Apócrifo e Pseudepígrafo — Enciclopédia de Religião Online

APÓCRIFO E PSEUDEPÍGRAFO

Entre protestantes, chama-se “Apócrifa” ao conjunto de livros que as igrejas Católica Romana, Copta e Ortodoxa Oriental integram ao Antigo Testamento, mas que não figuram no cânon judaico nem no protestante. “Pseudepígrafo” designa um acervo bem mais vasto de escritos que, em grande parte, adotam o expediente literário de falar sob o nome de uma grande figura do passado de Israel (autores católicos e ortodoxos, com frequência, tratam esse acervo como “Apócrifa”). Esses dois repositórios preservam vozes decisivas para ouvirmos a fé, as ideias e as polêmicas dos múltiplos judaísmos do período do Segundo Templo e fornecem um pano de fundo indispensável para a teologia, a cosmologia, a ética, a história e a cultura dos autores do Novo Testamento e dos primeiros arquitetos da igreja, muitos dos quais conheceram, valorizaram e reutilizaram tradições que esses textos conservaram.

Imagem de uma bíblia antiga contendo o livro apócrifo de primeiro Esdras.

I. Definição dos Termos.

A. Apócrifas

“Apócrifa” (do grego Apocrypha, “coisas ocultas”) começou como um elogio: um selo honorífico para livros que continham uma sabedoria reservada, “demasiado sagrada ou profunda para ser revelada senão aos iniciados” (Charles). Há quem localize o berço dessa designação em 4 Esdras 14:44–47 (= 2 Esdras 14:44–47; ver Esdras, Livro de), onde se distingue um conjunto de “livros escondidos”, portadores de sabedoria divina para “os sábios do povo”, do acervo canônico, que oferece sabedoria indistintamente a sábios e indignos (Rowley; Fritsch). À medida que eclodiram controvérsias na igreja antiga, e de novo no rastro da Reforma, o termo perdeu a auréola e assumiu um viés depreciativo: passou a rotular livros postos de lado por seu valor “secundário ou questionável” (Charles) e, potencialmente, “falsos, espúrios ou heréticos” (Charles; Rowley).

No uso protestante corrente, “Apocrypha” abrange de treze a dezoito peças anexadas ao AT, distribuídas por vários gêneros: obras históricas (1 e 2 Macabeus, 1 Esdras), narrativas (Tobias, Judite, 3 Macabeus, uma versão expandida de Ester, relatos adicionais sobre Daniel), sabedoria (Sabedoria de Salomão, Sabedoria de Ben Sira), profecia pseudepigráfica (Baruque, Carta de Jeremias), liturgia (Oração de Manassés, Salmo 151, Oração de Azarias e Cântico dos Três Jovens; ver Daniel, Esther and Jeremiah, Additions to), um apocalipse (2 Esdras) e até um elogio filosófico (4 Macabeus). À exceção de 4 Esdras e da Oração de Manassés, esses livros se acham em numerosos manuscritos da Septuaginta e foram manifestamente estimados pela igreja antiga, que os leu como Escritura. E as descobertas de Qumran comprovaram que não eram exclusivamente patrimônio cristão: Ben Sira, Tobias e a Carta de Jeremias apareceram entre os Manuscritos do Mar Morto, ao lado de muitos pseudepígrafos (1 Enoque [ver Enoch, Books of], Jubileus e outros antes desconhecidos; Stone).

A própria dificuldade em fixar a lista do que compõe a Apocrypha espelha a diversidade canônica do Antigo Testamento entre as igrejas cristãs. Há comunhões que consideram canônicos todos esses livros. J. H. Charlesworth advoga uma delimitação uniforme e exclusiva, sintonizada com as listas majoritárias da LXX — e não com a Vulgata —, o que implicaria excluir 3 e 4 Macabeus, a Oração de Manassés e 2 Esdras (sendo 2 Esdras 3—14 = 4 Esdras) da Apocrypha e colocá-los entre os Pseudepígrafos. Bíblias de estudo recentes (Meeks; Metzger e Murphy), porém, preferem a moldura mais inclusiva (os dezoito). Em termos de tradição manuscrita da LXX, 3 e 4 Macabeus contam com presença robusta e gozam de grande deferência na igreja grega. Como observa C. A. Evans, a fronteira entre Apócrifos e Pseudepígrafos é nebulosa — e fica mais turva quando se examina a relação de Judas com 1 Enoque e com Assumption of Moses (Evans; Russell 1993). Talvez a concordância desejada por Charlesworth jamais se concretize.

A recepção eclesial foi irregular, e não todos os dezoito (ou treze) livros trilharam a mesma fortuna (ver Fritsch para discussão pormenorizada). Paulo conhece e utiliza Sabedoria de Salomão; ecos de Ben Sira despontam em palavras de Jesus. Entre os pais apostólicos (Policarpo, Clemente, Pseudo-Barnabé) são frequentes citações ou alusões a Sabedoria, Tobias e Ben Sira como escritos dotados de autoridade, além de referências a outros apócrifos. Intelectuais como Jerônimo e Orígenes viram nitidamente a diferença entre o conjunto de Escrituras usado na igreja e o cânon hebraico; Jerônimo, em particular, propôs a distinção prática entre textos “canônicos” e textos “eclesiásticos”, úteis e edificantes, porém de estatuto diverso. Já Clemente de Alexandria e Agostinho abraçaram o conjunto ampliado como de inspiração e valor uniformes.

A Reforma protestante tornou inevitável uma tomada de posição. Martinho Lutero apartou de seu AT os livros — e trechos de livros (por exemplo, os acréscimos a Ester e Daniel) — ausentes do cânon hebraico, classificando-os como “livros que não podem ser equiparados aos canônicos e, no entanto, são úteis e bons para ler” (citado por Rowley). Os demais reformadores seguiram nessa trilha. Continuou-se a imprimir os apócrifos e a recomendá-los como leitura edificante, mas eles não deveriam fundamentar doutrina ou ética à revelia dos livros canônicos. Em resposta, o Concílio de Trento (1546) declarou canônicos esses livros (excluídos 1 e 2 Esdras, a Oração de Manassés e 3 e 4 Macabeus).

Em amplos círculos protestantes, a avaliação posterior ficou aquém da estima de Lutero. A ênfase em “sola Scriptura” e na “suficiência da Escritura”, alimentada por séculos de atrito entre católicos e protestantes, fez da Apocrypha algo mais suspeito do que reverenciado; e a pouca familiaridade com tais escritos reforçou a antipatia. Ainda assim, o conjunto merece exame atento — tanto pelo testemunho que deixa das correntes e desenvolvimentos do Judaísmo no período intertestamentário quanto pela influência que exerceu sobre a igreja nascente.

B. Pseudepígrafo

“Pseudepígrafo” (em grego Pseudepigrapha, “obras de atribuição falsa”) põe o foco num traço literário muito comum nos ambientes helenístico e greco-romano: escrever sob o nome de uma figura ilustre do passado remoto. O rótulo, por si só, não distingue esse corpo de textos do acervo canônico, pois há quem sustente a presença de pseudepigrafia dentro do próprio cânon (por exemplo, Daniel, Cântico dos Cânticos, o chamado Deutero-Isaías, vários salmos). Estudar a pseudepigrafia judaica e greco-romana, em escala mais ampla, ajuda a pesar o alcance da pseudepigrafia canônica (Evans; ver Pseudonymity and Pseudepigraphy).

Como sucedeu com “apócrifos”, também “pseudepígrafos” acabou carregando conotações pejorativas. O levantamento de Charlesworth em diversos dicionários revela o uso corrente do termo para “obras espúrias”, “não consideradas canônicas ou inspiradas”. Segundo ele, tais verbetes perpetuam uma associação enganosa entre pseudepigrafia e ilegitimidade. E tem razão ao pedir esclarecimentos quando a conversa é canonicidade e inspiração, porque não poucos desses escritos são citados como autênticos e com autoridade. É prudente, portanto, evitar que juízos de valor modernos deturpem uma prática literária antiga.

No vocabulário acadêmico, o termo serve para o “resto dos ‘livros de fora’” (Rowley) ou para “literatura semelhante à Apocrypha que não está na Apocrypha” (Stone 1984). No alvorecer do século XX, vieram a lume duas coletâneas de referência (Kautzsch e Charles), conscientemente “reduccionistas”, com pouco mais de uma dezena de peças (Charlesworth). Em sentido oposto, Charlesworth e sua equipe propuseram uma moldura abrangente e reuniram sessenta e três textos que se ajustavam ao perfil delineado: (1) em sua quase totalidade, judeus ou cristãos; (2) frequentemente atribuídos a personagens ideais do passado de Israel; (3) que costumam reivindicar conter palavra ou mensagem de Deus; (4) ancorados em narrativas ou ideias do Antigo Testamento; (5) redigidos entre 200 a.C. e 200 d.C. (ou, quando posteriores, preservando substancialmente tradições mais antigas). O próprio Charlesworth ressalta que esses critérios descrevem a coleção, não erigem muros rígidos para o que “conta” como Pseudepígrafo.

Certas massas textuais ficam fora dessa rubrica (ver Writing and Literature: Jewish). A obra de Filo e de Josefo é vasta, mas não é pseudepigráfica: por isso, não entra aqui. Os Manuscritos do Mar Morto guardam inúmeros textos pseudepigráficos, porém, como o “canal de transmissão” (Stone) é nitidamente distinto, o conjunto costuma ser estudado à parte. E tanto os targumim (ver Rabbinic Literature: Targumim) quanto outras reescrituras bíblicas (ver Rewritten Bible) se aproximam de Jubileus e congêneres, mas, por convenção, não entram no rol dos pseudepígrafos.

A origem e as motivações da pseudepigrafia são assunto intricado. R. H. Charles imaginou que, uma vez instalado um judaísmo ortodoxo monolítico, apoiado num cânon fechado de Lei e Profetas, autores deixaram de reivindicar inspiração em nome próprio. Essa imagem de um judaísmo normativo antes de 70 d.C., porém, foi amplamente contestada. S. Cohen oferece uma hipótese mais fértil: judeus do Segundo Templo sentiam-se numa era “pós-clássica”, e por isso conectavam seus escritos a figuras da idade “clássica” (pré-exílio ou exílio). No caso dos apocalipses, a coisa pode ir além: na experiência extática, o autor se identifica com o antigo herói e lhe empresta voz nova. A escolha do pseudônimo pode expressar uma intenção deliberada de vincular a obra à “tradição recebida de ensino” associada àquele nome (Stone). Evans concorda — e nota que, no pós-apostolado, quando a autoridade se media pelas grandes figuras da primeira geração cristã, a pseudepigrafia voltou a florescer.

Ambos os termos têm limitações evidentes. “Apócrifa” nasce de debates canônicos e de usos eclesiais, “Pseudepígrafo” de um traço formal; não são equivalentes. Em termos históricos, “Apocrypha” é um rótulo especialmente problemático, pois decisões canônicas são muito posteriores à produção dos textos, às vezes séculos depois de já circularem com peso e influência (cf. Charlesworth; Nickelsburg). Por outro lado, se “Pseudepígrafo” vira o saco para todo texto fora do cânon protestante e da Apocrypha, acabamos encobrindo a natureza pseudepigráfica de peças que estão justamente nesses conjuntos (Nickelsburg; Russell). C. T. Fritsch acrescenta, com propriedade, que alguns “pseudepígrafos” são anônimos — não pseudônimos — como 3 e 4 Macabeus, e que, mesmo quando o rótulo se aplica, ele “exagera um aspecto de importância secundária”.

Diante dessas reservas, muitos estudiosos preferem classificar a literatura judaica por gênero, origem geográfica ou período (Newsome, Nickelsburg, Schürer, Kraft e Nickelsburg, Stone). Assim, Apócrifo e Pseudepígrafo aparecem lado a lado sob rótulos como “sabedoria”, “história”, “textos litúrgicos” e assim por diante. Fritsch e Russell chegam a sugerir que “apócrifos” sirva de guarda-chuva para todo o material não canônico protestante, ecoando a sinagoga moderna (“livros exteriores”) — proposta que, ainda assim, traz embutido um viés canônico.

Apesar disso, vale preservar os termos (Charlesworth). Tratar apócrifos como coleção atesta que a igreja antiga selecionou certos escritos judaicos que, embora alheios ao cânon hebraico, foram tidos por especialmente valiosos e inspiradores e influíram na igreja desde o berço. Desde que se respeite a fluidez dessas categorias — basta lembrar Judas citando 1 Enoque e As. Mos., ou a presença de 3 e 4 Macabeus em muitos códices da LXX —, os rótulos ajudam a organizar e priorizar a imensa herança de literatura judaica que chegou às nossas mãos.

II. Conteúdo e ideias

Para maior nitidez, embora exista sobreposição entre os dois acervos, convém examiná-los separadamente.

A. Apócrifas

Os dois livros históricos, 1 e 2 Macabeus, são fontes cruciais para eventos que moldaram a autoconsciência judaica no final do Segundo Templo: o programa de helenização forçada patrocinado pelos sumos sacerdotes Jasão e Menelau (175–164 a.C.), a ascensão da casa dos hasmoneus como “salvadores” de Israel e a união, numa só dinastia, de sumo sacerdócio e realeza — medidas de grande impacto para as décadas seguintes. O ethos que, mais tarde, animou os zelotas (ver Revolutionary Movements), a ideia de um messias guerreiro (ver Messianism) e a repulsa a reduzir as fronteiras entre judeus e gentios (por exemplo, a resistência judaica à missão de Paulo) encontram raízes nesse período. É também então que se consolidam as principais correntes do judaísmo — muitas vezes em oposição (essênios de Qumran, fariseus) ou em apoio (saduceus) à administração hasmoneia do templo. 2 Macabeus é ainda testemunha precoce da crença na ressurreição dos justos e registra a expansão de uma angelologia.

A Sabedoria de Ben Sira, escrita em Jerusalém por volta de 180 a.C., reafirma a Torá como único caminho de honra e verdadeira sabedoria. Abrangendo temas variados, sua doutrina sobre oração, perdão, esmola e uso da riqueza marcou a instrução ética judaica posterior e a catequese da igreja primitiva. A Sabedoria de Salomão, fruto do judaísmo egípcio na virada da era, igualmente promove o modo de vida judaico, acentuando a gravidade eterna do veredito de Deus sobre a vida, os prêmios e a natureza da sabedoria e as intervenções divinas em favor de Israel. A personificação da Sabedoria atinge aqui o ponto mais alto e influencia a reflexão cristã sobre a divindade e a preexistência de Jesus. O livro também protege a fidelidade à Torá ao pôr a nu a insensatez do culto gentílico — crítica que tem paralelos nos ataques paulinos à depravação e à idolatria dos gentios. Nesse mesmo registro cabe a Carta de Jeremias, que reforça a convicção judaica de que os ídolos nada são e de que os gentios estão apartados da verdadeira religião (ver Daniel, Esther and Jeremiah, Additions to).

Sem pertencer estritamente à sabedoria, 4 Macabeus faz a defesa do judaísmo por via filosófica: a obediência rigorosa à Torá treina o indivíduo em todas as virtudes cardeais estimadas pelo mundo greco-romano (ver Vice and Virtue Lists). Formados pela Torá, os judeus excedem os demais no exercício da virtude, como exemplifica a coragem dos mártires da crise de helenização — heróis do panegírico do autor (ver Hellenism). Não por acaso, os mandamentos que separam os judeus de outros povos — com frequência alvo de escárnio — são apresentados como escola de honra e virtude.

Vários relatos edificantes abrem janelas para a piedade do período. O Ester hebraico foi ampliado para inserir menções explícitas a Deus e gestos de piedade (oração, pureza alimentar) no enredo (ver Daniel, Esther and Jeremiah, Additions to). Tobias, narrativa da Diáspora e possivelmente o mais antigo dos apócrifos, articula providência divina, atuação de anjos e demônios, eficácia da oração e exorcismo; promove a esmola e a solidariedade intracomunitária, sublinha o valor do parentesco e da endogamia (ver Family and Household). Judite — talvez palestinense, da época macabeia — exalta uma heroína que, com engenho e graça, atrai e elimina um opressor gentio; reafirma a importância da oração, da pureza alimentar, da castidade e do cuidado de Deus em horas de opressão.

3 Macabeus, por sua vez, compõe uma lenda edificante para o judaísmo da Diáspora, paralela ao enredo de 2 Macabeus: sublinha o cuidado especial de Deus pelos judeus longe da Terra Prometida e testemunha as tensões entre fiéis, apóstatas e a cultura gentílica dominante. 1 Esdras aproxima-se desse grupo, ainda que seja, em grande parte, uma reescritura de 2 Crônicas 35:136:23, Esdras e Neemias 7:38—8:12; sua seção original é um conto de corte sobre a sabedoria de Zorobabel (1 Esdras 3:1—5:6). Na versão grega expandida de Daniel (ver Daniel, Esther and Jeremiah, Additions to), surgem duas narrativas independentes: Susana, que, à semelhança de 1 Esdras 3:1—5:6, celebra a sagacidade de um líder judeu, e Bel e o Dragão, que desmascara a idolatria ao expor o logro em torno de um ídolo de Bel e de uma serpente viva.

O corpus inclui ainda textos litúrgicos. O Salmo 151 relembra a eleição de Davi e sua vitória sobre o gigante filisteu — metáfora poderosa da posição de Israel entre as potências gentílicas, salvo o interregno hasmoneu. Poetas judeus identificaram lacunas narrativas que “pediam” uma oração ou um salmo; dois acréscimos a Daniel e a Oração de Manassés preenchem justamente essas ausências: uma súplica penitencial e um clamor na fornalha (Oração de Azarias), um hino de livramento (Cântico dos Três Jovens) e uma nova oração penitencial (Oração de Manassés), que proclama não haver pecador fora do alcance da misericórdia e do perdão divinos. Embora de feição profética e pseudepigráfica, Baruque é rico em liturgia: abre (Bar 1:1—3:8) com orações de arrependimento que reconhecem a justiça de Deus nas maldições de Deuteronômio sobre Israel e Judá e, ao mesmo tempo, reacendem a esperança do retorno quando Deus volta a ser lembrado e obedecido no exílio; prossegue com um salmo sapiencial que identifica, sem reservas, a sabedoria com a Torá de Moisés, num tom à la Ben Sira (Bar 3:9—4:4); e conclui com oráculos que prometem reunir a Diáspora, julgar as cidades opressoras e exaltar Sião.

A coletânea encerra-se, aqui, com um apocalipse: 2 Esdras (ou 4 Esdras). O autor escreve sob o impacto da destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. e, mais de perto, diante do aparente retardamento do juízo de Deus sobre Roma, instrumento do desastre. Ao negar esperança para este século, ao deslocar a retribuição para a era porvir e ao narrar visões como a da águia multicefálica e do homem que sobe do mar, o livro oferece uma janela privilegiada para o apocalipticismo judaico, com paralelos instrutivos ao material apocalíptico do Novo Testamento.

Em toda a Apocrypha, sobressai a teologia de aliança de Deuteronômio: a convicção — ancorada nas bênçãos e maldições de Deuteronômio 28-32 — de que o indivíduo e a nação que observam a Torá são recompensados, e os que dela se afastam, punidos. Em tempos movimentados, essa retribuição tende a ser projetada para além-túmulo (pela ressurreição, em 2 Macabeus; pela imortalidade da alma, em Sabedoria), mas a lógica não é abandonada. O fio condutor é o cuidado de Deus por seu povo, o que significa viver em fidelidade e obediência e como responder às pressões que a ameaçam.

B. Pseudepígrafas

Nos Pseudepígrafos, a variedade de gêneros é ampla: apocalipses, testamentos, expansões de narrativas bíblicas, sabedoria, tratados filosóficos, textos litúrgicos, obras históricas, poesia e drama têm assento nesse conjunto.

Muitos escritos são apocalipses. Entre os mais importantes e acessíveis estão 1 Enoque e 2 Baruque. As camadas mais antigas de 1 Enoque — obra composta — podem datar do século III a.C.: descrevem uma jornada por lugares preparados para punir os ímpios e recompensar os justos, desenvolvem uma angelologia a partir da história dos “Vigilantes” (cf. Gênesis 6:1–4; ver Angels of the Nations) e traçam um panorama histórico que põe os leitores às portas da intervenção divina no tempo para juízo. As “Semelhanças” (1 Enoque 37—71), talvez do século I d.C., testemunham o amadurecimento da figura do Filho do Homem, oferecendo material precioso para o estudo do título nos Evangelhos. A obra, como um todo, deixou marcas em Judas (que cita 1 Enoque 1:9) e, sobretudo, em Apocalipse. Como 4 Esdras, 2 Baruque responde apocalipticamente à queda de Jerusalém: exorta a renovar a fidelidade à Torá como caminho para a vindicação divina de um povo castigado, assegura a proximidade do livramento e a certeza do juízo sobre Roma. Outros apocalipses relevantes incluem 2 Enoque, os Oráculos Sibilinos, o Apócrifo de Ezequiel, o Apocalipse de Abraão e o Tratado de Sem.

Próximos aos apocalipses estão os “testamentos”: discursos de despedida de grandes figuras de Israel que repassam a própria vida (como exemplo de virtude), deixam exortações éticas, muitas vezes incluem anúncios escatológicos e terminam com a morte e o sepultamento do herói. Sobressaem os Testamentos dos Doze Patriarcas, importantes para rastrear o desenvolvimento de angelologia, demonologia, funções sacerdotais e régias do Messias e ética. O Testamento de Jó volta a ridicularizar a idolatria e fornece elementos valiosos para a figura de Satanás (ver Belial). O Testamento de Moisés — essencialmente uma expansão de Deuteronômio 31-34 — testemunha a alta conta em que se tinha Moisés como profeta, mediador e intercessor permanente, iluminando passagens neotestamentárias; sua defesa de resistência não violenta contrasta com ideologias militaristas do período, e a ideia de um “dia de arrependimento” que antecede a vinda do reino de Deus dialoga com o chamado de Jesus ao arrependimento como preparação para a intervenção divina (cf. Marcos 1:14–15).

Entre as expansões de narrativas bíblicas, destacam-se Jubileus e o Martírio de Isaías (ver Ascenção de Isaías). Datado do fim do século II a.C., Jubileus reescreve Gênesis e Êxodo e é valiosíssimo para entender como se teceu uma teologia da Torá: a lei revelada a Moisés aparece como eterna, inscrita em tábuas celestes e obedecida até por arcanjos; as histórias patriarcais são retrabalhadas para sublinhar sua obediência à Torá, com ênfase em observâncias rituais e litúrgicas; as fronteiras entre judeus e gentios (especialmente idumeus) são reforçadas; a origem do mal é atribuída à ação de Satanás e seus anjos, não à fraqueza de Adão; e antevê-se uma restauração da obediência que trará de volta a longevidade primeva. O Martírio de Isaías narra a apostasia de Manassés e, sob instigação de um falso profeta, Belquira — um demônio que conduz Jerusalém ao erro —, a prisão e o esquartejamento do profeta (serrado ao meio; cf. Hebreus 11:37). Na forma em que o temos, o texto foi amplamente cristianizado, apresentando Isaías como testemunha explícita de Jesus e da história inicial da igreja (Mart. Isa. 3:13–31).

Cabe aqui, ainda, a Carta de Aristeias, composta em grego perto do fim do século II a.C. Não se baseia diretamente numa narrativa bíblica, mas é um conto edificante em defesa da Septuaginta — a tradução grega das Escrituras hebraicas — e do caráter racional de uma vida regulada pela Torá: exalta a sabedoria dos tradutores, sustenta a compatibilidade entre a obediência à Torá e o melhor da ética filosófica grega e defende a confiabilidade da LXX. Outras expansões dignas de nota incluem José e Asenete, Vida de Adão e Eva e o Liber Antiquitatum Biblicarum, o chamado Pseudo-Fílon.

No terreno litúrgico, os dezoito Salmos de Salomão refletem sobre a corrupção terminal da casa hasmoneia, a intervenção de Pompeu Magno — que sitiou Jerusalém, a convite de um pretendente ao trono, e entrou no lugar santo — e a morte de Pompeu no Egito. Tais eventos confirmam a lógica de Deuteronômio: quem se afasta da lei sofre punição; e o instrumento gentio do castigo não ficará impune. Os salmos celebram a providência generosa de Deus, traçam o perfil do justo, criticam a hipocrisia e o orgulho, louvam a correção divina e descrevem a chegada da era messiânica sob um Filho de Davi, o Messias do Senhor. De especial interesse são também as orações helenística sinagogais, que exibem a confluência de piedade judaica e cristã na igreja nascente e que, uma vez depuradas de acréscimos cristãos, oferecem um vislumbre raro da piedade sinagogal. Entre os textos poéticos contam-se ainda salmos adicionais de Davi e as Odes de Salomão, uma coleção cristã com afinidades estreitas com o Quarto Evangelho.

A coletânea abriga, por fim, textos de sabedoria que deixam ver o quanto os judeus podiam assimilar filosofia, máximas e ética gregas; obras literárias (poesia e drama) que imitam conscientemente formas helênicas; e fragmentos de historiadores que inquiriram as origens de Israel num registro que lembra as Antiguidades, de Josefo.

III. Significado e importância

O intervalo entre os Testamentos esteve longe de mudo. Apócrifos e os Pseudepígrafos nos introduzem a vozes vigorosas dos períodos helenístico e romano. Sem essas peças, o retrato do judaísmo em cujo ambiente nasceu a igreja ficaria irremediavelmente lacunar. O conjunto dessas vozes evidencia a diversidade interna do judaísmo do Segundo Templo — visão que substituiu a leitura, típica do início do século XX, de um judaísmo “normativo” e legalista antes de 70 d.C. (Charlesworth vs. Charles). Foi uma época de “fermento” (Russell 1993), de disputas identitárias e de fidelidade à aliança sob fortes pressões sociais e convulsões políticas.

Estudar esses escritos aprofunda a compreensão do judaísmo e do leque de tradições que moldaram a proclamação de Jesus e da igreja primitiva — tradições que não se limitam às Escrituras hebraicas. As vozes intertestamentárias destacam fios do Antigo Testamento que permaneceram centrais e, ao mesmo tempo, atestam novos desenvolvimentos, ênfases e leituras que não nasceram com a igreja, mas foram por ela assumidos. A cosmologia, a angelologia, a escatologia, a cristologia e a ética da igreja primitiva devem muito ao labor intelectual e devocional desse período vibrante. Alguns textos projetam luz sobre a ideologia dos que se opuseram ao movimento de Jesus ou à missão paulina; muitos outros foram interlocutores diretos dos fundadores da igreja — e só os entenderemos plenamente quando também soubermos escutar aqueles.

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GALVÃO, Eduardo. Apócrifo e Pseudepígrafo. In: Enciclopédia de Religião Online. (S. l.), ago 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].
               

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