Estudo sobre Apocalipse 15:3-4

Estudo sobre Apocalipse 15:3-4



E entoavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro. Como a formulação seguinte deixa claro, não se trata de dois cânticos, mas do mesmo cântico. Para a designação dupla, considere-se que a libertação por meio de Moisés foi ao mesmo tempo uma redenção através do cordeiro pascal. Entretanto, no contexto do Ap estará em primeiro plano que o cântico de Moisés foi cumprido por Jesus, o Cordeiro de Deus, e que por isso pode ser cantado validamente como cântico do Cordeiro. Estava prefigurada no judaísmo a expectativa por um segundo Moisés que, por fim, libertaria o povo de Deus integralmente. A passagem pelo Mar Vermelho era considerado como descrição antecipada da redenção messiânica.

Os dois versículos (3,4), que reproduzem o conteúdo da nova canção, com certeza evocam seu paradigma em Êx 15.6,11,18. No entanto, além disso estão também inseridos profundamente num acervo da fé do AT. Não há formulação nem termo que não possa ser comprovado no at.738 O fato de que esses trechos estão arraigados com tanta solidez nas Sagradas Escrituras não deveria torná-los suspeitos, como se por essa razão fossem copiados e compostos artificialmente. Pelo contrário, dessa maneira eles se evidenciam como revelação genuína do Deus uno e do Espírito uno, bem como testemunhos da fé única.

Grandes é a primeira exclamação, uma espécie de exaltação da magnitude de Deus (nota 606). O termo “admiráveis” ocorre com frequência em conexão com a redenção do Egito.739 A ação de Deus é tão poderosa que excede a capacidade de entendimento das pessoas. O ser humano fica de joelhos, seja com humildade, seja também empedernido como o Faraó. Contudo, está de joelhos. Conforme Ap 13.3, essa admiração também podia suscitar, do mar, a besta. Contudo ela apenas causava assombro nas pessoas através de truques.

Na interjeição seguem-se [no original] três designações de Deus: “Ó Senhor, Deus, Senhor único” (cf. o comentário a Ap 1.8). O número três predomina no cântico. Ele também apresenta três palavras de louvor e três justificativas para elas.

A segunda palavra de louvor diz: Justos e verdadeiros são os teus caminhos. As obras admiráveis precipitam uma admiração incontida sobre a justiça de seus caminhos. Esta é a tônica. A justiça é adicionalmente asseverada: ela é verdadeiramente justa (cf. o exposto sobre Ap 5.7). Neste sentido não restava a mínima coisa a desejar. Deus até era mais justo que desejariam as pessoas que constantemente depositam sua esperança nas lacunas ou nos pontos frágeis de sua justiça. “Ao Todo-Poderoso, não o podemos alcançar; ele é grande em poder, porém não perverte o juízo e a plenitude da justiça” (Jó 37.23). Ó Rei das nações encerra esse louvor, assinalando mais uma vez a amplitude do horizonte em que ele é proferido.

Quem não temerá, começa a terceira palavra de louvor, e não glorificará o teu nome, ó Senhor? É o temor irrestrito, acima de qualquer respeito a governantes terrenos (1Pe 2.17; At 4.19; 5.29). A percepção aqui é que ele é a única atitude sensata. A pergunta retórica pressupõe uma hora em que ninguém sequer pensa em se erguer da prostração diante de Deus e negar-lhe a veneração. Foi cabalmente aniquilada e julgada a presunção de um deus além de Deus (Ap 13.4).

Acrescenta-se uma tríplice justificativa. Pois só tu és santo (“devoto”).740 Na maioria das passagens em que ocorre, esta palavra (hósios) é relacionada com a atitude das pessoas que se evidenciam como consagradas a Deus e fiéis à lei. Aplicada a Deus, ela somente pode ter o significado de que Deus é fiel a si próprio e está pronto para preservar de forma extraordinária a sua divindade. No final ele é Deus intocável, e precisamente somente ele (Sl 86.10). Esse pensamento da soberania exclusiva reconquistada por Deus determina todas as afirmações. Ela constitui o alvo dos milagres e caminhos de Deus.

A isto se acrescenta a segunda justificativa de que Deus é digno de adoração. Ela transita para o estilo do discurso profético. Por isso, todas as nações virão e adorarão diante de ti. Convictos pela manifesta glória de Deus elas marcham até ele e realizam a profunda reverência, realizada de joelhos. A mesma prostração aconteceu em Ap 13.3,4,8,12,15 diante da besta, assim como por parte da “terra inteira” (Ap 13.3,4) e por “todos que habitam sobre a terra” (Ap 13.8,12). A besta tinha roubado a glorificação de Deus, contudo a glorificação derradeira é tributada novamente ao Deus verdadeiro.741

Finalmente, um terceiro “pois” fundamenta a honra de Deus: porque os teus atos de justiça se fizeram manifestos. Nessas sentenças judiciais naturalmente não se tem em mente um mero evento de fala. Pelo contrário, trata-se de decisões judiciais que agora se tornaram concretas e convincentes aos olhos de todos. Enquanto Juiz da terra, Deus convenceu de uma forma tal que nenhuma consciência pode mais se subtrair a esse estado de direito flagrante. Diante de um Juiz assim todo o mundo cai de joelhos. Foi tão verdadeiro e confiável que ele se manifestou.

Cumpriu-se, assim, a prece fundamental de todas as pessoas de Deus: “Serás justo quando falares, irrepreensível quando julgares!” (Sl 51.6 [teb]). De fato, os vitoriosos não cometem nenhum erro de pronúncia em sua canção de triunfo. Não aparece nenhum egoísmo, nem anseio de vingança, nem orgulho por sacrifícios e fidelidade pessoais, mas exclusivamente a satisfação daquela fome de glorificar a Deus e ao Cordeiro. Se esses vencedores tivessem se deixado dominar pela autocomplacência já não seriam mais vencedores. Sua vitória se alimenta do fato de que a honra de Deus é vitoriosa (cf. o comentário a Ap 6.10).

Cumpre captar a função dessa visão em seu contexto. Em breve começa o derramamento das sete taças da ira, começam os últimos golpes de Deus contra o reino da besta, até que toda idolatria sucumba no pó. Esse acontecimento está sendo combinado agora com a música futurista da igreja redimida. Isto é, somente a partir da outra margem, da posição na consumação escatológica, conferida pelo anúncio profético, é que se consegue suportar a fase final terrivelmente sombria da história, que em seguida será verbalizada. A interpretação da história e a interpretação do juízo a partir do lado de cá ou do meio da torrente não são capazes de penetrá-la e fracassarão de maneira deplorável. Conforme Mt 24.22, virão dias em que, se não forem abreviados, nenhuma pessoa permanecerá cristã. Contudo, mesmo abreviados, eles são insuportáveis se a fé na onipotência da bestialidade for mais forte que a fé na superação de todas as coisas pelo Deus justo em Jesus Cristo. A igreja persistirá como igreja unicamente por meio da luz à frente, por meio dessa profecia de uma glorificação final indescritível de Deus e do Cordeiro. Por isso é feliz quem tem ouvidos, lê, ouve e cumpre esse livro de profecia!

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Notas:
738. “Grandes são as obras do Senhor” (Sl 111.2); “as tuas obras são admiráveis” (Sl 139.14); “Senhor, Deus de todo poder” (Am 4.13 [teb]); “suas obras são perfeitas… é justo e reto” (Dt 32.4); “quem te não temeria a ti, ó Rei das nações?” (Jr 10.7); “todas as nações… virão, prostrar-se-ão diante de ti, Senhor, e glorificarão o teu nome” (Sl 86.9); “só tu és Deus” (Sl 86.10).

606. Conforme Grundmann, Ki-ThW vol. iv, pág. 545-546, “grande“ constitui uma parte preferida da aclamação de praticamente todos os deuses nos cultos do helenismo. Para ela existem também comprovações no AT. No nt, cf. At 8.10; 19.27,28,34. Da magnitude de Deus falam At 2.11 e Tt 2.13, cf. Ap 15.3.

739. Êx 3.20; 15.11; 34.10; Dt 34.12. De acordo com outras passagens “admirável” é o que é “elevado demais” para nós humanos (Sl 139.6) e o que “não compreendemos” (Jó 37.5), no qual “perdemos a orientação” (Jó 37.19 [tradução do autor]).

740. Defensores da reconciliação universal gostam de traduzir essa palavra com “rico em clemência” (E. A. Knoch, Langenberg) ou com “misericordioso” (Bengel).

741. Novamente não está sendo abordada a questão da salvação individual, cf. nota 499.