Teologia de Rute 1
O relato é familiar para a
maioria dos leitores da Bíblia. Noemi, seu marido e seus dois filhos emigraram
de Belém para Moabe para escapar da fome durante a era dos Juízes (1.1,2).
Chegando lá, seu marido e filhos morreram (1.3-5). Noemi é deixada com duas
noras moabitas, Rute e Orfa. Sem filhos e magoada, ela ouve falar de tempos
melhores em Judá, decide retornar ao lar e tenta devolver as outras mulheres
aos seus lares paternos em Moabe (1.6-13). Orfa parte, mas Rute compromete-se a
ficar com Noemi (1.14-18). As duas mulheres retomam, e Noemi expressa amargura
diante da sua situação (1.19-22). O principal problema que o enredo tem que
resolver é como essas mulheres desprovidas de maridos e filhos irão sobreviver
no antigo Israel. Num exame mais cuidadoso, observa-se que diversos princípios
teológicos ajudam a formar a ação. Primeiro, 1.1-5 não atribui qualquer ação ao
Senhor, mas 1.6 afirma que Noemi decide retornar a Belém porque houve dizer que
Deus veio em auxílio do povo e deu-lhe alimentos. O comentário do narrador considera
que os leitores reconhecem a soberania de Deus sobre todos esses eventos. As
manifestações de Deus no AT podem ocorrer ou para a bênção ou para a punição.
Em 1.6, Deus abençoa, mas Noemi, Rute e Orfa aprendem que nem sempre a vida
traz acontecimentos agradáveis. Segundo, ao acreditar que Deus dá a benção, bem
como a leva embora, Noemi pede a Yahweh para abençoar as mulheres mais jovens
com novos maridos e lares.
Assim elas estarão seguras. Willem S. Prinsloo
observa que Noemi baseia sua oração na bondade que as mulheres demonstram a ela
e aos homens falecidos, uma idéia que reaparece regularmente na história. A
expectativa de Noemi é que o Senhor abençoe o crente, e uma boa parte no livro
de Rute questiona se tal fé é bem fundamentada. Terceiro, ao comprometer-se com
Noemi, a moabita Rute também se compromete com Israel e com Yahweh (1.16,17).
Ela converte-se ao pacto de fé como Raabe (Js 2.8-14), Naamã (2Rs 5-1-18) e os
ninivitas de Jonas o fizeram
anteriormente no cânon. Israel está aberto para os que renegam outros deuses,
queiram oferecer sacrifícios a Yahweh (v. Lv 22.25) e desejem orar no templo
(v. lRs 8.41-43). Embora a adoração no templo não fosse permitida na era dos
juízes, os outros princípios são verdadeiros. A fé monoteísta não é propriedade
exclusiva de Israel ou qualquer outra nação, e Israel deve permanecer
receptível aos que escolhem abraçar as crenças da aliança divina. A seriedade
de Rute é marcada por seu juramento em nome de Yahweh, um voto considerado por
ela, em 1.17, como seguro, permanente e perigoso de se quebrar. Em quarto
lugar, Noemi atribui seu dilema ao Senhor em 1.20,21. Ela diz às mulheres de
Belém para chamá-la Mara (“amarga”) em vez de Noemi (“agradável”) por causa da
maneira como Deus a tratou. Embora ela não saiba, porém, Yahweh já havia
concedido misericórdia à sua perda pelo compromisso de Rute com ela. Sua ajuda
chegou. O mesmo ocorre com Rute, devido à solução de Deus para seu presente e
futuro estar estreitamente relacionado a Noemi e Yahweh. Cada uma delas é um
canal de graça divina para a outra, embora a afirmação desse fato signifique
uma antecipação da história. A declaração em 1.20,21 é ao menos tão orientada
para a soberania de Deus quanto em 1.6. Noemi certamente acredita que Yahweh é
o Senhor acima da aflição e libertação. Tudo o que acontece no final das contas
deve derivar do caráter de Deus.
Síntese canônica: sofrimento e retidão
Noemi pertence a uma longa
linhagem de figuras canônicas que sofrem sem nenhuma culpa própria. O grupo
inclui, para nomear alguns, José, Josué, Ana, Davi, Jeremias, Ezequiel, muitos
salmistas e Jó. A eles se reunirão mais tarde Ester, Daniel e outros. Como Jó e
os lamentosos salmistas, Noemi não fica calada em sua aflição. Ela sente-se
abandonada, apesar de crer na bondade de Deus (1.6). Assim, como escreve
Campbell, “visto dessa perspectiva, [sua argumentação sobre Deus em 1.20,21] é
em sentido muito genuíno uma declaração profunda de fé”. A fé de Noemi inclui a
dor explícita, sabendo que o Deus uno que concede misericórdia à terra (1.6)
pode também conceder-lhe misericórdia. Como Jó (Jó 3—37), entretanto, ela ainda
não sabe o que resultará de suas crenças.