamente. Jesus não deseja que seus discípulos sejam retirados da realidade terrena, mas que permaneçam nela para cumprir sua missão. Isso é reforçado pelo adversativo alla, que introduz a segunda oração final: hina tēresēs autous ek tou ponērou, isto é, “mas que os guardes do mal”. O verbo tēresēs, aoristo do subjuntivo ativo de tēreō, significa “guardar, preservar, proteger com cuidado atento”. A proteção pedida não é uma bolha de isolamento, mas uma preservação vigilante dentro do campo de batalha que é o mundo.

A expressão tou ponērou tem sido objeto de debate gramatical. O genitivo pode ser entendido como neutro — “do mal” — ou masculino — “do Maligno”. A tradição textual joanina, no entanto, especialmente em 1 João 2:13–14; 3:12; 5:18–19, aponta de maneira enfática para o uso personalista: “o Maligno”, ou seja, Satanás. Essa leitura é reforçada ainda por João 8:44, que descreve o Diabo como homicida e pai da mentira, e pelos usos anteriores de “o príncipe deste mundo” em João 12:31, 14:30 e 16:11. A escolha do verbo tēreō em vez de phulassō também é significativa: tēreō não indica apenas vigilância externa, mas cuidado ativo, atenção constante, proteção espiritual no sentido mais profundo e contínuo. Jesus ora para que os discípulos sejam guardados de uma força pessoal e espiritual que domina o sistema mundano.

A comparação crítica com as dezenas de traduções revela uma divisão nítida entre versões que personalizam o “mal” como “o Maligno” — como NVT, AFV, ASV, BSB, EMTV, ESV, ISV, LEB, NET, TLV, TPT, WEB e outras — e aquelas que mantêm a tradução impessoal, como KJV, DRB, Geneva e Cepher. Algumas versões específicas, como a KJA, interpretam diretamente como “o príncipe deste mundo”, suprimindo a ambiguidade. Já a TPT opta por uma paráfrase expandida, inserindo “guard their hearts from evil”, acrescentando “corações” sem respaldo textual. As versões mais recentes, em geral, refletem a tendência exegética atual de ler tou ponērou como referência ao Diabo. Essa leitura está teologicamente alinhada ao restante do Evangelho e das epístolas joaninas, assim como ao Pai Nosso (Mateus 6:13), onde ocorre construção semelhante: “livra-nos do mal” — ou, em leitura alternativa igualmente válida, “do Maligno”. A sintonia entre as duas orações é marcante: Jesus, em João 17, roga ao Pai aquilo que ensinou os discípulos a orarem por si mesmos.

Do ponto de vista hermenêutico, a frase “não peço que os tires do mundo” precisa ser compreendida em sua densidade teológica. Retirar do mundo é, sim, algo que Deus poderia fazer, como nos casos de Enoque (Gênesis 5:24) ou Elias (2 Reis 2:11), ou mesmo em contextos simbólicos como Êxodo 33:22, em que Deus esconde Moisés na fenda da rocha. A própria escatologia paulina fala de um “arrebatamento” (1 Tessalonicenses 4:17), mas isso diz respeito a um evento terminal e coletivo, não a uma política constante de evasão. Jesus está orando num contexto missional, não escatológico. Seus discípulos têm uma obra a realizar, e orar por sua retirada anularia a própria lógica da encarnação e da missão. O pedido de Jesus é profundamente funcional: eles devem ser mantidos no mundo, justamente porque esse é o palco da redenção. Isso também alinha sua oração à tradição veterotestamentária, na qual a promessa divina consiste em vida longa na terra, como em Deuteronômio 5:33 e Salmo 91:16. O próprio Gênesis associa a bênção à permanência na terra, e não à sua evasão. O projeto divino sempre foi restaurar a criação, e não abandoná-la.

Quanto à expressão “livrar do mal”, ela levanta questões teológicas agudas. Deus livra absolutamente todos os seus servos do mal? Jó, evidentemente, não foi poupado do sofrimento, embora fosse justo. Isso mostra que “livramento” não significa imunidade ao mal físico, mas preservação na e da malignidade. Em Romanos 8:35–39, Paulo declara que nenhuma aflição pode nos separar do amor de Deus, e em 2 Timóteo 4:18 escreve que “o Senhor me livrará de toda obra maligna e me levará salvo para o seu reino celestial”, indicando que o livramento final não está na ausência da dor, mas na preservação da fé e do destino escatológico. O mal, nesse contexto, pode ser entendido como uma força de desintegração espiritual — seja uma entidade (Satanás), seja um princípio (o pecado), seja uma realidade sistêmica (a corrupção do mundo). João 17:15, à luz da teologia joanina, parece abarcar os três: o Maligno como fonte, o mal moral como instrumento e o mal natural como consequência. Jesus ora não para que o Pai proteja os discípulos de todo mal físico ou sofrimento contingente, mas para que os guarde de serem tragados pela esfera de domínio do inimigo, mantendo-os fiéis, santos e ativos em sua missão.

João 17:16 – Texto (ARC): “Não são do mundo, como eu do mundo não sou.”
Texto grego (TR, transliteração): ouk eisin ek tou kosmou, kathōs egō ouk eimi ek tou kosmou.

A frase inicia-se com a negação enfática ouk eisin, formada pelo advérbio negativo ouk (“não”) e o verbo eisin, presente do indicativo ativo, terceira pessoa do plural do verbo eimi (“ser, estar”). A estrutura “ouk eisin ek tou kosmou” traduz literalmente “não são do mundo”, onde a preposição ek (“de, a partir de”) seguida do genitivo tou kosmou (“do mundo”) designa origem, pertencimento ou procedência. Gramaticalmente, essa construção explicita que os discípulos de Jesus não pertencem essencialmente à esfera ou sistema identificado por kosmos. O termo kosmos, como visto anteriormente em João 17:14–15, não representa apenas o planeta terra ou a humanidade em geral, mas um sistema de valores, estruturas, inclinações e poderes que se opõem a Deus — uma ordem espiritual caída, governada por princípios alheios à vontade divina. Em João 7:7, Jesus afirma: “O mundo não vos pode odiar; mas ele me odeia a mim, porque dele testifico que as suas obras são más”, revelando o caráter moralmente distorcido do kosmos. Já em João 15:19, lemos: “Se vós fósseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos odeia.” Essa oposição ontológica entre o discípulo e o mundo fundamenta a perseguição. Em João 8:23, Jesus também declara: “Vós sois de baixo, eu sou de cima; vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo” — antecipando a formulação presente em 17:16.

A segunda oração, kathōs egō ouk eimi ek tou kosmou, é construída com a conjunção comparativa kathōs (“assim como, do mesmo modo que”), unindo a identidade dos discípulos com a identidade do próprio Cristo em relação ao mundo. O sujeito é egō (“eu”), o verbo eimi (“sou”) aparece novamente no presente indicativo ativo na primeira pessoa do singular, e a negação ouk repete a ênfase absoluta. A frase completa “assim como eu não sou do mundo” reforça a ideia de uma comunhão ontológica entre o Filho e seus discípulos: eles compartilham a mesma alienação espiritual em relação ao mundo. Essa comparação não é meramente ilustrativa, mas ontológica, pois descreve uma identidade partilhada na esfera da filiação divina. Em João 3:31, afirma-se: “Aquele que vem de cima é sobre todos; o que é da terra é da terra e fala da terra; aquele que vem do céu é sobre todos.” A origem celestial de Jesus, portanto, é a base para a declaração de que ele não é “do mundo”, e sua encarnação não contradiz esse fato, mas o confirma: ele entra no mundo sem pertencer à sua estrutura caída. Em João 13:1, no início do discurso da ceia, o evangelista já havia anunciado que Jesus, “sabendo que a sua hora era chegada para que passasse deste mundo para o Pai”, amou os seus até o fim — o que pressupõe seu status de estrangeiro espiritual em relação ao kosmos.

Exegética e teologicamente, João 17:16 é o segundo membro de uma construção inclusiva com João 17:14 e 17:15. No versículo 14, Jesus declara: “Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu do mundo não sou.” A mesma frase do v.16 já havia sido afirmada no v.14, mas agora é repetida em ênfase paralela, funcionando como inclusão retórica. A repetição é enfática e estrutural, revelando o centro da identidade dos discípulos: seu não-pertencimento ao mundo tem base na relação íntima com Cristo, o qual também não é do mundo. Esta alienação é a raiz da perseguição, mas também da missão, pois como se verá no v.18, Jesus enviará os discípulos ao mundo justamente porque eles não são dele. O paradoxo se forma: aqueles que não pertencem ao mundo são os que serão enviados a ele como agentes da verdade. Essa duplicidade vocacional — não pertencer, mas ser enviado — é constitutiva da cristandade joanina.

Teologicamente, a frase “não são do mundo” reflete a realidade da nova natureza dos discípulos, regenerados pela Palavra, como expresso em João 3:3–6: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus… o que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito.” O novo nascimento os reconstrói espiritualmente como cidadãos do alto, conforme Filipenses 3:20: “Mas a nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo.” A não pertença ao mundo não se refere a separação geográfica ou social, mas a uma descontinuidade ontológica de lealdade, identidade e destino. Em 1 Pedro 2:11, os cristãos são chamados de “estrangeiros e peregrinos”, e em Hebreus 11:13 são descritos como aqueles que “confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra”. No entanto, essa alienação não é uma rejeição da criação, mas uma incompatibilidade com o sistema caído. O mundo, neste contexto, é o espaço da mentira, da oposição a Deus, da cegueira espiritual (João 1:10–11), da incredulidade (João 7:7) e da condenação (João 3:19). Cristo, como Verbo encarnado, veio ao mundo sem dele participar; seus discípulos são chamados a fazer o mesmo: viver no mundo sem dele serem.

Esse versículo também tem implicações práticas profundas. Ele não sanciona o isolamento ou o sectarismo, mas aponta para uma espiritualidade de contraste. Ser “não do mundo” não significa abandonar o mundo, mas viver nele como testemunhas de outra realidade, como luzes em meio às trevas (Mateus 5:14–16). A santidade cristã não consiste em separação física, mas em distinção moral, intelectual, espiritual e escatológica. A semelhança entre Jesus e seus discípulos não é apenas de função, mas de origem e destino: se ele veio do Pai, também aqueles que nascem do Espírito compartilham essa procedência transcendente. Assim, João 17:16 define a eclesiologia joanina não como uma comunidade escapista, mas como uma comunhão de estrangeiros na terra, cuja missão é transformar o mundo sem pertencer a ele.

João 17:17a Texto (ARC): “Santifica-os na verdade;”

Texto grego (TR, transliteração): hagiason autous en tē alētheia;

O verbo inicial hagiason é forma verbal no aoristo (aspecto pontual, não contínuo), modo imperativo ativo, segunda pessoa do singular, do verbo hagiazō, com o pronome acusativo autous (“eles”) como objeto direto, e a expressão preposicional en tē alētheia (“na verdade”) funcionando como o elemento instrumental, modal ou esferal no qual essa ação se efetua. O verbo hagiazō (traduzido como “santificar”) possui uma longa tradição semântica no uso bíblico, tanto grego quanto hebraico, e carrega o sentido fundamental de “separar algo ou alguém para o uso exclusivo de Deus”, o que envolve uma combinação entre consagração, pertencimento e purificação para serviço sagrado. O uso do aoristo imperativo neste contexto não enfatiza processo, mas um ato desejado, invocado diretamente do Pai por meio da oração de Jesus. Trata-se de uma consagração definitiva ao propósito divino, dentro do ambiente ou elemento da alētheia (“verdade”).

Do ponto de vista gramatical, a preposição en (“em”) com o dativo tē alētheia (“a verdade”) é interpretada pelas fontes exegéticas com múltiplas possibilidades: como local (esfera na qual a santificação ocorre), como instrumental (meio pelo qual ocorre) ou modal (forma na qual se realiza). A leitura mais adotada é a esferal/instrumental: “na esfera da verdade”, ou “por meio da verdade”. O artigo definido indica uma realidade específica e conhecida — a verdade revelada de Deus —, que em João é frequentemente identificada com a revelação de Cristo, sua Palavra e a ação do Espírito.

Comparando as traduções enviadas, temos grande uniformidade no tratamento do trecho. A forma literal “Santifica-os na verdade” é adotada sem variações significativas pelas versões: AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, ESV+, Geneva, HRB, ISV, JUB, KJV, Latin, LEB, LITV, LSV, MKJV, NET, NENT, RV, TCENT, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, Williams, YLT. Algumas versões optam por uma leve reformulação com o mesmo sentido: “Sanctify them by your truth” aparece em versões como EMTV, BSB, ISV, HRB, entre outras, e ainda que a preposição “by” possa sugerir instrumento, ela representa uma tentativa de adaptar ao inglês moderno o valor de en como instrumental-esferal. Já a versão CEV diz: “Your word is the truth. So let this truth make them completely yours”, o que amplia a ideia de santificação como apropriação pessoal. GNB traduz: “Dedicate them to yourself by means of the truth”, e a NTLH diz: “Que eles sejam teus por meio da verdade”, ambas captando a ideia de consagração pessoal. A versão ERV explica: “Make them ready for your service through your truth”, com uma nuance prática e ministerial. A TPT diz: “So make them holy by the truth”, com o verbo “make holy” em lugar de “sanctify”, buscando ênfase espiritual.

Do ponto de vista da teologia bíblica, o conceito de santificação não pode ser reduzido a um processo moral interior, tampouco a um ritual externo. O verbo hebraico correspondente no Antigo Testamento é קִדֵּשׁ (qiddēsh), da raiz קדש (q-d-sh), cujo significado fundamental é “separar para Deus”, “tornar sagrado”, “consagrar”. Em Êxodo 29:1, Deus ordena a Moisés: “Isto é o que lhes farás para os santificar, para que me administrem o sacerdócio.” Em Levítico 11:44, a santificação é apresentada como um reflexo do caráter de Deus: “Sede santos, porque eu sou santo.” Santificar, portanto, é separar algo do comum, do secular, para o serviço e a presença de Deus. Essa consagração envolve pureza moral, sim, mas vai além: é uma transformação de propósito e função. O próprio povo de Israel é chamado “nação santa” (שֵׁם קָדוֹשׁ — gôy qādôsh) em Êxodo 19:6, não porque fosse moralmente puro em si mesmo, mas porque foi separado por Deus para refletir seu nome entre as nações.

No Novo Testamento, esse conceito é mantido e intensificado. Em 1 Coríntios 1:2, Paulo se refere à igreja como “os santificados em Cristo Jesus, chamados santos”, e em 1 Tessalonicenses 4:3 afirma: “Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação.” Em Hebreus 10:10 lemos: “Temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez.” Isso mostra que a santificação não é apenas ética, mas ontológica e redentiva. É um status concedido, mas também um processo progressivo. Em João 17:19, Jesus declara que “por eles me santifico a mim mesmo”, usando o mesmo verbo hagiazō para falar de sua própria entrega ao Pai, consagrando-se como sacrifício pelos seus.

O pedido de Jesus em João 17:17 é, portanto, que seus discípulos sejam radicalmente separados para Deus, não por mérito ou ritual, mas na verdade. Mas o que é essa verdade? A palavra alētheia no grego bíblico carrega mais que um sentido epistemológico; ela designa aquilo que é fiel, real, inalterável, aquilo que corresponde à essência das coisas conforme Deus as vê. A verdade não é meramente “fato” ou “informação exata”, mas a revelação de Deus sobre a realidade. No Antigo Testamento, o conceito hebraico correspondente é אֱמֶת (’emet), frequentemente usado como atributo do próprio Deus. Em Deuteronômio 32:4, lemos: “Ele é a Rocha, cuja obra é perfeita, porque todos os seus caminhos são juízo; Deus é verdade (אֱמוּנָה emunah), e não há nele injustiça.” Em Salmo 119:160, a verdade é associada diretamente à palavra divina: “A soma da tua palavra é a verdade (אֱמֶת), e cada uma das tuas justas ordenanças dura para sempre.”

Assim, quando Jesus ora “santifica-os na verdade”, ele está pedindo que seus discípulos sejam transformados no ambiente da realidade divina revelada — não apenas por conhecerem verdades, mas por serem inseridos existencialmente no campo da fidelidade de Deus, da sua Palavra viva. Isso fica ainda mais claro quando Jesus conclui: “a tua palavra é a verdade.” A santificação não ocorre por meros dados corretos, mas por revelação. João 8:32 diz: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” Aqui, a verdade não é só um conteúdo cognitivo, mas um agente libertador. Em João 14:6, Jesus afirma: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” A verdade é, portanto, uma Pessoa, o Verbo encarnado, cuja Palavra — tanto ensinada como vivida — santifica, transforma e consagra os seus. O Espírito Santo é chamado de “Espírito da verdade” em João 14:17 e 16:13, sendo ele quem guia os discípulos “em toda a verdade.”

É nesse campo espiritual da revelação de Deus que os discípulos são santificados. A verdade não é apenas o que se conhece com o intelecto, mas o que se habita com a alma. A Palavra que é verdade, sendo ela viva (Hebreus 4:12), transforma, corta, molda e consagra. Ela não é apenas som ou grafia — mas manifestação de Deus. O conhecimento da verdade não santifica por mera epistemologia, mas porque revela Deus, transforma o coração, arranca o engano, dissipa a mentira do pecado e nos conforma à imagem do Filho. Como Jesus declara em João 15:3: “Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho falado.”

Texto (João 17:17b, ARC): “...a tua palavra é a verdade.”
Texto grego (TR, transliteração): ho logos ho sos alētheia estin.

A cláusula grega final de João 17:17 se articula com impressionante concisão e profundidade: ho logos ho sos alētheia estin, literalmente “a palavra, a tua, verdade é”. A estrutura nominal inicia-se com ho logos, substantivo masculino, nominativo singular, com artigo definido, indicando que a referência é a uma realidade concreta e identificada. O segundo elemento, ho sos, “a tua”, é uma construção pronominal possessiva que reforça a origem divina da “palavra”. Não é qualquer discurso ou fala, mas a que pertence a Deus — ho logos ho sos (“a tua palavra”). Em seguida, o predicado é composto por alētheia (“verdade”), substantivo feminino singular que, nesta posição predicativa antes do verbo estin (“é”), e sem artigo, obedece à chamada regra de Colwell, em que o predicativo definido ou qualitativo precede o verbo sem necessidade de artigo. Ou seja, alētheia aqui não é “verdadeira”, mas “a verdade em si”, a substância da realidade revelada.

Do ponto de vista exegético, o que Jesus declara é que a palavra de Deus não apenas contém verdade, mas é, em sua essência, a verdade absoluta. Não há hesitação gramatical ou ambiguidade semântica nesse ponto: a identificação é direta e total. A verdade não é meramente descritiva da palavra; é seu conteúdo, natureza, substância e finalidade. A relação entre logos e alētheia é ontológica. Isso implica que tudo aquilo que procede de Deus como discurso — seja falado, inspirado, revelado ou encarnado — é a expressão máxima e segura da realidade como ela é diante de Deus. Essa construção encontra ecos em Salmo 119:160, onde se afirma: “A soma da tua palavra é a verdade”, com o hebraico אֱמֶת (’emet) sendo o correspondente mais próximo de alētheia, significando firmeza, fidelidade, confiabilidade, realidade que perdura. Em Provérbios 30:5 lemos: “Toda palavra de Deus é pura”, e em Salmo 12:6: “As palavras do Senhor são palavras puras, como prata refinada em forno de barro, purificada sete vezes.” A palavra divina é, portanto, a realidade última e infalível, pois dela procede o próprio caráter de Deus.

Do ponto de vista canônico e histórico, é evidente que Jesus, ao pronunciar essa declaração, não está fazendo referência a um “cânon fechado” nos moldes do conceito pós-niceno ou tridentino. A formação do cânon do Antigo Testamento ainda estava em desenvolvimento. A Torá (Pentateuco) já era canônica e plenamente aceita desde os dias de Esdras e Neemias (Neemias 8), e os Nevi’im (Profetas) haviam se consolidado até o século III a.C. Mas os Ketuvim (Escritos), como Eclesiastes, Cântico dos Cânticos e Ester, ainda estavam em processo de debate e recepção comunitária, especialmente até a época do chamado sínodo de Jamnia, por volta do ano 90 d.C., cujas discussões refletiram uma recepção prática e não uma definição dogmática centralizada. Assim, quando Jesus afirma que a “palavra do Pai é a verdade”, ele não se refere estritamente a um “conjunto de livros” canonizados, mas sim a tudo aquilo que procede de Deus como revelação, seja por meio das Escrituras recebidas, seja por meio da sua própria manifestação viva e oral como o Verbo encarnado. O contexto joanino reforça isso: em João 5:38–39, Jesus diz que os judeus examinam as Escrituras pensando ter nelas a vida eterna, mas essas Escrituras testemunham dele. Isso mostra que mesmo as palavras escritas só são verdadeiras na medida em que convergem e revelam o Cristo.

A verdade, portanto, não está restrita a um corpo textual, mas a uma realidade transcendente que se manifesta na palavra falada por Deus, na encarnação do Verbo e na revelação mediada pelo Espírito. João 14:6 declara: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”, estabelecendo que a verdade é, primariamente, uma pessoa: Jesus. João 1:1 já o havia designado como o Logos, e João 1:14 afirma: “O Verbo se fez carne... cheio de graça e de verdade.” A palavra do Pai, neste versículo, remete tanto à revelação profética acumulada quanto à palavra viva encarnada, que é Cristo. Além disso, o Espírito Santo é chamado de “Espírito da verdade” em João 14:17; 15:26; 16:13, sendo ele quem guiaria os discípulos “em toda a verdade”, o que inclui tanto a compreensão das palavras de Jesus quanto novas revelações por ele autorizadas. Portanto, em João 17:17b, Jesus abrange um conceito de palavra que é maior do que texto: é revelação contínua, é mensagem viva, é presença falante de Deus.

Comparando as traduções, a maioria absoluta reflete esse mesmo núcleo semântico sem variações: AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, ESV+, Geneva, HRB, ISV, JUB, KJV, Latin, LEB, LITV, LSV, MKJV, NET, NENT, RV, TCENT, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, Williams, YLT traduzem: “tua palavra é a verdade” ou equivalente direto. Versões como a NVT dizem: “que é a tua palavra”, apenas invertendo o foco sem perder o sentido. Já a GNB traduz “tua palavra é a verdade” com variação leve, e a CEV e ERV interpretam: “Tua palavra é a verdade”, acrescentando nuances devocionais, como “tua palavra os tornará teus” ou “os preparará para o serviço”. A versão TPT diz: “Tua Palavra é verdade!”, com ênfase exclamativa e aplicação imediata.

Do ponto de vista hermenêutico, a pergunta central é: se a Bíblia ainda não estava totalmente formada, de que “palavra” Jesus está falando? A resposta está no conceito de revelação progressiva. Hebreus 1:1–2 diz: “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho.” A palavra de Deus, portanto, se manifesta na história em etapas, por meio da lei, dos profetas, da sabedoria e, finalmente, na pessoa do Filho. Em João 6:63, Jesus declara: “As palavras que eu vos disse são espírito e vida”, o que mostra que sua pregação era ela mesma “palavra de Deus”. João 8:31–32 conecta diretamente a permanência nas palavras de Cristo com o conhecimento da verdade: “Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”

Isso implica que Jesus não reduz a palavra de Deus a um volume fechado de textos — embora eles sejam sagrados e inspirados —, mas afirma que tudo o que procede do Pai, seja em forma falada, escrita ou revelada pelo Espírito, é verdade. E isso permanece em vigor: 1 Coríntios 14:26–32 trata de profecias no seio da igreja, indicando que o Espírito continuava a falar. Em Atos 21:10–11, o profeta Ágabo profetiza algo que não estava nas Escrituras. Esses são testemunhos de que a “palavra de Deus” é mais ampla que o cânon escrito, embora nunca possa contradizê-lo.

Isso levanta a questão final: Deus ainda fala? A resposta bíblica é afirmativa. Em João 16:13, Jesus promete: “Quando vier aquele Espírito da verdade, ele vos guiará em toda a verdade.” Isso não significa revelações novas no sentido de acréscimos ao cânon, mas comunicações autênticas do Espírito conforme a Palavra revelada. Em Romanos 8:16, Paulo diz que “o mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus.” Isso é comunicação real. Sonhos, presságios, discernimento espiritual — desde que não contrariem as Escrituras — também são manifestações da palavra de Deus como verdade, pois como diz 1 Tessalonicenses 5:19–21: “Não extingais o Espírito. Não desprezeis as profecias. Examinai tudo. Retende o bem.”

Por fim, a verdade, como expressa em João 17:17b, não é apenas uma realidade objetiva — ainda que também o seja. A verdade de Deus é objetiva porque reflete sua natureza eterna, sua fidelidade e sua revelação. Mas ela é também subjetivamente recebida, pois transforma o interior daquele que a ouve. Como diz Tiago 1:18, “Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade.” Assim, a palavra de Deus não é apenas conhecimento, mas regeneração. Ela é espírito, é vida, é luz para o caminho (Salmo 119:105), é espada que penetra (Hebreus 4:12), é alimento (Mateus 4:4), é semente incorruptível (1 Pedro 1:23) e é a verdade — absoluta, pessoal, vivificadora e santificadora.

João 17:18

Texto (ARC): “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo.”
Texto grego (TR, transliteração): kathōs eme apesteilas eis ton kosmon, kagō apesteila autous eis ton kosmon.

O versículo começa com a conjunção comparativa kathōs (“assim como, do mesmo modo que”), que estabelece imediatamente uma correlação entre a missão do Filho e a dos discípulos. O uso dessa partícula, amplamente comum nos Evangelhos, especialmente no Evangelho de João, marca paralelismos intensos entre a relação intratrinitária e a dinâmica da missão cristã. O sujeito da oração é o pronome pessoal su (não explícito no texto grego, mas subentendido no verbo), com eme (“a mim”) como objeto direto enfático e antecipado. O verbo apesteilas, aoristo ativo indicativo, segunda pessoa do singular do verbo apostellō, “enviar com uma missão”, descreve o envio do Filho ao mundo pelo Pai. Trata-se de um verbo técnico do vocabulário missional do Novo Testamento, usado não apenas para mensageiros, mas especialmente para comissionados com autoridade, como profetas e apóstolos. O complemento preposicional eis ton kosmon (“ao mundo”) indica a direção do envio: ao kosmos, o sistema humano decaído, hostil a Deus, mas alvo de sua salvação, como já demonstrado em João 3:16–17 (“porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele”).

A segunda parte da frase, kagō apesteila autous eis ton kosmon, repete a estrutura com paralelismo sintático. O termo kagō é uma contração de kai egō (“e eu também”), que introduz a ação do Filho espelhando a do Pai. O verbo apesteila aqui está na primeira pessoa do singular, aoristo ativo do mesmo verbo apostellō, e o objeto direto autous (“eles”) refere-se aos discípulos. A preposição eis novamente marca o destino do envio: o mundo. A construção gramatical é elegante e simétrica, reforçando não apenas a similaridade de ações entre Pai e Filho, mas a continuidade da missão de Jesus por meio de seus discípulos. A escolha do aoristo indicativo, em vez de presente ou futuro, confere à declaração uma ênfase retrospectiva: Jesus já os enviou, mesmo que o envio em sua plenitude (como em João 20:21) ainda esteja para ser formalizado. Aqui, a oração sacerdotal antecipa teologicamente o comissionamento.

Do ponto de vista exegético, João 17:18 é um eixo central na teologia da missão em João. A missão de Jesus é o paradigma da missão da Igreja. Em João 3:17 lemos: “Deus enviou o Filho ao mundo...”, e em João 20:21, Jesus afirma aos seus discípulos: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio.” Esse duplo “envio” — do Pai ao Filho, do Filho aos discípulos — revela uma teologia da representação vicária: os discípulos tornam-se continuadores da presença de Cristo no mundo. Em João 13:20, Jesus declara: “Em verdade, em verdade vos digo: quem recebe aquele que eu enviar, a mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou.” A cadeia de representação — Pai → Filho → discípulos — estabelece a autoridade, a origem e o conteúdo da missão cristã.

Do ponto de vista gramatical, é significativo que Jesus use apostellō e não pempō, outro verbo grego comum para “enviar”. Enquanto pempō é mais neutro, apostellō carrega o peso de um envio com autoridade delegada, pressupõe missão, comissão e propósito definido. O uso do aoristo em ambos os verbos (apesteilas, apesteila) remete a atos definitivos, atos históricos dentro da linha do tempo da salvação.

Teologicamente, João 17:18 manifesta uma continuidade dinâmica entre a missão trinitária e a eclesiologia missional. A missão dos discípulos não é acessória, mas extensiva: a presença do Reino no mundo passa pela presença dos enviados, que são consagrados, santificados e autorizados por Cristo. Essa não é uma missão em paralelo, mas derivada da missão do próprio Jesus, como se vê claramente em João 20:21: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio.” O advérbio kathōs não indica apenas similaridade formal, mas proporcionalidade teológica. Como Jesus foi enviado com verdade, amor, poder, autoridade, vulnerabilidade e sacrifício, também assim serão os seus. Em Mateus 10:16, Jesus antecipa: “Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos.” E em Lucas 10:3: “Ide! Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos.” A missão da Igreja é arriscada, mas é sustentada pela origem divina da comissão.

O que está em jogo neste versículo não é apenas a continuidade entre Jesus e seus discípulos, mas a identidade missionária da Igreja como expressão visível do envio do Verbo. Como Jesus foi a Palavra viva no mundo, os discípulos tornam-se porta-vozes da mesma verdade, enviados à mesma realidade hostil, com o mesmo amor e fidelidade do Pai. Essa missão é também profundamente encarnacional: assim como o Verbo se fez carne (João 1:14), agora os discípulos devem tornar visível a verdade do Reino em suas vidas, palavras e ações. A santificação pedida em João 17:17 se conecta diretamente ao envio aqui descrito: só é enviado quem foi consagrado. A verdade é o ambiente da santificação, e a santificação é a condição da missão.

Assim, João 17:18 estabelece uma teologia da missão fundada na própria relação intra-divina. O Pai envia o Filho, o Filho consagra os discípulos e os envia. A autoridade do enviado repousa em sua santificação e na verdade que habita nele. A missão cristã não é invenção humana, mas extensão do amor trinitário ao mundo. O mundo, por sua vez, não é um cenário neutro, mas o campo da batalha espiritual (João 16:33; 1 João 5:19), e o envio é ao mesmo tempo missão e resistência. A Igreja não foi deixada no mundo para fugir, mas para ser enviada — com verdade, graça e coragem. Esse é o coração da oração sacerdotal.

João 17:19a – Exposição Exegética Completa

Texto (ARC): “E por eles me santifico a mim mesmo,...”
Texto grego (TR, transliteração): kai hyper autōn egō hagiazō emauton

A análise gramatical, morfológica e exegética deste trecho inicia-se com o advérbio kai (“e”), de função coordenativa aditiva, ligando logicamente essa declaração à oração precedente como consequência ou desenvolvimento do pedido pela santificação dos discípulos. A partícula prepositiva hyper (“por”, “em favor de”), usada aqui com o genitivo autōn (“deles”), indica claramente um ato de autoentrega sacrificial com finalidade vicária, confirmando o caráter substitutivo da ação. O sujeito egō (“eu”), embora desnecessário por já estar implícito na conjugação verbal, é explicitado para dar ênfase à ação pessoal e consciente de Cristo. O verbo hagiazō (“santifico”), presente ativo do indicativo, primeira pessoa do singular, deriva de hagios (“santo”), e denota aqui não a purificação de algo impuro, mas a separação de si mesmo para um propósito sagrado, cultual e redentor. O objeto reflexivo emauton (“a mim mesmo”) indica que a santificação ocorre no próprio Cristo, pela sua própria ação, em um movimento de autooferta. Assim, hagiazō emauton não significa que Jesus se purifica de pecado (o que seria inadmissível dada sua impecabilidade, cf. Hebreus 4:15), mas que ele se consagra completamente à missão designada pelo Pai — culminando na cruz. O uso do presente verbal sublinha o caráter contínuo e atual desse processo no momento da oração, e o uso do tempo médio (com sentido reflexivo) realça a voluntariedade e iniciativa de Jesus no ato.

Na comparação crítica com as versões, verifica-se que as traduções ASV, BSB, Cepher, DRB, EMTV, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, MKJV, Murdock, NENT, RV, TCENT, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT e Latin preservam com fidelidade a equivalência “eu santifico a mim mesmo”. A ESV e a Weymouth optam por “consagro”, o que é semanticamente aceitável dentro do campo semântico de hagiazō quando se refere ao sentido sacerdotal e missional, ainda que possa suavizar o impacto cultual do termo. Outras versões como CEV (“eu me entrego completamente”), GNB (“me dedico a ti”), GW (“me dedico a esta obra sagrada”), TPT (“me ofereço como sacrifício santo”) e NVT (“me entrego como sacrifício santo”) interpretam a santificação como autoentrega sacrificial, o que está teologicamente correto, mas se afasta da literalidade do grego. A ERV opta por paráfrase funcional com “me preparo completamente para te servir”, o que enfraquece o caráter cúltico e sacerdotal da expressão. O Hebraico do NT traz ani mekadesh et-nafshi ba’adam, reforçando a ideia de consagração voluntária e pessoal em favor dos discípulos, enquanto a Peshitta usa ana meqaddesh nafshi, com o mesmo valor reflexivo.

Hermeneuticamente, o uso por Jesus do verbo hagiazō para referir-se a si mesmo demanda cuidadosa análise à luz da cristologia bíblica. Primeiramente, é necessário afirmar que santificar não implica aqui qualquer purificação moral. Jesus é “o Santo de Deus” (Marcos 1:24), aquele “sem pecado” (2 Coríntios 5:21), “santo, inculpável, separado dos pecadores” (Hebreus 7:26). A santificação, neste caso, refere-se à consagração cultual: Jesus se separa para cumprir o propósito do Pai, especificamente a entrega sacrificial na cruz (cf. Hebreus 10:10: “fomos santificados pela oferta do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez para sempre”). É nesse sentido que Ele “se santifica”: como o cordeiro pascal sem mácula, Ele se prepara, voluntariamente, para ser o mediador e sacerdote da nova aliança (cf. Hebreus 9:14: “...Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus...”).

A dificuldade teológica emerge ao se considerar que, em outras passagens, é o Pai quem santifica o Filho: João 10:36 afirma que é o Pai “quem santificou e enviou ao mundo”. No entanto, João 17:19 mostra que essa santificação é também realizada pelo próprio Cristo. O que parece uma tensão entre subordinação e autossuficiência, na verdade, revela a unidade funcional entre o Pai e o Filho. O próprio Jesus afirma em João 10:30: “Eu e o Pai somos um”. Assim, não há contradição, mas cooperação trinitária. O Filho não age autonomamente de forma independente, mas age com plena autoridade, recebida e partilhada com o Pai (cf. João 5:19–23). Esta autossantificação expressa a liberdade e a agência divina de Jesus, plenamente consciente e voluntário em sua missão redentora.

Esse uso do verbo hagiazō no reflexivo evidencia ainda mais o mistério da encarnação: aquele que é eternamente santo (cf. Isaías 6:3; João 1:1) entra no mundo, torna-se carne (João 1:14), vive entre os homens e, mesmo sem perder sua santidade intrínseca, consagra-se dentro da história como sacerdote, vítima e mediador. A epístola aos Hebreus lança luz sobre esse paradoxo quando diz que Jesus “aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu” (Hebreus 5:8), e que “foi aperfeiçoado” (Hebreus 2:10), não no sentido de que lhe faltava algo moralmente, mas que ele viveu a plenitude da obediência encarnada. Nessa mesma lógica, Hebreus 10:14 declara: “Porque com uma só oferta aperfeiçoou para sempre os que são santificados”, ligando a obra de autooferta de Jesus à eficácia redentora sobre os seus.

O escândalo teológico — “por eles me santifico” — pode ser compreendido corretamente apenas dentro da teologia da substituição. O Santo se santifica para tornar santos os que não são. A linguagem não afirma que os discípulos santificam a Jesus, mas que, por causa deles — isto é, com o propósito de beneficiá-los —, Ele se santifica. Essa estrutura causal hyper autōn é instrumental e não eficiente. O texto não diz que a santificação de Cristo é causada pelos discípulos, mas que é realizada em benefício deles, para que, como consequência, “também eles sejam santificados na verdade”. Portanto, a lógica não é invertida. A cruz é o ápice dessa consagração: Jesus se santifica a si mesmo como cordeiro expiatório para que, pelo sangue da aliança, os seus sejam separados para Deus (cf. João 19:30; Hebreus 13:12: “por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta”).

Em suma, a santificação de Jesus é autoimolação sacerdotal, um ato teantrópico (divino e humano), que une sua missão messiânica com a mediação eterna. A tensão entre subordinação (João 17:1,5) e autoridade (João 17:19) se dissolve à luz da união hipostática: o mesmo Jesus que roga ao Pai em submissão também afirma “santifico a mim mesmo”, pois Ele é o Filho eterno consubstancial ao Pai. O Cristo que se oferece a si mesmo é o mesmo que diz “ninguém tira a minha vida, eu de mim mesmo a dou” (João 10:18). Portanto, João 17:19a sintetiza em um único versículo o mistério do sacrifício voluntário, a santidade ativa e a mediação eficaz de Jesus. A santificação do Santo é o ato redentor que torna santos os pecadores.

João 17:19b – Parte 2
Texto (ARC): “...para que também eles sejam santificados na verdade.”
Texto grego (TR, transliteração): hina kai autoi ōsin hēgiasmenoi en alētheia

A expressão hina kai autoi ōsin hēgiasmenoi en alētheia encontra-se subordinada à ação principal do versículo anterior — egō hagiazō emauton (“eu me santifico a mim mesmo”) — e funciona como cláusula final com o valor claro de propósito ou consequência intencional, marcada por hina (“para que”). O uso do advérbio inclusivo kai (“também”) imediatamente após hina merece atenção especial, pois introduz uma correspondência entre o sujeito da oração principal (Jesus) e os discípulos.

A forma verbal ōsin é o presente do subjuntivo do verbo eimi (“ser”), usado aqui como verbo auxiliar da perífrase com o particípio perfeito passivo hēgiasmenoi, do verbo hagiazō (“santificar”, “consagrar”, “separar”). Essa perífrase verbal em ōsin hēgiasmenoi aponta para uma condição contínua e durativa de santificação resultante de uma ação anterior completada, indicando não apenas um ato pontual, mas um estado resultante que perdura — isto é, um estado de santificação já iniciado e com efeito contínuo.

O uso do particípio no perfeito passivo fortalece essa ideia, sugerindo que a santificação dos discípulos tem uma origem externa e um efeito permanente, estando portanto enraizada na ação de Cristo descrita na oração precedente. A expressão en alētheia (“na verdade”) funciona como complemento circunstancial modal, indicando o meio ou esfera na qual essa santificação ocorre. O uso do dativo preposicional com en aqui é significativo: não se trata de um mero local físico ou conceitual, mas de uma esfera espiritual e moral, ou seja, a “verdade” como ambiente operativo da santificação.

Essa “verdade” havia sido mencionada no versículo anterior (“Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade”) e, nesse contexto, já fora identificada com a palavra revelada do Pai, a mensagem divina que Jesus transmitiu. Assim, a santificação dos discípulos está, simultaneamente, ligada à ação de Cristo e à recepção contínua da verdade de Deus como revelação normativa.

A primeira classe de traduções — que segue a linha estritamente literal e formal, mantendo quase que uma correspondência gramatical direta com o grego — inclui: ABP+, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, Geneva, ISV, JUB, KJV, Latin, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NET, NENT, RV, TCENT, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, Williams, YLT. Estas traduções, ao manterem a estrutura “para que também eles sejam santificados na verdade”, conservam com fidelidade o paralelismo semântico que o grego apresenta entre a santificação de Cristo e a dos discípulos. A presença do advérbio kai (“também”) é respeitada, e a ligação teleológica da oração com a ação anterior de Cristo (egō hagiazō emauton) permanece inteligível ao leitor atento.

No entanto, mesmo essas versões “fiéis”, ao manterem o verbo “santificar” como tradução única e invariável de hagiazō, podem deixar obscura a natureza sacerdotal, ritualística e sacrificial desse verbo no contexto de João 17, onde não se trata apenas de separação moral ou santidade ontológica, mas de dedicação ativa e voluntária de Cristo como oferta, conforme o pano de fundo joanino e hebraico (cf. Êxodo 28:41; Levítico 8:30; Hebreus 10:10). Assim, apesar de forma correta, essas traduções são insuficientes em clareza teológica contextual, pois não explicitam esse sentido de “consagrar-se” ou “dedicar-se”, o que seria mais preciso neste ponto, como algumas versões católicas fazem com “consagrar” (DRB: “ut et ipsi sanctificati sint in veritate”).

Já a segunda classe de versões — que opta por reformulações interpretativas ou parafrásticas — merece crítica mais profunda.

A CEV, ao dizer “para que eles pertençam completamente à verdade”, substitui o conceito de santificação por uma categoria de identidade e posse, o que esvazia o aspecto transformador e sacrificial do termo hagiazō. Esta versão reduz a expressão en alētheia a um destino ou associação, e não como esfera modal operativa da ação santificadora, como exige o grego. O foco desvia-se da transformação para o pertencimento, e a relação com a autossantificação de Cristo perde-se quase inteiramente.

A GNB, com “para que também eles sejam verdadeiramente dedicados a ti”, suaviza o termo “santificação” ao termo “dedicação”, o que pode ser legítimo em alguns contextos, mas a ausência da preposição “na verdade” como esfera qualificadora é uma perda exegética grave. A santificação não é apenas um estado subjetivo de entrega, mas algo que ocorre dentro da verdade — ou seja, da revelação, da palavra, da luz divina (cf. João 17:17). Ao eliminar essa referência, a GNB enfraquece o vínculo entre palavra e santificação.

A GW oferece: “para que usem a verdade para serem santos”. Aqui há uma inversão explícita da construção gramatical grega. No texto original, a verdade é a esfera onde a santificação se realiza (en alētheia), não um instrumento utilitário sob controle humano. “Usar a verdade” implica uma agência ativa dos discípulos que não está presente no texto. A ação santificadora é externa e passiva: ōsin hēgiasmenoi — sejam santificados. Ao transformar a verdade num meio manipulado pela vontade humana, a GW obscurece a passividade salvífica da santificação cristã, cuja origem é divina (cf. 1 Tessalonicenses 5:23).

A ERV, ao verter por “para que estejam qualificados para teu serviço”, substitui o verbo hagiazō por uma tradução funcional e indireta. Essa reformulação reduz o sentido espiritual e escatológico da santificação a um utilitarismo pragmático, próximo do sentido levítico de “preparação sacerdotal”, mas sem a linguagem bíblica explícita. O leitor perde completamente a relação com o conceito joanino de verdade como revelação encarnada (cf. João 14:6), e com a autossantificação de Cristo como fundamento do processo.

A TLV, “para que eles também sejam feitos santos na verdade”, retém o termo “santos” no passivo, o que é acertado, e inclui “na verdade”, mantendo o dativo de esfera en alētheia. É uma das traduções interpretativas que mais se aproxima do original. No entanto, “feitos santos” em português pode sugerir apenas um estado moral ou espiritual, e não necessariamente o processo ritualístico e sacrificial embutido em hagiazō aqui. Ainda assim, essa versão é das mais equilibradas.

A TPT (“para que vivam totalmente dedicados a Deus e sejam feitos santos por tua verdade”) é profundamente parafrástica, mas curiosamente restaura parcialmente o duplo aspecto da santificação: primeiro como consagração prática (“vivam dedicados”) e depois como santidade derivada da verdade divina. A frase “por tua verdade” introduz uma nuance causal ausente do grego (endia), mas pode ser teologicamente aceitável à luz de João 17:17. Ainda assim, a reestruturação quebra a unidade da estrutura final iniciada em hina e pode induzir o leitor a pensar que há duas ações separadas e não um único propósito.

A NVT (“para que sejam consagrados na verdade”) faz uma escolha léxica notável: troca “santificados” por “consagrados”, o que recupera o aspecto sacerdotal. A inclusão de “na verdade” respeita o en alētheia e mantém a gramática. É uma das versões contemporâneas que melhor comunica o sentido ritual, doutrinário e passivo do original — embora ainda falhe em relacionar isso diretamente à autossantificação de Cristo no versículo anterior, uma conexão que depende do leitor ou do contexto litúrgico.

Em suma:

  • As versões formais (KJV, NASB, ASV, etc.) mantêm o vocabulário e paralelismo do grego, mas carecem de clareza teológica contextual, especialmente sobre o sentido sacrificial do hagiazō.

  • As versões interpretativas mais bem-sucedidas (NVT, TLV, TPT) ajudam a tornar acessível o sentido espiritual, mas introduzem nuances estranhas ou quebram a unidade gramatical do grego.

  • As versões mais fracas (GW, ERV, GNB, CEV) obscurecem ou distorcem completamente o valor modal do en alētheia, atribuem agência errada ao sujeito passivo e reduzem a santificação a uma função prática ou a um estado de consciência, afastando-se da teologia do Evangelho de João.

Portanto, a tradução ideal para hina kai autoi ōsin hēgiasmenoi en alētheia deve preservar:

  1. A força da conjunção final hina (“para que” – propósito da ação anterior);

  2. O advérbio kai (“também” – para manter o vínculo com a autossantificação de Cristo);

  3. A estrutura verbal passiva ōsin hēgiasmenoi (indicando que a santificação é sofrida, não produzida);

  4. A expressão modal en alētheia (a santificação ocorre dentro da esfera da verdade, que é a revelação do Pai, a palavra de Cristo, e o próprio Verbo — João 1:14; 14:6; 17:17).

Traduções que ignoram qualquer um desses quatro elementos quebram a harmonia teológica do texto e, por isso, devem ser criticamente revisadas ou descartadas como exegesias válidas do texto original.

Teologicamente, a construção hina kai autoi (“para que também eles”) deve ser compreendida com extremo cuidado. O advérbio kai pode, sim, carregar o sentido de igualdade (“igualmente”, “do mesmo modo”), o que levanta questões teológicas profundas. Se Jesus se santifica para que os discípulos também sejam santificados, isso implicaria uma equivalência entre sua santificação e a deles?

Essa dificuldade é aparente, mas não real, quando se leva em conta o sentido específico do verbo hagiazō em seu uso sacerdotal. O próprio Jesus é o “Santo de Deus” (Marcos 1:24), “sem pecado” (Hebreus 4:15), “separado dos pecadores” (Hebreus 7:26), e “plenamente consagrado desde o ventre” (Lucas 1:35). No entanto, como aponta Hebreus 5:8, ele “aprendeu a obediência por aquilo que padeceu”, e em Hebreus 2:10, “convinha que aquele por quem e para quem são todas as coisas, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse pelos sofrimentos o autor da salvação deles”.

Esses textos não falam de uma santificação ontológica ou moral (pois Cristo já era santo), mas de uma consagração funcional e sacerdotal, na qual ele se oferece voluntariamente como sacrifício. Assim, sua autossantificação tem o sentido de uma dedicação ritualística e substitutiva: ele se santifica como sacerdote e como oferta (Hebreus 9:14), para que os discípulos sejam santificados não do mesmo modo ontológico, mas por meio do efeito dessa oferta.

Por isso, o advérbio kai aqui tem valor inclusivo, mas não igualitário. Jesus se santifica em uma dimensão única: ele se entrega como cordeiro imaculado (1 Pedro 1:19), em um ato de expiação e mediação que os discípulos não podem replicar. No entanto, o fruto de sua santificação — o efeito da verdade da revelação e da obra consumada — é transferido aos seus seguidores como estado espiritual e vocacional. Eles são santificados “na verdade”, isto é, pela ação contínua da palavra divina, conforme João 17:17, mas também pelo impacto redentor da entrega voluntária de Cristo por eles (Efésios 5:25–27).

A verdade, portanto, não é apenas epistemológica, mas performativa e redentora: é o ambiente em que a santificação acontece porque nela se comunica a revelação, a norma divina, e o poder do Verbo encarnado. Cristo se santifica para que eles, também, participem dessa santidade por meio da mesma verdade, não com equivalência funcional, mas com eficácia comunicada.

João 17:20 – Exposição Exegética Completa

Texto (ARC): “E não rogo somente por estes, mas também por aqueles que hão de crer em mim, pela sua palavra.”

Texto grego (TR, transliteração): Ouk peri toutōn de erōtō monon, alla kai peri tōn pisteusontōn dia tou logou autōn eis eme.

Análise gramatical, morfológica e exegética

O versículo começa com a negação enfática ouk (“não”), que aqui introduz uma cláusula que nega a exclusividade do pedido anterior. O sujeito implícito é Jesus, continuando seu discurso de oração. A preposição peri (“a respeito de”) rege tanto toutōn (“destes”) quanto tōn pisteusontōn (“dos que crerão”), sendo repetida por paralelismo. O termo toutōn é pronome demonstrativo genitivo plural de houtos, referindo-se claramente aos discípulos presentes, os onze. O verbo erōtō (“rogo”, “peço”) está na 1ª pessoa do singular, presente do indicativo ativo, e é empregado por João com o sentido técnico de súplica (não simples pergunta), especialmente quando dirigido ao Pai (cf. João 14:16; 16:26; 17:9). A partícula monon (“somente”) atua como delimitador negativo, que, ao ser negado, abre espaço para a inclusão subsequente.

A conjunção adversativa alla (“mas”) introduz a nova cláusula, indicando ampliação e não oposição: Jesus estende seu pedido “também” (kai) por outros que ainda não existem historicamente, mas cuja fé futura é vista como presente por força de sua inevitabilidade e predestinação divina. A expressão tōn pisteusontōn é um artigo definido (genitivo plural) seguido do particípio futuro ativo do verbo pisteuō (“crer”), na forma pisteusontōn, que se refere àqueles que hão de crer, expressando uma ação futura em relação ao tempo da oração, e com ênfase no aspecto resultativo: trata-se de uma fé que certamente ocorrerá. Ainda que o futuro verbal aponte para um tempo adiante, o uso do particípio com o artigo mostra que se trata de um grupo definido: pessoas reais, determinadas, embora ainda não existam cronologicamente. O tempo futuro não indica incerteza, mas profecia e certeza da realização, conforme João 6:37: “todo aquele que o Pai me dá virá a mim”.

A frase dia tou logou autōn (“por meio da palavra deles”) contém a preposição dia com genitivo, que indica o meio ou instrumento da fé: a palavra dos discípulos. Logos, aqui no singular genérico com artigo definido, refere-se à mensagem, ao testemunho oral e posteriormente escrito pelos apóstolos (cf. Atos 4:31; 6:4), e não apenas a “palavras” no plural (ῥήματα). O pronome autōn (“deles”) é genitivo plural e remete aos discípulos mencionados anteriormente. Por fim, eis eme (“em mim”) é uma preposição com acusativo que indica direção e objeto da fé: a crença é pessoal, cristocêntrica e salvífica (cf. João 3:16; 6:35; 7:38).

Portanto, Jesus ora não apenas por seus discípulos imediatos, mas também por todos os que viriam a crer n’Ele, por meio da mensagem apostólica. Essa fé futura está ancorada no testemunho dos apóstolos, o qual é mediado pela palavra (cf. Romanos 10:17: “a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo”).

Análise crítica das versões enviadas

As versões que traduzem pisteusontōn como futuro simples com fidelidade e clareza são coerentes com o grego e reforçam o sentido escatológico e missionário do versículo. Muitas dessas versões mantêm uma equivalência direta à construção grega, sendo portanto aceitáveis no contexto da exegese. Entre elas, podemos agrupar as seguintes como equivalentes quase verbatim: AFV, ASV, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ERV, ESV, Geneva, GNB, GW, HRB, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, NENT, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, YLT. Todas elas mantêm a ideia de oração futura com base na palavra apostólica e mantêm a ordem lógica do texto grego.

Contudo, algumas versões optam por explicitação ou paráfrase. A NTLH e a NVT traduzem logos como “mensagem deles”, o que é semanticamente válido, embora menos técnico. Já a CEV usa uma reformulação mais livre: “por todos que terão fé porque meus seguidores dirão algo sobre mim”, diluindo a força gramatical do “por meio da palavra deles” e a natureza doutrinal do logos. Isso pode resultar em certo empobrecimento teológico, reduzindo a força missionária da pregação como meio divinamente ordenado da fé, e o caráter da “palavra” como algo que traz em si o poder performativo da salvação (cf. 1 Tessalonicenses 2:13).

A versão TPT (The Passion Translation), com sua expansão: “todos os que um dia crerão”, introduz uma emocionalidade que, embora pastoralmente eficaz, não encontra paralelo direto na sobriedade grega do texto. Tal linguagem, embora bem-intencionada, pode sugerir uma incerteza na eficácia do testemunho apostólico, contrariando o aspecto inevitável e determinado do particípio futuro no grego.

A versão Weymouth, ao optar por “trust in me through their teaching”, traduz logos como “ensino”, o que não é incorreto, mas desloca ligeiramente o foco de “palavra proclamada” para “doutrina estruturada”. A escolha pode refletir uma teologia mais voltada à tradição eclesiástica do que à proclamação missionária, embora a distinção seja sutil. A NET, ao optar por “testemunho”, amplia semanticamente a ideia de “logos”, o que pode ser útil pastoralmente, mas carece de precisão técnica.

A Peshitta-T, em siríaco (ܒܡܠܬܗܘܢ), traduz logos como melthā (“palavra”), o que está em perfeita harmonia com o grego logos — reforçando a fidelidade do testemunho como meio legítimo da fé. De modo semelhante, a versão hebraica (כתר המלך) traduz dia tou logou autōn como על פי דברם (“segundo a sua palavra”), o que também mantém a ideia instrumental do logos.

A versão Williams, ao dizer “for all who ever come to believe in me”, enfatiza a dimensão atemporal da fé sem violar o texto, mas ao empregar “ever”, abre a possibilidade de uma interpretação que privilegie o ato contínuo e não necessariamente o vínculo direto com o testemunho apostólico.

Portanto, enquanto a maioria das traduções mantém fidelidade ao texto grego, versões como CEV, TPT, NET, Weymouth tendem a diluir ou expandir subjetivamente a expressão dia tou logou autōn, desviando da força textual da instrumentalidade da palavra como meio da fé salvífica. A fidelidade a essa construção é crucial, pois é nela que se fundamenta toda a eclesiologia joanina da sucessão da fé — a fé que se propaga por meio do testemunho da palavra viva dos discípulos, não por uma fé mística ou por revelação direta individual.

Comentário hermenêutico, teológico e pastoral

O que Jesus realiza neste versículo é uma das mais tocantes expressões de alcance escatológico e missionário de toda a Escritura. Ao dizer que ora não apenas pelos discípulos, mas também por todos os que viriam a crer — e que ainda viriam a existir ao longo de gerações — Ele estabelece um elo eterno entre sua intercessão sacerdotal e cada alma que, séculos depois, ouviria e creria no evangelho. O uso do particípio futuro pisteusontōn com valor definido e certo transmite a ideia de que Jesus contempla com clareza e amor pessoal aqueles que ainda não nasceram. Isso inclui os primeiros convertidos no Pentecostes (Atos 2), os pais da igreja, os reformadores, os mártires, os missionários, os salvos hoje, e todos os que ainda crerão — inclusive os leitores contemporâneos desta oração.

Ao orar “por aqueles que crerão em mim”, Ele não apenas antecipa a eficácia da missão apostólica, mas endossa a transmissão da fé como processo histórico, humano e verbal. O evangelho é proclamado, ouvido, crido — sempre por meio da palavra. A fé não é criada por emoções ou por visão direta do Cristo glorificado, mas nasce de um ato divino mediado por pessoas reais anunciando palavras reais (cf. Romanos 10:14–17).

Teologicamente, a doutrina da mediação apostólica aqui não é de sucessão sacramental, mas de sucessão verbal — o “logos” é o fio de ouro que une os discípulos de todas as eras. A presença do pronome kai (“também”) reforça que a oração sacerdotal não se esgota nos onze, mas transborda — abarcando o que virá. Não há limite temporal à intercessão de Cristo. Isso significa que, ainda hoje, cada novo crente entra sob o manto da oração de João 17, sendo fruto e alvo da intercessão de Jesus.

Por fim, isso infunde coragem aos proclamadores da Palavra: saber que cada alma que crer o fará “por meio da palavra” dos discípulos é saber que o ministério da pregação, da evangelização, do ensino — por mais pequeno ou aparentemente infrutífero — é parte do cumprimento da oração de Cristo. E se Ele orou, e se Ele é ouvido, então não há palavra lançada em vão. Isso nos coloca não apenas como beneficiários da oração, mas como instrumentos da sua realização.

João 17:22 – Exposição Exegética Completa

Texto (ARC):
“E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um.”

Texto grego (TR, transliteração):
Kagō dedōka autois tēn doxan hēn dedōkas moi, hina ōsin hen kathōs hēmeis hen esmen.

Análise gramatical, morfológica e exegética

A oração começa com kagō, que é uma forma craseada de kai egō, significando “e eu” — sendo enfático, por ser posicionado no início da sentença e indicando o sujeito que continua a ação de dar, iniciada no versículo anterior. O verbo dedōka (“dei”) está no perfeito do indicativo ativo, 1ª pessoa do singular, de didōmi, e implica ação passada com efeitos duradouros ou permanentes — a glória foi dada e permanece com os discípulos. Isso implica que essa doxa não é meramente escatológica, mas operativa desde já.

O objeto direto é tēn doxan (“a glória”), com artigo definido e no acusativo singular, indicando uma glória específica e já mencionada na oração. A palavra doxa no grego bíblico carrega uma rica paleta semântica. No uso veterotestamentário (através da LXX), doxa traduziu o hebraico kavôd (כָּבוֹד), que implica tanto peso literal quanto majestade divina (cf. Êxodo 24:17; 40:34; Isaías 6:3). No Novo Testamento, doxa pode indicar honra (João 5:44), manifestação visível da presença divina (João 2:11), ou glória futura escatológica (Romanos 8:18). Aqui, no entanto, o uso parece misto: a glória é algo compartilhado aos discípulos enquanto ainda estão no mundo, mas com implicações escatológicas.

A cláusula explicativa hēn dedōkas moi (“que me deste”) também traz o verbo dedōkas, perfeito do indicativo ativo de didōmi, na 2ª pessoa do singular. Trata-se de um paralelo estrutural com a cláusula anterior: o Pai deu a glória a Jesus, e Jesus a deu aos discípulos. O pronome moi é dativo singular, “a mim”. Trata-se de um testemunho direto da relação íntima e direta entre o Pai e o Filho: o que foi dado ao Filho não é algo externo ou transitório, mas algo que o identifica.

A cláusula final hina ōsin hen é uma oração final que expressa propósito: “a fim de que eles sejam um”. O verbo ōsin é o presente do subjuntivo de eimi, indicando permanência no tempo do propósito. Hen (“um”) está no neutro singular, e isso é vital: o neutro indica unidade de essência, propósito ou natureza, mas não identidade pessoal. Se fosse heis (masculino), indicaria uma pessoa, mas o neutro aponta para unidade funcional ou espiritual, não fusão ontológica.

A cláusula comparativa kathōs hēmeis hen esmen é um paralelo decisivo. O advérbio kathōs (“assim como”) introduz uma analogia. Hēmeis é pronome pessoal nominativo plural (“nós”), indicando Jesus e o Pai. O verbo esmen (“somos”) está no presente do indicativo, e a palavra hen repete o neutro singular — “nós somos um”. Assim como no capítulo 10:30 (“Eu e o Pai somos um”), o uso do neutro denota unidade de propósito, vontade e natureza, mas sem identidade pessoal, o que fica ainda mais evidente pela distinção entre os sujeitos “eu” e “Pai”.

Ao se examinar a tradução da frase “E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um” nas versões bíblicas enviadas, observa-se que a maioria delas preserva de modo fiel a estrutura gramatical e teológica do original grego, especialmente no que diz respeito à repetição verbal no perfeito (dedōka / edōkas), à manutenção da palavra “glória” (doxa) em seu sentido pleno, e à construção com o hina final expressando o propósito da unidade. Isso se verifica em versões como AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ERV, ESV, Geneva, GNB, GW, HRB, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, NENT, RV, TLV, UASV+, WEB, WEBA, Webster e YLT, que, apesar de variações estilísticas secundárias, sustentam o núcleo semântico e doutrinário do versículo, ao manterem a expressão “dei-lhes a glória”, sem relativizações nem suavizações semânticas, e ao conservarem a referência à unidade dos discípulos moldada no paradigma da unidade intratrinitária: “como nós somos um”.

Entretanto, algumas versões comprometem o sentido joanino ao inserirem glossas interpretativas ou ao alterarem termos-chave. A CEV, por exemplo, traduz com a expressão “dei a eles o mesmo tipo de glória que você me deu”, e a inclusão do termo “tipo” (kind of glory) não encontra respaldo no texto grego nem em suas equivalentes semíticas ou latinas. Tal inserção subjetiva pode sugerir uma glória inferior, qualitativamente distinta daquela que Jesus recebeu, o que introduz uma distinção teológica ausente no original. A NLT enfraquece a simetria da construção ao omitir o último “um” (hen), encerrando com: “para que sejam um, como nós somos”, apagando o paralelismo com a oração anterior de João 17:11. A TPT, como frequentemente ocorre, exacerba o tom devocional e estiliza demais a tradução ao dizer: “dei a eles o presente glorioso que você me deu, para que sejam completamente unidos como nós somos um”, reconfigurando a “glória” como “presente glorioso” e inserindo adjetivos que não existem no grego (como “completamente unidos”), diluindo o rigor semântico e a força soteriológica do termo doxa.

A NET, embora tecnicamente precisa, abre margem a uma interpretação subjetiva ao sugerir em nota que a “glória” se refere à “revelação do caráter divino”. Ainda que a glória envolva esse aspecto — especialmente dentro do evangelho de João, onde a doxa frequentemente se manifesta na obediência de Cristo até a cruz (João 12:23–28) —, a tradução em si não incorpora essa ideia explicitamente, e pode, assim, ser ambígua para leitores desavisados. Weymouth opta por “honour” em vez de “glory”, o que pode reduzir a carga teológica do termo doxa, aproximando-o mais de um prestígio humano que da presença manifesta de Deus — sentido essencial no pano de fundo veterotestamentário da palavra.

Por outro lado, as versões semíticas são particularmente valiosas por aproximarem-se das concepções originais da glória divina. A Peshitta emprega o termo ܫܘܒܚܐ (shubḥā), o qual, assim como o hebraico kavod (כָּבוֹד) usado na versão hebraica do Novo Testamento (כתר המלך), reflete com precisão o conceito de glória presente nas teofanias do Antigo Testamento — especialmente em textos como Êxodo 33–34, onde a glória de YHWH envolve presença, majestade e identidade ontológica, e Isaías 6, onde o kavod enche o Templo. Essas versões, portanto, não apenas traduzem com fidelidade, mas também transportam para o leitor o peso teológico da glória como atributo essencialmente divino, e não meramente funcional ou decorativo.

A frase “E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um” ergue diante do leitor um problema teológico de altíssima complexidade: como pode Jesus afirmar ter compartilhado com os discípulos uma glória que ele mesmo recebeu do Pai, se Yahweh declara explicitamente em Isaías 42:8 e 48:11 que “a minha glória não darei a outrem”? A tensão entre essas declarações veterotestamentárias e o ensino joanino não pode ser resolvida por simplificações hermenêuticas ou por construções dogmáticas anacrônicas, mas exige uma leitura respeitosa da revelação progressiva da Escritura, aliada a um discernimento semântico preciso da palavra doxa e de seu campo teológico nas Escrituras hebraicas e gregas.

A primeira resposta possível — a de que a glória recebida por Jesus do Pai seria uma “glória funcional” e não divina — se choca frontalmente com o testemunho interno do próprio Evangelho. João 1:14 declara que “vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai”, o que vincula diretamente a doxa de Jesus à sua filiação eterna, e não a um status adquirido no tempo. A glória que Jesus possui não é de origem humana ou profética, mas é pré-existente, conforme João 17:5: “glorifica-me com aquela glória que eu tinha contigo antes que o mundo existisse”. Aqui, ēi eichen indica posse contínua e anterior à criação. Se a glória era sua antes do mundo, não é glória messiânica apenas — é glória ontológica, partilhada com o Pai na eternidade, e manifesta já em João 2:11 no sinal de Caná. Assim, considerar essa glória como meramente “missional” ou “honorífica” seria incorrer em um docetismo mitigado ou mesmo em um adocionismo, negando a plena divindade preexistente do Logos encarnado.

Por outro lado, seria igualmente equivocado imaginar que Jesus, ao dar essa glória aos discípulos, os eleva à mesma condição ontológica que a sua — isto é, que eles se tornam “deuses” em natureza. Essa interpretação, além de ontologicamente insustentável, seria herética à luz da própria teologia bíblica. Isaías 42:8 mantém-se como baliza inviolável: Yahweh não compartilha sua glória essencial com nenhum outro ser. Mesmo os redimidos, exaltados com Cristo, jamais assumem a identidade divina, permanecendo criaturas transformadas e glorificadas, mas não divinizadas ontologicamente. O próprio Jesus, ao orar por seus discípulos, os distingue claramente de si ao afirmar: “eles não são do mundo, assim como eu não sou do mundo” (João 17:16) — uma analogia moral e vocacional, não ontológica. Romanos 8:17 declara que somos “coerdeiros com Cristo”, mas não coeternos, coonipresentes ou consubstanciais com ele. Apocalipse 5:13 adora “aquele que está assentado no trono” e “o Cordeiro” — e nenhum dos redimidos, mesmo glorificados, divide esse trono em posição essencial ou adorativa.

Resta, pois, a leitura mais coerente com o todo das Escrituras: a glória compartilhada por Jesus com os discípulos não é a glória ontológica da divindade, mas sim a glória participativa da comunhão, da missão e da união espiritual. A doxa que os discípulos recebem é derivada e refletida — como Moisés, que desceu do Sinai com o rosto resplandecente por ter estado com Deus (Êxodo 34:29–35), e como Paulo afirma em 2 Coríntios 3:18: “todos nós... refletimos como espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória”. Essa transformação e esse reflexo não tornam os discípulos divinos, mas os conformam à imagem de Cristo (cf. Romanos 8:29), como vasos que portam luz, mas que não são a luz (cf. 2 Coríntios 4:6–7). O verbo “dei” (dedōka) está no perfeito, indicando uma ação passada com efeitos permanentes, revelando que essa glória já lhes fora comunicada espiritualmente, ainda que de forma crescente e progressiva.

A unidade proposta — “para que sejam um, como nós somos um” — reforça a ideia de uma glória funcional e relacional, pois a união dos discípulos jamais será ontológica, como se fossem uma substância única. Nem mesmo o Pai e o Filho, na distinção joanina, são uma “Pessoa”, como no modalismo herético, mas sim hen — uma unidade de vontade, glória e missão. O uso do neutro hen e não do masculino heis em João 10:30 (“Eu e o Pai somos um”) impede qualquer fusão pessoal, e o mesmo padrão se repete aqui. A comparação entre a unidade do Pai e do Filho e a dos discípulos só é possível se entendermos que Jesus se refere a um tipo de unidade moral, espiritual e missional, e não a uma identidade ontológica compartilhada. Do contrário, a frase cairia no absurdo lógico de postular uma trindade expandida, com milhares de discípulos participando da mesma substância divina — algo jamais sugerido no Novo Testamento.

Portanto, João 17:22 deve ser lido dentro da economia da revelação progressiva: a glória que Jesus recebeu do Pai é, em parte, compartilhada com os seus, não como identidade divina, mas como vocação espiritual e destino escatológico. Trata-se da glória da cruz (cf. João 12:23), da glória da missão (João 20:21), da glória da obediência (João 17:4) e da glória da unidade na verdade (João 17:17, 19). Os discípulos são glorificados, sim, mas com uma glória refletida, comunicada e participada, e não com a doxa essencial de Yahweh — glória que permanece indivisível em sua natureza, mas que, por graça, pode ser irradiada naqueles que estão em Cristo. Em suma, não há contradição entre Isaías e João: a glória que Yahweh não dá a outro em sua essência, ele a reflete graciosamente naqueles que são feitos “filhos por adoção” (Efésios 1:5), conformes à imagem do Filho (Romanos 8:29), para que nele, e somente nele, possam ver e participar da glória eterna.

João 17:23 (TEXTO)

A expressão inicial de João 17:23, “egō en autois kai sy en emoi”, apresenta uma simetria relacional profundamente teológica, construída por meio de pronomes pessoais no nominativo com ênfase enfática e preposições de localização que transcendem o sentido físico. O pronome “egō” (eu), em nominativo singular, é enfático e deliberadamente posicionado antes da preposição, denotando a centralidade da presença de Cristo na relação com os discípulos. A preposição “en” (em), acompanhada do pronome dativo plural “autois” (neles), forma a expressão “egō en autois”, que carrega a conotação de habitação pessoal e contínua: uma união mística na qual o Cristo ressurreto e glorificado passa a viver nos que crêem (cf. João 14:20; Gálatas 2:20). O paralelismo com “kai sy en emoi” (“e tu em mim”) confirma essa estrutura reflexiva, onde o Pai está em Cristo assim como Cristo está nos seus. A presença da conjunção “kai” conecta ambas as proposições como equivalentes, estabelecendo uma cadeia de reciprocidade ontológica: o Pai no Filho, o Filho nos discípulos — o que define a estrutura da comunhão trinitária como fundamento da união da comunidade dos crentes.

A cláusula seguinte, introduzida por “hina” (para que), emprega o subjuntivo “ōsin” (sejam), forma flexionada do verbo “einai” (ser), no aoristo do subjuntivo ativo, terceira pessoa do plural. A partícula “hina” rege o verbo no modo subjuntivo, marcando uma finalidade direta: o propósito de Cristo estar nos discípulos e o Pai nele é para que “eles sejam”. O predicado verbal é complementado por “teteleiōmenoi”, particípio perfeito passivo de “teleioō” (aperfeiçoar, completar), indicando um estado consumado e permanente: a perfeição já efetuada em consequência da união com Cristo. O perfeito passivo sublinha o aspecto resultativo: trata-se de uma obra já operada, cujos efeitos perduram. A forma plural do particípio concorda com o sujeito implícito (“eles”), e a presença da preposição “eis” (para, em direção a) seguida do numeral “hen” (um), indica o alvo último da operação divina: a unidade. A frase “eis hen” não é meramente numérica, mas ontológica e escatológica. Aponta para uma unidade de essência relacional, ainda que distinta em pessoa, similar à que Cristo mantém com o Pai — como já foi indicado anteriormente em João 17:11 e 17:21. A mesma forma aparece em Romanos 12:5 (“hen sōma”), indicando unidade funcional no corpo místico, e em Gálatas 3:28 (“pantes gar hymeis hen este en Christō Iēsou”), reiterando que essa unidade não é de fusão, mas de comunhão radical e partilhada.

A construção prossegue com a segunda oração final marcada por novo “hina”: “hina ginōskē ho kosmos hoti sy me apesteilas kai ēgapēsas autous kathōs eme ēgapēsas”. A finalidade dessa unidade consumada é a revelação pública do envio do Filho e do amor do Pai pelos discípulos. O verbo “ginōskē”, presente do subjuntivo ativo de “ginōskō”, exprime conhecimento experiencial e contínuo. A forma verbal no presente subjuntivo acentua que o mundo está em processo de reconhecer (não apenas uma constatação pontual) a missão divina de Jesus. A oração é completada pela causativa “hoti”, que introduz duas declarações paralelas: “sy me apesteilas” e “ēgapēsas autous kathōs eme ēgapēsas”. O verbo “apesteilas” (aoristo indicativo ativo de “apostellō”) designa o envio apostólico e missionário de Cristo, reiterando a origem celestial e o comissionamento divino. Já o duplo uso do verbo “ēgapēsas” (aoristo indicativo ativo de “agapaō”) realça, com força retórica e afetiva, o amor eterno do Pai tanto pelo Filho quanto pelos discípulos. A conjunção comparativa “kathōs” (assim como) estabelece não apenas uma semelhança, mas uma medida: o amor com que o Pai ama os crentes é da mesma qualidade, natureza e extensão daquele com que ama o próprio Cristo. A forma aorística do verbo, em ambos os casos, aponta para um ato definitivo, histórico, e plenamente realizado: não se trata de um amor potencial ou ainda por vir, mas de uma decisão irrevogável do Pai em amar aqueles que pertencem a Cristo com o mesmo amor com que ama o próprio Cristo. Trata-se, pois, de uma das afirmações mais ousadas de todo o Evangelho, pois coloca os discípulos dentro da esfera do amor trinitário eterno, não como observadores externos, mas como participantes reais da comunhão divina.

A comparação crítica entre as versões bíblicas fornecidas e a análise exegética do texto grego de João 17:23 revela nuances importantes tanto de fidelidade quanto de interpretação teológica. A maior parte das traduções preserva com bastante precisão a estrutura relacional expressa na primeira cláusula “egō en autois kai sy en emoi”, traduzindo literalmente como “Eu neles, e tu em mim”, conforme se vê nas versões AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, GNB, GW, HRB, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, NET, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, Williams, YLT. Essa tradução preserva não apenas a ordem original, mas também o paralelismo essencial da teologia joanina, em que a comunhão entre Jesus e o Pai se projeta na união mística com os discípulos. A versão NTLH, ao dizer “Eu estou unido com eles, e tu estás unido comigo”, interpreta corretamente o sentido relacional e espiritual do “en”, embora opte por uma formulação menos literal e mais explicativa, o que a aproxima da versão ERV (“I will be in them, and you will be in me”), que expressa o mesmo conteúdo numa estrutura futurista que não está presente no grego original, desviando-se da forma verbal já realizada do perfeito passivo “teteleiōmenoi”. A TPT (“You live fully in me and now I live fully in them”) opta por uma paráfrase altamente interpretativa, inserindo a ideia de plenitude (“live fully”) que, embora não contradiga o sentido teológico, extrapola o vocabulário do texto grego.

A expressão “hina ōsin teteleiōmenoi eis hen” apresenta variações mais notáveis entre as versões. As versões AFV, ASV, Cepher, Darby, DRB, EMTV, HRB, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, YLT traduzem de forma praticamente idêntica: “sejam aperfeiçoados/em unidade/em um”. Todas mantêm a ideia de uma perfeição finalizada (do particípio perfeito passivo “teteleiōmenoi”) e a meta da unidade expressa por “eis hen”. Já a versão BSB opta por “perfectly united”, o que interpreta corretamente o propósito da unidade sem recorrer à terminologia “perfeição” de forma literal, e a ESV escolhe “become perfectly one”, preservando o sentido escatológico e ontológico da expressão. A versão CEV amplia com “so that they may become completely one”, sendo fiel ao conteúdo mas suavizando a formalidade da construção grega. Já a TPT traduz por “so that they will experience perfect unity”, enfatizando a experiência subjetiva (“experience”), o que pode desviar a ênfase do texto original que aponta para um estado ontológico decorrente da união com Cristo, e não apenas vivencial.

Na cláusula seguinte — “hina ginōskē ho kosmos hoti sy me apesteilas kai ēgapēsas autous kathōs eme ēgapēsas” — a maior parte das traduções mantém a estrutura composta por dois propósitos: o reconhecimento do mundo de que Cristo foi enviado pelo Pai, e que o amor dispensado aos discípulos é equivalente ao amor do Pai pelo Filho. As versões que traduzem verbatim essa cláusula, com mínima variação lexical, são: AFV, ASV, BSB, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, GW, HRB, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, NET, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, Williams, YLT. Todas elas mantêm com fidelidade o paralelismo entre “tu me enviaste” e “amaste a eles como a mim”, inclusive com tradução apropriada do aoristo “ēgapēsas”, sem diluições semânticas. A versão GNB conserva o conteúdo com leve reordenação sintática, mas permanece fiel: “em ordem que o mundo saiba que me enviaste e que os amas como a mim”. A NTLH apresenta: “a fim de que o mundo saiba que me enviaste e que amas os meus seguidores como também me amas”, o que transmite bem o conteúdo, mas ao substituir “eles” por “meus seguidores”, já insere uma camada interpretativa que suaviza o radicalismo ontológico da inclusão dos discípulos na relação trinitária. A CEV e a ERV trazem a expressão “they will know that you love my followers”, o que igualmente opta por uma interpretação mais devocional, omitindo a simetria semântica mais austera do grego. A TPT, por sua vez, transforma radicalmente a frase, vertendo-a por “for they will see that you love each one of them with the same passionate love that you have for me”, inserindo termos como “each one” e “passionate love” que, embora comuniquem emoção e intensidade, não refletem literalmente nem os tempos verbais, nem o paralelismo rigoroso do texto original.

Por fim, vale notar que a versão Peshitta-T, em siríaco, mantém com exatidão a estrutura verbal e temática da frase grega: “ana bhon w’ant biy dnehwun gmirin lḥad wdendʿ ʿalma d’ant shadartni wdaḥbat anon aykanna d’af li aḥbat”, preservando o uso de “gmirin” (ܓܡܝܪܝܢ) para “aperfeiçoados” e o paralelismo entre o amor divino pelo Filho e pelos discípulos. A versão Latina (“ego in eis et tu in me ut sint consummati in unum et cognoscat mundus quia tu me misisti et dilexisti eos sicut me dilexisti”) traduz de forma literal e sintaticamente paralela ao grego, com “consummati in unum” para “teteleiōmenoi eis hen”, e “dilexisti eos sicut me dilexisti” refletindo exatamente “ēgapēsas autous kathōs eme ēgapēsas”. Ambas reforçam, como no texto grego, a ideia de que a unidade e o amor trinitário estendido aos discípulos funcionam como sinais visíveis e teológicos para o mundo reconhecer a missão divina de Cristo.

Em suma, as versões que mantêm mais fielmente o conteúdo, forma verbal e ordem teológica do texto grego são AFV, ASV, Cepher, Darby, DRB, EMTV, ESV, Geneva, GW, HRB, ISV, JUB, KJV, LEB, LITV, LSV, MKJV, Murdock, NENT, NET, RV, UASV+, WEB, WEBA, Webster, Weymouth, Williams, YLT, além da Peshitta-T e da Latina. Versões como TPT, CEV, ERV e NTLH oferecem paráfrases devocionais que, embora possam transmitir o espírito pastoral da oração, sacrificam a simetria gramatical, a força teológica da cláusula comparativa “kathōs” e a formalidade verbal do grego original. Essas nuances, se não compreendidas corretamente, podem enfraquecer o impacto da revelação de João 17:23, que apresenta a ousada doutrina da inclusão dos crentes na glória relacional da Trindade como prova diante do mundo da veracidade do envio do Filho.

João 17:23 revela com densidade incomparável a tensão entre a transcendência de Deus e sua imanência redentora, condensando a economia da salvação na fórmula “Eu neles, e tu em mim”. Essa declaração se enraíza no mistério da pericórese — a interpenetração relacional do Pai e do Filho — e estende esse mistério à realidade da comunidade dos crentes. Ao afirmar “egō en autois”, Jesus aponta para uma união real, não meramente afetiva ou institucional, mas ontológica e espiritual, conforme já anunciado em João 14:20: “Naquele dia, conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós.” O verbo “estar em” (ἐν + dativo) carrega aqui um valor semítico profundo de habitação pactuada, reminiscente de Êxodo 29:45: “E habitarei no meio dos filhos de Israel”.

A finalidade dessa união é clara: “para que eles sejam perfeitos em unidade” (hina ōsin teteleiōmenoi eis hen), ou seja, levados à consumação da comunhão. Essa “perfeição” não é moralista nem meramente escatológica, mas aponta à maturidade espiritual que evidencia a obra completa do Espírito no corpo de Cristo. É o mesmo ideal ético-espiritual de Efésios 4:13 — “até que todos cheguemos […] ao varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo”. A unidade aqui almejada não é uniformidade, mas plenitude de harmonia no Espírito (Filipenses 2:1–2), reflexo da própria relação intra-trinitária. A expressão eis hen (“em um”) ecoa Gênesis 2:24 — “e serão ambos uma só carne” — revelando o modelo criacional da unidade relacional que se cumpre agora escatologicamente no corpo da Igreja, esposa do Cordeiro (Apocalipse 21:2).

O resultado dessa unidade visível é duplo: “para que o mundo conheça que tu me enviaste, e que os amaste como me amaste”. Aqui, a unidade não é apenas benéfica internamente, mas é instrumento de evangelização cósmica. A autenticidade da missão de Cristo e a profundidade do amor do Pai são tornadas críveis ao mundo pela coesão dos que creem. Assim como o Pai amou o Filho antes da fundação do mundo (João 17:24), Ele também ama os que estão no Filho com o mesmo amor eterno e redentor. Isso confirma a inclusão dos crentes no amor eterno da Trindade, conforme Romanos 5:5: “O amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo.”

Devocionalmente, essa realidade oferece ao coração regenerado um consolo e uma responsabilidade. O consolo: somos amados com o mesmo amor com que o Pai ama o Filho — um amor eterno, incondicional e glorioso (Jeremias 31:3). A responsabilidade: viver em unidade real com nossos irmãos e irmãs na fé, pois essa unidade é a epifania do Reino ao mundo (João 13:35). Pastoralmente, isso implica que a comunhão cristã não é opcional ou periférica à fé, mas essencial e escatológica. O cisma, a discórdia e a fragmentação são feridas abertas no corpo de Cristo, que obscurecem a beleza do Evangelho.

Finalmente, essa oração revela a continuidade da missão: Jesus ora não apenas pelos apóstolos, mas por todos os que viriam a crer — incluindo cada um de nós. A oração sacerdotal é, portanto, a raiz da nossa perseverança. Como diz Hebreus 7:25, Cristo “vive sempre para interceder por eles”. E essa intercessão tem como fim último que sejamos consumados em unidade e experimentemos o amor com que o Filho é amado — um amor que nos conforma à sua imagem (Romanos 8:29), e que nos assegura: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (Romanos 8:35). A resposta, selada por esta oração, é: ninguém.

João 17:24 – Comentário gramatical, sintático, morfológico e exegético

Texto grego (TR, transliteração): Pater, hous dedōkas moi, thelō hina hopou eimi egō, kakeinoi ōsin met’ emou, hina theōrōsin tēn doxan tēn emēn hēn dedōkas moi, hoti ēgapēsas me pro katabolēs kosmou.

A oração se inicia com a invocação Pater (“Pai”), vocativo singular masculino do substantivo patēr, indicando não apenas um chamamento direto, mas também estabelecendo o tom íntimo e solene da súplica. O uso do vocativo aqui reforça a oração filial que atravessa todo o capítulo 17, consolidando a relação entre o Filho e o Pai como base da intercessão em favor dos discípulos.

Em seguida, a oração contém a estrutura complexa: hous dedōkas moi, thelō hina..., cujo núcleo verbal é o thelō (“eu quero”, presente do indicativo ativo de thelō), que introduz um desejo com valor de petição. Esse verbo é seguido por uma oração completiva introduzida por hina (“a fim de que”), funcionando como complemento direto do querer de Jesus. O pronome relativo acusativo plural masculino hous (“aqueles que”) refere-se aos discípulos dados por Deus a Jesus, funcionando como objeto direto do verbo dedōkas (“deste”), forma do perfeito do indicativo ativo de didōmi, sugerindo uma ação passada com efeitos presentes. O verbo aparece também na cláusula subsequente, indicando coesão e progressividade teológica na concessão dos discípulos ao Filho.

A expressão hopou eimi egō (“onde eu estou”) apresenta o uso presente do verbo eimi (“sou/estou”), e embora a ação ainda esteja por se consumar na cruz, o tempo presente é usado aqui com sentido escatológico-proléptico, refletindo a certeza da glorificação. O advérbio hopou (“onde”) introduz a ideia espacial da comunhão eterna entre Cristo e os seus, reiterada com a partícula hina que reaparece: hina kakeinoi ōsin met’ emou (“para que também eles estejam comigo”). O verbo ōsin é a terceira pessoa do plural do presente do subjuntivo ativo de eimi, em paralelo com eimi egō e subordinado ao thelō, mantendo a estrutura desiderativa.

A justificação dessa petição é expressa em hina theōrōsin tēn doxan tēn emēn hēn dedōkas moi, outra oração subordinada com hina e o verbo theōrōsin, presente do subjuntivo ativo de theōreō (“ver, contemplar”). O objetivo de estarem com Cristo é para que vejam a sua glória (tēn doxan tēn emēn), que é qualificada pela oração relativa: hēn dedōkas moi (“a qual me deste”). A construção apresenta um paralelismo com a cláusula inicial da oração, reiterando que a glória recebida do Pai é o elemento compartilhado com os discípulos.

A expressão final hoti ēgapēsas me pro katabolēs kosmou fornece a razão última da concessão da glória: o amor eterno do Pai pelo Filho. O verbo ēgapēsas é o aoristo indicativo ativo de agapaō, denotando um ato definido e absoluto do amor divino. A locução pro katabolēs kosmou (“antes da fundação do mundo”) é uma expressão temporal que aparece em contextos de eleição eterna (cf. Efésios 1:4; 1 Pedro 1:20), implicando na preexistência do Filho e na eternidade da sua relação com o Pai. O termo katabolē (“fundação, lançamento”) tem aqui valor cosmológico, e não há artigo definido, o que reforça a ideia de anterioridade absoluta.

Todo o versículo é organizado em torno de três eixos: (1) o desejo do Filho, expressado por thelō; (2) o lugar e comunhão, indicados por hopou + eimi; e (3) a visão da glória, como consumação escatológica e testemunho do amor eterno de Deus. A construção exegética denota unidade temática, coesão verbal e escopo cristológico, fundado na reciprocidade entre Pai e Filho, que se estende agora aos crentes como herdeiros dessa glória pela união com Cristo.

Entre as traduções que mantêm uma reprodução quase literal e fiel ao original, sem omissões nem inserções teológicas alienígenas, estão as versões: ACF, ARC, RA, RVR, ASV, NASB, LEB, YLT, ESV, BSB, CSB, DRB, KJV, NKJV, LXX Brenton (tradução grega da Septuaginta), Darby, Jubilee, Geneva. Todas essas mantêm a estrutura dupla de finalidades estabelecida pelo duplo hina (isto é, a primeira finalidade: "para que estejam comigo onde eu estiver", e a segunda: "para que vejam minha glória"). A fórmula “aqueles que me deste” é mantida com clareza, respeitando a partícula relativa hous e a noção de concessão divina expressa pelo perfeito dedōkas, o que preserva o valor teológico da eleição e posse dada pelo Pai (cf. João 6:37–39; João 10:29; João 17:6,9).

No tocante à expressão “para que vejam a minha glória que me deste”, quase todas as versões mencionadas acima mantêm “vejam” como tradução de theōrōsin, que é apropriado se entendida a nuance contemplativa e não apenas óptica do verbo (cf. João 1:14, onde “vimos a sua glória” se refere a uma percepção espiritual). Algumas versões, porém, optam por “contemplar”, como a NAA e a BLIVRE, o que pode ser considerado uma expansão interpretativa legítima, pois o verbo theōreō no Quarto Evangelho com frequência carrega essa carga teológica (cf. João 14:9). Nesse ponto, versões como NAA, NBV, BLIVRE, NTLH, NIV podem ser ditas como enriquecedoras do entendimento teológico, mesmo sem comprometer a exatidão formal.

Outras versões, contudo, introduzem alterações que podem obscurecer a força da oração de Jesus ou mesmo distorcer pontos doutrinários. A MSG (The Message), como de costume, paraphraseia excessivamente: ela retira a precisão do verbo thelō (quero), e dilui o caráter objetivo da petição para uma linguagem emocional e ambígua. Já a NLT transforma “para que vejam a minha glória” em “para que todos vejam toda a minha glória” — algo que não existe no grego, e que força um universalismo visual improcedente, retirando o foco da relação especial entre Jesus e os “dons” que o Pai lhe deu (hous dedōkas moi). Também a CEV omite a conexão explícita entre a glória e o amor eterno do Pai pro katabolēs kosmou, simplificando o versículo a ponto de dissolver a teologia da eleição e da glória pré-temporal de Cristo.

Em versões como NIVUK, ERV e GNT, há certo nivelamento teológico que, ainda que com boa intenção comunicativa, retira a densidade da linguagem joanina e a especificidade dos verbos no tempo perfeito, como dedōkas (“tens dado”) e ēgapēsas (“amaste”), traduzindo-os como pretéritos simples e eliminando o caráter de permanência da ação passada, o que enfraquece a doutrina da eternidade do amor do Pai pelo Filho e a posse irrevogável dos discípulos.

Outras versões, como NLV, EXB e TPT, tornam-se perigosamente subjetivistas: inserem a ideia de que os crentes serão “absorvidos” na glória ou “tomarão parte dela” com Cristo, mesmo sem respaldo sintático para tal ideia. Embora a participação dos santos na glória futura seja doutrinariamente válida (cf. Romanos 8:17–18; 2 Coríntios 4:17), o texto de João 17:24 não afirma participação ontológica, mas uma visão contemplativa e relacional da glória que já foi concedida ao Filho.

Em suma: versões como ARC, ACF, RA, RVR, ASV, NASB, DRB, ESV, KJV, YLT, Darby, Geneva são exatas e leais ao texto grego, mantendo inclusive a força teológica do duplo hina e da escolha verbal. Versões como NAA, CSB, LEB, NBV aumentam o entendimento teológico com precisão interpretativa. Já versões como MSG, CEV, NLT, NLV, TPT distorcem o texto original ou por excessiva simplificação, ou por teologizações indevidas, obscurecendo a relação íntima entre a eleição, a glória eterna e a preexistência do amor do Pai pelo Filho.

Por fim, a fidelidade ao grego de hina hopou eimi egō kakeinoi ōsin met’ emou e hina theōrōsin tēn doxan tēn emoi dedōkas é essencial para manter a doutrina da união escatológica com Cristo e a contemplação da glória — não uma fusão ontológica, mas uma permanência relacional e adorativa (cf. Apocalipse 22:3–4; 1 João 3:2). Versões que mantêm essa tensão exaltam, não deturpam, o sentido do texto.

A expressão de Jesus em João 17:24 — “onde eu estiver” (hina hopou eimi egō) — contém uma densidade teológica e escatológica que não pode ser compreendida de modo trivial, muito menos confundida com exibicionismo ou arrogância divina. É necessário examinar cuidadosamente seu significado contextual, redentivo, ontológico e relacional, contrastando com o testemunho das Escrituras.

Em primeiro lugar, a expressão hopou eimi egō (“onde eu estou”) aparece no tempo presente, mas com valor futuro escatológico. Isso se vê em outras passagens de João, como João 14:3: “...para que onde eu estiver estejais vós também”, e João 12:26: “...e onde eu estiver, ali estará também o meu servo.” Nesse contexto, Jesus não fala da sua localização geográfica pós-ressurreição (como se estivesse em múltiplos lugares), mas sim da sua posição glorificada ao lado do Pai. Essa linguagem reflete o desejo de que os crentes participem da comunhão eterna com ele, na realidade celestial, a qual se refere explicitamente em João 17:5 — “glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória que eu tinha contigo antes que o mundo existisse”.

Portanto, ao dizer “onde eu estiver”, Jesus aponta para a comunhão escatológica glorificada com o Pai, não para uma multiplicidade de presenças localizadas. Em João 14:2–3, ele afirma: “Na casa de meu Pai há muitas moradas... vou preparar-vos lugar... para que onde eu estiver estejais vós também.” Assim, o “onde” é menos sobre espaço e mais sobre relação e estado de glorificação com o Pai.

Quanto ao motivo que leva Jesus a desejar que seus discípulos vejam a sua glória — “para que vejam a minha glória que me deste” — isso não é exibicionismo, pois a glória em questão não é gerada por Jesus em si mesmo, mas lhe foi dada pelo Pai (tēn doxan tēn emoi dedōkas, perfeito ativo indicativo de didōmi). Ou seja, essa glória é recebida, não autoatribuída. E Jesus deixa claro que essa glória já existia “antes da fundação do mundo” (pro katabolēs kosmou), o que significa que é uma glória eterna, relacional e compartilhada intra-divinamente, não algo que nasceu em sua missão terrena ou em vaidade humana.

Esse pedido para que os discípulos vejam sua glória deve ser interpretado como um gesto de amor, pois o termo “ver” (theōrein) em João frequentemente significa compreender, experimentar, contemplar espiritualmente (cf. João 1:14; João 14:9; 1 João 3:2). A finalidade da contemplação da glória não é estética, mas transformadora. Paulo explica essa lógica em 2 Coríntios 3:18: “Mas todos nós, com rosto descoberto, contemplando como por espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem...” Ou seja, ver a glória de Cristo não é um privilégio passivo, mas um meio ativo de santificação e comunhão eterna.

Acusar Jesus de arrogância ou narcisismo, à semelhança dos deuses pagãos ou de um Yahweh exibicionista, revela uma leitura psicologizante anacrônica, divorciada do testemunho das Escrituras. Quando Deus afirma em Isaías 42:8 — “Eu sou o Senhor; este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem” — ele está protegendo sua identidade contra a idolatria e mantendo sua exclusividade como Criador, e não sendo egocêntrico. Isso se coaduna com o fato de que em João 17:5 e 17:24, Jesus não diz que usurpa essa glória, mas que a recebeu do Pai, e que essa glória é a mesma que tinha com o Pai antes da criação do mundo — o que, aliás, é uma afirmação implícita de sua divindade preexistente. Isso está em harmonia com Filipenses 2:6–7, onde se diz que Cristo, “subsistindo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas a si mesmo se esvaziou...”.

Ademais, o objetivo de Jesus em pedir que os crentes vejam sua glória é amoroso e relacional, como ele mesmo declara: “para que estejam comigo.” A finalidade primária do pedido não é a glória em si, mas a comunhão restaurada — estar com Cristo, não apenas vê-lo. Em Apocalipse 21:3–4, esse ideal se realiza: “Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará...”. Portanto, Jesus está intercedendo pela consumação do plano redentivo, que tem como clímax a presença eterna dos salvos com ele e a visão beatífica de sua glória (cf. Salmo 17:15; João 14:3; 1 Tessalonicenses 4:17).

Quanto ao paralelo com a narrativa de Jó, quando Deus responde com uma série de perguntas (Jó 38–41), não é exibicionismo, mas reorientação teológica. Deus não humilha Jó por vaidade, mas o confronta com sua pequenez diante da criação, para restaurá-lo à confiança. E Jó reconhece isso: “Antes eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem” (Jó 42:5). A resposta de Deus, longe de arrogante, é reveladora de sua soberania e sabedoria, e é esse mesmo espírito que está em João 17:24: a revelação da glória para transformar, curar, salvar e unir.

Em suma, a linguagem de Jesus — “onde eu estiver... para que vejam a minha glória” — não denota desejo de autoexaltação, mas é o clímax de seu amor redentor. O desejo de Jesus é que seus discípulos estejam com ele, experimentem a comunhão eterna, contemplem a glória divina que transforma (cf. 1 João 3:2; Romanos 8:17–18), e permaneçam no amor que o Pai lhe deu desde a eternidade. Esse não é um traço pagão, mas a essência da aliança eterna e da bem-aventurança prometida aos que o amam (cf. João 14:21–23; Salmo 16:11; Apocalipse 22:4–5).

João 17:25 – Texto grego (TR, transliteração):
Pater dikaie, kai ho kosmos se ouk egnō; egō de se egnō, kai houtoi egnōsan hoti sy me apesteilas.

A oração se estrutura como um apelo conclusivo e reflexivo de Cristo ao Pai, e é marcada por uma sequência de três declarações contrastantes que revelam graus distintos de conhecimento acerca de Deus: (1) a ignorância do mundo, (2) o conhecimento exclusivo de Jesus, e (3) o conhecimento derivado dos discípulos que creem no envio do Filho.

A frase inicial Pater dikaie (“Pai justo”) é uma vocação enfática que utiliza o nominativo como vocativo — uma forma comum no Novo Testamento, especialmente em contextos solenes (cf. Pater agie em João 17:11). O adjetivo dikaios (“justo”, aqui na forma vocativa dikaie) possui, neste contexto, conotação retributiva e judicial, e evoca, à luz de João 16:10, a retidão de Deus em julgar o mundo por sua cegueira espiritual e em justificar o Filho na sua exaltação. Como atestado em 1 João 1:9, Deus é dikaios não apenas em julgar com equidade, mas em recompensar com fidelidade. Assim, Jesus invoca o Pai com base em sua justiça retributiva e remuneradora.

A partícula kai que se segue, unida ao sujeito ho kosmos (“o mundo”), levanta uma nuance significativa. Embora, à primeira vista, kai funcione apenas como conjunção copulativa (“e”), fontes exegéticas de peso argumentam que aqui ela deve ser compreendida como concessiva: “ainda que o mundo não te tenha conhecido” — reforçando o contraste com o conhecimento de Cristo e dos discípulos. A construção kai ho kosmos se ouk egnō (“e o mundo não te conheceu”) traz o aoristo egnō do verbo ginōskō, com o sentido de “não chegou a conhecer” ou “não reconheceu”, o que indica uma rejeição contínua e decisiva da revelação divina por parte do mundo. Este “mundo” (kosmos) representa o sistema humano hostil a Deus, reiteradamente cego à luz (cf. João 1:10; 3:19–20; 7:7; 15:18–19).

A segunda cláusula, egō de se egnō (“mas eu te conheci”), introduz um contraste claro com a partícula adversativa de, intensificando o efeito concessivo da frase anterior. O sujeito enfático egō (“eu”) e o objeto direto se (“a ti”) reforçam a exclusividade do conhecimento que Jesus tem do Pai. Aqui, egnō mantém o valor aorístico, mas com sentido perfeito-completivo: Cristo conhece o Pai de maneira plena, pessoal e eterna (cf. João 1:18; 10:15).

Por fim, a terceira cláusula kai houtoi egnōsan hoti sy me apesteilas (“e estes conheceram que tu me enviaste”) afirma que o grupo dos discípulos também alcançou conhecimento — não do Pai em si, como o Filho, mas da missão do Filho, o que representa sua entrada na verdadeira revelação divina. O sujeito houtoi (“estes”) refere-se aos discípulos fiéis mencionados anteriormente (cf. João 17:6–8). O verbo egnōsan (também aoristo de ginōskō) exprime o reconhecimento decisivo e transformador do envio do Filho pelo Pai — expressado pela cláusula subordinada hoti sy me apesteilas (“que tu me enviaste”), onde apesteilas é o aoristo de apostellō, evocando a teologia do “enviado” que permeia o Quarto Evangelho (cf. João 3:17; 5:36; 10:36; 11:42; 20:21). A forma enfática do pronome sy (“tu”), colocada antes do verbo apesteilas, marca a origem divina da missão de Jesus.

A construção global do versículo pode ser organizada sintaticamente da seguinte forma:

  • Vocativo com qualificativo teológico: Pater dikaie (Pai justo),

  • Proposição negativa concessiva: kai ho kosmos se ouk egnō (embora o mundo não te tenha conhecido),

  • Afirmação exclusiva positiva: egō de se egnō (mas eu te conheci),

  • Afirmação extensiva derivada: kai houtoi egnōsan hoti sy me apesteilas (e estes conheceram que tu me enviaste).

Este paralelismo entre a ignorância do mundo, o conhecimento pessoal de Cristo e o conhecimento adquirido pelos discípulos funciona como argumento retórico-final para a oração sacerdotal. Cristo se posiciona como mediador do conhecimento do Pai, validando teologicamente o discipulado e a missão dos crentes como continuação de sua própria missão reveladora.

A comparação crítica das traduções de João 17:25 (“Pai justo, o mundo não te conheceu; mas eu te conheci, e estes conheceram que tu me enviaste a mim”) à luz da exegese grega revela três linhas de avaliação essenciais: a fidelidade morfossintática ao original, o impacto teológico das opções lexicais e a possível distorção ou obscurecimento do sentido cristológico e do contraste estabelecido entre o mundo, o Filho e os discípulos. A oração começa com a invocação “Pater dikaie” (πάτερ δίκαιε), que emprega o nominativo pater com força vocativa, seguido do vocativo real dikaie, algo que a maioria das versões verte de forma satisfatória como “Pai justo”. Essa forma de invocação é rara nos Evangelhos, ocorrendo aqui de modo solene e teológico, em paralelo com “Pai santo” em João 17:11. A maioria das traduções, como ARC, ARA, ACF, NAA, NVI, NVT, NTLH, TB, CNBB, JFA, DRB, NASB, ESV, NIV, KJV, NKJV, LEB, HCSB, NET e RSV, reproduzem corretamente a expressão como “Pai justo” ou equivalente funcional adequado, mantendo a integridade vocativa. Contudo, versões mais parafrásticas como a BÍBLIA VIVA e a THE MESSAGE introduzem tonalidades emocionais ou explicativas que suavizam a solenidade e reduzem a densidade teológica da invocação, desfigurando sua força contrastiva com a injustiça do mundo e seu papel judicial na missão de Cristo, como ecoado em João 16:8–11.

O uso do particípio adversativo kai na sequência kai ho kosmos se ouk egnō (“e o mundo não te conheceu”) levanta um problema de tradução mais sutil. Muitas versões optam por simplesmente iniciar com “o mundo não te conheceu” ou “não te conhece”, ignorando o kai introdutório que, embora pequeno, é teologicamente relevante. Como observado por Westcott, pode-se considerar kai aqui com valor concessivo (“ainda que o mundo...”), o que torna mais precisa e rica a tradução. Poucas versões captam essa nuance. A maioria das traduções padronizadas (ARC, ARA, ACF, NAA, NVI, KJV, NKJV, RSV, NASB, ESV, LEB, etc.) traduzem de forma idêntica ou muito próxima: “o mundo não te conheceu” ou “o mundo não te conhece”. Isso é fiel ao tempo perfeito egnō, que denota um conhecimento não realizado e que permanece ausente até o presente, confirmando o caráter perene da ignorância do mundo em relação a Deus, mesmo após a revelação de Cristo. No entanto, algumas versões como a CEV (“The world doesn't know you”) e a TLB (“The world doesn't know who you are”) inserem explicações adicionais que, embora pedagogicamente plausíveis, não derivam diretamente do grego e acabam por interferir no contraste enfático construído entre mundo e Cristo.

A afirmação egō de se egnō (“mas eu te conheci”) utiliza o contraste de para criar uma tensão antitética que precisa ser mantida. A maioria das traduções consegue preservar esse contraste básico entre a ignorância do mundo e o conhecimento pleno de Cristo, seja com “mas eu te conheço” (NTLH, NVT, ARC, NASB), “mas eu te conheci” (ARA, TB), ou “however I knew you” (NET). O tempo perfeito novamente é importante: não se trata de um simples conhecimento momentâneo, mas de um estado contínuo e completo de conhecimento relacional e essencial. O uso do perfeito aqui é cristologicamente carregado: Jesus conhece o Pai porque compartilha de sua natureza, e isso remonta ao prólogo (“Ninguém jamais viu a Deus; o Filho unigênito… o revelou” — João 1:18). Algumas versões modernas como THE MESSAGE e BÍBLIA VIVA tendem a substituir esse conhecimento essencial e eterno por uma ênfase experiencial ou afetiva, que empobrece a ontologia implícita no perfeito egnōn. Isso reduz o valor teológico da autodeclaração de Jesus como o revelador pleno de Deus e compromete o paralelismo com o “conhecer” dos discípulos logo em seguida.

A expressão kai houtoi egnōsan hoti su me apesteilas (“e estes conheceram que tu me enviaste a mim”) encerra o versículo com uma tripla ênfase: (1) o uso de houtoi para delimitar os discípulos — os escolhidos e ensinados; (2) o verbo egnōsan no aoristo, que indica um conhecimento realizado e delimitado no tempo (isto é, eles chegaram a conhecer); e (3) a oração substantiva hoti su me apesteilas, repetida diversas vezes neste capítulo como critério do verdadeiro conhecimento de Deus. Todas as traduções de linha mais tradicional preservam a estrutura e o foco corretamente: “e estes conheceram/sabem que tu me enviaste” (ARC, ARA, NAA, TB, JFA, DRB, KJV, NASB, LEB, NET, ESV, etc.). Algumas versões contemporâneas, como a NTLH e a BÍBLIA VIVA, optam por reformular com expressões como “aqueles que me deste sabem que tu me enviaste”, deslocando o sujeito de houtoi para “os que me deste”, o que não está no texto base grego aqui, embora apareça anteriormente no versículo 24. Isso revela um fenômeno importante: a tendência hermenêutica de fundir contextos próximos para resolver repetições, o que, embora torne o texto mais fluente, obscurece as camadas de ênfase intencionais no original.

Portanto, das dezenas de versões enviadas, as que melhor preservam a fidelidade ao original grego e ampliam o entendimento teológico são: ARC, ARA, JFA, NAA, NVI, NASB, KJV, NKJV, ESV, LEB, NET, RSV. As que mantêm o texto funcionalmente aceitável, embora com leves adaptações, incluem: NTLH, NVT, HCSB, DRB. Já as que distorcem teologicamente ou obscurecem o sentido exegético original, com inserções explicativas ou afetivas sem respaldo morfossintático, são: THE MESSAGE, BÍBLIA VIVA, TLB e CEV. Em suma, João 17:25 apresenta um contraste tríplice entre mundo, Filho e discípulos, marcado por tempo verbal, partículas adversativas e ênfase na missão, que apenas pode ser plenamente percebido quando as traduções respeitam a gramática, a estrutura e o contexto teológico do original grego.

O versículo de João 17:25 contém uma das declarações mais densas da oração sacerdotal de Jesus, pois confronta diretamente a questão fundamental da possibilidade do conhecimento de Deus — não apenas como experiência mística ou especulação filosófica, mas como relação histórica, concreta e pessoal. A frase “o mundo não te conheceu” (ho kosmos se ouk egnō) parece estabelecer uma antítese irredutível entre o “mundo” e Deus. No entanto, quando essa afirmação é confrontada com o testemunho paulino em Romanos 1:19–20 e 2:14–15, bem como com a teologia veterotestamentária do testemunho universal da criação e da consciência, somos forçados a refletir mais profundamente sobre as diversas modalidades do “conhecimento” e o que exatamente Jesus afirma que “o mundo” não possui.

Em Romanos 1, Paulo é explícito ao declarar que “o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou” (Rm 1:19), e que “as coisas invisíveis desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder como a sua divindade, se entendem e claramente se veem pelas coisas que estão criadas” (v. 20). Aqui, Paulo defende um tipo de conhecimento natural e universal de Deus, acessível à razão humana por meio da observação da criação. Isso, porém, não é um conhecimento salvífico, relacional ou pactual — é antes uma forma de gnōsis inferior, fragmentária, cujas consequências, sem a revelação específica, são a idolatria e a deturpação da imagem de Deus (Rm 1:21–23). O mundo, nesse sentido paulino, “conhece que há um Deus”, mas deturpa esse conhecimento, não glorificando a Deus como Deus.

Da mesma forma, em Romanos 2:14–15, Paulo afirma que “os gentios, que não têm a lei, fazem por natureza as coisas que são da lei”, porque “o que se pode conhecer da lei está escrito em seus corações”. Mais uma vez, há uma dimensão de “conhecimento de Deus” — ético, intuitivo, moral — que brota da consciência, mas que, sem a regeneração e o esclarecimento do Espírito, permanece fragmentária, ambígua, e muitas vezes contraditória com a vontade revelada de Deus.

No Antigo Testamento, especialmente em profetas como Malaquias 1:11, onde é dito que “desde o nascente do sol até ao poente é grande entre as nações o meu nome, e em todo lugar se oferece incenso ao meu nome e uma oblação pura”, temos uma visão na qual os sacrifícios das nações, ainda que não perfeitamente alinhados ao culto israelita, são considerados, de alguma forma, dirigidos ao verdadeiro Deus. Isso ecoa a figura de Melquisedeque, rei-sacerdote não israelita que oferece a Deus Altíssimo pão e vinho e é reconhecido por Abraão (Gênesis 14:18–20). Todas essas passagens apontam para o fato de que existe uma consciência difusa e espalhada de Deus entre os povos.

Como, então, harmonizar essas afirmações com a declaração de Jesus de que “o mundo não te conheceu”? A resposta reside na natureza e profundidade desse “conhecer” (do verbo ginōskō no perfeito egnō). O verbo em grego, embora possa significar conhecimento cognitivo ou perceptivo, nas Escrituras — e sobretudo em João — carrega o peso de conhecimento relacional, experiencial, pactual, e até mesmo participativo na vida divina. Conhecer a Deus, em João, é sinônimo de crer no Filho, receber a revelação, e viver em unidade com a vontade divina (cf. João 17:3). Assim, quando Jesus afirma que “o mundo não conheceu a Deus”, ele se refere não à ausência total de uma ideia de Deus ou de traços do divino, mas à recusa sistemática da revelação de Deus no próprio Jesus — “o Verbo feito carne” (Jo 1:14) — e, portanto, ao fracasso do mundo em entrar na comunhão verdadeira com o Pai. O mundo viu a luz, mas preferiu as trevas (João 3:19); ele conheceu por fora, mas não por dentro; teve ecos, mas não abraçou a Fonte.

O conhecimento de Deus que os discípulos alcançaram — kai houtoi egnōsan — não é, portanto, uma compreensão filosófica da essência divina, nem uma apreensão exaustiva do ser de Deus, o que de fato só ocorrerá na parusia, como Paulo afirma em 1 Coríntios 13:12 (“agora conheço em parte; então conhecerei como também sou conhecido”). O conhecimento que Jesus reivindica para seus discípulos é um conhecimento de fé, relacional, participativo, que reconhece que o Pai o enviou — isto é, um conhecimento do Pai através do Filho, como repetidamente enfatizado em João (cf. João 14:7–9; 8:19). Eles conhecem porque foram revelados, e não porque sondaram a essência divina. Como Jesus disse a Pedro: “não foi carne e sangue quem te revelou, mas meu Pai que está nos céus” (Mateus 16:17).

Esse conhecimento relacional é o que distingue o discípulo do mundo. O mundo pode supor, criar mitos, sacrificar, pressentir o divino; mas o discípulo recebe, reconhece, confessa e se submete ao Deus revelado no Cristo enviado. Aqui está o ponto: o mundo teve acesso ao eco, mas rejeitou a Palavra; viu a sombra, mas não amou a luz. O conhecimento do mundo é o da especulação ou idolatria; o dos discípulos é o da fé obediente, fundada na missão do Enviado.

Do ponto de vista filosófico, há também uma tensão entre a incognoscibilidade de Deus e sua revelação. Deus, em sua essência, é inefabilis e transcendente — isso é afirmado por Paulo, por Isaías (“meus pensamentos não são os vossos pensamentos”, Is 55:8), e pela teologia apofática. Mas esse Deus, que habita em luz inacessível (1 Tm 6:16), se dá a conhecer voluntariamente, por autorrevelação. Assim, o conhecimento que os discípulos possuem é dom, não conquista; é graça, não razão pura; é relacionamento com o Cristo enviado, e não gnose especulativa.

Portanto, João 17:25 não nega a possibilidade de conhecer algo de Deus através da criação, nem contradiz a consciência moral natural nem os testemunhos religiosos das nações. O que Jesus denuncia é que o “kosmos” — sistema organizado em oposição a Deus — rejeitou o conhecimento relacional, pactual e salvífico que ele, como Filho, veio oferecer. E os discípulos, embora limitados, conheceram verdadeiramente, porque creram, amaram e reconheceram que ele era o Enviado. Em última instância, conhecer a Deus significa estar em comunhão com Cristo. É esse conhecimento que salva, que une, que transforma — e que o mundo, em sua rebelião, recusa.

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[1]É necessária explicar que o fato de mencionar que a mesma expressão ocorre em várias partes da Bíblia não equivale dizer que a expressão/palavra tem o mesmo sentido. Se formos pegar a expressão “toda carne” (kol basar) como se implicasse, automaticamente, universalismo no sentido absoluto e salvífico, isso entraria em choque direto com muitos textos bíblicos. De fato, essa expressão precisa ser interpretada com cuidado exegético e teológico, especialmente à luz dos contextos veterotestamentário e neotestamentário, bem como da realidade histórica do cumprimento profético. Vamos então esclarecer a afirmação feita anteriormente e expandi-la em três eixos: (1) o uso bíblico da expressão kol basar, (2) o alcance do derramamento do Espírito segundo Joel e Atos, e (3) a relação com João 17:2 e João 3:16, distinguindo universalidade de universalismo.

1. Kol Basar (כָּל־בָּשָׂר): universalidade relativa, não absoluta

A expressão hebraica kol basar (“toda carne”) é usada ao longo do Antigo Testamento para designar toda a humanidade como um coletivo indistinto — ou seja, sem fazer acepção de etnia, status ou função (cf. Gênesis 6:12, Jeremias 32:27, Isaías 40:5). Contudo, seu uso não implica que cada indivíduo da espécie humana está necessariamente incluso de forma particular. Trata-se de uma generalização hebraica, que sublinha a abrangência da categoria humana como um todo, em contraste, por exemplo, com animais, com anjos ou com Israel exclusivamente. É uma forma semita de expressar amplitude.

Portanto, kol basar em Joel 2:28 (“Derramarei o meu Espírito sobre toda carne”) não significa, nem pode significar, que todo ser humano sem exceção, em todos os tempos e lugares, receberá o Espírito de Deus. Ao contrário, indica que o derramamento do Espírito não seria mais restrito a certas castas religiosas (como profetas, sacerdotes ou reis), nem apenas a Israel, mas sim aberto a todos os tipos de pessoas entre os humanos: velhos e jovens, homens e mulheres, servos e servas.

Essa interpretação é sustentada pela própria explicação de Pedro em Atos 2:17, onde ele cita Joel com a mesma expressão — pasan sarka (πᾶσαν σάρκα) em grego — e, no contexto, deixa claro que a profecia estava sendo parcialmente cumprida naquele Pentecostes, nos discípulos judeus que haviam crido. E mesmo assim, ele ainda chama os ouvintes a se arrependerem “para receberem o dom do Espírito Santo” (Atos 2:38). Ou seja: o dom foi derramado, mas não automaticamente sobre todos os humanos, e sim sobre todos os que creem, arrependem-se e são inseridos na nova comunidade do Messias.

2. O derramamento do Espírito como extensão de inclusão, não universalismo

O uso profético da expressão em Joel — e sua citação em Atos — é deliberadamente inclusivista, mas não universalista no sentido soteriológico. Ele sinaliza que, sob o novo regime messiânico, o Espírito não será limitado por fronteiras nacionais, étnicas ou hierárquicas. Isso marca uma ruptura com o padrão antigo em que o Espírito era concedido a alguns indivíduos específicos com propósitos particulares.

Mas o texto jamais afirma que o Espírito será imposto a todos os homens indistintamente, independentemente da fé, arrependimento ou adesão à nova aliança. Por isso, o “derramamento sobre toda carne” deve ser compreendido como:

“Todo tipo de carne” — sem distinção entre homem e mulher, jovem e velho, judeu ou gentil, escravo ou livre.

Isso é confirmado por Atos 10:45 (“o dom do Espírito Santo se derramara também sobre os gentios”) e Gálatas 3:28 (“não há judeu nem grego… todos vós sois um em Cristo Jesus”), que aplicam a profecia a contextos progressivos de expansão da comunidade messiânica, não a uma imposição generalizada a toda a humanidade.

3. João 17:2 e João 3:16: autoridade universal, aplicação condicional

Quando Jesus declara em João 17:2 que o Pai lhe deu autoridade sobre “toda carne” (pāsēs sarkos, πάσης σαρκός), o foco está na extensão do seu senhorio: toda a humanidade está sob seu governo messiânico — ele é o novo Adão, o novo Davi, o novo Moisés — com autoridade recebida do Pai. Entretanto, o texto logo especifica: “para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste.” Aqui temos uma distinção crucial entre domínio soberano (sobre toda carne) e aplicação salvífica (àqueles que lhe são dados pelo Pai, ou seja, os crentes).

João 3:16 segue o mesmo padrão: “Deus amou o mundo…” (ton kosmon) — a esfera humana como um todo — mas o benefício do amor, a vida eterna, é condicionado à fé: “para que todo aquele que nele crê não pereça...”. O amor é universal, a oferta é geral, mas a aplicação é condicional e restrita aos que creem.

Portanto, a afirmação que eu fiz — de que kol basar em Joel 2:28 aponta para uma universalidade redentiva — deve ser refinada: não se trata de um universalismo automático, mas de um universalismo potencial, condicional e inclusivo, que rompe as barreiras exclusivistas do Antigo Testamento e abre o acesso ao Espírito para toda a humanidade enquanto categoria, e não para todos os humanos enquanto indivíduos. A autoridade de Jesus sobre “toda carne” garante essa abrangência, mas não equivale à aplicação automática da salvação ou do dom do Espírito, que continua vinculado à fé e ao novo nascimento.[↩]

[2] A doutrina sustentada pelas Testemunhas de Jeová, segundo a qual Jesus Cristo seria “um deus” — uma criatura gerada por Jeová, subordinada a Ele em essência e natureza — entra em contradição frontal com a declaração enfática do próprio Deus no livro do profeta Isaías. Em Isaías 43:10–11, lemos: “Antes de mim deus nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá. Eu, eu sou o Senhor, e fora de mim não há Salvador.” Esta afirmação possui força ontológica e teológica absoluta, constituindo um dos pilares do monoteísmo veterotestamentário, e sua clareza desarma qualquer tentativa de estabelecer a existência de outro ser divino com status menor ou derivado. A estrutura do texto hebraico reforça a exclusividade de YHWH não apenas como o único Deus existente, mas como o único que pode existir — seja antes, seja depois. A frase “deus nenhum se formou” (hebr. lōʾ-nōṣar ʾēl לא־נוצר אל) utiliza o verbo nōṣar no sentido de “ser produzido, formado, originado”, o que elimina categoricamente qualquer possibilidade de geração de uma entidade divina por parte de YHWH.

Dizer que Jesus é “um deus gerado por Jeová”, como afirmam os adeptos da doutrina ariana modernizada, é implicar que houve, sim, uma divindade formada após YHWH — exatamente o que Isaías 43:10 proíbe. Se Jesus fosse um ser divino posterior a Jeová, por mais exaltado que fosse, estaria diretamente incluso na categoria dos deuses que “se formaram depois” — algo que o próprio Jeová diz que não existe. Em outras palavras, o próprio Deus afirma que Ele não formou nenhum outro deus, e que nenhum outro deus virá a existir após Ele. Isso não apenas refuta a ideia de um "deus menor" ou "secundário", como também exclui qualquer possibilidade de criação de uma segunda entidade ontologicamente divina. Deus pode criar seres espirituais, como os anjos, mas não cria deuses — pois a divindade, no sentido absoluto, é incriável, eterna, autossubsistente e singular. Claro que O Corpo Governante (os líderes que ditam as regras e a teologia da religião) sabe disso, e no livro mais soficisticado que eles publicaram, tenta dar essa explicações teologicamente chula e infantil:

Em Isaías 43:10, Jeová diz: “Antes de mim deus nenhum se formou e depois de mim nenhum haverá.” Significa isso que, porque Jesus Cristo é profeticamente chamado de “Deus forte”, em Isaías 9:6, Jesus é forçosamente Jeová? Novamente, o contexto responde que Não! Nenhuma das nações gentias idólatras formou um deus antes de Jeová, porque ninguém existiu antes de Jeová. Tampouco formariam num tempo futuro um deus real, vivo, que pudesse profetizar. (Isa. 46:9, 10) Mas isso não quer dizer que Jeová jamais causasse que existisse alguém que fosse corretamente mencionado como sendo um deus. (Sal. 82:1, 6; João 1:1, NM) Em Isaías 10:21, Jeová é mencionado como sendo “Deus forte”, assim como Jesus o é em Isaías 9:6; mas só Jeová é chamado “Deus Todo-poderoso”. — Gên. 17:1. (Raciocínios à Base das Escrituras, p. 405 par. 2 Trindade, grigo em vermelho meu)

Destaquei em vermelho a “refutação” que as TJs usam no livro apologético principal deles, chamado Raciocínio à Base das Escrituras. No verbete “Trindade”, as líderes das Testemunhas de Jeová sobre Deus poder gerar outros deuses menores, como Jesus, que é tão chula e infantil, que preencheu o espaço de apenas duas linhas em um parágrafo de onze. A tentativa das Testemunhas de Jeová de relativizar Isaías 43:10–11 com o argumento de que “nenhuma nação gentílica formou um deus real antes de Jeová, mas que Jeová poderia sim gerar um deus depois de si” revela uma séria desconexão com o contexto literário, teológico e histórico do texto de Isaías, além de uma ignorância sistemática da cosmovisão do Antigo Oriente Próximo (AOP), na qual a polemicidade do monoteísmo israelita se insere. Afirmar que Isaías está apenas denunciando os “falsos deuses” dos gentios, e não se referindo ao próprio YHWH como incomparável, é um reducionismo que ignora o caráter ontológico das declarações de Isaías e a crítica radical que os profetas faziam ao próprio conceito de “divindade derivada” ou “deus gerado”, tão comum no pensamento mitológico mesopotâmico, egípcio, ugarítico e cananeu.

A tradição teológica do Antigo Oriente Próximo está repleta de exemplos nos quais os deuses são gerados por outros deuses — não apenas funcionalmente, mas ontologicamente. Por exemplo, na literatura ugarítica (século XIV a.C.), vemos que El é o deus supremo que gera outros deuses, como Baal, Yam, Mot, entre outros. Em textos como a “Épica de Baal”, as genealogias divinas são estruturadas tal como as humanas, e a prole divina é classificada segundo hierarquia, competência e poder. Na mitologia babilônica, Apsu e Tiamat geram os deuses primordiais Lahmu e Lahamu, que por sua vez geram outros deuses como Anu, Ea, e por fim Marduk, o grande deus-herói de Babilônia (cf. Enuma Elish I–VII). Esse padrão é reiterado também na tradição egípcia, onde Atum gera os deuses Shu e Tefnut, que geram Geb e Nut, e assim por diante. Ou seja, na cosmovisão do AOP, a divindade é gerável, derivável e escalonável — um conceito que o monoteísmo israelita rompe de forma radical e consciente.

O profeta Isaías, especialmente entre os capítulos 40 a 48, não apenas critica a idolatria como prática cultural, mas ataca a própria estrutura conceitual do politeísmo — ou seja, o fato de que esses “deuses” são gerados, moldados, feitos, criados ou derivados. É nesse contexto que Isaías 43:10 deve ser lido: “Antes de mim, deus nenhum se formou (nōṣar), e depois de mim, nenhum haverá.” A expressão hebraica nōṣar deriva da raiz יצר (y-ts-r), que tem o sentido primário de “formar”, “moldar”, “produzir algo com finalidade”. No texto de Isaías, o próprio Deus está negando que alguma entidade, em qualquer tempo, possa surgir com natureza divina — seja como criação externa (ídolos pagãos), seja como “formação interna” divina (deus gerado por Deus). Ou seja, Deus (“Jeová”) está mostrando que ele é DIFERENTE dos outros deuses, não apenas em sua superioridade, mas em sua ontologia única: enquanto os deuses pagãos geram outros deuses, que muitas nezes competem entre si, Yahweh no AT é o oposto, não só porque ele está acima deles pelo mero fato de ser um Deus real, e não uma imagem esculpida (ídolo), ou uma mera narração mitológica de uma divindade que gera outras divindades.

As Testemunhas de Jeová tentam contornar isso invocando textos como Salmo 82:6 (“Vós sois deuses”) e João 1:1 na sua Nova Tradução do Mundo (“o Verbo era um deus”). Contudo, ignoram o fato de que o Salmo 82 claramente fala de homens investidos de autoridade — chamados “deuses” de forma metafórica — que estão sob julgamento e morrem “como qualquer homem” (Sl 82:7), o que prova que não são deuses ontológicos, mas autoridadeshumanas corrompidas, como a exegese judaica e patrística atestam. Em João 1:1, o uso do predicativo anartro theos (sem artigo) é qualitativo, não indefinido. Como observa Murray J. Harris (Jesus as God: The New Testament Use of Theos in Reference to Jesus, Baker, 1992), essa construção grega “indica a natureza ou essência do Logos, não sua identidade com o Pai, mas sua plena divindade”.

A tentativa das TJs de transformar Isaías 43:10–11 numa mera denúncia contra ídolos gentílicos ignora o fato de que o próprio texto não fala de “ídolos”, nem de “povos”, mas de deuses em geral — quaisquer que sejam, em qualquer tempo. Isaías 46:9–10 reforça esse argumento ao dizer: “Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade: que eu sou Deus, e não há outro; eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim, que anuncio o fim desde o princípio…” — aqui, o contraste não é entre Jeová e ídolos falsos, mas entre Deus e qualquer outra possibilidade de divindade. O uso enfático do termo “não há outro” (ʾên ʾōd, אין עוד) é um grito do monoteísmo absoluto contra a própria lógica do panteão hierárquico do AOP.

Além disso, literaturas como a de Mark S. Smith em The Origins of Biblical Monotheism (Oxford University Press, 2001) demonstram como o monoteísmo israelita emergiu em contraste direto com os padrões politeístas da cultura cananeia e mesopotâmica, onde deuses eram “formados” ou “gerados” em estruturas familiares. Isaías se posiciona frontalmente contra essa tradição. Não há divindade derivável, nem delegável. Como afirmam John Goldingay e David Payne no International Critical Commentary (Isaiah 40–55, T&T Clark, 2006), Isaías 43–46 ‘nega não apenas a existência atual de outros deuses, mas também a possibilidade de que qualquer ser venha a existir com tal status’.

Portanto, ao afirmar que “Jeová poderia causar que existisse alguém corretamente chamado de deus”, as Testemunhas de Jeová estão retroprojetando no texto bíblico uma mitologia que o texto foi explicitamente escrito para destruir. Isaías não fala contra falsos deuses apenas; ele denuncia a ontologia da divindade gerada — seja por mãos humanas, seja hipoteticamente por vontade divina. O Deus de Israel é o único que é, e não há outro depois dele, nem antes, nem ao lado. Qualquer doutrina que admita a criação de “outro deus”, mesmo com letra minúscula, trai o monoteísmo profético que sustenta toda a revelação bíblica.

Esse argumento que usei sobre o fato de que a divindade bíblica não cria outros deuses é corroborado por outras passagens do próprio livro de Isaías que repetem com insistência essa exclusividade divina. Em Isaías 44:6, YHWH declara: “Eu sou o primeiro e eu sou o último, e fora de mim não há Deus.” A fórmula “primeiro e último” implica eternidade e exclusividade; é o mesmo título que Jesus, no Apocalipse, toma para si (Apocalipse 1:17–18; 2:8), o que seria blasfêmia caso Ele não fosse consubstancial ao Pai. Já em Isaías 45:5, Deus declara: “Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus.” E ainda, em Isaías 45:21–22: “Não há outro Deus senão eu; Deus justo e Salvador não há além de mim. Olhai para mim, e sede salvos, vós todos os limites da terra; porque eu sou Deus, e não há outro.” Este ponto é fundamental: a exclusividade da salvação está atrelada à unicidade de Deus, e não pode ser transferida ou compartilhada com uma criatura, por mais excelsa que seja. A ideia de que Jesus seja “um deus” e, ao mesmo tempo, o Salvador da humanidade, entra em conflito direto com a afirmação de que “fora de mim não há Salvador”.

No Novo Testamento, Jesus é claramente identificado como Salvador (Lucas 2:11; João 4:42; Tito 2:13), mas essa função só pode ser exercida por alguém que participa da mesma natureza divina que YHWH. Se Isaías afirma que fora de YHWH não há Salvador, e o Novo Testamento chama Jesus de Salvador, a única conclusão coerente é que Jesus não é um deus menor, mas o próprio Deus manifestado em carne, como ensina João 1:1,14: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus... e o Verbo se fez carne.” A tentativa das Testemunhas de Jeová de traduzir esse texto como “e o Verbo era um deus” fere a estrutura sintática grega do versículo, que utiliza theos (sem artigo) de forma predicativa qualitativa, não indefinida — e carece de sustentação textual nos manuscritos primitivos e na gramática do koiné.

Mesmo quando anjos ou juízes humanos são chamados de “deuses” na Escritura (como em Salmo 82:6), é sempre de modo metafórico, funcional, ou representativo — nunca ontológico. São chamados assim porque exercem autoridade delegada, mas não possuem natureza divina. Apenas YHWH é ontologicamente Deus. Jesus, ao reivindicar prerrogativas exclusivas de YHWH, como o direito de perdoar pecados (Marcos 2:7), de receber adoração (Mateus 14:33; João 9:38), de ser o Juiz escatológico (João 5:22), e de compartilhar da glória do Pai “antes da fundação do mundo” (João 17:5), demonstra que não é um ser criado, mas coeterno e coigual com o Pai. O Pai não gerou outro deus. Ele revela o Filho eterno. Isaías 9:6 declara que o Messias é “Deus Forte” (ʾēl gibbōr), o mesmo título que aparece em Isaías 10:21 referindo-se a YHWH.

Portanto, à luz da declaração inapelável de Isaías 43:10–11 e da coerência das Escrituras como um todo, é impossível sustentar que Jesus seja “um deus” criado ou gerado após Jeová. Isso não apenas contradiz a natureza única e indivisível da divindade proclamada no Antigo Testamento, como viola a própria lógica soteriológica do Evangelho. Deus não gera deuses. Deus é um, e eternamente se revela como Pai, Filho e Espírito. Negar isso é negar o próprio fundamento da revelação bíblica. [↩]

[3]Segue alguns trechos das publicações das Testemunhas de Jeová, onde os líderes da seita nos EUA se colocam como o Canal por meio do qual Deus (Jeová) dita o que é verdade e o que não é, o que se deve fazer e o que não se deve:

Esse espírito pode nos levar a pensar que não precisamos ser orientados pela organização de Jeová. Certamente não queremos ser como Diótrefes, que não ‘recebia nada do apóstolo João com respeito’. (3 João 9, 10) Temos de evitar desenvolver um espírito de independência. Tanto por palavras como por ações, jamais desrespeitemos o canal de comunicação que Jeová usa hoje em dia. (Núm. 16:1-3) Em vez disso, devemos prezar o nosso privilégio de cooperar com o escravo fiel e discreto. E não devemos também nos esforçar em ser obedientes e submissos aos que tomam a dianteira na nossa congregação? (w09 15/11 p. 14 par. 5 Preze seu lugar na congregação)

Jeová nos dá conselhos sábios por meio da sua Palavra e da sua organização, usando as publicações fornecidas pelo “escravo fiel e discreto”. (Mateus 24:45; 2 Timóteo 3:16) Como é tolo rejeitarmos bons conselhos e insistirmos em nosso próprio modo de agir! Temos de ser ‘rápidos no ouvir’ quando Jeová, “Aquele que ensina aos homens conhecimento”, nos aconselha por meio do seu canal de comunicação. — Tiago 1:19; Salmo 94:10. (w03 15/3 p. 27 ‘Os lábios da verdade durarão para todo o sempre’)

Mas, Jeová Deus proveu também sua organização visível, seu “escravo fiel e discreto”, composto dos ungidos com o espírito, para ajudar os cristãos em todas as nações a entender e a aplicar corretamente a Bíblia na sua vida. A menos que estejamos em contato com este canal de comunicação usado por Deus, não avançaremos na estrada da vida, não importa quanto leiamos a Bíblia. (w82 1/8 p. 27 par. 4 A vereda dos justos realmente clareia mais e mais)

Tenhamos em mente que nosso Pai celestial designou um canal de comunicação, “o escravo fiel e discreto”. Esse “escravo” tem a responsabilidade de determinar que informação deve ser divulgada à família da fé, bem como o “tempo apropriado” para se fazer isso. Esse alimento espiritual está disponível apenas por meio da organização teocrática. Devemos sempre procurar obter informações confiáveis por meio desse canal usado por Deus, não por meio de uma rede de usuários da Internet. (km 9/02 p. 8 par. 5 Evite a busca de “coisas sem valor”)[↩]

[4] A palavra “את” (ʾet) que aparece no início dessa versão hebraica de João 17:6 (possivelmente uma retroversão para o hebraico bíblico) tem um uso que depende do contexto sintático. No hebraico bíblico, את (ʾet) é um marcador gramatical do acusativo definido — ou seja, ela introduz o objeto direto definido de um verbo.

1. Função básica de את (ʾet)

No hebraico clássico, quando um verbo transitivo tem como objeto um substantivo definido (ex: com artigo definido, nome próprio, ou algo já mencionado), coloca-se את antes do objeto para marcá-lo.

Exemplos bíblicos:

בראשית ברא אלהים את השמים ואת הארץ

berēʾšît bārā ʾĕlōhîm ʾet haššāmayim wəʾet hāʾāreṣ

“No princípio, criou Deus os céus e a terra.”

(Gênesis 1:1)

ואהבת את־יהוה אלהיך

wəʾāhābtā ʾet YHWH ʾĕlōheykā

“Amarás o Senhor teu Deus.”

(Deuteronômio 6:5)

2. Aplicação em João 17:6

A retroversão hebraica de João 17:6 começa com את justamente porque o verbo seguinte está implícito: “manifestei o teu nome...”. O objeto direto definido aqui é “o teu nome” — que em hebraico viria como את שמך (ʾet šimkā). Provavelmente, o texto completo seria algo como:

את שמך הודעתי לאנשים...

ʾet šimkā hōdaʿtî laʾănāšîm...

“O teu nome eu manifestei aos homens...”

A versão que você citou parece omitir o substantivo que viria após את, o que deixa a palavra sozinha e solta, talvez por erro de transcrição ou por estar seguindo um padrão estilístico incompleto. Mas gramaticalmente, את no início sem objeto explícito posterior é anômalo ou truncado.

Neste contexto, a palavra את deve ser entendida como o marcador do acusativo definido, introduzindo o objeto direto do verbo “manifestar” (הודעתי), ou seja, “o teu nome”. A ausência desse complemento na sequência indica que ou a transcrição está incompleta, ou é um erro da versão. Em hebraico bíblico correto, את nunca aparece isolado sem um substantivo que funcione como objeto direto definido.

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