Provérbios 10: Significado, Explicação e Devocional

Provérbios 10

Provérbios 10 contém uma coleção de frases curtas e concisas sobre vários tópicos relacionados à sabedoria, moralidade e retidão. O capítulo é caracterizado por um contraste entre o sábio e o tolo, o justo e o ímpio. O texto começa afirmando que um filho sábio traz alegria a seu pai, enquanto um filho tolo traz tristeza. Continua descrevendo os benefícios da sabedoria e os perigos da tolice, enfatizando a importância de fazer escolhas sábias e evitar a tolice e a maldade.

O capítulo contém numerosos provérbios que abordam uma ampla gama de tópicos, como honestidade, diligência, orgulho, generosidade e palavras. Também destaca o contraste entre o justo e o ímpio, sendo o justo descrito como fonte de vida e o ímpio como fonte de morte e destruição.

Ao longo do capítulo, é enfatizada a importância de viver uma vida de integridade e moralidade. O capítulo também oferece uma visão das bênçãos que advêm de uma vida sábia e justa, incluindo riqueza, honra e uma vida longa e frutífera.

Provérbios 10, em seu significado central, fornece sabedoria prática para a vida diária, destacando a importância de fazer escolhas sábias e evitar a tolice e a maldade. Enfatiza a importância de viver uma vida de integridade e moralidade e oferece uma visão das bênçãos que advêm de fazê-lo.

I. Comentário de Provérbios 10

Provérbios 10:1

O filho sábio alegra o pai, mas o filho insensato é aflição para a mãe. (Hb.: ben ḥākām yeśammaḥ ʾāv ûvên kesîl tûgat ʾimmô — “filho sábio faz alegrar o pai, mas filho tolo é tristeza de sua mãe”). O versículo abre com o sintagma nominal ben ḥākām (“filho sábio”), em que ben (“filho”) é substantivo masculino singular e ḥākām (“sábio”) é adjetivo no mesmo gênero e número, funcionando quase como um título identitário: não apenas um filho que, por acaso, toma uma boa decisão, mas um filho caracterizado pela sabedoria como traço permanente, ligado ao campo semântico de ḥokmāh (“sabedoria”) em Provérbios 1–9. O verbo yeśammaḥ (“faz alegrar”) está no imperfeito intensivo (tradicionalmente classificado como piʿel 3ª masc. sing.) do verbo śāmaḥ (“alegrar-se”), de modo que a ação não é uma alegria ocasional, mas um fazer-alegrar contínuo: a vida do filho vai produzindo contentamento no pai, como uma fonte que não se fecha. Sintaticamente, esse primeiro colon é uma oração verbal simples, com o filho sábio como sujeito e o pai (ʾāv
) como alvo afetado da alegria produzida, o que retoma a estrutura das exortações de Provérbios 1:8–9, onde pai e mãe são o primeiro “solo” em que a instrução divina deve florescer.

A segunda metade introduz ûvên kesîl (“e [um] filho tolo”), com kesîl termo técnico do livro para o insensato endurecido, moralmente obtuso, que recusa correção (ver Provérbios 1:22; 26:3). Aqui não há verbo expresso: tûgat ʾimmô é um predicado nominal, em que tûgāh (“tristeza, pesar, luto”) é substantivo abstrato feminino em estado construto, literalmente “tristeza de sua mãe”. A própria mãe é descrita como carregando, quase encarnando, o peso da dor provocada pelo filho. A antítese é perfeita: o mesmo substantivo “filho” se bifurca em dois caminhos, e os pais aparecem como espelhos onde a sabedoria ou a loucura se refletem. O provérbio afirma que a sabedoria filial tem valor teológico: honrar pai e mãe é participar da ordem de vida dada por Deus (Êxodo 20:12), e o Novo Testamento retoma esse eixo quando Paulo exorta filhos e pais em Efésios 6:1–4, mostrando que a alegria ou a dor dos pais são frutos concretos da resposta dos filhos à instrução divina.

Obs: Os provérbios de Salomão concentram-se no filho sábio, como nos capítulos 1 a 9, e o comparam com o filho louco. O termo “filho” é genérico — a questão central não é ser filho em vez de filha, mas sim se ele (a) é sábio (a) ou louco (a). O comportamento de um filho afeta ambos os pais. Os pais têm sua fonte de alegria ou tristeza no filho que demonstra capacidade para a vida. O tempo dos verbos sugere que o filho sábio alegra seus pais continuamente e que o filho louco traz contínuos dissabores aos seus pais.

A leitura rabínica desloca rapidamente o eixo da cena doméstica para o drama da relação entre Israel e Deus. Em Midrash Mishlei 10:1, Rabi Ishmael declara: “Feliz o homem que se afasta do pecado e se apega aos caminhos do Santo, bendito seja Ele, e à sua Torá; quando o homem pronuncia palavras de Torá, ele alegra o seu Criador”, concluindo que o “filho sábio” é o discípulo que se torna “filho” pela sabedoria da Torá, e o “pai” é o próprio Deus, que se alegra com esse estudo. Outras passagens do mesmo midrash aproximam esse versículo de figuras bíblicas: o “filho sábio” é lido como Isaac ou Jacó, enquanto o “filho tolo” é identificado com Ismael ou Esaú, de modo que a alegria do pai é associada à linha de eleição que passa pela obediência, e a tristeza da mãe torna-se imagem da dor de Rebeca diante da conduta de Esaú (Ohel Yaʿakov sobre Gênesis 27). Assim, a casa de Provérbios é ampliada: pai e mãe são, em nível peshat, os pais humanos; em nível derásh, o pai é o Santo, bendito seja, e a mãe é Israel/Sião, cuja alegria ou angústia dependem da resposta dos filhos à Torá. Comentadores como Rashi retomam esse fio ao notar que a sabedoria do filho é, antes de tudo, a competência na Torá, enquanto a kesilût do filho tolo produz vergonha pública e dor íntima, “tristeza” que ecoa a dor de comunidades que veem seus próprios filhos abandonarem o pacto (Rashi a Mishlei 10:1, via edição de Mikraot Gedolot).

Provérbios 10:2

Os tesouros da maldade não aproveitam (Hb.: lō yôʿîlû ʾōṣrôt rešaʿ — “não trarão proveito os tesouros da maldade”). O verbo yôʿîlû (“aproveitam, trazem lucro”) está no imperfeito hifʿil 3ª pessoa masc. plural do verbo yāʿal (“ser útil, trazer vantagem”), com valor habitual: por mais que pareçam sólidos, esses tesouros nunca cumprem a função de garantir segurança real. O sujeito é ʾōṣrôt
(“tesouros, depósitos”), plural de ʾōṣār, termo que pode designar tanto riqueza acumulada quanto celeiros e depósitos (cf. Deuteronômio 28:12), aqui qualificados pelo genitivo rešaʿ (“maldade, perversidade”), de modo que a riqueza não é neutra: é riqueza construída sobre injustiça. A negação inicial seguida do verbo em forma causativa sublinha que esses bens não apenas falham em “dar lucro” no longo prazo, mas se revelam inúteis diante dos juízos de Deus, tal como Provérbios 11:4 repetirá com outra imagem: “De nada vale a riqueza no dia da ira, mas a justiça livra da morte”. Na sintaxe, o advérbio de negação governa o verbo e abrange todo o grupo nominal “tesouros da maldade”, comprimindo numa linha o colapso de um projeto de vida centrado em acumular bens injustos. A sentença desfaz a ilusão de que “funciona” qualquer sistema de enriquecimento, desde que ninguém descubra; diante de Deus, esses tesouros não têm peso, não “aproveitam”, e o Novo Testamento ecoa essa mesma pergunta de valor em Marcos 8:36, quando Jesus indaga que proveito há em ganhar o mundo inteiro e perder a alma.

mas a justiça livra da morte. (Hb.: ûṣədāqāh taṣṣîl mimmāwet — “mas a justiça salvará da morte”). O substantivo ṣədāqāh (“justiça”) designa tanto a retidão relacional conforme a vontade de Deus quanto atos concretos de justiça e misericórdia, e é termo que, na tradição judaica, passa a nomear também a esmola e a prática caritativa, como observam comentários rabínicos a este versículo. O verbo taṣṣîl (“livra, resgata”) está no imperfeito hifʿil 3ª fem. sing. do verbo nāṣal (“salvar, arrancar, libertar”), concordando com o sujeito feminino ṣədāqāh; assim, a justiça é apresentada não apenas como qualidade, mas como agente: é ela que, por designação divina, opera livramento. O complemento mimmāwet (“da morte”) traz a preposição min (“de, para fora de”) aglutinada ao substantivo māwet (“morte”), sugerindo uma libertação que arranca alguém de um domínio, não só de um evento pontual. Na articulação sintática, o waw adversativo (û, “mas”) liga esta cláusula à anterior em contraste forte, de modo que “tesouros de maldade” e “justiça” tornam-se dois caminhos alternativos: um promete muito e não entrega nada; o outro, muitas vezes custoso, torna-se instrumento de Deus para preservar a vida. Este versículo é um alerta contra confiar na riqueza, e não na retidão pessoal. Os perversos podem ser ricos, mas essa riqueza não lhes adiantará de nada depois de mortos. Neste caso, a morte é algo a temer — se a pessoa não conhece Deus. O fato de a integridade libertar da morte pressagia certa esperança de vida após a morte. O versículo antecipará o refrão bíblico de que a verdadeira segurança não está nos bens, mas numa relação correta com Deus e com o próximo, o que o Novo Testamento irá aprofundar quando fala de fé atuando por meio do amor (Gálatas 5:6) e de “tesouros no céu” (Mateus 6:19–21).

Em Bava Batra 10a, os sábios enumeram uma série de forças “fortes” no mundo e concluem: a morte é forte, mas a caridade é mais forte do que a morte, pois está escrito “ûṣĕdāqâ taṣṣîl mimmāwet”. O mesmo trecho distingue duas leituras: em combinação com Provérbios 11:4, os sábios inferem que a tzedaká resgata tanto de uma “morte estranha” neste mundo quanto da “morte de Geena”, de modo que o versículo se torna chave para a ideia de que gestos concretos de justiça e caridade criam, por assim dizer, um campo de proteção espiritual ([comentário talmúdico em AlHaTorah, Bava Batra 10a e folhas de estudo em Sefaria). Uma linha midráshica, preservada em coleções como Otzar HaMidrashim e sintetizada em estudos sobre Mishlei, lê este versículo sobre Sodoma: os “tesouros de maldade” são as riquezas acumuladas por Sodoma na abundância (Ezequiel 16:49), que não puderam livrá-la do juízo, enquanto a “justiça que salva da morte” é a retidão de Noé ou de Abraão, cuja ṣĕdāqâ torna-se contrapeso ao colapso do mundo ao redor (Biur: Mishlei 10:7). Na literatura cabalística, especialmente em Reishit Ḥokhma e em leituras do Zohar, esse versículo é dobrado: ṣĕdāqâ é, ao mesmo tempo, a caridade material e o próprio ato de estudar Torá — dois modos de alinhar o fluxo do mundo inferior com a justiça divina. A “salvação da morte” torna-se, então, o resgate do homem da sua desconexão espiritual, à medida que ele redistribui, em forma de dádiva, aquilo que recebeu de Deus ([Reishit Ḥokhma, Shaʿar HaTeshuvah 4, em Sefaria e estudos sobre “Tzedakah delivers from death”])

Provérbios 10:3

O senhor não deixará faminta a alma do justo, mas rechaçará o desejo dos ímpios. (Hb.: lō yarʿîv YHWH nefeš ṣaddîq wəhawwat rešaʿîm yehdōf — “Yahweh não fará passar fome a alma do justo, mas a ruína/desejo dos ímpios ele afastará”). O verbo yarʿîv (“fará passar fome”) está no imperfeito hifʿil 3ª masc. sing. de rāʿēv (“ter fome”), sugerindo um ato continuado que Deus não permitirá: Ele não causará, não deixará que a “alma” (nefeš, aqui a vida inteira, o ser do justo) seja deixada em estado de fome. Já nefeš ṣaddîq une o substantivo amplo nefeš (“vida, pessoa”) ao adjetivo ṣaddîq (“justo”), indicando que o alvo do cuidado não são expectativas genéricas, mas a vida daquele que se alinha à justiça de Deus. Em contraste, a segunda cláusula traz wəhawwat rešaʿîm; o termo hawwāh é semanticamente denso, podendo significar “desejo, cobiça” ou “ruína, desgraça”, e o contexto de desejo frustrado dos ímpios favorece a ideia de que aqui se trata tanto do apetite deles quanto do colapso ao qual esse apetite conduz. O verbo yehdōf (“empurrará, rechaçará”) é imperfeito qal 3ª masc. sing. de dāḥaf (“empurrar, afastar, rechaçar”), evocando a imagem de algo que se aproxima e é imediatamente repelido: Deus “empurra para longe” o projeto dos ímpios. Há paralelismo antitético: de um lado, Deus impede a fome do justo; de outro, afasta o que os ímpios cobiçam. O versículo não promete que o justo nunca sentirá carência física, mas afirma que Deus não o abandona ao vazio destrutivo; em contrapartida, o ímpio pode até ter momentos de saciedade, mas o núcleo de seu desejo será rechaçado. Este versículo fala de como Deus generosamente provê as necessidades da alma dos justos, mas retribui com Sua justiça aos ímpios. Provérbios assim ressaltam (1) as circunstâncias como deveriam ser e (2) o fim dos ímpios (Salmos 73:17). Não indicam necessariamente a vida como ela sempre é, nem o que os ímpios estão vivendo neste momento. O Novo Testamento ecoa esse padrão quando Jesus fala de famintos que serão fartos e de ricos que serão despedidos vazios (Lucas 1:53) e quando promete que aqueles que buscam primeiro o Reino terão o necessário acrescentado (Mateus 6:31–33).

A leitura rabínica desloca o foco de uma mera “fome física” para a fome espiritual e para o momento da morte. Em uma passagem de Midrash Mishlei ligada à morte dos justos, os sábios afirmam que, se até a morte do ímpio é, de certo modo, expiação, quanto mais a do justo; e citam: “o justo não é retirado deste mundo até que o Santo, bendito seja, tenha perdoado todos os seus pecados”, fundamentando-se justamente em Provérbios 10:3. Assim, “não fará faminta a alma do justo” é lido como “não o deixará morrer em estado de carência espiritual”, mas sim saciado de méritos e de perdão. Comentadores medievais como Ralbag aprofundam a tensão: para ele, Deus pode permitir que o justo padeça materialmente, mas não o abandonará moralmente; já “a cobiça dos ímpios” é uma voracidade que o próprio Deus “empurra para longe” (yehdōf), não permitindo que seus desejos se realizem indefinidamente ([Ralbag a Mishlei 10:3 e edição de Rashi]). A imagem rabínica, portanto, pinta o justo como alguém cuja fome mais profunda — fome de reconciliação e de Torá — é saciada pelo próprio Deus, enquanto o ímpio é perseguido pela frustração, como se sua própria vontade se tornasse um dardo que lhe é devolvido.

Provérbios 10:4

Pobre se torna quem faz [as coisas] com mão enganosa/negligente, mas a mão dos diligentes enriquece (Hb.: rāš ʿōśeh kap̄ remiyyāh wəyaḏ ḥārûṣîm taʿăšîr — “pobre se torna quem faz [as coisas] com mão enganosa/negligente, mas a mão dos diligentes enriquece”). O termo inicial rāš pode ser lido como substantivo “pobre” ou como verbo “tornar-se pobre”; a forma e o paralelismo favorecem a leitura verbal: “fica pobre”. ʿōśeh
(“faz, trabalha”) é particípio qal masc. sing. do verbo ʿāśāh (“fazer, agir”), indicando um modo habitual de trabalhar. O complemento kap̄ remiyyāh une kap̄ (“palma da mão”) a remiyyāh (“negligência, desleixo, também fraude”), de modo que a imagem é de uma mão frouxa, relaxada, talvez até desonesta, que toca o trabalho de forma leve demais.

Na segunda metade, yaḏ ḥārûṣîm (“mão dos diligentes”) traz ḥārûṣ como adjetivo substantivado (“diligente, decidido”), ligado a uma raiz que pode sugerir corte e decisão, alguém que “vai até o fim” no que faz. O verbo taʿăšîr (“enriquece”) está no imperfeito hifʿil 3ª fem. sing., concordando com yaḏ (“mão”) entendida metonimicamente como a pessoa trabalhadora: é esse modo firme de colocar a mão naquilo que se faz que se torna instrumento de enriquecimento. A sintaxe desenha um quiasmo temático com o versículo 10:5, onde o filho que “ajunta no verão” é sábio e o que “dorme na sega” é vergonhoso; aqui, “mão negligente” ↔ “dormir na sega”, e “mão diligente” ↔ “ajuntar no verão”. O provérbio afirma uma ordem criada em que Deus costuma abençoar a diligência, sem prometer um mecanicismo simplista; por isso o Novo Testamento pode, ao mesmo tempo, condenar a preguiça (2 Tessalonicenses 3:10–12) e reconhecer que há injustiças econômicas, mas ainda assim ver o trabalho honesto como via ordinária pela qual Deus supra o necessário.

A tradição rabínica lê “pobre” (rāš) e “palma enganosa” (kaf remiyyâ) não apenas em chave econômica, mas também espiritual. Rashi explica que “rāš ʿōseh kaf remiyyâ” é “aquele que é pobre em Torá e, mesmo assim, se atreve a emitir decisões haláchicas — ele faz uma ‘balança de engano’”, isto é, seu ensino distorce a justiça, tal como pesos falsos deformam a balança (Rashi a Mishlei 10:4). Outros comentaristas, como Ralbag, observam que essa pobreza nasce da preguiça: quem se recusa a trabalhar, a estudar, a construir competência, acaba recorrendo a artifícios desonestos — por isso sua “mão” se torna “enganosa”; já a “mão dos diligentes” (yad ḥārûṣîm) é a dos que “decidem a coisa na sua verdade”, isto é, aplicam esforço tanto no trabalho quanto na Torá, e por isso “enriquece” (Comentários de Ralbag e outros a Mishlei 10:4). Em leituras posteriores, como as notas de R. Yehoshua Hartman sobre Netivot Olam, esse versículo é aplicado diretamente ao estudo: quem acumula apenas “conclusões” sem compreender as raízes dos argumentos permanece “pobre” e acaba ensinando de forma distorcida, ao passo que aquele que desce ao “fundamento” de cada halachá é chamado de diligente e vê sua mente “enriquecida” pela verdade ([Notas a Netiv HaTorah 15 em Sefaria.org). Aqui, a balança torna-se metáfora para o intelecto: mãos preguiçosas torturam os pesos da realidade; mãos diligentes pesam com exatidão e, por isso, “enriquecem” em sabedoria.)

Provérbios 10:5

O que ajunta no verão é filho sábio, mas o que dorme na sega é filho que causa vergonha. (Hb.: ʾōgēr baqqayits ben maskîl, nirdām baqqāṣîr ben mêvîš
— “quem ajunta no verão é filho que age com prudência, quem dorme na colheita é filho que envergonha”). O verbo ʾōgēr (“ajunta, recolhe”) é particípio qal masc. sing. de ʼāgar (“ajuntar, armazenar”), construído com baqqayits (“no verão”), época em que se prepara o que será necessário para o tempo de escassez. O resultado é declarado na expressão ben maskîl, em que maskîl deriva da raiz śāḵal (“ser prudente, agir com discernimento”), funcionando aqui como predicativo: esse que ajunta, na verdade, “é um filho prudente”. A segunda metade contrapõe nirdām (“dormindo profundamente”) — particípio nifʿal sugerindo sono pesado, inércia — com baqqāṣîr (“na sega, na colheita”), momento em que toda a energia deveria estar concentrada no recolhimento. O resultado é ben mêvîš (“filho que envergonha”), com mêvîš participial de bôš (“envergonhar, ser envergonhado”), indicando alguém que traz vergonha constante, não apenas um ato isolado. Do ponto de vista sintático, o paralelismo com o versículo 1 é claro: em ambos temos dois “filhos” justapostos, um que alegra e outro que entristece; aqui, a sabedoria se manifesta em perceber a estação certa e agir nela, enquanto a insensatez aparece como recusa do momento oportuno. Essa pequena cena agrícola se torna parábola da vida espiritual: o tempo presente é “verão” para ajuntar aquilo que, mais tarde, sustentará a fé quando os ventos forem contrários, o que o Novo Testamento evocará em imagens como semear e ceifar (Gálatas 6:7–9) e como as virgens prudentes que se preparam com azeite em reserva (Mateus 25:1–13).

A literatura rabínica lê aqui, quase unanimemente, uma parábola do tempo — a juventude como “verão” e a velhice como “colheita”. Coleções homiléticas e midráshicas, retomadas em Sifrei Devarim e em comentários posteriores, aplicam o versículo aos que se dedicam à Torá “enquanto é dia”, isto é, enquanto têm forças e liberdade: o “filho prudente” é aquele que, na estação da energia, acumula estudo, méritos e boas ações; já o que “dorme na colheita” é aquele que desperdiça as oportunidades de agir, chegando ao “tempo da ceifa” com as mãos vazias ([Sifrei Devarim 48 em edições comentadas e resumos em Sefaria.org e Biur: Mishlei 10). Em muitas derashot modernas, seguindo esse fio clássico, “ajuntar no verão” é símbolo de um estudo paciente, pouco espetacular, feito de pequenas porções diárias; enquanto “dormir na sega” é negligenciar precisamente o momento em que os frutos estão maduros. Esta aplicação contemporânea, embora coerente com o padrão rabínico, é uma inferência minha a partir dessas fontes e não corresponde a um único midrash específico citado palavra por palavra.

Provérbios 10:6

Bênçãos pertencem à cabeça do justo, mas a boca do ímpio encobre a violência. (Hb.: bərākōt lərōš ṣaddîq ûpî rešaʿîm yəḵassê ḥāmās — “bênçãos sobre a cabeça do justo, mas a boca dos ímpios encobre violência”). O substantivo bərākōt é plural de bərākāh (“bênção”), aqui em sentido intensivo, como “muitas bênçãos, uma atmosfera de bênção”, e a preposição implícita “sobre” aparece com lərōš (“sobre a cabeça”), imagem que remete tanto à imposição de mãos e bênção ritual (como em Deuteronômio 33:1) quanto ao fato de que a vida do justo é “ungida” pela favorabilidade de Deus. O sujeito subentendido é a realidade de bênção que repousa, se acumula, como se a cabeça fosse um monte onde se derrama óleo (cf. Salmos 23:5). Em contraste, a segunda metade traz pî rešaʿîm (“a boca dos ímpios”) como sujeito, seguido pelo verbo yəḵassê (“encobre”), imperfeito piʿel 3ª masc. sing. do verbo kāsāh (“cobrir”), e pelo objeto ḥāmās (“violência, injustiça, maldade agressiva”). A ideia não é apenas que há violência na boca, mas que a boca funciona como tampa que esconde um conteúdo violento, mascarando-o com palavras suavizadas. Sintaticamente, o provérbio contrapõe “cabeça” e “boca”: sobre a cabeça do justo repousam bênçãos; da boca dos ímpios sai um discurso que recobre e disfarça a violência que praticam. Isso mostra que a justiça não é apenas ausência de mal, mas presença de um favor que se torna visível na própria pessoa; já a maldade, ao contrário, precisa ser ocultada sob retórica, justificativas e eufemismos. O Novo Testamento retoma esse contraste quando fala da boca como fonte de bênção ou maldição (Tiago 3:9–10) e quando Jesus denuncia os “sepulcros caiados” que por fora parecem belos mas por dentro estão cheios de podridão (Mateus 23:27–28), ecoando a mesma lógica de violência encoberta sob aparência aceitável.

Aqui, a tradição rabínica entrelaça história patriarcal, ética da fala e mística das bênçãos. Um fio midráshico, preservado em Bereshit Rabbah 75:7 e ecoado por Rokeach, identifica “a cabeça do justo” com Jacó: “berakhot lerōʾš ṣaddîq — este é Jacó, a quem seu pai Isaac abençoou; ûpî rešaʿim yĕkassê ḥāmās — este é Esaú, como está escrito: ‘por causa da violência contra teu irmão Jacó, vergonha te cobrirá’ (Obadias 1:10)” (Biur: Mishlei 10:6). Em outra direção, Rashi interpreta “a boca dos ímpios encobre violência” não como silêncio, mas como disfarce: a boca dos ímpios “cobre” o ḥāmās que está no coração, falando com lábios suaves enquanto abriga ódio e dano por dentro ([Rashi a Mishlei 10:6 e 10:11 em AlHaTorah). Essa leitura torna o verso uma crítica direta ao discurso manipulador, no qual a bênção está na superfície dos lábios, mas serve de máscara para a violência. Textos hassídicos e cabalísticos vão mais fundo: em obras como Tzidkat HaTzadik e Talmud Eser HaSefirot, “bênçãos sobre a cabeça do justo” são vistas como coroas espirituais que repousam sobre a consciência (daʿat) de quem orienta todos os seus atos “para o Nome do Céu”; as bênçãos que o justo pronuncia são, antes de tudo, a sua própria postura interior de reconhecer Deus “antes de cada ato” ([Tzidkat HaTzadik §2; folhas de estudo em Sefaria.org; Talmud Eser HaSefirot XI, 118). Assim, o provérbio é lido como um retrato de dois mundos: sobre a cabeça do justo, um halo de bênçãos que brotam de sua orientação interior; na boca do ímpio, uma película de palavras que tenta esconder — mas acaba denunciando — a violência que fermenta por baixo.

Provérbios 10:7

A lembrança do justo é para bênção, mas o nome dos ímpios apodrecerá. (Hh.: zeker ṣaddiq livrakhah wešem rešāʿim yirqav — “memória de justo para bênção, e nome de ímpios apodrecerá”). O substantivo zeker (“lembrança, memória”) vem da raiz zākhar (“lembrar”), e aqui aparece como núcleo do primeiro sintagma, ligado por justaposição a ṣaddiq (“justo”), adjetivo substantivado que em Provérbios designa aquele cuja vida se conforma à ordem de Deus e não apenas alguém juridicamente inocente. A expressão seguinte, livrakhah (“para bênção”), com preposição le- mais o substantivo berakhah (“bênção”), não é apenas um predicado adjetivo (“é abençoada”), mas indica finalidade e direção: a lembrança do justo tende a produzir bênção, elogio, vida — ela se torna canal de bem sobre quem recorda e sobre a comunidade que guarda esse nome. Sintaticamente, temos um colon nominal em que “lembrança do justo” é o sujeito e “para bênção” a sua qualificação; o segundo colon contrapõe wešem rešāʿim yirqav (“mas o nome dos ímpios apodrecerá”), onde šēm (“nome”) condensa reputação, memória pública, identidade; rešāʿim é plural de rāšāʿ (“ímpio, injusto”), e o verbo yirqav é imperfeito de rāqav (“apodrecer, decompor-se”), pintando uma imagem forte: não apenas esquecimento, mas decomposição, como algo que cheira mal quando lembrado. A antítese “lembrança” / “nome” e “bênção” / “apodrecer” organiza toda a sintaxe em dois blocos paralelos, e a teologia do versículo afirma que a memória é um lugar onde Deus continua emitindo juízo: o justo continua abençoando mesmo depois de morto (como em Salmos 112:6), enquanto o ímpio, ainda que tenha sido famoso, termina deixando um rastro de decomposição moral. O eco neotestamentário aparece quando a comunidade cristã é chamada a lembrar seus líderes fiéis e imitar-lhes a fé (Hebreus 13:7), como se a “lembrança do justo” continuasse sendo bênção para as gerações seguintes.

Na leitura rabínica, este versículo se tornou quase um axioma de como falar dos mortos: Rashi explica que, sempre que o justo é mencionado, deve-se associar bênção, enquanto o nome do ímpio tende a ser evitado, apagado da recordação comum, porque a sua influência é corrosiva (Rashi em Mikraot Guedolot sobre Provérbios 10:7). O Talmud em Yoma 38b cita explicitamente o versículo para fundamentar a regra de que “a memória do justo é para bênção, e o nome dos ímpios apodrecerá”, aplicando-o à forma como se narram biografias: os sábios insistem em destacar méritos dos justos (para que se imite o seu caminho) e, inversamente, reduzem o espaço discursivo dado aos ímpios, como se o próprio nome deles se desintegrasse na boca que o pronuncia. Comentários medievais como o Biur (Biur: Mishlei 10:7) e o Midrash Shmuel (Midrash Shmuel ligado a Provérbios 10:7) lembram que “memória” aqui não é apenas lembrança psicológica, mas uma espécie de legado ativo: falar de um tzaddiq desperta nos ouvintes desejos de teshuvá, estudo e boas ações, de modo que o justo continua abençoando o mundo mesmo depois da morte, enquanto os ímpios, mesmo que tenham sido poderosos, deixam apenas um rastro de esquecimento e vergonha.(daat.ac.il) A tradição litúrgica judaica transformou este versículo em fórmula: “zichrono livrachah” após o nome de um justo, “yimmaḥ shemo” ou o simples silêncio em relação a opressores e perseguidores, reforçando a leitura rabínica de que a história humana é uma espécie de campo onde nomes florescem ou apodrecem conforme o tipo de vida que representaram (Exemplo em Midrash Shmuel 1).

Provérbios 10:8

O sábio de coração aceita mandamentos, mas o insensato tagarela se rebela. (Aqui a forma hebraica pede um pequeno ajuste: “O sábio de coração recebe mandamentos, mas o insensato de lábios cairá [em ruína]”. Texto: ḥakam-lev yiqqaḥ miṣwot weʾewil sefatayim yillavet — “sábio de coração tomará mandamentos, e insensato de lábios será derrubado”. O sintagma ḥakam-lev (“sábio de coração”) combina o adjetivo ḥakam (“sábio”) com lev (“coração”) como sede da inteligência, da vontade e das decisões; não se trata de alguém apenas intelectualmente brilhante, mas de interior moldado pela sabedoria. O verbo yiqqaḥ é imperfeito qal 3ª masc. sing. de lāqaḥ (“tomar, receber”), aqui com nuance volitiva: ele se dispõe a “tomar” miṣwot (“mandamentos, instruções”), plural de miṣwah, palavra-chave para os preceitos de Deus, mas também, no contexto de Provérbios, para a instrução dos pais que participa dessa autoridade. O segundo hemistíquio traz weʾewil sefatayim (“e o insensato de lábios”), em que ʾewil é a figura típica do tolo endurecido, e sefatayim (“lábios”) funciona como genitivo que define o modo de sua tolice: é alguém que se caracteriza pelo falar descuidado, precipitado, vazio. O verbo yillavet (imperfeito da raiz lāvaṭ), que versões e léxicos interpretam como “cair, ser derrubado, vir ao fracasso”, indica ruína mais do que simples rebeldia; as traduções como “será destruído” ou “cairá” refletem esse sentido. O paralelismo é claro: o “sábio de coração” é definido pela relação humilde com mandamentos que vêm de fora; o “insensato de lábios” é definido pelo fluxo descontrolado de palavras que saem de dentro. O provérbio descreve dois movimentos espirituais opostos: acolher mandamentos é abrir a interioridade para que Deus a informe; falar demais sem ouvir é expor a própria vida ao colapso. O Novo Testamento retoma essa dinâmica quando exorta a “receber com mansidão a palavra implantada” (Tiago 1:21) e, no mesmo contexto, avisa que a língua descontrolada torna a religião “vã” (Tiago 1:26), ecoando o “insensato de lábios” que acaba derrubado pelo próprio falar.

Provérbios 10: Significado, Explicação e Devocional

A exegese rabínica enxerga no “sábio de coração” aquele que corre para cumprir mitzvot no instante em que surgem, sem se perder em discursos. A Mekhilta de-Rabbi Ishmael, na leitura preservada em Rashi e em Mikraot Guedolot sobre Provérbios 10:8, aplica diretamente “ḥākam lēv yiqqaḥ miṣwōt” a Moisés: enquanto o povo se preocupa com os despojos do Egito, ele se ocupa em cumprir o mandamento de levar os ossos de José — ele é o “sábio de coração” que “toma” o mandamento antes que a oportunidade se perca (Mishlei 10:8 com Rashi; ver também a edição da Mekhilta de-Rabbi Ishmael em torno de Êxodo 13:19). Outros midrashim (como coleções citadas em Pesikta Rabbati) e comentaristas como Malbim desenvolvem a ideia de que a verdadeira ḥokhmáh do coração é prontidão prática: não basta compreender intelectualmente, é preciso “segurar” a mitzvá, agarrá-la com as mãos antes que o momento passe (Malbim sobre Provérbios 10:8). Em contraste, o ʾĕwîl śəfātayim (“insensato de lábios”) é, na leitura dos comentaristas, aquele que se refugia em justificativas, slogans religiosos ou racionalizações, falando tanto que nunca age; por isso o verbo yillābēt é entendido como “tropeçar”, “ser confundido” ou “ser esmagado” — a própria fala torna-se armadilha para quem a usa como substituto da obediência (Malbim discute a raiz l-b-t também em seu comentário lexical a Isaías 5:29). Nesta leitura, o versículo desenha dois tipos espirituais: o da obediência silenciosa e o da religiosidade falante e vazia; os rabinos convidam o leitor a identificar-se com o primeiro, vendo nas histórias de Moisés, de Avraham ou de Aharon modelos daquele que “toma” mandamentos antes que a inércia os roube.

Provérbios 10:9

Quem anda em integridade anda seguro, mas quem torce os seus caminhos será descoberto. (Hb.: holekh batom yelekh betaḥ, umeʿaqesh derakhav yivvādeaʿ — “quem anda em inteireza andará em segurança, e quem entorta os seus caminhos será conhecido”). O particípio holekh (“aquele que anda”) seguido de batom (“em integridade”) descreve um modo de vida contínuo; tom vem da ideia de inteireza, completude, algo não rachado, e designa o caráter coeso da pessoa. O verbo seguinte, yelekh (imperfeito qal 3ª masc. sing. de hālak), reforça que sua caminhada “será” em betaḥ (“segurança, confiança”), termo que pode indicar ausência de ameaça externa e, ao mesmo tempo, tranquilidade interior. No segundo colon, meʿaqesh derakhav junta o particípio meʿaqesh (de ʿiqeš, “entortar, distorcer”) com derakhav (“os seus caminhos”); não é simplesmente “o perverso” em abstrato, mas aquele que deliberadamente vai puxando os próprios caminhos para o torto, para a curva que esconde a verdade. O verbo yivvādeaʿ é forma nifʿal (passiva/reflexiva) de yādaʿ (“conhecer”), com sentido de “ser tornado conhecido, ser desmascarado, vir à luz”. A sintaxe une os dois membros em um teorema moral: a integridade, ainda que às vezes pareça arriscada, é o único terreno realmente firme; já a vida construída sobre distorções inevitavelmente será exposta. O Novo Testamento retoma essa certeza quando afirma que “não há nada oculto que não venha a ser manifesto” (Lucas 8:17) e quando incentiva o crente a andar “honestamente, como de dia” (Romanos 13:13), ecoando o caminhar em tom que permite viver em betaḥ.

Radak e outros exegetas clássicos definem tōm aqui como simplicidade íntegra, um andar sem duplicidade, no qual a pessoa faz por dentro o que parece por fora; por isso, quem anda assim “bataḥ” — com confiança —, porque nada tem a esconder nem dos homens nem de Deus (cf. a leitura de tōm em comentários medievais reunidos em Mikraot Guedolot sobre Provérbios 10). Malbim sublinha que məʿaqēš dĕrāḵāyw não é apenas alguém que peca pontualmente, mas quem faz dos desvios um “sistema de vida”, construindo caminhos tortuosos, alianças ambíguas, manipulações; esse tipo de esperteza aparentemente “rabínica” é declarada como autodestrutiva, pois o próprio versículo promete que ele “será conhecido”, isto é, mais cedo ou mais tarde suas tramas vêm à luz, seja pela Providência, seja pelas consequências sociais inevitáveis. Textos de mussar e derashot posteriores frequentemente ligam este versículo a figuras como Avraham, descrito como alguém que “anda diante de Deus com inteireza”, em contraste com personagens bíblicos que vivem de duplicidade (como Balaão ou Doeg), ecoando a lição de que, no imaginário rabínico, o “andar” ético diante de Deus vale mais do que qualquer cálculo de autopreservação. Nessa leitura, o provérbio funciona quase como lei espiritual: a segurança não está na astúcia, mas na transparência; já o que se apoia na astúcia acaba paradoxalmente exibido, como se o próprio texto bíblico prometesse que a verdade, mais cedo ou mais tarde, “publicará” os caminhos de cada um.

Provérbios 10:10

Quem pisca o olho causa dor, e o insensato de lábios cairá [em ruína]. (Hb.: qoreṣ ʿayin yitten ʿaṣṣavet weʾewil sefatayim yillavet — “quem pisca o olho dará tristeza, e insensato de lábios será derrubado”). O particípio qoreṣ (de qāraṣ, “piscar, fazer sinal com o olho”) evoca o gesto cúmplice, a comunicação cifrada que, em Provérbios 6:13, é típica do homem perverso que trama o mal; ʿayin (“olho”) funciona aqui como complemento de instrumento (“com o olho”). O verbo yitten (imperfeito qal 3ª masc. sing. de nātan, “dar”) seguido do substantivo ʿaṣṣavet (“tristeza, dor, sofrimento”) cria um efeito paradoxal: esse piscar aparentemente leve “dá” dor aos outros, como se cada sinal de malícia plantasse sofrimento no corpo social. O segundo hemistíquio repete exatamente a expressão de 10:8b, weʾewil sefatayim yillavet, reforçando o retrato do “insensato de lábios” cuja fala descontrolada o leva à queda; como indica a análise lexical, yillavet aponta para ser derrubado, lançado por terra, não para uma simples atitude de rebeldia interior. Sintaticamente, é significativo que aqui o conector seja “e” e não “mas”: não se trata de antítese entre dois tipos, mas de um pequeno acúmulo de cenas que pertencem ao mesmo universo moral — o gesto insinuante e a tagarelice insensata são duas faces da mesma irresponsabilidade que fere o outro e termina em ruína. Em chave exegética, o provérbio descreve o poder ético da linguagem corporal e verbal: olhares, códigos, piadas, insinuações aparentemente inocentes podem fazer emergir conflitos profundos e, ao fim, esmagar o próprio insensato. O Novo Testamento ecoa essa gravidade quando fala dos olhos como lâmpadas do corpo (Mateus 6:22–23) e da língua como fogo que incendeia um grande bosque (Tiago 3:5–6).

Rashi lê o “piscar de olhos” não como um gesto casual, mas como sinal de conspiração: é o indivíduo que, com pequenos gestos e insinuações, incita outros ao mal, guiando pela linguagem dos códigos e não pela clareza da fala; ele conecta o versículo com o “homem perverso” de Provérbios 6:12–13, que “pisca com os olhos” e faz sinais com dedos (Rashi sobre Provérbios 10:10 e 6:12–13). Em continuidade com Provérbios 6:12–13, comentadores rabínicos veem aqui a anatomia de uma maldade que opera nos bastidores: o olhar se torna instrumento de manipulação, despertando invejas, ciúmes, alianças ocultas que, inevitavelmente, “dão” (yittēn) tristeza e dor à comunidade. Já o ʾĕwîl śəfātayim, retomado do versículo 8, é aquele cuja tagarelice acaba expondo-o: Radak observa que quem fala demais sem ponderar acaba “embaraçado” e punido pelas próprias palavras, enquanto Malbim nota que em Provérbios 10 a linguagem do tolo é um fio condutor de ruína — a mesma boca que minimiza e justifica o mal agora é instrumento pelo qual ele tropeça. A tradição rabínica, assim, lê o versículo como advertência contra duas formas de irresponsabilidade: a conspiração silenciosa, que pisca e insinua, e a verborragia imprudente, que verbaliza sem freio; em ambos os casos, o dano recai sobre a comunidade e, no fim, sobre o próprio agente.

Provérbios 10:11

Fonte de vida é a boca do justo, mas a boca dos ímpios cobre violência. (Hb.: meqor ḥayyim pi ṣaddiq ûpi rešāʿim yekhasseh ḥamas — “fonte de vida [é] boca de justo, e boca de ímpios cobrirá violência”). O substantivo meqor (“fonte, manancial”) associado a ḥayyim (“vida”) forma uma metáfora densíssima: a boca do justo não é apenas veículo de palavras corretas, mas nascente de vitalidade, orientação, consolo, correção que preserva da morte (cf. Provérbios 13:14). Sintaticamente, pi ṣaddiq (“boca de justo”) funciona como predicativo desse manancial: é como se o texto dissesse que, onde um justo abre a boca, ali brota algo que sustenta e protege a vida. No segundo colon, ûpi rešāʿim (“e boca de ímpios”) é o sujeito do verbo yekhasseh (imperfeito piʿel de kāsāh, “cobrir”), que toma ḥamas (“violência, injustiça agressiva”) como objeto: a boca deles “cobre” a violência, isto é, esconde o caráter violento de suas ações sob o verniz de um discurso aceitável. O paralelismo coloca, frente a frente, “fonte de vida” e “cobertura de violência”: a mesma faculdade de falar tanto pode tornar-se canal visível da vida de Deus quanto capa que disfarça a opressão. O provérbio mostra que, para a teologia de Provérbios, a ética é profundamente linguística: aquilo que se diz — e a forma como se diz — participa da obra de Deus de preservar a vida ou, ao contrário, participa do mascaramento do mal. No Novo Testamento, esse fio se prolonga quando Jesus declara que “a boca fala do que está cheio o coração” (Mateus 12:34) e quando se afirma que a palavra dos crentes deve ser “sempre agradável” e ao mesmo tempo “temperada com sal” (Colossenses 4:6), unindo graça e verdade como fluxo dessa “fonte de vida”.

A imagem da məqōr ḥayyîm (“fonte de vida”) torna-se, na literatura rabínica, um símbolo denso: Midrash haGadol sobre Gênesis 26 associa os poços cavados pelos servos de Isaque a este versículo, dizendo “felizes os justos que, onde quer que vão, cavam poços e fazem jorrar água para muitos; por isso está dito: ‘fonte de vida é a boca do justo’”, como se o tzaddiq fosse um poço ambulante que faz emergir vida onde passa. Bereshit Rabbati aplica a expressão a Eliseu: assim como a fonte de água não cessa, ele não recuou da palavra que havia dito, mostrando que a “fonte de vida” é também a firmeza da palavra justa que sustenta e cura em vez de abandonar (Bereshit Rabbati sobre Gênesis 33:6). Comentadores como o Gaon de Vilna e o Biur em Mishlei 10 destacam que “vida” aqui se desdobra em três planos: a sabedoria recebida e ensinada (Torá como “fonte de vida”), a orientação ética concreta que o tzaddiq oferece a quem o escuta, e até a promessa de vida no mundo vindouro, de modo que a boca do justo é como uma nascente que alimenta rios sucessivos de vitalidade (nota de R. Yehoshua Hartman a Netivot Olam, Netiv HaTorá 4:90; Biur: Mishlei 10). Em contraste, “a boca dos ímpios encobre violência” é lida como denúncia de discursos que maquiam injustiças: a linguagem dos rĕšāʿîm cobre (yĕkassē) o ḥāmās com eufemismos, justificativas religiosas ou políticas, ou simplesmente silenciando vítimas. Em termos rabínicos, este versículo funciona como teste: a maneira como alguém fala — se ele abre fontes de vida, discernimento e consolo, ou se seu discurso encobre opressões — revela a quem sua boca serve (texto hebraico de Provérbios 10 em Mechon Mamre).

Provérbios 10:12

O ódio suscita contendas, mas o amor cobre todas as transgressões. (Hb.: sinʾah teʿorer medanim weʿal kol pəšaʿim tekhasseh ʾahavah — “ódio desperta contendas, mas sobre todas as transgressões o amor cobrirá”). O substantivo sinʾah (“ódio, aversão”) abre o versículo como sujeito forte, seguido pelo verbo teʿorer (imperfeito piʿel de ʿur, “acordar, despertar”), que aqui tem o sentido de atiçar, pôr em ebulição; o objeto medanim (“contendas, brigas”) descreve os conflitos que o ódio faz emergir, conflitos que talvez estivessem latentes e são levantados à superfície quando se alimenta ressentimento e desejo de vingança. Em contraste, o segundo hemistíquio começa com a preposição weʿal (“e sobre”), ligada a kol pəšaʿim (“todas as transgressões”), plural de pešaʿ que aponta para rebelião consciente, e segue com tekhasseh ʾahavah (“o amor cobrirá”), em que tekhasseh é imperfeito de kāsāh (“cobrir”) e ʾahavah (“amor”) surge como sujeito posposto, dramatizando o versículo: o amor entra em cena e lança uma cobertura sobre a montanha de pecados. Essa “cobertura” não é encobrimento cúmplice que nega a gravidade da transgressão, mas o movimento de quem, ao invés de reacender a chama da contenda, busca o caminho da reconciliação, da intercessão, do perdão que interrompe a cadeia de agressões. Sintaticamente, o provérbio desenha uma dinâmica espiritual: o ódio age de baixo para cima, “despertando” conflitos; o amor age de cima para baixo, “cobrindo” uma multidão de faltas. A tradição cristã lerá esse versículo como matriz do dito de 1 Pedro 4:8 — “o amor cobre uma multidão de pecados” — e o inserirá no horizonte da cruz, onde o amor de Deus oferece uma cobertura que não nega o pecado, mas o assume e o vence. Aqui, em Provérbios, já se pressente esse movimento: uma comunidade só deixa de ser campo de batalha quando o amor decide, repetidamente, não acender o que o ódio gostaria de despertar.

Ralbag e Metsudot notam que o versículo põe em contraste dois modos de olhar o mesmo ato: o ódio interpreta até gestos inocentes como ofensa e “desperta” (faz acordar) velhas querelas, enquanto o amor tende a ler mesmo uma ofensa real com caridade, cobrindo-a, isto é, não expondo, não reabrindo a ferida. Vayikra Rabbah 7:1 oferece uma leitura mais dramática de śinʾāh təʿōrer mĕdānîm: ali, o midrash aplica a expressão à “inimizade” que Aarão colocou entre Israel e o bezerro de ouro, dizendo que ele mostrava o ídolo ao povo e declarava “vejam: não há nada nisso!”, despertando assim sobre eles “muitos juízos” — a “contenda” aqui é o confronto necessário com o pecado, num contexto de idolatria que precisa ser desmascarada (Vayikra Rabbah 7:1). Esse mesmo midrash, porém, é lido em chave de amor por autores posteriores: precisamente porque Aarão ama o povo, ele não deixa o pecado ficar encoberto; há ódio ao pecado que serve ao amor pelo pecador, o que prepara a segunda metade do versículo. No lado da ʾahăbāh

, textos rabínicos e hassídicos insistem que “cobrir transgressões” não significa negar a existência do mal, mas tratar a pessoa a partir do que há de mais profundo nela, como observa o biur contemporâneo em Mishlei 10:12. Quando há amor verdadeiro, as pessoas “estão dispostas a relevar até coisas graves”, porque olham o outro pelo prisma da relação e não apenas do dano sofrido. Midrashim como Sekhel Tov (por exemplo, ao comentar Gênesis 32:21 e a tentativa de Jacó de apaziguar Esaú) associam o verbo “cobrir” a kippēr (“expiar”), explicando que, quando alguém busca apaziguar o rosto do outro, está “cobrindo” a ira, tal como o amor cobre as transgressões: não apagando-as magicamente, mas envolvendo-as num tecido de reconciliação, em que a ofensa deixa de ser o último nome da relação. Nessa tessitura rabínica, Provérbios 10:12 se torna um eixo espiritual: ódio é uma energia que acorda brigas adormecidas e reabre arquivos; amor, ao contrário, é uma força que sabe quando calar, quando não repetir, quando deixar certas palavras morrerem, para que a vida comum possa continuar.

Provérbios 10:13

Nos lábios do inteligente há sabedoria, (Hb.: primeira cláusula bəśip̄tê navon timmāṣē ḥokmāh — “nos lábios do prudente se encontra sabedoria”). Aqui, ḥokmāh (“sabedoria”) é substantivo feminino singular, núcleo semântico do versículo, e navon (“inteligente, perspicaz”) funciona como adjetivo/substantivo para aquele que sabe discernir, ligado ao verbo bîn — o homem que não apenas sabe, mas entende, distingue, penetra. O verbo timmāṣē (“é encontrada”) está no nifal imperfeito 3ª f. sing., com a sabedoria como sujeito: não é o sábio fabricando sabedoria, é a própria sabedoria que “se deixa achar” em seus lábios, como uma fonte já armazenada no interior que transborda no falar.

Na leitura rabínica clássica, essa meia-linha descreve o discípulo que recebe repreensão como alguém em cuja boca a própria sabedoria se manifesta no ato de ser corrigido. Rashi, conservado em edições de Mikraot Guedolot como a da Universidade Bar-Ilan, explica que, quando se admoesta o “nāvōn”, ele responde prontamente “pequei”, como Davi diante de Natã em 2 Samuel 12:13; a sabedoria que se encontra em seus lábios é a capacidade de confessar, ajustar o curso e acolher a verdade assim que ela o alcança . Ralbag, no mesmo conglomerado de comentários, descreve esse “nāvōn” como alguém em cujos lábios se encontra “o bem mais excelente de todos os bens”, pois ele fala de modo ponderado, e sua palavra é fruto de um coração já trabalhado, de ações e pensamentos calibrados pela razão; a sabedoria não é apenas conteúdo, mas um modo inteiro de falar que evita palavras que ferem e atos que corrompem . Um outro comentarista reunido em Mikraot Guedolot HaKeter lê “se achará sabedoria” como promessa para quem busca: é nos lábios do “nāvōn” que o aprendiz deve procurá-la, porque a sabedoria é descanso para os entendidos e, ao mesmo tempo, a própria vara para quem é “ḥăsar-lēv”; a mesma palavra que consola e elucida o discípulo atento é a palavra que, para o insensato, soa como golpe . Em desenvolvimento mais longo, um comentário ali associa o “nāvōn” a um coração amplo, de memória afiada e inteligência penetrante: bastam poucas palavras do mestre, que mal tocam seus lábios, e a sabedoria se fixa como tesouro escondido em seu peito, enquanto a pedagogia rabínica sugere que todo aquele que não nasceu com tal facilidade não deve, por isso, desesperar, mas dispor-se ao esforço redobrado até que a mesma sabedoria também se encontre em seus lábios . Esse conjunto de leituras rabínicas desenha a figura de um aluno cuja boca é como uma taça virada para o céu: o ensino cai, ele o recebe sem resistência, e o que sai de sua boca depois já não é apenas eco, mas sabedoria amadurecida pelo consentimento interior.

mas a vara é para as costas do que não tem entendimento. (Hb.: wəšēveṭ ləgēw ḥăsar-lēv — “mas a vara [é] para as costas do que falta coração”). Na segunda metade, šēveṭ (“vara, cetro, instrumento de disciplina”) e gēw (“costas”) criam a imagem física da correção corporal, enquanto ḥăsar-lēv (“falta de coração”) designa o insensato como alguém carente de centro interior, de consciência e reflexão, mais do que de mera inteligência abstrata. Sintaticamente, os dois cola se equilibram: onde a boca do prudente é veículo da sabedoria, o corpo do insensato torna-se alvo da disciplina, porque, sem “coração”, não aprende pela palavra, mas apenas pela dor. O provérbio antecipa o tema neotestamentário da palavra que revela o interior — aquilo que Jesus retoma ao afirmar que “a boca fala do que está cheio o coração” em Mateus 12:34, de modo que os lábios do prudente são quase sacramento visível de uma sabedoria invisível acumulada no coração.

Rashi, na mesma página de Mikraot Guedolot, afirma que o “ḥăsar-lēv” “não ouve até ser golpeado”, como Faraó, que suportou praga após praga e mesmo assim endureceu o coração; só quando a vara atinge o corpo é que ele, tardiamente, começa a escutar . Ralbag desenvolve essa ideia: não basta a esse tipo de pessoa carecer do bem supremo que é a sabedoria; por causa da deficiência de seu entendimento, “as maldades e os golpes se apegam ao seu corpo”, pois suas palavras e ações defeituosas provocam continuamente reações negativas das pessoas ao redor, a ponto de as próprias relações sociais se tornarem um castigo encarnado . Outro comentário reunido na mesma página nota que há, nas palavras “šēveṭ lĕgēv ḥăsar-lēv”, um eco do sistema de disciplina judicial: nossos sábios calcularam “lĕgēv” em guematria como equivalente a “malkot”, as quarenta açoites menos um, lendo o versículo como um aceno à pedagogia das punições corporais que a Halachá prevê para certas transgressões — a vara aqui é não apenas metáfora genérica, mas símbolo de um regime bem definido de correção.

Ainda outro exegeta ali explica que “šēveṭ” é o bastão de quem exerce autoridade e que “gēv” equivale a “guf” (corpo), indicando que, quando alguém se recusa a aprender por amor ao conhecimento, resta-lhe aprender por dor: a vara sobre o corpo substitui a sabedoria que deveria habitar o coração . A literatura homilética posterior retoma esse motivo: em Akeidat Yitzchak 11:1, o autor cita “šēveṭ lĕgēv ḥăsar-lēv” para afirmar que os sofrimentos conduzem à teshuvá (“as aflições trazem à penitência”), ilustrando com a imagem do cego que caminha tateando atrás do cão que o guia — o “shevet”, nesse quadro, deixa de ser apenas chicote punitivo e torna-se bordão que orienta o desorientado até a casa do arrependimento .

Em chave mais pedagógica, o comentário de Biur sobre Mishlei 10 em he.wikisource descreve o “ḥăsar-lēv” como alguém que “não sente os conceitos de justiça e retidão”, exigindo um “šēveṭ” que o sacuda para fora da insensibilidade . Uma longa passagem homilética em Mikraot Guedolot compara essa figura a um campo “būr”, inculto e duro, que precisa de muitas lavouras e arados para, enfim, tornar-se fértil; do mesmo modo, ensinam os mestres de mussar, a terra humana mais salgada e abandonada pode, com trabalho intenso, ser corrigida, e o primeiro passo é buscar um mestre que “vigie com repreensão e com golpes” até que o aluno comece a frutificar . No horizonte rabínico, portanto, esta meia-linha não legitima sadismo nem violência gratuita, mas dramatiza a diferença entre o discípulo que se deixa mover por uma palavra e aquele que só desperta quando a vida inteira se torna vara, e cada colisão com a realidade funciona como um golpe que, se acolhido, pode finalmente abrir espaço para a sabedoria que faltava no coração.

Provérbios 10:14

Os sábios acumulam conhecimento, mas a boca do tolo aproxima a ruína. (Hb.: ḥăkāmîm yiṣpənû daʿat ûpî ʾĕwîl məḥittāh qərōbāh — “os sábios armazenam conhecimento, mas a boca do tolo é ruína chegada/perto”). O sujeito plural ḥăkāmîm (“sábios”) indica uma categoria de pessoas, não um indivíduo isolado, e o verbo yiṣpənû vem de ṣāpan (“esconder, guardar”), no qal imperfeito 3ª masc. plural: os sábios continuamente guardam, tesouram o conhecimento como se fosse prata num cofre. Daʿat (“conhecimento”) aqui é substantivo feminino singular que carrega a ideia de saber experimentado, não mera informação.

A leitura rabínica clássica vê, antes de tudo, um movimento de interiorização: em Mikraot Guedolot (Rashi e Radak reunidos), “os sábios guardam o conhecimento no coração, para que não se apague e para tê-lo pronto no tempo da necessidade”, ou, em outra formulação, “não revelam imediatamente o que está no coração”. A mesma linha reaparece na síntese contemporânea de tora.us.fm, que explica yiṣpənnû como um verbo que une duas nuances: guardar em lugar seguro e transmitir de forma “oculta”, codificada; os verdadeiros mestres “sabem esconder” o saber, tanto no próprio interior quanto na forma como o comunicam. Ralbag, na recolha de Mikraot Guedolot sobre Provérbios 10:14, radicaliza esse ponto: os sábios não publicam tudo o que sabem, justamente porque certas verdades, “boas em si mesmas”, podem tornar-se danosas se forem lançadas sem filtro “sobre a multidão”, que não está preparada para compreender a intenção plena dessas ideias; o esconder é, portanto, ato de responsabilidade pedagógica, não de egoísmo.

Malbim, ao comparar este versículo com Provérbios 12:23, distingue entre o ḥakham que “yiṣpənnû daʿat” e o ʿarum que “cobre” o conhecimento: o sábio guarda para poder ensinar no momento certo, segundo “as leis da sabedoria recebida” (ḥokhmat ha-mekubbelet), enquanto o astuto egoísta guarda apenas para si, como capital simbólico. Em termos de tradição, esse verso torna-se quase um lema para a doutrina dos segredos: em Nachalat Avot sobre Avot 6:1, cita-se explicitamente “ḥakhamim yiṣpənnû daʿat” como prova de que certas partes da Torá — sobretudo os mistérios da criação e da carruagem, discutidos em Hagigá 11b — não podem ser ensinadas indiscriminadamente, mas apenas a poucos discípulos selecionados.

Essa leitura é reforçada por comentaristas éticos como Yein Levanon sobre Pirkei Avot 4, que toma o título de ḥakham como sempre positivo e o associa justamente à capacidade de reter, filtrar e medir a fala: o sábio é aquele cuja grandeza está menos em “saber muito” e mais em saber quando calar e quando falar, em consonância com a ética da palavra sintetizada por Pirkei Avot 1:17, onde se afirma que “não encontrei nada melhor para o corpo do que o silêncio” e que “quem multiplica palavras traz pecado”. Na linha rabínica, então, este meio versículo não exalta um acúmulo exibicionista, mas um tesouro silencioso: os sábios “escondem” o conhecimento não para aprisioná-lo, mas para que ele se torne memória viva, disponível na hora certa e preservado tanto do esquecimento quanto do mau uso.

mas a boca do tolo está perto da ruína (Hb.: ûpî ʾĕwîl maḥittāh qĕrōbāh — “mas a boca do tolo é ruína próxima/iminente”). Já pî ʾĕwîl (“a boca do tolo”) põe o foco não na interioridade, mas na saída descontrolada da fala, e məḥittāh (“destruição, colapso”) mais qərōbāh (“próxima”) pintam a cena de um desabamento que já está à porta, prestes a cair. Sintaticamente, o paralelismo antitético é nítido: enquanto o sábio retém, aprofunda e guarda, o tolo expõe demais, fala demais, e com isso traz a própria ruína para perto de si e dos outros. O Novo Testamento ecoa essa lógica quando Tiago descreve a língua como pequena chama que incendeia uma floresta em Tiago 3:5–6, mostrando que a boca do tolo não apenas está “perto” da ruína, ela é o gatilho que a traz.

A tradição rabínica lê este hemistíquio como o reverso sombrio do primeiro: se o sábio guarda, o tolo despeja. Na mesma página de Mikraot Guedolot, os comentaristas explicam que o “boca do tolo” é aquele que “fala tahpukhot (coisas tortas), revela a maldade que está em seu coração e, por isso, aproxima de si um shever (quebra, desastre)”; suas palavras não são neutras, criam o ambiente em que sua própria destruição se torna provável. Ralbag acrescenta que esse tolo “anuncia coisas em que maḥittāh (ruína) está próxima para as pessoas”, fazendo com que os ouvintes, incapazes de discernir o mal embutido, sejam feridos por suas palavras; a destruição é tanto social quanto espiritual.

Se o sábio “cifra” o que diz, o tolo fala tudo, em toda ocasião, e justamente essa ausência de filtro torna sua boca “perto da ruína” — ele põe em circulação segredos, boatos, conselhos imprudentes e conteúdos que detonam relações, reputações e, em última instância, seu próprio destino. A ética da fala de Pirkei Avot serve de pano de fundo: o adágio “quem multiplica palavras traz pecado” (1:17) é frequentemente associado, nos comentários, a este versículo, de modo que a “ruína” aqui é lida como o acúmulo de consequências de uma verbosidade descontrolada — a pessoa que não conhece silêncio vai, cedo ou tarde, tropeçar na própria língua.

Em exposições homiléticas sobre as agadot de Sotá (como as reunidas por Halachá Brurá), este contraste ganha ainda outra dimensão: “ḥakhamim yiṣpənnû daʿat” é citado para dizer que os sábios guardam o conhecimento de forma que o yetser ha-raʿ (impulso maligno) não o roube; sem esse cuidado, o conhecimento se converte em ocasião de pecado em vez de proteção. Na mesma linha, ensaios contemporâneos de pensamento judaico veem na “boca do tolo” o exemplo de alguém que nunca interioriza nada: tudo o que pensa é imediatamente externalizado, e por isso sua fala está sempre “encostada” na destruição — não apenas porque causa dano ao outro, mas porque revela que dentro dele não há o “tesouro escondido” do primeiro hemistíquio, apenas um fluxo bruto e desordenado.

Na leitura rabínica, Provérbios 10:14 desenha duas figuras espirituais opostas: os ḥakhamim, que fazem do saber um tesouro guardado, partilhado com discrição e responsabilidade, e o ʾĕwîl, cujo falar compulsivo traz consigo uma maḥittāh qĕrōbāh, uma ruína que já caminha ao lado de cada palavra que ele lança no mundo.

Provérbios 10:15

A riqueza do rico é a sua cidade fortificada; a ruína dos pobres é a sua pobreza. (Hb.: hôn ʿāšîr qiryat ʿuzzô məḥittat dallîm rēšām — “a riqueza do rico é a cidade de sua força; a destruição dos pobres é a sua pobreza”). O substantivo hôn (“riqueza, bens”) abre o verso como aquilo que de fato circunda e protege o ʿāšîr (“rico”), e qiryat ʿuzzô — “cidade da sua força” — funciona como metáfora militar: a riqueza levanta muros, cria redes, influencia decisões. Em contraste, dallîm (plural de “pobres, enfraquecidos”) e rēšām (“sua pobreza”) formam uma construção em que a própria carência material se torna məḥittat, “destruição, esmagamento”: o que deveria ser apenas falta de recursos transforma-se, na prática social, em mecanismo de colapso. Morfologicamente, temos substantivos e adjetivos substantivados em equilíbrio: não há verbo explícito, apenas predicações nominais (“é a sua cidade”, “é a sua ruína”), como se o texto dissesse que a própria estrutura social fala por si. O provérbio não canoniza a riqueza nem demoniza automaticamente o rico; ele descreve um fato da experiência histórica: quem acumula bens vive cercado de “muros” de proteção, quem está na carência vive vulnerável ao esmagamento. Ecoa-se aqui a tensão que mais tarde Jesus dramatiza na parábola do rico e de Lázaro em Lucas 16:19–25, onde o abismo social torna-se abismo escatológico.

Na tradição rabínica, a superfície econômica do verso é atravessada por uma leitura espiritual. Rashi toma hōn ʿāšîr (“riqueza do rico”) não como capital monetário, mas como Torá: ele glosa o sintagma com a fórmula breve “hon ʿashir — beTorah”, isto é, “a riqueza do rico está na Torá”, e entende qiryat ʿuzzō (“cidade da sua força”) como essa mesma Torá que se torna para ele uma fortaleza interior, enquanto maḥittat dallîm rēšām (“a ruína dos pobres é a sua pobreza”) é lida como a pobreza de quem não se ocupou da Torá, pobreza que se torna a própria destruição do indivíduo (Rashi sobre Provérbios 10:15; ver também a versão em hebraico em Rashi sobre Mishlei 10:15 e em Mikraot Gedolot HaKeter, Mishlei 10:15). Assim, o provérbio passa a contrapor não apenas classes sociais, mas dois estados espirituais: o “rico” é o estudioso cuja mente está cheia de ensinamento, cercada por uma muralha de ḥokhmāh (“sabedoria”), ao passo que o “pobre” é aquele de mãos vazias de Torá, exposto como uma cidade sem muros.

Em leituras posteriores, como a do hassídico Shem MiShmuel, essa linha é radicalizada: ele retoma o verso dizendo que “não há rico senão em daʿat (conhecimento)”, de modo que o “forte baluarte” é justamente a consciência esclarecida, e a “ruína dos pobres” é a carência de daʿat que os deixa à mercê das forças interiores de confusão e impulso (Shem MiShmuel, Korach 6). Alguns comentaristas medievais ainda aproximam este versículo de Provérbios 18:10, onde se diz que “o nome do Senhor é torre forte”; Mikraot Gedolot HaKeter nota explicitamente que o justo tem como qiryat ʿoz (“cidade de força”) o próprio nome do Senhor, enquanto o ímpio confia no seu capital, traçando um contraste entre quem busca proteção em Deus e quem a busca no saldo bancário (Mishlei 10:15–16 em Mikraot Gedolot e o comentário associado a Provérbios 18:10 em Mikraot Gedolot, Mishlei 18:10). O resultado é uma imagem densa: por fora, a praça de mercado onde o rico constrói muralhas com seus cofres; por dentro, a pedagogia de Israel, na qual a verdadeira cidadela é a Torá armazenada no coração, e a pobreza decisiva é a ausência dessa palavra.

Provérbios 10:16

O salário do justo conduz à vida, mas o lucro do ímpio conduz ao pecado. (Hb.: pəʿullat ṣaddîq ləḥayyîm təvuʾat rāšāʿ ləḥaṭṭāʾt — literalmente “o trabalho/recompensa do justo [é] para a vida, o fruto/colheita do ímpio [é] para o pecado”). O termo pəʿullāh pode significar tanto o ato de trabalhar quanto a remuneração, de modo que a expressão abrange a vida ativa do justo e as consequências que dela vêm. Ṣaddîq (“justo”) é adjetivo masculino singular substantivado, figura-tipo de quem se alinha à ordem de Deus. O dativo ləḥayyîm (“para a vida”) indica direção, finalidade: a maneira como o justo lida com o trabalho e o ganho o encaminha para uma vida plena, no sentido veterotestamentário de vida diante de Deus. Em contraste, təvuʾat rāšāʿ (“produto/colheita do ímpio”) sugere safra, rendimento, lucro, e o dativo ləḥaṭṭāʾt (“para o pecado”, podendo incluir a ideia de culpa e até de “oferta pelo pecado”) indica que tudo converge para um eixo de distorção e ruptura. Sintaticamente, o paralelismo é quase perfeito, apenas trocando os substantivos de campo agrícola (təvuʾah) por campo laboral (pəʿullāh). Exegético-teologicamente, o versículo prepara o solo para a fórmula de Romanos 6:23, onde “o salário do pecado é a morte”, enquanto o dom de Deus é a vida eterna: aqui, o “salário do justo” se orienta para a vida, porque sua relação com trabalho, dinheiro e poder é atravessada pela justiça de Deus, ao passo que o ganho do ímpio acalenta estruturas de pecado que, mais cedo ou mais tarde, o engolem.

A literatura rabínica trabalha este verso quase como um pequeno midraxe narrativo. Rashi comenta, primeiro, conforme o sentido imediato: o trabalho do justo resulta em vida, ao passo que aquilo que o ímpio “colhe” de suas ações o conduz ao pecado e à perda (Rashi sobre Provérbios 10:16). Em seguida, porém, ele introduz um Midrash Aggadá: peʿullat tsaddîq leḥayyîm é lido como referência à obra de Salomão, que ergueu o Templo “para a vida de Israel, para a sua expiação”, enquanto tevuʾat rāšāʿ leḥaṭṭāʾt aponta para Manassés, que introduziu no Templo a imagem idólatra, transformando a “colheita” de sua ação em pecado coletivo (texto de Rashi com a referência ao Midrash em Mikraot Gedolot HaKeter, Mishlei 10:16; ver também a formulação paralela em Torat Emet – Rashi sobre Mishlei). Essa leitura, que é explicitamente vinculada em Mikraot Gedolot a Devarim Rabbah 2:20 e a 2 Crônicas 33:7, desloca o provérbio para o eixo litúrgico: de um lado, a “ação” do justo que constrói um lugar de encontro com Deus, onde o sangue dos sacrifícios se torna vida e perdão para o povo; de outro, a “colheita” do ímpio que se aproveita dessa mesma instituição para semear idolatria e culpa.

Um outro fio é desenvolvido no Yalqut Shimʿoni sobre os Profetas (secção 946:8), que também toma peʿullat tsaddîq leḥayyîm de forma concreta: ali se diz que essa “ação do justo” é Elifaz, criado no seio de Isaque, enquanto tevuʾat rāšāʿ leḥaṭṭāʾt é Amalek, criado no seio de Esaú; noutra leitura do mesmo trecho, o midraxe afirma que toda a obra de Davi e Salomão é “para a vida” de Israel, ao passo que a obra de Jeroboão e de outros reis ímpios é “para o pecado” (Yalkut Shimoni on Nach 946:8). A tradição homilética, assim, lê o verso não só como máxima moral abstrata, mas como chave hermenêutica da história: cada ato dos justos — construir o Templo, ensinar Torá, formar filhos e discípulos — é apresentado como um fluxo que conduz à vida, enquanto cada estratégia dos ímpios — deturpar o culto, explorar estruturas justas em benefício próprio, criar descendências hostis — é descrita como uma colheita que amadurece em pecado e destruição. Nessas leituras, o provérbio torna-se um eixo: de um lado, obras que estendem a duração da vida (leḥayyîm), tanto biológica quanto espiritual; de outro, obras cujo fruto é sempre deficitário (leḥaṭṭāʾt, “para falta”, “para pecado”), mesmo quando parecem, por um momento, prosperar.

Provérbios 10:17

Quem guarda a instrução está no caminho da vida, mas quem abandona a repreensão se desvia (e desvia a outros). (Hb.: ʾōraḥ ləḥayyîm šōmēr mûsār wəʿōzēb tôkaḥat maṭʿeh — “caminho de vida é o que guarda disciplina, mas quem abandona a repreensão é um que faz errar”). Os termos ʾŌraḥ (“senda, trilha”) e ləḥayyîm (“para a vida”) formam uma imagem de estrada estreita conduzindo à vida; no meio dela caminha o šōmēr mûsār (“aquele que guarda disciplina”), com šōmēr como particípio qal masc. singular de šāmar (“guardar, vigiar”) — alguém que não apenas ouve, mas guarda, internaliza e pratica a correção. Na segunda metade, ʿōzēb (“aquele que abandona”, particípio qal de ʿāzav) se une a tôkaḥat (“repreensão, argumentação corretiva”), e o predicado verbal maṭʿeh (particípio hifil de ṭāʿāh, “desviar, fazer errar”) tem ambiguidade deliberada: ele próprio se desvia, e ao mesmo tempo arrasta outros consigo. A sintaxe cria uma figura dramática: de um lado, quem aceita ser corrigido caminha numa estrada de vida; de outro, quem rejeita a correção torna-se um “desviador profissional”, um ponto de inflexão que entorta caminhos alheios. A tradição cristã ouvirá aqui o eco da “porta estreita” e do “caminho que conduz à vida” em Mateus 7:14, e também da exortação de Hebreus 12:5–6 sobre não desprezar a disciplina do Senhor, pois a recusa persistente da correção faz da pessoa não apenas alguém perdido, mas um foco de desorientação comunitária.

Na leitura rabínica, este versículo é uma espécie de eixo espiritual: o verbo šōmēr (“guardar, vigiar”) não é apenas obediência pontual, mas vigilância contínua sobre si mesmo, o que vários comentaristas vinculam ao ideal de mussar — o trabalho sistemático sobre as middot (qualidades de caráter). Ralbag, por exemplo, lê ʾōraḥ leḥayyîm como uma rota dupla: quem “guarda a disciplina” caminha tanto para “a vida eterna” quanto para uma vida saudável no mundo social, porque o refinamento das qualidades torna o indivíduo amado pelos outros e, ao mesmo tempo, o endireita para o “aperfeiçoamento dos conhecimentos” [shelemut ha-muskalot]. Já o que “abandona a repreensão” é descrito como matʿeh — não só se perde, mas “faz outros errarem”, porque a dureza em aceitar correção arrasta muitos consigo, dado que “o impulso do coração do ser humano é inclinado ao mal” e facilmente se aglomera em torno de quem rejeita a censura (Ralbag sobre Provérbios 10:17).

Em obras de ética mística posteriores, como Reshit Ḥokhmah, esse versículo é colocado na moldura do juízo final: cita-se “ʾōraḥ leḥayyîm šōmēr mûsār” para dizer que, no dia do julgamento, o homem será interrogado se se ocupou com o estudo de Escritura, se conheceu a estrutura da Torá, se submeteu sua vida a este mussar que é o verdadeiro “caminho de vida”. A imagem é severa: vida e morte espirituais não são um decreto arbitrário, mas o desdobramento prolongado do hábito de acolher ou rechaçar a repreensão divina e humana (Reshit Ḥokhmah, Introdução). Alguns mestres, como o Gra (Vilna Gaon), enfatizam ainda que mûsār aqui inclui até “sofrimentos que a pessoa impõe a si mesma” — autodisciplina, restrição de impulsos — de modo que o shōmēr mûsār é aquele que voluntariamente se põe sob um jugo educativo, e justamente por isso sua vereda é chamada “caminho de vida” (Mikraot Gedolot sobre Provérbios 10:17). A tradição rabínica, portanto, lê este versículo menos como máxima pedagógica abstrata e mais como diagnóstico existencial: ou a pessoa aceita entrar nesse caminho de disciplina contínua — que abraça Torá, correção, dores educativas — ou, ao abandonar a tôkaḥat (“repreensão”), torna-se ela mesma um matʿeh, um desorientador de massas, alguém cuja recusa em ser corrigido instala em torno de si uma cultura inteira de autoengano.

Provérbios 10:18 Quem encobre o ódio com lábios mentirosos, e quem espalha calúnias é tolo. (Hb.: mĕkassēh śinʾāh biśĕfātāw ûmôṣîʾ dibbāh hûʾ kesîl — “aquele que cobre ódio com seus lábios, e o que faz sair calúnia, ele é tolo”.

Provérbios 10:18

Quem encobre o ódio tem lábios mentirosos, e quem espalha calúnia é tolo. (Hb.: məḵassē śinʾāh śip̄tê-šeqer ûmōṣî dibbāh hûʾ kesîl — “o que encobre ódio [tem] lábios de falsidade, e o que faz sair calúnia, esse é tolo”). O particípio məḵassē (piel de kāsāh, “cobrir, esconder”) descreve uma ação contínua: alguém que vive escondendo um ódio interior debaixo de uma fachada dócil. Śinʾāh (“ódio”) é substantivo feminino que nomeia essa disposição oculta; śip̄tê-šeqer (“lábios de mentira”) funcionam como predicativo: seu falar é estruturalmente enganoso. Na segunda cláusula, mōṣî (particípio de yāṣāʾ, “fazer sair”) unido a dibbāh (“calúnia, má fama, difamação”) sugere alguém que puxa a má reputação de dentro dos bastidores para a praça pública; o pronome enfático hûʾ (“ele”) reforça o veredito: “ele é tolo”, kesîl, figura recorrente em Provérbios como aquele que despreza a sabedoria e rompe relações. Sintaticamente, os dois hemistíquios se respondem: ora pelo ódio escondido sob máscaras, ora pela difamação lançada abertamente, a mesma tolice opera em registro diferente. O Novo Testamento ecoa a gravidade desse mecanismo quando Jesus equipara insulto e desprezo ao homicídio no coração em Mateus 5:21–22, e quando Tiago associa benção e maldição na mesma boca como uma fonte paradoxal que não deveria existir em Tiago 3:9–10.

Os comentadores rabínicos detêm-se aqui em duas figuras: o que “cobre” (mĕkassēh) e o que “faz sair” (môṣîʾ) a dibbāh (“maledicência, calúnia”). R. Yosef Kimḥi, preservado em mgketer, distingue cuidadosamente entre “trazer” e “fazer sair” calúnia: mevîʾ dibbāh (“trazer” uma má notícia) pode, em certos contextos, ser ato verdadeiro, como quando José “trouxe” a seu pai a má fama de seus irmãos (“vayavēʾ Yôsēf et dibbātām rāʿāh”, Gênesis 37:2); já môṣîʾ dibbāh é sempre reprovável, como os espiões que “fizeram sair a má fama da terra” (Números 13:32). Dessa distinção, ele conclui que o “motzi dibbah” de Provérbios 10:18 é o que fabrica ou infla o mal, o que deixa escorrer pelos lábios algo que não precisava, ou não devia, ser dito — por isso o versículo o declara kesîl, tolo moralmente cego. Rabenu Baḥya, comentando Gênesis 37:2, retoma essa mesma antítese: quem “traz” (meviʾ) uma dibbāh pode estar apenas relatando uma realidade comprovável; mas quem “faz sair” (motziʾ) dibbāh é o que puxa do próprio coração palavras de falsidade, como em Jó 8:10 (“de seu coração fazem sair palavras”), e por isso a Escritura o qualifica como insensato (Rabenu Baḥya sobre Gênesis 37:2).

Na literatura ética posterior, o versículo é amplamente usado para demarcar os limites entre o silêncio cúmplice e a denúncia necessária. O Pele Yoʿēṣ, por exemplo, cita “môṣîʾ dibbāh hûʾ kesîl” para advertir que, em geral, quem divulga “uma palavra má” é tolo — salvo nos raros casos em que a proteção de terceiros exige um aviso, e mesmo aí recomenda-se falar com máximo recato, “em alusão”, para não transformar a advertência em puro desfrute de maledicência (Pele Yoʿēṣ, entrada “Lashon ha-Ra”). Paralelamente, midrashim como Midrash Tehillim desenham, com um pano de fundo dramático, o destino de quem “cobre o ódio”: ao comentar as traições de Aitófel contra Davi, o midrash evoca um versículo irmão, Provérbios 26:26 (“quem encobre o ódio com engano, sua maldade será revelada na congregação”), para mostrar que o ódio escondido sob palavras suaves acaba desmascarado publicamente (Midrash Tehillim 55:1). Assim, lido pela lente rabínica, Provérbios 10:18 não é mera proibição genérica de “falar mal”, mas uma dissecação fina de duas patologias espirituais: a máscara de cordialidade que recobre ódios não trabalhados, e o impulso de “fazer sair” notícias más pelo simples prazer de soltá-las no ar. Em ambos os casos, a Torá da fala ensina que lábios que escondem ódio e lábios que espalham calúnia nascem da mesma raiz de tolice moral, incompatível com o ideal de lábios do justo que “sabem o que é agradável” (Provérbios 10:32) e se tornam, na expressão dos mestres, um “caminho de vida” também para os outros.

Provérbios 10:19

Na abundância de palavras não falta transgressão, mas quem refreia os lábios é sábio. (Hb.: bərōv dəvārîm lo yeḥdal pāšaʿ wəḥōsēk śəpātāyw maskîl — “na multidão de palavras não cessa a transgressão, mas quem retém os seus lábios é prudente”). Bərōv dəvārîm (“na abundância de palavras”) coloca o cenário: fala que se derrama, sem freio. O verbo yeḥdal (qal imperfeito 3ª masc. sing. de ḥādal, “cessar, faltar”) combinado com a negação lo dá a ideia de algo que nunca está ausente: pāšaʿ (“transgressão, rebelião”) torna-se companheira constante de conversas prolixas. No segundo hemistíquio, o particípio ḥōsēk (de ḥāsak, “reter, segurar”) descreve quem literalmente “segura seus lábios” (śəpātāyw), e o adjetivo/particípio maskîl (de śākal, “ser prudente, agir com entendimento”) declara que esse autocontrole é sabedoria em ato. Sintaticamente, não há verbos copulativos explícitos; a estrutura é quase proverbial dentro do provérbio: “não falta transgressão” ↔ “é prudente”. Exegético-literariamente, o verso desenha a relação entre fala e moralidade: quanto mais a língua corre solta, mais abre brechas para exageros, distorções, agressões, promessas vazias; o silêncio deliberado, por sua vez, é aqui tratado não como omissão covarde, mas como discernimento que sabe quando calar para não ferir. O Novo Testamento retoma essa visão quando Tiago afirma que quem não tropeça no falar é “varão perfeito” em Tiago 3:2, e quando Paulo exorta a que nenhuma palavra torpe proceda da nossa boca, mas apenas a que edifica em Efésios 4:29, ecoando a mesma convicção: controlar a língua é uma forma altíssima de sabedoria.

Um comentário tradicional preservado na edição de Mikraot Gedolot HaKeter lê este versículo como um aviso muito concreto: o texto “agora adverte as pessoas para que não multipliquem palavras, pois o ser humano que fala demais não consegue fazer com que todas as suas palavras saiam ‘em juízo’ e sejam corretas aos ouvidos de todos os que o escutam; às vezes ele fala com uma intenção, e os ouvintes entendem outra coisa que não lhes agrada. O inteligente, porém, se contém e não fala muito, e assim as pessoas não o fazem tropeçar com suas próprias palavras, porque ele só fala quando é o tempo apropriado” . Em outras palavras, a peshaʿ (“rebelião/transgressão”) aqui não é apenas pecado abstrato, mas o inevitável desvio que surge quando a língua é solta demais e já não é possível controlar o efeito do que foi dito. Essa leitura exegética é diretamente lastreada no texto de Mikraot Gedolot (Mishlei 10:19) e não é uma paráfrase inventada.

Na tradição rabínica clássica, este versículo torna-se um eixo para toda a ética da palavra. Em Avot de-Rabbi Natan 22, ao comentar a máxima de Shimon ben Gamliel “kol yamai gadalti bein haḥakhamim… ve-khol hamarbeh devarim mevi ḥeṭ” (“toda a minha vida cresci entre os sábios… e todo aquele que multiplica palavras traz pecado”), o texto diz explicitamente: “não é a sabedoria que traz muitas palavras, nem palavras que trazem sabedoria, mas ação… kol hamarbeh devarim mevi ḥeṭ, como está dito: ‘berov dᵉbārîm lōʾ yeḥdal pāšaʿ’ (Provérbios 10:19)” . Aqui, o nosso versículo é citado literalmente como prova bíblica de que prolixidade verbal é, em si mesma, um terreno escorregadio de pecado: a sabedoria autêntica mede palavras porque privilegia ações.

O Midrash Shmuel sobre Pirkei Avot 1:17 retoma a mesma ligação e a torna ainda mais explícita: ao explicar “kol hamarbeh devarim mevi ḥeṭ”, ele diz que a frase é continuação natural da máxima anterior e escreve que a Torah já ensinara isso quando afirma “berov dᵉbārîm lōʾ yeḥdal pāšaʿ” (Provérbios 10:19), associando ainda o ditado a “kĕvod ʾĕlōhîm hastēr dābār” (“é glória de Deus encobrir uma coisa”, Provérbios 25:2) como elogio do silêncio e da reserva . O versículo de Provérbios passa a ser, assim, o versículo-chave por detrás da ética rabínica de miyut dibur (“poucas palavras”), em que a língua é vista como campo de risco permanente: quanto mais ela se movimenta, mais “não cessa a transgressão”.

Essa mesma linha é aprofundada em obras de ética posteriores (musar), que retomam Provérbios 10:19 indiretamente via Pirkei Avot. Por exemplo, a obra Derekh Ḥayyim sobre Avot 1:17 nota que “todo aquele que multiplica palavras traz pecado” é quase uma citação direta do nosso texto, e constrói a partir disso uma espiritualidade da contenção: mesmo quando alguém fala “palavras de Torah”, o excesso de fala abre brechas para falhas e mal-entendidos . Textos como Chayyim VaChesed e comentários a Mishneh Torah, Hilkhot Deʿot 2:4, ecoam esse mesmo ponto: é melhor aumentar o silêncio e falar apenas o que é necessário para a vida do corpo e da alma, pois “kol hamarbeh devarim mevi ḥeṭ” . A ancoragem explícita em Provérbios 10:19 aparece nas citações de Avot de-Rabbi Natan e Midrash Shmuel; os demais textos desenvolvem o tema a partir deles — esta conexão em cadeia é uma inferência minha, mas cada elo é documentado nos excertos rabínicos citados.

Nesse horizonte, “quem refreia os lábios é sábio” (wᵉḥōsēḵ śᵉpātāyw maśkîl) já não é apenas prudência psicológica, mas um ideal espiritual: o justo é aquele cuja boca se tornou tão afinada que só se abre quando é “a hora certa”, de modo que o silêncio se torna tão ativo e virtuoso quanto a palavra. A tradição rabínica de lashon hara (“fala maldizente”) tal como sistematizada, por exemplo, em tratados e sheets de Arakhin 15b, onde a fala maldizente é comparada a homicídio , é teologicamente compatível com esse versículo: a palavra é vista como poder criador ou destruidor, e a superabundância de fala desemboca quase inevitavelmente em feridas. Esta ligação entre Provérbios 10:19 e as discussões de lashon hara é uma leitura integrativa minha à luz dos textos, não uma formulação encontrada de modo explícito em um único midrash.

Provérbios 10:20

A língua do justo é como prata escolhida, mas o coração do ímpio é como uma coisa pequena. (Hb.: kesef nivḥar leshon ṣaddiq — “prata escolhida é a língua do justo”). Em termos de ordem, “prata escolhida” vem à frente, funcionando como predicado enfatizado, e “língua do justo” é o sujeito que aparece depois: é como se o versículo começasse apontando para um metal raro e só então revelasse que esse tesouro é a língua do justo. Em kesef (“prata”) temos um substantivo masculino singular que, em Provérbios, costuma aparecer ligado a valor, peso, solidez; nivḥar é particípio nifal de baḥar (“escolher”), morfologicamente um adjetivo verbal que descreve algo que foi passado pelo crivo, selecionado, refinado. Leshon deriva de lashon (“língua”, tanto órgão quanto fala), e ṣaddiq (“justo”) é o adjetivo substantivado que define aquele alinhado à ordem de Deus. A sintaxe, portanto, constrói uma metáfora compacta: a fala do justo é comparada, com ênfase, ao metal precioso já peneirado de escórias. O paralelo com traduções como NASB/ESV (“The tongue of the righteous is like choice silver”) confirma essa leitura. O versículo sugere que aquilo que sai da boca do justo é raro, ponderado, fruto de um processo de seleção interior; há mais peso em poucas palavras de um justo do que em muito discurso de outro qualquer.

Na segunda cláusula, lev rešāʿim kimʿat pode ser traduzido como “o coração dos ímpios [vale] quase nada” ou “é coisa pequena”. Lev (“coração”) é o centro da pessoa — intelecto, vontade, afetos — e rešāʿim é plural de rashaʿ (“ímpio”), a classe inteira dos que rompem a ordem de Deus. Kimʿat funciona aqui como advérbio/substantivo de quantidade: “um pouco, quase nada, pouca coisa”. Não há verbo expresso; a estrutura é nominal, com cópula elíptica: “o coração dos ímpios é pouca coisa”. As versões inglesas que dizem “is worth little” ou “is of little value” em Bible Hub e BLB captam bem o sentido. A imagem é cruel e ao mesmo tempo precisa: enquanto a língua do justo, que é apenas a “ponta” de sua interioridade, é metal selecionado, o próprio coração do ímpio — o núcleo — pesa quase nada na balança da sabedoria. A teologia do versículo, então, afirma que o valor de uma pessoa diante de Deus e da comunidade se manifesta na qualidade de sua fala, porque a língua apenas revela o refinamento (ou a vacuidade) do coração.

Em Rashi, preservado em edições de Mikraot Gedolot sobre Provérbios 10:20, esta expressão é explicada de forma lapidar: trata-se do justo “que sabe repreender”, isto é, cuja língua é treinada para a tokheḥah, a correção que atinge o alvo sem humilhar o outro (Rashi sobre Provérbios 10:20 em Mikraot Gedolot). Rashi remete explicitamente ao Midrash Tanchuma, parashá Ki Tissa §6, onde se lê que “kesep nivḥar lešon ṣaddîq — isto é Ido, o profeta; lev rešaʿim kimʿat — este é Jeroboão” (Midrash Tanchuma, Ki Tissa 6 – Daat; veja também a mesma tradição em M"G Mishlei 10:20). A “prata escolhida” é, assim, a palavra profética de Ido em 1 Reis 13, que se coloca contra o altar de Betel e denuncia o culto de Jeroboão; a mão do rei seca, mas ainda assim ele não acolhe a admoestação, pedindo apenas restauração física (veja o relato em 1 Reis 13). A leitura rabínica enxerga nesse quadro a metáfora completa: a língua do justo é prata refinada no fogo, livre de escória, porque diz apenas o necessário para a verdade de Deus; mas essa prata é preciosa sobretudo porque é palavra de correção. Em tradições midráshicas sobre as oferendas dos príncipes em Números 7, a “prata” das travessas do santuário é explicitamente ligada a este versículo: “prata — como está dito: ‘kesep nivḥar lešon ṣaddîq’ (Provérbios 10)” (Rabbenu Beḥayye sobre Números 7; veja a mesma cadeia midráshica recolhida em Mikraot Gedolot sobre Números 7:87 e no comentário citado em Lamentações 4:2 com Quoting Commentary). A “prata escolhida” passa a ser figura do mérito e das palavras refinadas dos justos, cujo peso espiritual é comparado ao valor do metal precioso no culto. Nessa tessitura rabínica, a língua do justo é “prata escolhida” porque é palavra cultual e profética ao mesmo tempo: purificada como metal no fogo, e colocada a serviço de Deus como utensílio de prata no santuário.

O mesmo conjunto de fontes rabínicas que comenta a primeira metade do versículo insiste que este “coração pequeno” é o coração que não escuta a correção: Rashi resume que se trata daquele “que não ouve a admoestação do justo” (Rashi sobre Provérbios 10:20 em Mikraot Gedolot). O Midrash Tanchuma Ki Tissa 6, já citado, aplica “lev rešaʿim kimʿat” a Jeroboão, que viu o milagre sobre sua própria mão e, mesmo assim, não recebeu a palavra de Ido (Midrash Tanchuma, Ki Tissa 6 – Daat); o versículo de Provérbios torna-se, assim, uma chave para ler 1 Reis 13: o problema de Jeroboão não é falta de sinal, mas um coração tão estreito que quase não tem espaço para arrependimento. Comentários posteriores classificados como “Biʾur” sobre Provérbios 10 sublinham que este “coração pequeno” é um coração em que há pouquíssimo lugar para pensamentos de sabedoria ou temor de Deus, de modo que ele é comparado a algo “quase nada”, facilmente descartado (Biʾur: Mishlei 10:20). Em outros midrashim sobre Números 7, a associação entre “prata escolhida” e Provérbios 10:20 aparece novamente: a “travessa de prata” e a “colher de ouro” das ofertas são lidas como símbolos de gerações de justos cujas palavras e méritos são a verdadeira prata diante de Deus, em contraste com corações ímpios quase vazios de conteúdo espiritual (Bemidbar Rabbah e tradições afins, conforme recolhidas em Mikraot Gedolot sobre Números 7:87 e nas compilações de midrashim citadas em Lamentações 4 com comentário). Quando se coloca tudo isso lado a lado, a imagem que emerge é a de um contraste entre interior e exterior: no justo, a língua “de prata escolhida” revela um coração que já foi alargado pela Torah; nos ímpios, ao contrário, o coração é tão estreito que quase não existe para a sabedoria, e por isso não consegue receber nem mesmo a prata mais refinada. Esta costura entre Provérbios 10:19–20, vendo no fluxo dos dois versículos um contraste entre “abundância de palavras” vazias e prata depurada da língua justa, é uma inferência minha construída a partir dessas fontes rabínicas, não uma formulação explícita de Rashi ou dos midrashim.

Provérbios 10:21

Os lábios do justo alegram a muitos, mas os insensatos, por falta de coração, morrem. (Hb.: siftei ṣaddiq yirʿu rabbim weʾewilim baḥasar-lev yamutu — “os lábios do justo apascentam muitos, mas os tolos, por falta de coração, morrerão”). Na primeira cláusula, siftei (“lábios de”) é construto plural de śafah, ligado a ṣaddiq (“justo”), formando o sujeito “os lábios do justo”. O verbo yirʿu é qal imperfeito 3ª masc. plural de raʿah (“pastorear, apascentar”), o mesmo verbo usado para o pastor que guia e alimenta o rebanho; o objeto rabbim (“muitos”) mostra a amplitude do alcance: não são dois ou três íntimos, mas uma multidão. A sintaxe, portanto, constrói uma metáfora pastoral: os lábios do justo são como um pastor que alimenta, guia, protege muitos — por isso traduções como NASB/ESV dizem “feed many”. O versículo mostra que a palavra do justo não é apenas correta, mas nutritiva: ela dá direção, consola, corrige, sustenta a vida espiritual e prática de outros, como um rebanho espalhado que encontra alimento nas orientações que ouve.

Na segunda cláusula, weʾewilim baḥasar-lev yamutu contrapõe “muitos” alimentados pelos lábios do justo aos “tolos” que morrem. ʾEwilim é plural de ʾewil, tipo de tolo endurecido, resistente à correção; baḥasar-lev (“em falta de coração”) usa ḥasar (“falta, ausência”) + lev (“coração”) para descrever não mera ignorância, mas vazio no centro moral e espiritual. O verbo yamutu é qal imperfeito 3ª masc. plural de mût (“morrer”), aqui com sentido genérico de destino certo: “morrerão”. A sintaxe é simples e cruel: a ausência de “coração” — isto é, de entendimento interior, de disposição para a sabedoria — conduz diretamente à morte. O contraste estrutural é forte: onde os lábios do justo alimentam, os tolos morrem famintos de interioridade. O Novo Testamento retoma esse fio quando fala de pastores e mestres que alimentam o rebanho (Efésios 4:11–12) e, em contrapartida, de falsos mestres e insensatos “mortos” em seus delitos (Efésios 2:1), ecoando a imagem de Provérbios.

Na leitura rabínica, o verbo yirʿu vem da raiz raʿah (“pastorear, apascentar”), de modo que o justo é visto como pastor que alimenta e conduz uma multidão com a sua boca; não se trata apenas de “falar coisas bonitas”, mas de fornecer sustento espiritual e até material por meio da intercessão e da sabedoria. Rashi entende que “muitos comem por seu mérito e por sua oração”, isto é, há pessoas que literalmente são alimentadas e preservadas graças à tzedaqah e às tefilot do justo (Rashi sobre Provérbios 10:21). Ralbag, preservado em coleções de Mikraot Gedolot, enfatiza que os lábios do justo “pastoreiam muitos” no sentido de liderança: ele descreve o tzaddiq como ish shalem, um homem completo, cuja palavra é como prata refinada, sem escória, e que por isso é digno de falar e de guiar; os “muitos” podem ser tanto o povo em geral quanto os notáveis que se deixam conduzir por ele (Ralbag em Mishlei 10:20–21).

A tradição de Metzudat David, acessível em edições clássicas de Mishlei, vai na mesma direção: muitos “comem” o fruto dos lábios do justo porque ele os guia no caminho que é bom para eles, enquanto os tolos “morrem por falta de coração” justamente por não terem examinado nem acolhido as palavras do mestre, deixando-se levar pela própria superficialidade (Metzudat David sobre Provérbios 10). Malbim aprofunda esta linha ao distinguir entre “lábios” e “boca”: os lábios (safatayim) indicam a fala externa, clara e bem articulada; o justo tem uma consciência tão trabalhada dos “caminhos da sabedoria” que consegue expô-los para fora com nitidez, como algo já amadurecido em seu interior, de modo que seus lábios “pastoreiam muitos”, enquanto os tolos “morrem” porque permanecem presos a um ḥesar lev, uma deficiência estrutural do coração, que não se deixa governar pela sabedoria (Malbim sobre Provérbios 10).

Em chave mais mística, obras cabalísticas como Recanati mencionam este versículo ao falar da responsabilidade dos justos de canalizar o fluxo divino: se as “lábios do justo” foram feitos para “pastorear muitos” e eles se calam, deixam de cumprir a sua função no corpo de Israel, e sobre eles recai a acusação de terem falhado no cuidado do rebanho (Recanati sobre a Torá, Tetzavê 9). R. Saadia Gaon, em Ha-Emunot ve-ha-Deʿot, cita o verso para dizer que os sábios têm obrigação de transmitir a verdade à sua geração: se as “lábios do justo” foram destinados a nutrir muitos e, mesmo assim, não instruem, “não têm desculpa”; a morte dos tolos por “falta de coração” não é apenas um destino passivo, mas um juízo sobre a omissão daqueles que deveriam tê-los alimentado com conhecimento (Ha-Emunot ve-ha-Deʿot V:8). Assim, toda a cadeia rabínica lê este provérbio como um ícone da função magisterial do tzaddiq: a língua do justo é mesa posta e pasto verdejante, onde muitos se alimentam; já a morte dos tolos, “por falta de coração”, é a imagem trágica de uma geração que se recusa a ser pastoreada, mesmo quando a palavra está disponível e clara, e, por isso, se desfaz na fome espiritual.)

Provérbios 10:22

A bênção do Senhor enriquece, e ele não acrescenta tristeza a ela. (Hb.: birkat YHWH hi taʿashir, we-lo yosif ʿeṣeb ʿimmah — “a bênção do Senhor, ela é que enriquece, e ele não acrescenta dor/tristeza com ela”). A tradução “enriquece” está alinhada ao verbo taʿashir (hifil imperfeito 3ª f. sing. de ʿāšar, “tornar rico”), com a forma feminina concordando com birkat (“bênção”), substantivo feminino singular em construto com o nome divino. A partícula pronominal hi (“ela”) exerce função enfática: é a bênção do Senhor, e não apenas esforço humano, que produz a verdadeira riqueza. No segundo membro, we-lo yosif (“e não acrescentará”) traz yosif como hifil imperfeito de yāsaf (“acrescentar”), com ʿeṣeb (“dor, sofrimento, pesar”) como objeto, e ʿimmah (“com ela”) indicando companhia: com essa bênção não caminha, de carona, o fardo da dor. As versões em Bible Hub e BLB mantêm a mesma estrutura (“it makes rich, and He adds no sorrow with it”). Do ponto de vista sintático, temos um paralelismo em que o primeiro hemistíquio afirma positivamente o efeito da bênção, e o segundo o circunda com uma negativa protetora: Deus não acrescenta o tipo de “peso” que frequentemente acompanha riquezas conseguidas por outros meios (culpa, exploração, ansiedade). Isso não significa que o justo nunca sofra, mas que a riqueza que nasce da bênção divina — material ou imaterial — não traz consigo a carga de auto-destruição típica de riquezas obtidas pela injustiça (como em Provérbios 10:2). A frase ressoa em textos como 1 Timóteo 6:17–19, onde Paulo exorta aos ricos que ponham a esperança em Deus, “que tudo nos proporciona ricamente”, e usem a riqueza de modo que se converta, de fato, em vida.

Na tradição rabínica, este versículo é um eixo onde se cruzam halachá, midrash e mística. O Talmud de Jerusalém, em Berakhot 19b, aplica o verso ao Shabat: “birkat YHWH hi taʿashir — esta é a bênção do Shabat; welo yosif ʿetsev ʿimmah — isto é o luto”, concluindo que a santidade do sétimo dia é incompatível com a manifestação pública de tristeza funerária; por isso, o luto é suspenso no Shabat, que deve permanecer dia de bênção e não de ʿetsev (Yerushalmi Berakhot 19b). Esse mesmo movimento é desenvolvido por comentadores como Maharzu sobre Bereshit Rabbah, que harmoniza o fato de o mundo estar sob maldição de “trabalho penoso” e “dor” por causa do pecado com a promessa de que a bênção do Senhor “enriquece sem acrescentar tristeza”: o Shabat, diz ele, é o espaço em que essa maldição é suspensa — um tempo em que a bênção não vem acompanhada de fadiga nem de sombra de morte (Maharzu sobre Bereshit Rabbah 11). Midrashim como Lekach Tov sobre Gênesis 39:5 usam o versículo para ler a história de José: quando o texto diz que “a bênção do Senhor estava em tudo o que ele tinha, em casa e no campo”, o midrash comenta que deveria estar escrito “havia a bênção do Senhor”, como em “a bênção do Senhor é que enriquece”, e conclui que “Yosef era a própria bênção”, isto é, a presença do justo canaliza para a casa um tipo de riqueza que ultrapassa o cálculo econômico (Midrash Lekach Tov sobre Gênesis 39:5). Em chave mais legal, obras como Arukh HaShulchan citam “birkat YHWH hi taʿashir” quando tratam dos limites do estudo de Torá e de práticas de luto em Shabat, insistindo que a bênção desse dia se expressa em abundância tranquila, sem a “tristeza” de proibições que esmagem a alegria; a halachá que emerge daí é uma doutrina da alegria como parte integrante da riqueza concedida por Deus (Arukh HaShulchan, Yoreh Deah 400). Já na literatura hassídica, Peri Tzadik lê o versículo quase como um midrash sobre a Torá: a “bênção do Senhor” não se refere, primariamente, a dinheiro, mas ao aumento de Torá, de virtude e de proximidade com Deus; tal riqueza, “quando vem da bênção do Senhor”, é recebida sem que se some a ela o ʿetsev da angústia e do peso, porque nasce de uma fonte de alegria sagrada (Peri Tzadik, Vaera 4:1). Finalmente, textos como Yedei Moshe sobre Bereshit Rabbah exploram o contraste entre esta bênção e a busca neurótica de riqueza que “não enriquece”, ecoando outros provérbios: há uma riqueza que o homem persegue por sua própria astúcia e ansiedade, e essa vem carregada de ʿetsev; por outro lado, quando a prosperidade é lida como “bênção do Senhor”, ela é recebida como dom, vinculada à santificação do tempo (Shabat) e da vida (Torá), e por isso pode ser desfrutada sem que a alma se despedace sob o peso dela (Yedei Moshe sobre Bereshit Rabbah 82:2). Assim, na tessitura rabínica, este versículo se torna um fio que costura: o Shabat como bênção que afasta o luto; o justo como encarnação viva da bênção na casa onde habita; a Torá como verdadeira riqueza; e a crítica a toda forma de prosperidade que vem acompanhada de dor corrosiva — riqueza que não floresce da bênção, mas da ansiedade e da violência, e que, por isso, trai o próprio nome de “beraká”.)

Provérbios 10:23

Executar projetos é como brincadeira para o insensato, e sabedoria para o homem de entendimento. (Hb.: kiśḥoq le-kesil ʿasot zimmah, weḥokmah leʾish tevunah — “como divertimento para o tolo é fazer maldade/maquinação, e [assim também] a sabedoria é [divertimento] para o homem de entendimento”). Na primeira parte, kiśḥoq (“como riso, diversão, esporte”) vem à frente, ligado por lamed a kesil (“tolo obstinado”); o infinitivo ʿasot (“fazer”) tem como objeto zimmah, termo forte que pode designar “intriga, plano maldoso, devassidão”. Não se trata, portanto, de qualquer “projeto” empreendedor, mas de tramóias e ações morais torpes que, para o tolo, são passatempo. A sintaxe constrói a cena: “como brincadeira para o tolo é fazer plano perverso” — o mal virou lazer. As versões NET/NIV captam isso ao traduzir “carrying out a wicked scheme is enjoyable to a fool”.

Na segunda parte, weḥokmah leʾish tevunah completa o paralelismo: “e [assim também] a sabedoria [é] para o homem de entendimento”. Ḥokmah (“sabedoria”) e tevunah (“discernimento, capacidade de perceber nuances”) formam um par conceitual; ʾish (“homem”) funciona como suporte gramatical. A elipse é importante: o predicado “é diversão” está apenas na primeira cláusula, mas vale para ambas — como Rashi já nota ao comentar que a sabedoria é “como brincadeira” aos olhos do homem inteligente, ou seja, algo que ele pratica com naturalidade e prazer. O versículo coloca dois tipos de “prazer” lado a lado: o tolo desfruta fazer o mal; o homem de entendimento desfruta a sabedoria. Não há neutralidade: o coração humano sempre se deleita em algo. O Novo Testamento ecoa esse princípio quando fala de “prazer na injustiça” (2 Tessalonicenses 2:12) em contraste com quem “tem prazer na lei de Deus” (Romanos 7:22), retomando a dupla alegria de Provérbios 10:23.

Na base rabínica, o primeiro passo é corrigir o sentido de “projetos”: zimmah não é qualquer plano neutro, mas “trama pecaminosa”, “desenho de devassidão”; Metzudat Tsion explica que zimmah designa precisamente “ato de maldade” (ʿinyan maʿaseh ha-raʿ). Rashi, no seu comentário a Provérbios 10:23 em Sefaria, lê o versículo como radiografia de dois hábitos opostos: “como brincadeira para o tolo é fazer zimmah, conselho de pecadores”, isto é, o insensato já está tão habituado à trama do pecado que conspirar o mal é, para ele, simples passatempo; a segunda metade, “e sabedoria para o homem de entendimento”, ele explica como “a sabedoria é para ele como brincadeira”, no sentido de que lhe é leve, fácil, porque a cultivou até torná-la o seu “esporte” interior. Metzudat David reforça essa linha: assim como o riso é algo leve, “assim é leve para o tolo fazer zimmah”, enquanto para o homem de entendimento a prática da sabedoria é igualmente natural e fácil, pois se acostumou a caminhos de bem.

Immanuel de Roma, em seu comentário a Provérbios 10:22–23 preservado em Sefaria, liga diretamente o nosso versículo à bênção do versículo anterior: a sabedoria, diz ele, é acessível, “não está nos céus” para o homem de entendimento, pois para ele se torna hábito, quase um jogo de amor, enquanto o tolo transforma a vida em palco de intrigas e licenciosidade. Um comentário em Pirkei Avot 3:13–16, também em Sefaria, aprofunda a antítese estrutural: “chokhmāh está no versículo como contraponto de zimmah, e ʾîš tevûnāh como contraponto de kesil”; o texto observa que o tolo é “cheio de riso” e leveza, de modo que a transgressão se encaixa naturalmente em sua disposição jocosa, enquanto o homem de entendimento está cheio de discernimento, e por isso faz da sabedoria — não do deboche — o seu prazer. Uma inferência minha, apoiada nesses comentários, é que o versículo não fala apenas de atos isolados, mas de atmosferas interiores: aquilo com que o coração “brinca” no tempo livre acaba moldando o que ele faz com seriedade.

Literatura musar e mística aprofunda esse raio X da alma. Gan Naul (Casa II, 3:5), em Sefaria, explica que kalut rosh (“leveza de cabeça”) é justamente “o hábito das pensamentos em assuntos de riso e zimmah”, o oposto de koved rosh (“gravidade interior”), e cita o nosso versículo como prova de que, para o tolo, esse fluxo de imaginação licenciosa se tornou quase automático. Em outro trecho (Gan Naul, Casa II, 9:18), o mesmo autor lê a segunda metade do versículo como um convite a transformar a própria sabedoria em prática concreta: “veḥokmāh [aqui] significa praticar os costumes da sabedoria: justiça, direito e retidão”, ancorando o versículo num programa ético de ṣedeq, mišpaṭ u-mēšārîm. Uma inferência minha, a partir dessa leitura, é que o texto pinta dois “treinos espirituais”: o tolo treina a imaginação para a intriga e, por isso, peca sem esforço; o sábio treina o coração para a justiça, e por isso age com retidão quase com a mesma espontaneidade com que outros caem no mal.

Os mestres de ética clássicos aplicam o versículo a pecados bem concretos. No Hovot ha-Levavot (“Duties of the Heart”), no Portão da Devoção a Deus, capítulo 6, Bahya ibn Pakuda descreve um tipo de gente que fez do palavrão e das maldições um espetáculo: eles “chegaram ao extremo da degradação”, multiplicando blasfêmias e insultos “para ampliar suas provocações”, e o autor diz que são “semelhantes àquilo que o sábio disse: ‘É como brincadeira para o tolo fazer maldade’ (Mishlei 10:23)”, ligando nosso versículo à linguagem obscena denunciada também em Isaías 9:16 e ao contraste com “a língua do justo [que] é prata escolhida” de Provérbios 10:20. Em outro campo, Rabenu Bahya ben Asher, comentando Gênesis 39:14, usa o nosso versículo para desmascarar as palavras da mulher de Potifar: ele cita explicitamente “keśaḥoq leḵesil laʿăsot zimmah” e diz que ela transformou em acusação aquilo que, na verdade, era a sua própria proposta pecaminosa, mostrando como o pecado sexual pode ser tratado como “brincadeira” por quem perdeu o temor. (sefaria.org) Aqui, uma inferência minha é que a tradição rabínica lê zimmah sobretudo em chave sexual e verbal (intriga, sedução, linguagem chula), e nosso versículo torna-se um espelho incômodo: aquilo com que alguém se diverte revela a que tipo de ser humano ele está se tornando.

Provérbios 10:24

O que o ímpio teme lhe acontece, mas o desejo do justo lhe é concedido. (Hb.: megōrat rashaʿ hi tavoʾennu, wetaʿavat ṣaddiqim yitten — “o terror do ímpio virá sobre ele, e o desejo dos justos ele concederá”). Na primeira parte, megōrah deriva de gur (“temer, tremer”) e aqui significa “temor, pavor”, com nuance de coisa temida; em construto com rashaʿ (“ímpio”), torna-se “o que o ímpio teme”. O pronome hi (“ela/isso”) funciona como sujeito gramatical do verbo tavoʾennu (qal imperfeito 3ª f. sing. + sufixo 3ª masc. sing.: “virá sobre ele”): aquilo que é o centro do pavor do ímpio o alcançará. As traduções “What the wicked fears will come upon him” em Bible Hub e BLB vão na mesma linha. Sintaticamente, temos aqui uma relação de inevitabilidade: entre o imaginário de medo do ímpio e seu destino há um fio direto — sua própria consciência anuncia, antecipadamente, o juízo que o alcançará.

Na segunda parte, wetaʿavat ṣaddiqim yitten contrapõe desejo e concessão. Taʿavah (“desejo, anseio”) aqui é qualificado pelo sujeito coletivo ṣaddiqim (“justos”), no plural: é o desejo de uma classe inteira de pessoas que buscam a justiça. O verbo yitten (qal imperfeito 3ª masc. sing. de natan, “dar”) tem sujeito implícito — o próprio Deus — e se traduz como “ele concederá”. A forma plural “dos justos” e o verbo singular “ele dará” criam uma visão teológica: uma pluralidade de desejos justos sobe, e um único Doador responde. O provérbio opõe dois movimentos: o ímpio é perseguido pela sombra de seus medos, que acabam se materializando; o justo é acompanhado pela luz de seus desejos, que Deus, no tempo dele, confirma. Isso encontra eco em textos como Salmos 37:4 (“Ele satisfará os desejos do teu coração”) e em 1 João 5:14–15, onde a confiança em pedir “segundo a sua vontade” se liga à certeza de ser atendido — exatamente a confiança que Provérbios 10:24 coloca no horizonte do justo.

Na base rabínica, megōrah é “aquilo que causa pavor”, o susto que treme por dentro, e taʾăwāh é o desejo profundo. Rashi, em seu comentário a Provérbios 10:24, explica a primeira metade de forma seca: “o que o perverso teme virá sobre ele — aquilo de que ele tem medo, virá sobre ele”, e ilustra com a geração da Torre de Babel: eles disseram “para que não sejamos espalhados” (Gênesis 11:4) e, no fim, “o Eterno os espalhou dali” (Gênesis 11:8). A segunda metade, “o desejo dos justos Ele concederá”, Rashi resume como: “Aquele em cujas mãos está conceder [o bem] lhes dará”, sublinhando que o sujeito implícito é o próprio Deus, o único que efetivamente pode dar o que os justos pedem.

O Midrash Lekach Tov sobre Gênesis 11:3 articula de forma vívida essa lógica de medida por medida: ele cita o nosso versículo, “megōrat rāšāʿ hîʾ teḇoʾennû”, e aplica à geração da Torre: “eles disseram: ‘Venham, construamos para nós uma cidade e uma torre’; o Santo, bendito seja, disse: ‘Venham, desçamos’. Eles disseram: ‘para que não sejamos espalhados’; e o Santo, bendito seja, os espalhou, como está escrito: ‘E o Eterno os espalhou’”. O comentário do Maharzu sobre Bereshit Rabbah 38:8 desenvolve o ponto: justamente “na coisa em que temeram e que saíram de sua boca” se cumpre “megōrat rāšāʿ hîʾ teḇoʾennû”; disseram “para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra”, por isso “o Eterno os espalhou sobre a face de toda a terra”, e “na linguagem em que pecaram, por essa linguagem foram julgados”. Uma inferência minha, ancorada nesses midrashim, é que o versículo é lido como lei espiritual: quando o ímpio organiza a vida em torno de um medo egoísta — perder o poder, a fama, a posição — esse medo se torna quase uma profecia autocumprida sob a mão de Deus.

Comentadores posteriores exploram a psicologia desse medo. Ralbag, em Sefaria, comenta “megōrat rāšāʿ” dizendo que aquilo de que o perverso teme “virá sobre ele das calamidades”, porque o Santo não o salvará delas; e essa própria “temor e medo” é sinal de que a influência divina sobre ele está enfraquecida, como ele havia explicado em seu comentário a Jó: o coração do ímpio, inquieto, denuncia uma ruptura de aliança. (Ralbag sobre Provérbios 10:23) Malbim, ao explicar Provérbios 21:6–7, lembra novamente nosso versículo: “já foi dito ‘o terror do perverso virá sobre ele’, que o perverso está sempre com medo”, e acrescenta que “o saque e a ruína preparados para vir sobre eles é que os amedronta, pois o seu coração lhes profetiza o futuro que virá sobre eles”. Um trecho de musar ligado a Salmos 41:1–14 em Sefaria aplica “megōrat rāšāʿ” ao homem que “remove de si o jugo do mandamento”, mas vive obcecado por medo de perder dinheiro: justamente esse medo o faz agir de forma que, no fim, “chegará à perda” daquilo que temia perder. Uma inferência minha, consolidando esses comentários, é que o medo do perverso não é neutro: ele denuncia uma consciência que sabe, ainda que confusamente, estar construindo sobre areia, e por isso vive antecipando, com a imaginação, o desmoronar da própria torre.

Em contraste, a segunda metade do versículo ganha releituras bíblico-rabínicas amplas. Radak, comentando Salmos 112:9–10, contrapõe “o desejo dos ímpios” ao nosso versículo: “o que os ímpios desejam — ver o mal do justo — esse desejo perecerá, porque jamais verão o mal deles”; por outro lado, “quanto ao desejo dos justos, está dito: ‘ve-taʾăwat ṣaddiqîm yitten’”, pois o seu desejo é o bem, e esse é o tipo de desejo que Deus confirma. Rav Peninim, em seu comentário a Provérbios 10:25 em Sefaria, ecoa a mesma lógica ao explicar que, quando a “tempestade” passa, varre o ímpio, mas o justo permanece — uma expansão do contraste entre o medo do perverso que o destrói e o desejo do justo que Deus sustenta. Uma inferência minha, a partir desse conjunto, é que “desejo” aqui não é qualquer capricho, mas o anseio do justo já alinhado à vontade divina; por isso o texto enfatiza que é “Aquele que tem poder de dar” quem concede — há uma consonância entre o que o justo quer e o que Deus se dispõe a fazer.

Leituras hassídicas e cabalisticamente sensíveis começam a enxergar Provérbios 10:22–24 como bloco. Toldot Yaakov Yosef, sobre a porção Reê 23 em Sefaria, cita em sequência “keśaḥoq leḵesil laʿăsot zimmah weḥokmāh leʾîš tevûnāh; megōrat rāšāʿ hîʾ teḇoʾennû we-taʾăwat ṣaddiqîm yitten” e observa que “as dúvidas são muitas”, ligando esses versículos ao anterior (“a bênção do Eterno é o que enriquece, e Ele não acrescenta dor com ela”) e perguntando como conciliar promessa de riqueza sem tristeza com medo do ímpio e desejo do justo. Mesmo sem acompanhar ali toda a solução proposta, o simples fato de que a tradição hassídica junta esses versículos indica que, no horizonte místico, o medo do ímpio e o desejo do justo não são apenas respostas psicológicas, mas sinais de que tipo de fluxo espiritual está atravessando a pessoa: um fluxo de dispersão e desagregação, como em Babel, ou um fluxo de bênção que não acrescenta “dor” àquilo que concede. Uma última inferência minha, costurando as linhas rabínicas aqui reunidas, é que Provérbios 10:23–24 formam um díptico: primeiro, o que se torna brincadeira no coração (zimmah ou sabedoria); depois, o que cresce em silêncio como medo ou desejo; e, por fim, o que Deus permite que se cumpra — o riso do tolo se converte em pavor realizado, enquanto a alegria do sábio se transforma em desejo atendido.

Provérbios 10:25

Como a passagem de um furacão, assim o ímpio desaparece, mas o justo é um alicerce que dura gerações. (Hb.: : kaʿavor sufah weʾen rashaʿ, weṣaddiq yesod ʿolam — “ao passar o vendaval, já não há ímpio, mas o justo é fundamento eterno”). Na primeira cláusula, kaʿavor é infinitivo de ʿavar (“passar”) com preposição kə- (“como”), formando a locução “como o passar de...”. Sufah (“tempestade, furacão, redemoinho”) é substantivo feminino que designa vento violento, imprevisível. A seguir, weʾen rashaʿ traz ʾen (“não há”) + “ímpio”: a estrutura é bem direta — a tempestade passa, e o ímpio não está mais ali. As versões ESV/NKJV refletem isso: “When the whirlwind passes, the wicked is no more”. Do ponto de vista sintático, a comparação não diz que o ímpio é o vendaval; diz que, como o vendaval passa e some, assim o ímpio é rapidamente varrido da cena. A ideia é de instabilidade: a presença do ímpio no mundo é ruidosa, mas breve.

Na segunda cláusula, weṣaddiq yesod ʿolam cria um contraste máximo. Yesod (“fundamento, base”) é substantivo masculino que remete à pedra de apoio sobre a qual um edifício inteiro repousa; ʿolam (“eternidade, tempo indefinido”) aqui funciona como genitivo que qualifica esse fundamento como duradouro, “de sempre”. O justo, então, não é apenas “estável”; ele é o próprio fundamento sobre o qual gerações podem se apoiar. A sintaxe é nominal, sem verbo expresso, sugerindo algo como “mas o justo [é] um fundamento eterno”. O provérbio faz uma radiografia do tempo: aquilo que parece sólido — o poder do ímpio — é tempestade que logo some; aquilo que parece frágil — a vida do justo — é, na verdade, a base que sustenta a história à vista de Deus. O Novo Testamento ressoa essa imagem quando fala de construir a casa sobre a rocha versus a areia (Mateus 7:24–27) e quando aplica a figura do “fundamento” à vida dos apóstolos e profetas em Cristo (Efésios 2:20), mostrando como pessoas justas, finitas, podem tornar-se, pela graça, alicerce que atravessa as épocas, exatamente como Provérbios 10:25 insinua sob a imagem do vendaval e da pedra.

Provérbios 10:26

Como vinagre para os dentes e como fumaça para os olhos, assim é o preguiçoso para os que o enviam. (Hb.: kaḥōmeṣ laššinnayim wəḵeʿāšān lāʿênayim kên heʿāṣēl ləšōlḥāyw — “Como vinagre para os dentes e como fumaça para os olhos, assim é o preguiçoso para os que o enviam.”) A forma kaḥōmeṣ resulta da preposição comparativa (“como”) ligada ao substantivo masculino singular ḥōmeṣ (“vinagre”), construindo uma imagem de acidez que corrói e incomoda; laššinnayim combina a preposição (“para”) com o artigo e o substantivo masculino plural šinnayim (“dentes”), funcionando como complemento preposicionado que indica o alvo da ação sensorial. A sequência wəḵeʿāšān faz eco ao primeiro membro, com como conjunção coordenativa (“e”) e de novo como preposição comparativa unida ao substantivo masculino singular ʿāšān (“fumaça”), gerando um paralelismo sinonímico em que vinagre e fumaça são ambos agentes de irritação sensorial, como se o texto pintasse duas picadas sucessivas sobre dentes e olhos. Em lāʿênayim, a preposição com artigo e o substantivo dual ʿênayim (“olhos”) compõem mais um complemento preposicionado, desta vez atingindo a visão; o adverbial kên (“assim, do mesmo modo”) faz a ponte sintática entre as duas imagens e a aplicação moral, funcionando como marcador de comparação, estrutura que se vê claramente na segmentação do texto em QBible – Mishlei 10. A expressão heʿāṣēl junta o artigo à forma substantivada masculina singular ʿāṣēl (“preguiçoso”), que aqui atua como sujeito da cláusula; por fim, ləšōlḥāyw traz a preposição seguida de um particípio Qal masculino plural de šālaḥ (“enviar”) com sufixo de 3ª masc. sing. (“os que o enviam”), de modo que a função sintática é de complemento preposicionado: “para aqueles que o mandam”. A estrutura global é nominal e comparativa: duas cláusulas preposicionais (“como vinagre…”, “como fumaça…”) culminam no predicativo kên heʿāṣēl ləšōlḥāyw, onde o preguiçoso é posto em relação de equivalência com essas substâncias incômodas; essa leitura sintática — o preguiçoso como agente de dano passivo, que não destrói diretamente mas irrita e frustra a missão de quem o envia — é uma inferência minha a partir da posição dos constituintes no hebraico e do paralelismo poético, ainda que o desenho preciso desse efeito não seja descrito explicitamente nos recursos lexicais citados.

Provérbios 10:27

O temor do Senhor acrescenta dias, mas os anos dos ímpios são abreviados. (Hb.: yirʾat YHWH tōsîp̄ yāmîm ûšĕnōt rĕšāʿîm tiqṣōrĕnāh — “O temor de YHWH acrescenta dias, mas os anos dos ímpios serão encurtados.”) O sintagma yirʾat YHWH traz yirʾat como substantivo feminino singular em construto, de yirʾāh (“temor”), ligado ao nome próprio divino YHWH; trata-se de genitivo de relação, “o temor pertencente a YHWH”, isto é, temor dirigido a YHWH, como se observa no quadro morfológico. O verbo tōsîp̄ é Hifil imperfeito 3ª fem. sing. de yāsap (“acrescentar, aumentar”), concordando em gênero e número com o sujeito feminino yirʾat; exerce função verbal principal, tendo como objeto direto yāmîm (“dias”, substantivo masculino plural absoluto). Na segunda metade, ûšĕnōt é substantivo feminino plural em construto (šānāh, “ano”), coordenado por û (“mas/e”), seguido de rĕšāʿîm, adjetivo masculino plural (“ímpios”) substantivado; o conjunto forma “os anos dos ímpios” como sujeito de tiqṣōrĕnāh, forma Qal imperfeito 3ª fem. pl. de qāṣar (“ser encurtado, diminuído”), com sufixo paragogicamente alongado em -nāh. A sintaxe conserva o paralelismo antitético: na primeira linha, o temor de Deus é sujeito agente que “acrescenta dias”; na segunda, os anos dos ímpios tornam-se sujeito paciente de um verbo passivo (“são abreviados”), o que reforça uma teologia de retribuição temporal: o temor reverente alonga a história, enquanto a impiedade encurta a trajetória. Essa leitura de “dias” e “anos” como imagem da qualidade e não apenas da quantidade da vida, recorrendo a paralelos como Provérbios 3:2 e 9:11, é uma inferência teológica minha.

Provérbios 10:28

A esperança dos justos é alegria, mas a expectativa dos ímpios perecerá. (Hb.: tōḥeleṯ ṣaddiqîm śimḥāh wəṯiqwaṯ rĕšāʿîm tōʾbēd — “A esperança dos justos é alegria, mas a expectativa dos ímpios perece.” O substantivo feminino singular tōḥeleṯ (“esperança, expectativa”) atua como sujeito da primeira cláusula, ao lado do adjetivo masculino plural ṣaddiqîm (“justos”), que aqui funciona substantivado em genitivo (“dos justos”), conforme a segmentação de Bible Hub – Text Analysis 10:28. O predicativo nominal é śimḥāh, substantivo feminino singular (“alegria”), que assume função de núcleo do valor resultante: a esperança que nasce da justiça desabrocha em alegria. Na segunda metade, wəṯiqwaṯ combina a conjunção com o substantivo feminino singular em construto tiqwāh (“esperança, expectativa”), formando “mas a expectativa”; rĕšāʿîm repete o adjetivo masculino plural “ímpios” como genitivo, enquanto tōʾbēd é Qal imperfeito 3ª fem. sing. de ʾābad (“perecer”), em concordância com ṯiqwaṯ. A sintaxe mantém uma equação clara: de um lado, esperança → alegria; de outro, expectativa → perecimento. A escolha de termos diferentes para “esperança” (tōḥeleṯ e tiqwāh) parece criar um efeito de sombra: a primeira esperança, associada à justiça, amadurece em alegria estável, enquanto a segunda, ligada aos ímpios, é um desejo suspenso no ar que se desfaz. Essa distinção semântica entre as duas palavras para “esperança” baseia-se em nuances observáveis nos usos do léxico nos corpora da Bíblia Hebraica, mas a associação teológica específica (esperanças qualitativamente distintas) é inferência minha a partir desse conjunto de usos.

Provérbios 10:29

O caminho do Senhor é fortaleza para o íntegro, mas ruína para os que praticam a iniquidade. (Hb.: maʿōz latṭōm derek YHWH ûmeḥittāh ləpōʿălê ʾāwen — “Fortaleza para o íntegro é o caminho de YHWH, e ruína para os que praticam a iniquidade.”) O substantivo masculino singular maʿōz (“refúgio, fortaleza”) abre o versículo e, em termos sintáticos, funciona como predicativo que será ligado ao sujeito posterior “o caminho de YHWH”; latṭōm resulta da preposição com artigo e o substantivo masculino tōm (“integridade, inocência”), formando o complemento preposicionado “para o íntegro”. O sintagma derek YHWH combina o substantivo masculino singular derek (“caminho, modo de vida”) com o nome divino em genitivo, formando o sujeito lógico da equação (“o caminho de YHWH”); a ordem marcada (predicativo antes do sujeito) reforça por ênfase que não qualquer caminho, mas precisamente o caminho de YHWH, é que se mostra fortaleza. Na segunda linha, ûmeḥittāh traz a conjunção û (“e/mas”) ligando o substantivo feminino singular meḥittāh (“quebra, ruína, catástrofe”), que ocupa posição de predicativo para a nova relação, ao complemento ləpōʿălê ʾāwen: aqui é preposição “para”, pōʿălê é particípio Qal masculino plural em construto de pāʿal (“fazer, praticar”), e ʾāwen é substantivo masculino singular (“iniquidade, maldade”), formando a expressão “os que praticam a iniquidade”. A sintaxe inteira é nominal e antitética: o mesmo “caminho de YHWH”, tomado como realidade objetiva, é experimentado como maʿōz por quem vive na integridade e como meḥittāh por quem vive de explorar o mal; a ideia de uma mesma estrada que se torna abrigo ou ruína conforme o viajante é uma inferência minha a partir da ordenação dos predicativos e do paralelismo, ecoando leituras como a análise de refúgio/julgamento, ainda que o texto não desenvolva essa imagem de forma narrativa.

Provérbios 10:30

O justo jamais será abalado, mas os ímpios não habitarão a terra. (Hb.: ṣaddiq ləʿōlām bal yimmōṭ ûrĕšāʿîm lōʾ yiškənû-ʾāreṣ — “O justo, para sempre, não será abalado; mas os ímpios não habitarão a terra.”) O adjetivo masculino singular ṣaddiq (“justo”) aqui é usado como substantivo, atuando como sujeito; ləʿōlām é a preposição com o substantivo masculino singular ʿōlām (“eternidade, para sempre”), formando um dativo adverbial de duração (“para sempre”). A partícula negativa bal funciona como advérbio que antecede o verbo yimmōṭ, forma Nifal imperfeito 3ª masc. sing. de mûṭ (“ser abalado, vacilar”), de modo que a cláusula inteira afirma que o justo “não será jamais abalado”. Na metade final, ûrĕšāʿîm combina a conjunção û com o adjetivo masculino plural rĕšāʿîm (“ímpios”), formando o sujeito plural “os ímpios”; lōʾ é a partícula negativa comum, e yiškənû é Qal imperfeito 3ª masc. plural de šākan (“habitar, estabelecer-se”), concordando com o sujeito plural. O objeto é ʾāreṣ, substantivo feminino singular (“terra”), unido por maqqef a yiškənû, compondo a frase “não habitarão a terra”. A sintaxe contrapõe estabilidade e desenraizamento: o justo é descrito pela metáfora de alguém que não é “sacudido”, como uma coluna firmada, enquanto os ímpios são expulsos do espaço de habitação; essa associação com outros textos que falam do não vacilar do justo (como Salmos 16:8) e da perda de terra pelos ímpios é uma inferência minha a partir de paralelos canônicos, não uma exposição direta dos sites citados, embora a ideia de não-ser-abalado como segurança apareça claramente no léxico de môṭ em StudyLight – Lexicon 4132.

Provérbios 10:31

A boca do justo produz sabedoria, mas a língua da perversidade será cortada. (Hb.: pî ṣaddiq yānûb ḥokmāh ûləšōn tahpukōt tikkārēt — “A boca do justo faz brotar sabedoria, mas a língua da perversidade será cortada.”) O sintagma pî ṣaddiq traz (“boca de”) como substantivo masculino singular em construto, ligado a ṣaddiq (“justo”) em genitivo, formando o sujeito composto “a boca do justo”; o verbo yānûb é Qal imperfeito 3ª masc. sing. de nûb (“brotar, produzir fruto”), cuja nuance de frutificação discursiva é sublinhada em notas como as de Chabad – Mishlei 10, que relacionam nûb à ideia de “nib” (fruto, produto dos lábios). O objeto direto é ḥokmāh, substantivo feminino singular (“sabedoria”), de modo que a imagem é de uma boca que faz “frutificar sabedoria”, não apenas repeti-la. Na segunda linha, ûləšōn combina a conjunção û com a preposição e o substantivo feminino lāšōn (“língua”), que aqui forma, com tahpukōt, uma construção de genitivo: tahpukōt é substantivo feminino plural (“perversidades, distorções”), produzindo a expressão “língua de perversidades”. O verbo final tikkārēt é Nifal imperfeito 3ª fem. sing. de kārat (“ser cortado, ser extirpado”), concordando com o sujeito feminino “língua de perversidade” e apontando para uma ação passiva de juízo: a língua que distorce será “cortada fora”. A construção inteira estabelece um paralelismo intensificado entre boca e língua: de um lado, a boca como fonte que faz nascer sabedoria; de outro, a língua como órgão da distorção que, por isso mesmo, é amputado. A leitura dessa amputação como juízo divino histórico e escatológico é inferência minha a partir do campo semântico de kārat e de paralelos em textos proféticos, ainda que os sites interlineares citados se limitem a registrar a forma verbal e suas possíveis traduções.

Provérbios 10:32

Os lábios do justo conhecem o que agrada, mas a boca dos ímpios é perversidade. (Hb.: śiptê ṣaddiq yēdeʿûn rāṣōn ûpî rĕšāʿîm tahpukōt — “Os lábios do justo conhecem o favor, mas a boca dos ímpios [é] perversidades.”) O sintagma inicial śiptê ṣaddiq traz śiptê como forma de construto dual de śāfāh (“lábios”), classificável como substantivo feminino dual em construto, ligado a ṣaddiq (“justo”) em genitivo; juntos, formam o sujeito plural “os lábios do justo”, cuja concordância verbal se vê em yēdeʿûn, Qal imperfeito 3ª masc. plural de yādaʿ (“conhecer”). O objeto direto é rāṣōn, substantivo masculino singular (“favor, boa vontade, aquilo que agrada”), termo que, no corpus sapienciai, frequentemente designa o que é “aceitável” diante de Deus e dos homens; a sintaxe, portanto, pinta os lábios do justo como sensíveis ao que é agradável, como se tivessem um paladar treinado para o favor. Na segunda linha, ûpî rĕšāʿîm une a conjunção û ao substantivo em construto (“boca de”), agora regido pelo substantivo/adjetivo masculino plural rĕšāʿîm (“ímpios”), que funciona como genitivo: “a boca dos ímpios”; tahpukōt, substantivo feminino plural (“perversidades, distorções”), aparece isolado como predicativo nominal sem verbo expresso, de modo que a estrutura é nominal: “a boca dos ímpios [é] perversidade”, como se vê na apresentação paralela em QBible – Mishlei 10:32. A ausência de verbo explícito na segunda parte reforça, por condensação, a identidade entre boca ímpia e perversidade: o texto não diz que a boca “fala” perversidade, mas que ela é, em sua própria natureza, um conjunto de distorções. A contrapartida é luminosa: lábios justos “sabem” o favor, como alguém que reconhece ao longe o timbre de uma voz amada. Essa leitura — lábios treinados para o que agrada a Deus e aos homens versus boca que se torna personificação da distorção — é inferência minha construída a partir dos dados lexicais e da forma nominal da frase, ainda que os sites consultados se limitem ao registro gramatical da construção.

II. Devocional de Provérbios 10

Provérbios 10 marca o início da maior coleção de provérbios no livro, apresentando máximas curtas e diretas que contrastam a sabedoria e a tolice, a justiça e a iniquidade, e suas respectivas consequências. Este capítulo é uma série de pares antitéticos, cada versículo contrastando duas ideias ou tipos de pessoas. Podemos agrupá-los em blocos temáticos para melhor compreensão e aplicação.

A. Provérbios 10:1–5 (O Fundamento: Sabedoria Filial e Diligência)

Este segmento abre a coleção de provérbios de Salomão, contrastando a alegria de um filho sábio para seus pais com a tristeza e vergonha causadas por um filho tolo. A sabedoria aqui é um reflexo do caráter. O texto então vincula a justiça à vida e a iniquidade à inutilidade, afirmando que a diligência traz riqueza, enquanto a preguiça leva à pobreza. A capacidade de ajuntar no tempo certo (verão/colheita) é um sinal de sabedoria e prudência, diferenciando o filho sábio do que envergonha.

Aplicação: Para ser um cristão melhor, entender que nossas ações têm um impacto direto nas pessoas ao nosso redor, especialmente na família, é crucial. Um filho sábio honra seus pais não apenas com palavras, mas com uma vida de diligência e retidão, que reflete a luz de Cristo (Efésios 6:1-3). A diligência no trabalho e a prudência nas finanças são virtudes cristãs, um testemunho de boa mordomia dos recursos e do tempo que Deus nos concede (cf. 2 Tessalonicenses 3:10).

Como filho melhor, a lição é clara: suas escolhas e sua ética de trabalho impactam diretamente a honra de sua família. Ser diligente nos estudos e nas tarefas diárias, e não ceder à preguiça, traz satisfação aos pais e prepara um futuro mais próspero. Para pais melhores, este bloco nos lembra da importância de nutrir a sabedoria em nossos filhos. Ensinar o valor do trabalho árduo, da responsabilidade e da prudência financeira, e celebrar suas conquistas, é um investimento na sua felicidade e na honra da família. Um funcionário melhor exemplifica a diligência e a visão a longo prazo. Ele "ajunta no verão", ou seja, trabalha proativamente e com inteligência, evitando a preguiça que leva à improdutividade e à eventual ruína. Como membro da igreja melhor e cidadão melhor, a diligência individual se traduz em uma comunidade e sociedade mais fortes e prósperas.

B. Provérbios 10:6–16 (O Poder das Palavras e a Fonte da Segurança)

Este segmento foca no poder das palavras e na fonte da verdadeira segurança. Ele contrasta a bênção que coroa a cabeça do justo e a memória abençoada que permanece, com a boca violenta e o nome que apodrece para o ímpio. A sabedoria nos lábios é uma fonte de vida, enquanto a tolice leva à queda e à ruína. O amor aqui se apresenta como um agente de reconciliação, cobrindo transgressões, em contraste com o ódio que incita contendas. A riqueza é apresentada como uma fortaleza ilusória para o rico, enquanto a pobreza é a ruína do pobre. A recompensa do justo é a vida; a do ímpio, o pecado.

Aplicação: Para ser um cristão melhor, devemos reconhecer que nossas palavras têm poder para edificar ou destruir. A boca do justo é "fonte de vida" (Provérbios 10:11). Somos chamados a usar nossa língua para abençoar e não para amaldiçoar (Tiago 3:9-10). O amor, que "cobre todas as transgressões" (Pv 10:12), é um mandamento central de Jesus (João 13:34-35), essencial para a reconciliação e a paz. A verdadeira segurança e prosperidade não vêm da riqueza material, mas de uma vida justa diante de Deus (Mateus 6:19-21).

Como filho melhor, aprender a controlar a língua e a evitar a mentira ou a calúnia é fundamental para construir relacionamentos saudáveis. Para pais melhores, a importância de ensinar a sabedoria da palavra (o que falar, como falar e quando falar) é inegável. Devemos ser modelos de amor que perdoa e busca a reconciliação, mostrando que a verdadeira segurança não está nos bens, mas na integridade e na fé. Um funcionário melhor compreende que a honestidade e a comunicação clara são ativos inestimáveis. Evitar a mentira e fofocas no ambiente de trabalho, e usar palavras que promovem a colaboração, são traços de caráter louváveis. Um membro da igreja melhor promove a unidade e a paz por meio de suas palavras, e um cidadão melhor contribui para uma sociedade mais justa e harmoniosa através de seu discurso e ações íntegras.

C. Provérbios 10:17–32 (Consequências da Escolha: Vida e Morte, Sabedoria e Loucura)

Este segmento final reitera as consequências das escolhas, contrastando a obediência à instrução com o desprezo por ela. O texto adverte contra encobrir o ódio com lábios mentirosos e espalhar calúnias, que são atos de tolice. A sabedoria é encontrada na contenção da língua e na prudência das palavras. A bênção do Senhor é a verdadeira fonte de riqueza sem tristezas, e o temor do Senhor prolonga a vida, enquanto a impiedade encurta os anos. A esperança dos justos é alegria, mas a dos ímpios perecerá. O caminho do Senhor é fortaleza para o justo e ruína para o perverso.

Aplicação: Para ser um cristão melhor, a persistência na instrução bíblica é o caminho para a vida (Pv 10:17). Devemos evitar a calúnia e a fofoca (Tiago 4:11-12) e buscar a bênção do Senhor como a verdadeira riqueza, que não traz aflições (Pv 10:22). A nossa esperança deve estar firmada em Cristo, que é nosso fundamento eterno (1 Coríntios 3:11). Isso significa que, mesmo em meio às adversidades, nossa fé e caráter nos manterão firmes.

Como filho melhor, aceitar a correção e a instrução dos pais é um sinal de sabedoria e um caminho para uma vida mais longa e próspera. Para pais melhores, ensinar os filhos a importância de refrear a língua e a valorizar a verdade é essencial. Mostrar que a verdadeira bênção e segurança vêm do Senhor, e não da busca incansável por riquezas terrenas, é uma lição de fé. Um funcionário melhor demonstra prudência ao falar menos e ouvir mais, evitando a "multidão de palavras" que leva à transgressão. Sua integridade o torna um "fundamento eterno" para a empresa, e sua diligência o afasta do desdém que um preguiçoso recebe (Pv 10:26). Um membro da igreja melhor sabe que a sabedoria está em discernir o que é agradável a Deus e ao próximo em suas palavras e atitudes (Pv 10:32), evitando a língua perversa que causa divisão. Um cidadão melhor é aquele que constrói sobre princípios de justiça e retidão, contribuindo para uma sociedade onde a verdade e a integridade prevalecem, garantindo estabilidade e prosperidade duradoura.

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GALVÃO, Eduardo. Provérbios 10: Significado, Explicação e Devocional. In: Comentário Bíblico Online (S. l.), abr. 2013. Disponível em: [Cole aqui o link sem colchetes]. Acesso em: [Coloque a data que você acessou este estudo, com dia, mês abreviado, e ano, também sem colchetes. Ex.: 22 ago. 2025].

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