TIATIRA — Enciclopédia Bíblica Online

TIATIRA

Tiatira (grego: Θυάτειρα, transl. Thuáteira) foi uma antiga cidade da Lídia, na região ocidental da Ásia Menor, entre os vales dos rios Caico (Bakırcay) e Hermo (Gediz). Estava localizada a cerca de 64 km da costa do mar Egeu e 83 km ao nordeste de Esmirna, situada em uma estrada secundária entre Pérgamo e Sardes. O nome da cidade pode significar “castelo de Thya”. Antes de ser refundada, era conhecida como Pelópia e Euhippia, conforme menciona Plínio, o Velho (História Natural: 5, 31).

Foi refundada por Seleuco I Nicátor, entre 301 e 281 a.C., um dos generais de Alexandre, o Grande. Seleuco a transformou em uma colônia macedônica, colocando ali veteranos de guerra para conter avanços de Lisimaco. Tiatira tornou-se então uma cidade-garnição, com papel estratégico, embora sem um acrópole forte como Sardes. A cidade ficava em uma elevação modesta, o que exigia disposição militar constante por parte de seus habitantes.

I. Importância Histórica e Administrativa

Durante o período helenístico, Tiatira manteve-se em uma posição fronteiriça vulnerável, mudando de mãos conforme a força dos reinos vizinhos oscilava. A partir da derrota de Antíoco III pela República Romana (189 a.C.), a cidade passa para a esfera romana. Em 133 a.C., com o testamento de Átalo III, rei de Pérgamo, Tiatira é definitivamente incorporada ao domínio romano.

Durante o governo de Vespasiano, há evidências de revitalização urbana, com restauro de estradas e fortalecimento institucional das collegia. No tempo de Cláudio, Tiatira emitiu moedas próprias pela primeira vez em dois séculos, o que atesta sua vitalidade comercial.

II. Desenvolvimento Urbano, Estrutura Social e Corporações de Ofício

Tiatira tornou-se uma cidade industrialmente rica, embora nunca tenha sido uma metópole. Tornou-se notória por suas numerosas corporações de ofício (collegia), mais numerosas que em qualquer outra cidade da Ásia Menor. As inscrições antigas mencionam corporações de tintureiros (bafeis), oleiros, tecelões, curtidores, fabricantes de bronze, padeiros, ferreiros, artífices de armaduras, entre outros.

Destaca-se a indústria tênue da tinturaria, sobretudo da cor escarlate ou púbura, obtida da raiz da planta garança (Rubia tinctorum). Esta cor, chamada mais tarde de vermelho-turco, substituía economicamente o corante de murex fênicio. Lídia, uma comerciante mencionada em Atos 16:14, vendedora de púbura, era oriunda de Tiatira e provavelmente membro desta guilda. A prosperidade da cidade atraiu uma minoria judaica economicamente ativa.

As collegia não apenas exerciam funções econômicas, mas também cultuais. Cada guilda era ligada a uma divindade protetora e promovia festas pagãs, frequentemente acompanhadas de práticas imorais. Essa intersecção entre vida comercial e religião pagã era um desafio à ética cristã primitiva.

III. Religião Pagã e Sincretismo Religioso

O principal deus local era Tirímnos, identificado com Apolo, o deus-sol, representado como cavaleiro com machado de duas lâminas, como nas esculturas hititas. Era chamado de própólis e propátor theós nas inscrições. Celebravam-se jogos em sua honra. Havia também um culto à deusa Boreatene e um templo dedicado à sibila Sambetha, considerada por alguns como caldeia, judaica ou persa. Esse templo ficava fora das muralhas, em um períbolo conhecido como “o pátio dos caldeus” (toû Chaldaíou períbolos).

O sincretismo religioso de Tiatira incluía ainda elementos do culto imperial, com deificação de Roma, de Adriano e da família imperial. Em moedas anteriores ao período imperial, aparecem cabeças de Baco, Atena e Cibele. A existência da sibila Sambetha possivelmente explica a figura simbólica da “Jezabel” de Apocalipse 2:20-21, cuja influência se dava por meio de ensino herético em nome da profecia.

IV. A Igreja Cristã Primitiva em Tiatira e a Mensagem do Apocalipse

A cidade de Tiatira, embora pequena e de pouca importância política, aparece no Novo Testamento como sede de uma das sete igrejas da Ásia às quais o Senhor Jesus Cristo envia mensagens proféticas por meio do apóstolo João, no livro de Apocalipse (Ap 1:11; 2:18–29). A epístola dirigida à igreja de Tiatira é a mais longa dentre as sete, apesar de a cidade ser a menos proeminente politicamente. A mensagem contém uma combinação densa de elogios, repreensões, promessas e advertências, o que revela a complexidade espiritual da congregação.

Cristo se apresenta à igreja de Tiatira com os atributos divinos de vigilância e julgamento: “o Filho de Deus, que tem os olhos como chama de fogo e os pés semelhantes ao bronze polido” (Ap 2:18). A metáfora dos olhos em chamas remete ao seu conhecimento penetrante e julgamento infalível, e os pés como “chalkolibanon” — um termo raro e possivelmente uma referência técnica ao bronze local — evocam o poder irresistível de sua autoridade. Esse uso pode ter sido particularmente significativo aos tiatirenos, cuja indústria metalúrgica e tintureira era famosa. Inclusive, uma moeda da cidade retrata Hefesto, o deus ferreiro, martelando um elmo sobre uma bigorna, o que intensifica a cor local da imagem apocalíptica.

Cristo elogia a igreja por suas obras: “o teu amor, a tua fé, o teu serviço, a tua perseverança, e as tuas últimas obras, mais numerosas do que as primeiras” (Ap 2:19). Esta progressão indica crescimento espiritual e atividade diligente, talvez uma referência à caridade social visível entre os membros e ao zelo missionário. No entanto, a repreensão que segue é severa: “Tenho, porém, contra ti o tolerares que Jezabel, que a si mesma se declara profetisa, não somente ensine, mas ainda seduza os meus servos a praticarem a prostituição e a comerem coisas sacrificadas aos ídolos” (Ap 2:20). O nome “Jezabel” é simbólico e evoca a figura do Antigo Testamento (1 Reis 16:31–33), esposa do rei Acabe, ícone da corrupção religiosa e prostituição espiritual em Israel.

As fontes indicam que, em Tiatira, havia uma figura feminina associada ao templo de Sambetha — uma sibila de origem disputada (caldeia, judaica ou persa), considerada profetisa. Essa figura sincrética pode lançar luz sobre o simbolismo da “Jezabel” mencionada em Apocalipse, como sendo alguém — literal ou representativamente — envolvida em práticas de pseudoprofecia, sincretismo religioso e influência sobre membros da igreja. A denúncia de sua atividade como profetisa sugere a tentativa de legitimar suas doutrinas heréticas e compromissos morais duvidosos sob uma capa de autoridade espiritual.

O texto sagrado afirma que ela “se recusa a arrepender-se da prostituição” (Ap 2:21), expressão que, no contexto bíblico, refere-se com frequência à idolatria e às práticas religiosas imorais. Sua influência pode estar ligada à pressão das collegia, as corporações de ofício com rituais pagãos obrigatórios, cujos banquetes envolviam idolatria e condutas incompatíveis com a ética cristã. A necessidade de sobrevivência econômica levava os artesãos cristãos a uma dura escolha: comprometer-se com os valores do evangelho ou com as exigências da guilda.

A ameaça divina é enfática: “Eis que a lanço em leito, bem como em grande tribulação os que com ela adulteram, caso não se arrependam das obras que ela incita” (Ap 2:22). O “leito” de prazer torna-se, por ironia sagrada, o “leito” de sofrimento. A punição inclui também os “filhos” de Jezabel, isto é, seus seguidores ou discípulos espirituais (Ap 2:23), sobre os quais Jesus promete “matar com pestilência”. O objetivo dessa disciplina é que “todas as igrejas conheçam que eu sou aquele que sonda mentes e corações”, reafirmando a onisciência e retidão do julgamento de Cristo.

Contudo, a mensagem também reconhece que nem todos os cristãos de Tiatira haviam sido corrompidos. Havia “os demais” (τοῖς λοιποῖς), os quais “não têm essa doutrina, e que não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás” (Ap 2:24). O uso da expressão “coisas profundas de Satanás” pode sugerir um gnosticismo incipiente ou misticismo oculto promovido sob pretexto de sabedoria espiritual. A esses fiéis, Cristo promete: “Não porei outra carga sobre vós; tão-somente conservai o que tendes, até que eu venha” (Ap 2:24–25), ou seja, que perseverem na verdade sem cederem ao sincretismo.

A promessa final é messiânica e régia: “Ao que vencer, e ao que guardar até ao fim as minhas obras, eu lhe darei autoridade sobre as nações” (Ap 2:26). Essa promessa reproduz o Salmo 2:9 — “com cetro de ferro as regerá” — indicando que os fiéis participarão da realeza escatológica do Messias. Ainda mais, receberão “a estrela da manhã” (Ap 2:28), símbolo da presença gloriosa de Cristo, talvez um eco da autodesignação de Jesus em Apocalipse 22:16 como “a resplandecente estrela da manhã”.

V. Descobertas Arqueológicas e Continuidade Histórica (Akhisar)

A antiga cidade de Tiatira corresponde atualmente à moderna cidade turca de Akhisar (“castelo branco”), situada na província de Manisa. A transliteração do nome atual reflete seu passado militar, com provável alusão ao pequeno castelo (cujo nome está preservado em ruínas) que existia nos arredores da cidade. A cidade moderna está localizada na planície aluvial entre os rios Hermo e Caico, uma zona fértil que ainda conserva vocação agrícola e comercial, como nos tempos antigos.
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Ruínas da antiga cidade de Tiatira.

As escavações arqueológicas em Akhisar são limitadas, em grande parte devido à urbanização contínua da cidade moderna sobre as ruínas da antiga Tiatira. No entanto, diversos achados foram documentados, entre eles:

  • Fragmentos de templos romanos, inclusive restos de um templo dedicado a Tirímnos (Apolo), cuja iconografia incluía representações do deus como guerreiro equestre com machado de duas lâminas, similar à arte hitita.
  • Inscrições bilíngues (grego e latim), datadas principalmente do período entre Vespasiano e Caracala, confirmando a existência e a institucionalização das collegia de tintureiros, tecelões, curtidores, ferreiros, e outros ofícios.
  • Fragmentos de uma basílica cristã paleocristã, indicativos da presença de uma comunidade cristã estabelecida nos séculos posteriores à redação do Apocalipse.
  • Moedas de Tiatira, algumas com os rostos de divindades como Baco, Atena, Cibele e, no período imperial, do próprio imperador romano e da deusa Roma divinizada.

Ainda se conservam em casas modernas da cidade colunas e sarcófagos reutilizados como material de construção ou como bebedouros. Segundo registros locais, o processo tradicional de tingimento têxtil sobreviveu na cidade até os séculos XIX e XX, com grande reputação na produção de panos escarlates exportados para Esmirna.

Akhisar tem atualmente uma população entre 15.000 e 20.000 habitantes. No século XIX, o registro local mencionava nove mesquitas e uma igreja ortodoxa grega. A população era composta por turcos muçulmanos, mas também por minorias gregas, armênias e judaicas. Apesar de poucas estruturas antigas preservadas de forma íntegra, a cidade mantém um elo tangível com a memória bíblica da antiga Tiatira.

VI. Significação Teológica e Interpretação Histórica

A igreja de Tiatira representa, entre as sete igrejas do Apocalipse, uma comunidade marcada por dualidade: intensa em amor e serviço, mas vulnerável a compromissos com o paganismo. O grande desafio dessa igreja era sua relação com as collegia — associações comerciais que impunham obrigações religiosas aos seus membros. Como apontam várias fontes, as festividades das guildas envolviam sacrifícios a ídolos e práticas sexuais rituais, com segregação entre homens e mulheres, como atestado por inscrições que mencionam banquetes com lugares separados.

Neste contexto, a mensagem de Cristo à igreja não é apenas disciplinar, mas pastoral e escatológica. A figura de Jezabel torna-se símbolo de corrupção interna — não externa como as perseguições em outras cidades — e de uma tentativa de justificar o sincretismo e a acomodação religiosa sob o manto da espiritualidade profética. Esta influência parece representar não apenas uma mulher específica, mas uma escola ou doutrina que tentava adaptar o cristianismo à cultura local sem confronto ético ou moral.

A analogia com o casamento de Acabe com Jezabel, aliança política e econômica que conduziu Israel à idolatria (1 Reis 16:31), é intencional e mordaz: trata-se de uma advertência contra alianças espirituais com poderes pagãos em nome da conveniência comercial. Essa mensagem é reiterada nos outros textos do Apocalipse, como nas referências aos nicolaítas em Éfeso e Pérgamo (Ap 2:6, 15), e evidencia um mesmo problema doutrinário com ramificações locais distintas.

Assim, Tiatira torna-se paradigma da igreja que ama, serve e cresce, mas que precisa discernir com clareza os limites éticos e teológicos entre fidelidade ao evangelho e conivência com estruturas de poder idólatra. A promessa àqueles que perseveram até o fim — governar com cetro de ferro e receber a estrela da manhã — é uma alusão messiânica (cf. Salmos 2:9 e Apocalipse 22:16), que subverte as estruturas de poder mundanas. Em vez de pactuar com elas, o fiel será associado à realeza do Cristo que tudo julga com olhos de fogo.

A memória da igreja de Tiatira, embora escassa em termos arqueológicos e históricos após os primeiros séculos, permanece viva no testemunho apocalíptico, como exemplo de uma fé provada no fogo da convivência com estruturas corruptas — e como advertência a toda igreja que se incline a sacrificar sua integridade espiritual pela estabilidade social ou econômica.

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GALVÃO, Eduardo M. Tiatira. In: ENCICLOPÉDIA BÍBLICA ONLINE. Biblioteca Bíblica. [S. l.]: [s. n.], 2025. Disponível em: [Cole o link aqui sem os colchetes]. Acesso em: [Coloque aqui a data que você acessou a página, sem os colchetes].