Exatidão Histórica do Livro de Atos


Exatidão Histórica do Livro de Atos

Exatidão Histórica do Livro de Atos

Podemos confiar em Atos como sendo um relato fiel do que aconteceu? Já houve época em que a moda era considerar este livro como crônicas de quinta categoria, compiladas em meados do segundo século, contendo mais lendas do que fatos, transbordante de erros históricos. Hoje, poucos defendem essa opinião. Pesquisas modernas demonstraram que Atos é um documento notavelmente exato. Tal declaração dificilmente surpreenderia os que aceitam a autoria de Lucas. O peso das evidências constrangem-nos agora a encontrar uma ambientação para esse livro no primeiro século, não longe dos acontecimentos a que se refere, estando seu autor em contato íntimo com as pessoas envolvidas. Sua exatidão histórica é mais espantosa ainda se considerarmos que amplidão tremenda o livro percorre, em termos de cenários e circunstâncias, estendendo-se de Jerusalém a Roma, incluindo todo tipo de povos, culturas e administrações. Entretanto, apesar de toda a complexidade do mundo por onde o autor andou, e do fato de ele escrever sem o auxílio inestimável de bibliotecas e arquivos, no que concerne a questões topográficas, políticas, históricas e náuticas, Lucas jamais tropeça num fragmento de informação (12).

Lucas sente-se à vontade no Sinédrio e entre seus participantes em Jerusalém, os sacerdotes, os fariseus, os guardas do templo, e os príncipes da casa de Herodes. Ele sabe que Chipre, a Acaia e a Ásia eram governadas por procônsules (13:7; 18:12; 19:38), que Filipos era colônia romana e quais pretores tinham jurisdição sobre ela, e eram atendidas por magistrados (16:20ss., 35ss.), que estes em Tessalônica eram chamados por um título especial (“autoridades” em ECA, 17:8), que os o oficiais governamentais da província da Ásia também recebiam um título especial (“autoridades” em ECA 19:31), que a cidade de Éfeso rejubilava-se de ser “a guardadora do templo da grande deusa Diana” (19:35), que o poder político nessa cidade estava sobre o demos, a assembléia popular, dirigida pelo “escrivão” (19:35ss.). Não só o autor trata dessas minúcias com cuidado, como também procura retratar a própria atmosfera dos lugares em que se desenrola a história: as multidões excitáveis c intolerantes da parte leste de Jerusalém, e a relativa tolerância da cosmopolita Antioquia; a metrópoles de Síria, onde se estabeleceu a primeira igreja gentílica pelos judeus; o orgulho dos filipenses, por causa de sua cidadania romana; o diletantismo intelectual dos atenienses; a superstição dos efésios — tudo isto e muito mais ainda adquire vida nas páginas de Atos. O fato mais impressionante a respeito de Atos na verdade é a exatidão que se projeta até nos mínimos detalhes, os mais triviais — coisinhas que o pesquisador não consideraria em sua busca de verossimilhança. A própria casualidade da exatidão textual constitui sua garantia de genuinidade — nada ali é forjado. Se podemos confiar no autor quanto aos detalhes, é certo que podemos confiar nele quanto ao corpo maior da história (veja ainda mais sob “Lugar e Data”).

Todavia, Lucas não foi um mero cronista. “Precisamos entender”, adverte-nos Krodel, “que Lucas, o historiador bíblico, empreendeu sua tarefa à semelhança de um artista que procura interpretar a realidade, e não como um cronista que registra um fato após outro. Ele não é como um fotógrafo cujo produto precisa ser a imagem exata, mas antes como um pintor cuja tela promove uma reação face a uma mensagem” (13). Assim foi que Lucas selecionou, dispôs e interpretou os eventos de sua narrativa com o objetivo de explicar um tema, de modo que tudo que não estivesse ligado a esse tema era impiedosamente omitido. Nada lemos, p.e., a respeito da fundação de comunidades cristãs no Egito, na Cirenaica, no norte e no leste da Ásia Menor, na Armênia, no leste da Síria e no reino parto, ou Itália. Essas omissões mostram-se tão vastas (Hengel fala do “ecletismo quase objetável” de Lucas, na escolha de seu material) (14) que alguns eruditos inclinam-se a ver Atos mais como uma espécie de monografia histórica do que como um tomo da história da igreja, reservando o título de “Pai da História da Igreja” para Eusébio (morto cerca de 339 d.C).

Lucas estava interessado em apenas um tema da história da igreja, a saber, o modo como a igreja rumou de Jerusalém a Roma e como, ao mesmo tempo partiu da missão aos judeus indo à pregação da mensagem divina aos gentios (veja mais ainda na disc. de “Título e Propósito”). Ainda assim Lucas deixou muita coisa de lado, por não lhe servir os propósitos. Todavia, Lucas não deve ser julgado pelas suas omissões. Ele deve ser julgado apenas dentro dos limites que ele próprio se impôs; e dentro desses limites o autor saiu-se admiravelmente bem. É claro que há áreas problemáticas (veja, p.e., a introdução de 15:1-21). Tampouco Lucas é um escritor impecável. “Ele abrevia demais alguns eventos, de tal modo que estes se tornam quase incompreensíveis; quanto a outros, apenas dá indícios. Ao mesmo tempo, elabora aquilo que deseja enfatizar, e emprega repetição múltipla como estilo de redação. Lucas também consegue combinar tradições históricas separadas de modo que sirvam a seus objetivos, e consegue separar assuntos interligados se, como resultado, puder obter uma seqüência significativa de acontecimentos” (15). Por essas razões, Lucas não seria considerado um grande historiador segundo os padrões modernos. Entretanto, ele foi um escritor competente que obteve grande sucesso em conceder-nos um relato vigoroso, interessante e exato de tudo que decidiu relatar-nos sobre a historiada igreja.

No entanto, para alguns leitores há uma objeção insuperável para aceitarem Lucas como historiador digno de confiança, a saber, o fato de ele mencionar milagres. Seu interesse pelo milagroso — e não há como negar que Lucas se interessava — destrói toda credibilidade que de outra forma ele teria, assim afirmam os críticos. Todavia, tal crítica só teria valor se os milagres não houvessem ocorrido. As evidências indicam que houve milagres. Paulo apelou aos gaiatas, como se referisse a algo acima de qualquer dúvida: “Aquele que vos dá o Espírito, e que opera milagres entre vós, fá-lo pelas obras da lei, ou pela pregação da fé? " (Gálatas 3:5). E também em Romanos 15:18-19, sem nenhum temor nem pensamento de contradição, Paulo declara que Deus realiza milagres. Tampouco é verdade o que se tem dito, que Lucas aceitou o milagroso sem qualquer crítica, mas com bastante ingenuidade. Não há milagres em Atos, só por amor aos milagres. Dunn nos faz lembrar de que "em Atos 8:18ss. Simão 0 mago é denunciado por considerar o Espírito como uma espécie de poder mágico cujos segredos, ou técnicas, alguém poderia comprar; em 13:8-11 o cristianismo é apresentado em contraste violento com a magia; cm 14:8-18, Lucas resiste fortemente contra a tentação (e rejeita-a) de retratar Paulo e Barnabé como “deuses semelhantes aos homens”; em 19:13-16 ele sublinha o fato de que o nome de Jesus não consiste de mera fórmula exorcista capaz de ser utilizada por qualquer pessoa que a aprender, mas só deve ser empregada pelos discípulos que clamam pelo seu nome (cp. 2:21; 9:14, 21; 15:17; 22:16)(16).

Diz Dunn que a acusação de ingenuidade tem sido atirada indevidamente contra Lucas. “A atitude despojada de criticismo diante do poder miraculoso pode ser apenas uma reflexão fiel da atitude isenta de discriminação por parte da missão cristã primitiva. Ele poderia estar em grande parte satisfeito em reproduzir as histórias que lhe eram passadas, sem comentá-las”. E é assim que Dunn conclui: “É difícil dizer onde terminam as tradições e começam as atitudes do próprio Lucas... É possível que o modo mais justo de avaliar o tratamento que Lucas dispensou a seu trabalho, nesta altura, é reconhecê-lo como alguém que, olhando-se para trás, de uma posição de relativa calma nos anos posteriores, esteve apaixonado e emocionado diante do entusiasmo e poder da missão primitiva, ao ouvir testemunhas ou.relatórios mais antigos mencionarem a obra. Se assim foi, é bem provável que Lucas tenha redigido seu relato dos começos do cristianismo tendo como objetivo transmitir algo que causasse o mesmo impacto e impressão fortes em seus leitores. Muitos deles, tanto do passado como do presente, dariam testemunho do sucesso de Lucas nesse sentido(17).

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Notas
12. Veja, p.e., Hengel Jesus p. 121: “O conhecimento [de Lucas] das condições reinantes na Judéia durante mais ou menos os últimos quinze anos, antes da eclosão da guerra judaica, e o interesse especial [desse escritor] com respeito à destruição de Jerusalém demonstram como ele foi influenciado por esses acontecimentos, e a eles se manteve relativamente unido”.
13.Krodel, p. 15.
14. Hengel, Acts (Atos), p. 35.
15. Hengel, Acts (Atos), p. 61.
16. Dunn, Jesus, pp. 168s.
17. Dunn, Jesus, pp. 169.


Fonte: Novo Comentário Bíblico Contemporâneo de Atos dos Apóstolos de David J. Williams