Paulo e a Retórica — Enciclopédia da Bíblia Online
No mundo de Paulo, a praça pública vibrava ao som de virtuoses da palavra — os sofistas —, e cidades inteiras julgavam discursos segundo cânones refinados de retórica. Como o cristianismo elevou a pregação pública a eixo do seu testemunho, seus porta-vozes passaram, inevitavelmente, pelo crivo de audiências sofisticadas. A questão missionária que se impõe, então, é estratégica: a retórica clássica seria condição para a proclamação cristã, ou um desvio do seu centro? O dossiê paulino enfrenta esse problema em quatro frentes: formação, prática forense, renúncia programática e crítica coríntia.
I. Formação de Paulo: possibilidade e limites
Não há informação direta sobre treinamento retórico formal de Paulo. Nascido em Tarso, centro de reputação retórica, ele foi formado em Jerusalém, na tradição judaica, “aos pés de Gamaliel” (At 22:3). Essa afirmação não exclui uma educação retórica (inclusive em nível terciário) em alguma das escolas gregas que operavam em Jerusalém desde o século III a.C.; apenas a torna não comprovada. Se tal formação existiu, é mais provável tê-la recebido nos anos iniciais, não após a conversão.
II. Prática forense: Paulo no tribunal e a lógica do discurso judicial
Em At 24:1-21, Paulo se defende perante Félix, governador romano, contra acusadores judeus representados por um retor forense profissional, Tértulo (At 24:1). A acusação, com tom político de agitação e insurreição na diáspora judaica — lembrando que Paulo é cidadão romano —, parece formidável. Paulo, porém, rebaixa o tipo penal a um debate teológico sobre a ressurreição — exatamente o ponto que levantara diante do Sinédrio (At 23:6).
Ele prescreve limites probatórios aos eventos em Jerusalém, proscrive as imputações de acusadores asiáticos ausentes, e organiza sua peça defensiva segundo a arquitetura forense clássica: exordium (introdução), narratio (exposição dos fatos), confirmatio (estabelecimento dos fatos), refutatio (refutação) e peroratio (conclusão). Mostra, ainda, conhecer o pouco divulgado direito de apelar a César (At 25:11). Se a paideía grega fazia da retórica forense parte essencial da formação jurídica, o sumário de Atos reflete competência profissional de Paulo nesse gênero.
III. Renúncia programática: por que Paulo recusa a “sabedoria da retórica” no púlpito
Os coríntios eram amantes de orações públicas (Dio Chrysostom Or. 37.33). Paulo discerne que empregar a “sabedoria da retórica” (1Co 1:17) seria “esvaziar” a pregação da cruz — uma técnica mais interessada no engenho de estrutura e performance do que no conteúdo (Epictetus Diss. 3.23.23-25). Invocando o AT em 1 Coríntios 1:19 (citando Is 29:4; Sl 33:10) e 1 Coríntios 1:31 (citando Jer 9:22-23), argumenta que Deus decidiu que “o debatedor deste século” — o retor virtuose, o sofista (Philo Det. Pot. Ins. 1-5) — assim como filósofos gregos e mestres judeus (1Co 1:20) não conduzem ao conhecimento de Deus.
Paulo explica por que renunciou, em seu modus operandi, às convenções formais com que um retor estrangeiro legitimava seu nome ao chegar a uma cidade (1Co 2:1-5). Ele afirma por que não anunciaria o gospel com “superior apresentação” de retórica ou sabedoria (1Co 2:1). Enquanto retóricos caçavam tópicos propostos pela audiência para exibirem proeza oratória, Paulo se restringia a um tema exclusivo: Jesus, o Messias crucificado (1Co 2:2).
Na tradição, três “provas” persuadiam: ethos (encenar um caráter), pathos (manipular afetos) e demonstração (argumentos). Paulo não se apoia em nenhuma delas. Vem “em fraqueza, e em medo e em muito tremor” (1Co 2:3) — antítese da presença poderosa do retor virtuose (Philodemus On Rhetoric 1.194-200). Sua fala e sua pregação não recorrem a “retórica persuasiva”; são demonstração, não das provas retóricas, mas do Espírito e de poder (1Co 2:4). Trata-se de uma escolha radical e custosa: recusar a retórica admirada de seu tempo no ato de pregar. A motivação é pastoral e teológica: que a fé dos conversos não repouse na sabedoria humana, mas no poder de Deus (1Co 2:5).
IV. A crítica coríntia: presença, voz e (falta de) hipocrisis
Após a denúncia de Paulo contra a retórica vigente no púlpito (1Co 1:17—2:5), seus oponentes retóricos contra-atacam com uma crítica áspera de suas habilidades — ou da falta delas (2Co 10:10). Concedem que suas cartas são “pesadas e fortes” em apresentação retórica, mas sustentam que ele fracassa como orador público por carecer de “presença” (hypokrisis) — corpo belo, voz agradável, gestos adequados. Sua aparência física seria fraca (a tradição o descreve com pernas tortas, nariz longo e sobrancelhas unidas; Atos de Paulo e Tescla), e sua voz, sem timbre (2Co 10:10; 11:6).
Sem pregar como orador público, Paulo chama a si mesmo de “leigo” (idiōtes), termo que pode designar alguém treinado em oratória que não faz uso dela — um dos sentidos clássicos (Isocrates Antidosis 204). Contudo, os coríntios sabiam, pelas cartas, que Paulo podia manejar recursos retóricos com efeito devastador — por exemplo, o uso habilíssimo da alusão encoberta em 1Co 4:6-13.
V. Síntese conclusiva: entre tribunal e púlpito
No tribunal, Paulo revela fluência no gênero judicial; no púlpito, ele abandona a técnica sofística por discernir que ela desloca o centro da mensagem — a cruz — para o performer. Essa dialética explica o paradoxo: capaz de falar a língua forense quando necessário (At 24–25), ele desativa no querigma o sistema de ethos–pathos–demonstração, para que a fé nasça de Espírito e Poder, não de sabedoria humana (1Co 2:1-5). A recepção coríntia registra a tensão: a cultura deseja hipocrisis; Paulo oferece Cristo crucificado.
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GALVÃO, Eduardo. Paulo e a Retórica. In: Enciclopédia da Bíblia Online. [S. l.], set. 2025. Disponível em: [Cole o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano. Ex.: 22 ago. 2025].