Atos dos Apóstolos — Fontes Literárias

Atos dos Apóstolos — Fontes Literárias

Atos dos Apóstolos — Fontes Literárias


Tendo-se determinado que Lucas, o médico amado, escreveu Lucas-Atos pelo fim da Guerra Judaico-Romana, naturalmente segue-se que muita parte do material contido em Atos é de um relato de testemunha ocular. Foi mostrado que Lucas era um companheiro de viagem de Paulo e participou de muitos dos eventos registrados. As seções de Atos que empregam o pronome “nós” (16:10-17; 20:5-15; 21:1-18; 27:1-28:16) indicam que Lucas escreveu a partir de conhecimento pessoal. Porque ele era um companheiro de viagem de Paulo, a informação para essas lacunas entre as seções com o pronome “nós” poderia ter sido fornecida pelo próprio Paulo ou por outros que estavam na companhia de Paulo. Contudo, para a maior parte dos quinze primeiros capítulos, Lucas teve que depender de outras fontes, para sua informação (como ele fez para toda a informação contida no terceiro Evangelho).

Já indicamos, no capítulo sobre o terceiro Evangelho, que Lucas dependeu de ambas as fontes, oral e escrita, para aquela composição (cf. Luc. 1:1-4). Não há nenhuma razão válida para se excluir o possível uso de fontes orais e escritas para seu segundo volume igualmente. De fato, um estudo de Atos leva a se concluir que Lucas realmente consultou outras fontes para a informação acerca dos eventos dos quais ele não participou. Se essa informação foi oral ou escrita, não foi completamente determinado pelos estudiosos do Novo Testamento.

No material que se relaciona a Paulo, não há nenhuma razão para se supor que um documento escrito está por trás dessa narrativa, a não ser que ele fosse uma espécie de “diário de viagem”, guardado pelo próprio autor. Depois de Lucas 16, Lucas esteve presente em muita parte do que foi reportado. Também, ele teve acesso a informações das quais não foi uma testemunha pessoal, por ter posteriormente estado com Paulo por longos períodos de tempo. Ele estava bem familiarizado com Silas, Tito, Timóteo, Marcos e outros companheiros de Paulo. De algum deles, ou de todos, Lucas poderia ter colhido informações acerca da conversão de Paulo (At. 9:1-31) e seu trabalho subsequente (At. 11:19-30; 12:25-16:9) antes da chamada “segunda viagem missionária”. Portanto, para uma considerável parte do segundo volume, as únicas fontes requeridas por Lucas foram suas próprias experiências na companhia de Paulo (e talvez registradas num diário), e as informações que ele teve a oportunidade de obter do próprio Paulo ou de outros companheiros.

Para o material dos capítulos 1:1-6:7; 8:4-40; 9:32-11:18; 12:1-24, Lucas não foi uma testemunha pessoal, e tampouco o foi Paulo. Prova¬velmente, a maior parte desta informação foi colhida oralmente, mas não podem ser excluídos de consideração documentos escritos. Lucas real¬mente diz, em seu prefácio ao terceiro Evangelho, que muitos haviam empreendido a tarefa de escrever uma narrativa das coisas que haviam ocorrido em sua época. Isto poderia incluir, juntamente com o ministério de Jesus, uma narrativa dos primeiros anos da igreja em Jerusalém. O certo sobre Lucas 1:1-4 é que o autor declarou seu propósito de confiar em informação de primeira mão, ou seja, relatos de testemunha ocular. Para o Evangelho de Lucas, concluiu-se que o autor usou pelo menos dois documentos escritos (Marcos e “Q”) e possivelmente mais. Isto não é tão facilmente discernível para Atos. Quanto ao Evangelho, existem outros dois Evangelhos Sinópticos para auxiliar na identificação das fontes. Para Atos, não existe nenhuma outra narrativa escrita conhecida do primeiro século acerca do movimento cristão primitivo. Outras informações que existam devem ser recolhidas de outros livros do Novo Testamento, principalmente das cartas de Paulo. Para o período desde a ascensão de Jesus até a época da primeira carta de Paulo, simplesmente não há nada existente para se comparar com Atos. Contudo, é certo o fato de que Lucas não utilizou as cartas de Paulo como fonte para sua informação.

Todavia, Lucas teve ampla oportunidade de ter contato pessoal com aqueles que participaram da vida do grupo cristão primitivo. Pouca dúvida pode haver acerca da ligação de Lucas com Marcos (II Tim. 4:11). Há a forte possibilidade de que Lucas conheceu Marcos e Barnabé em Antioquia da Síria. Está claro que Lucas usou o Evangelho de Marcos como base para o terceiro Evangelho. Atos 12:12 indica que a casa de Marcos fora o local de reunião para os cristãos antes do Pentecostes. Marcos, portanto, poderia ter sido uma das fontes de Lucas para informações acerca da vida inicial da igreja, bem como para a vida de Cristo. Outros que poderiam ter fornecido informações foram Mnáson (At. 21:16) e Felipe, um dos sete (At. 21:8-14), e Tiago, o meio irmão de Jesus, ainda estava em Jerusalém quando Paulo e Lucas chegaram lá (At. 21:18). Com base em Gálatas 2:11, é até mesmo possível que Lucas tenha encontrado Pedro em Antioquia. Durante o tempo do aprisionamento de Paulo em Cesaréia (pelo menos dois anos) houve bastante tempo para Lucas contactar com muitas das testemunhas oculares dos acontecimentos destes primeiros anos.

Enquanto está evidente que Lucas teve oportunidade de colher informações, não é tão evidente que as informações já estavam na forma escrita quando ele as colheu. Contudo, como o judeu palestino falava o aramaico, deve ser dito que os primeiros testemunhos na Palestina tiveram que ser em aramaico. Isto não quer dizer que os primeiros documentos escritos estavam nessa língua, e tampouco se pode excluir essa possibilidade. Charles C. Torrey (The Composition and Date of Acts — A Composição e Data de Atos, 1916) tentou mostrar que Atos 1-15 é uma tradução grega de um documento aramaico. Estudiosos mais recentes, que têm experiência em línguas semíticas, contudo, desacreditam grandemente esta conclusão (Matthew Black, An Aramaic Approach to the Gospels and Acts — Uma Aproximação aos Evangelhos e a Atos, Baseada no Aramaico, 1954); contudo, eles indicam que as tradições destes capítulos (sejam na forma escrita ou oral) circularam primeiramente em aramaico. Quanto a isto, pouca dúvida pode haver. Não foi substanciado, todavia, que Lucas traduziu de um documento aramaico.

Existem, em Atos, certos blocos de material identificáveis. Estes são geralmente aceitos como segue: 1:1-6:7; 6:8-8:3; 8:4-40; 9:1-31; 9:32-11:18; 11:19-30; 12:1-24; 12:25-16:9; 16:10-28:31. Dentro destes grupos existem blocos menores, que poderiam, provavelmente, pertencer à mesma tradição (por exemplo: 1:1-26; 2:1-47; 3:1-4:31; 4:32-5:11; 5:12-42; 6:1-7). Estes que estão assim divididos demonstram materiais que poderiam, possivelmente, ser da mesma fonte. A primeira seção ocorre em Jerusalém e sob o testemunho de alguma pessoa ou pessoas outras que não Paulo ou Lucas. O material para 6:8-8:3 poderia, possivelmente, ter sido testemunhado pelo próprio Paulo (ver 7:58-8:3). A passagem de 8:4-40 poderia ter vindo de Filipe (21:8-14). Atos 9:1-31 conta a história da conversão de Paulo como se vindo de uma testemunha ocular. A história do trabalho de Pedro, em 9:32-11:18 é outro bloco de informações para o qual Lucas dependeu de uma fonte não identificada, talvez o próprio Pedro. Após 11:19, a principal testemunha de Lucas foi o próprio Paulo e outros de seus companheiros de viagem. A possível exceção seria 12:1-24, acerca das mortes de Tiago (filho de Zebedeu) e Herodes Agripa I. Se, conforme afirma a tradição, Lucas era nativo de Antioquia, então muito da informação de 11:19 até o final de Atos é relato de primeira mão. Estes blocos de material foram largamente denominados (com alguma variação) a Fonte de Jerusalém, Fonte de Cesaréia, Fonte Paulina, Fonte Petrina, Fonte de Antioquia e a Fonte de Lucas. Alguns também encontram uma Fonte Efésia em Atos 19.

Embora tenha sido dada alguma atenção às tarefas de identificação de fontes e atribuição de nomes a estas, através da disciplina denominada Crítica da Forma, quase o máximo que se pode determinar em Atos é que Lucas teve ampla oportunidade de visitar os lugares onde os eventos ocorreram e conversar com aqueles que participaram nesses eventos. Ir além desta conclusão é ir além da evidência disponível. O contato pessoal do autor com testemunhas oculares torna a questão das fontes de menos importância.

Os discursos contidos em Atos sofreram considerável ataque quanto à sua confiabilidade histórica. Os discursos compreendem cerca de um terço do volume da Atos (seis por Pedro, um por Estevão, um por Tiago, sete por Paulo, e vários discursos mais curtos por outros indivíduos). Principalmente através da influência da Crítica da Forma de Martin Dibellius, alega-se que os discursos contidos em Atos são, em grande parte, invenções do autor e têm pouco valor histórico. Baseados em sua interpretação da historiografia antiga, estes críticos diriam que o autor escreveu o que ele “pensou” que o orador iria dizer sob as circunstâncias dadas. Em muitos casos,diz-se, o discurso é completamente independente da narrativa (por exemplo, o discurso de Paulo em Atenas, em Atos 17:22-31).

A pesquisa moderna da historiografia antiga, contudo, está mostrando que os historiadores antigos estavam realmente preocupados com o relato fiel dos eventos e discursos reais. Se houve alguns escritos que foram invenções de um autor, não era prática aceita entre os historiadores bem conhecidos. Todavia, que alguns escritores realmente embelezaram as palavras do orador está fora de contestação. Esta prática não foi vista com bons olhos, em nenhuma parte, pelo historiador estabelecido. Tucídides (quinto século antes de Cristo) escreveu:

Com referência aos discursos contidos nesta história, alguns foram pronunciados antes de a guerra iniciar-se, outros enquanto ela prosseguia; foi difícil registrar as palavras exatas faladas, em ambos os casos, onde eu mesmo estava presente e onde eu usei os relatos de outros. Mas usei uma linguagem de acordo com o que eu achava que os falantes, em cada caso, seriam mais prováveis de dizer, aderindo tão estreitamente quanto possível ao sentido geral do que realmente foi falado (Tucídides, 1. 22).

Políbio (segundo século antes de Cristo), freqüente e explicitamente condenou a livre invenção de discursos pelos historiadores, colocando composições retóricas nas bocas de seus personagens (Políbio, XII, 25, i). Disto, pode-se ver que o objetivo do historiador antigo era tão preciso quanto possível no registro de discursos. Enquanto as mesmíssimas palavras (ipsissima verba), em muitos casos, seriam impossíveis (ou mesmo desejáveis), o pensamento básico para a ocasião e circunstâncias é que merece confiança. Tanto quanto possível, as palavras do orador são registradas; quando isso não foi possível, o sentido do que foi dito é preservado.

Felizmente, é possível testar-se a fidelidade de Lucas em seu registro dos discursos. Quando o terceiro Evangelho é comparado com o segundo (uma das fontes de Lucas), pode-se ver que Lucas faz alguma reorganização e reformulação das palavras dos discursos de Jesus. Contudo, Lucas não é infiel em sua reprodução do significado essencial deles. Por esta mesma razão de fidelidade, ao utilizar Marcos, Lucas deve ser preferido sobre Mateus, ao utilizar a fonte denominada “Q”. Conclui-se, uma vez que Lucas provou ser fiel onde suas fontes podem ser controladas (uma comparação dos Sinópticos), que deveríamos pressupor o mesmo grau de fidelidade onde suas fontes não estão mais disponíveis para comparação. Os discursos contidos em Atos realmente se encomendam à situação em que Lucas os registra, preservando a significação básica do falante, bem como a teologia primitiva. Pode-se observar que realmente se acha nos discursos o pior de Lucas, gramaticalmente falando. Isto é devido à sua fiel aderência, tanto quanto possível, às palavras do falante (algumas em tradução do aramaico) ou a suas fontes. Pode-se ver também que a cristologia dos discursos é de um tipo primitivo. A partir disto, conclui-se que, se Atos fosse uma redação do fim ou do princípio do segundo século, então houve pouco desenvolvimento teológico durante os últimos quarenta anos do primeiro século. A formulação do prefácio ao terceiro Evangelho é tal, que Lucas ressalta a importância da precisão histórica em seu relato, incluindo os discursos. Consequentemente, é certo concluir-se que, com o que temos em Atos e nas epístolas paulinas, os discursos de Atos realmente reproduzem fielmente a ocasião real.