Os Evangelhos sob a Ótica do Mito Universal
Os Evangelhos e o Mito
A relação entre mito e evangelho tem sido, ao longo dos séculos, objeto de intensa investigação por parte de teólogos, historiadores, filósofos e estudiosos das religiões comparadas. Desde os primórdios da crítica moderna da Escritura, pensadores têm se perguntado até que ponto os relatos evangélicos compartilham estruturas narrativas, símbolos e padrões de sentido com os chamados “mitos universais”, isto é, aquelas narrativas fundamentais que atravessam culturas e civilizações para explicar a origem, o destino e o sentido da existência humana diante do sagrado. Esta abordagem, longe de reduzir o conteúdo teológico do cristianismo à mera expressão mítica, visa antes compreender como a linguagem da fé cristã — especialmente nos evangelhos — se serve de formas simbólicas, arquétipos e construções narrativas que ressoam com outros grandes relatos da humanidade.
A partir do Iluminismo, e especialmente com o surgimento da história crítica e do estudo comparativo das religiões, a categoria do mito passou a ser aplicada não apenas às religiões antigas e extra-bíblicas, mas também às Escrituras judaico-cristãs. Isso inaugurou uma nova maneira de ler os textos sagrados: não mais apenas como crônicas factuais ou tratados dogmáticos, mas como construções teológico-literárias que, ao modo dos mitos, expressam verdades profundas sobre Deus, o ser humano e o mundo. O escândalo — ou o desafio — dessa proposta reside no fato de que, no Ocidente cristão, a palavra “mito” tem historicamente carregado uma conotação de falsidade ou fabulação, o que cria uma tensão inevitável quando aplicada a textos que afirmam ser portadores da verdade revelada.
Entretanto, ao longo do século XIX e, sobretudo, no século XX, figuras como David Friedrich Strauss e Rudolf Bultmann trouxeram à tona não apenas o problema terminológico do mito, mas também sua função teológica e hermenêutica nos relatos evangélicos. Para Strauss, os milagres relatados nos evangelhos são melhor compreendidos como expressões mitológicas da crença na messianidade de Jesus, mais do que como registros factuais de acontecimentos sobrenaturais. Para Bultmann, por sua vez, o mito representa a linguagem existencial e simbólica por meio da qual os primeiros cristãos expressaram sua experiência salvífica com o Cristo ressuscitado, o que levou ao seu célebre programa de “desmitologização”.
A questão, portanto, não é se os evangelhos são mitos no sentido vulgar da palavra, mas se neles encontramos uma estrutura mítica que os aproxima das grandes narrativas do espírito humano. Nesse sentido, o mito não se opõe à verdade, mas é um de seus modos de revelação. A morte e ressurreição de Jesus, a encarnação, os milagres e as parábolas são relatos que possuem força simbólica e poética, transcendendo a mera história documentável para adentrar o campo da teologia vivida, da experiência do sagrado e da proclamação de uma nova realidade escatológica.
Este artigo, portanto, parte da premissa de que a análise mítica dos evangelhos não nega sua veracidade teológica, mas antes a aprofunda, ao situá-los dentro da grande tapeçaria das narrativas humanas sobre Deus, o mal, o destino, a redenção e a esperança. Ao investigar os pontos de convergência e tensão entre o mito e o evangelho, buscamos compreender melhor não apenas a natureza dos textos do Novo Testamento, mas também a forma como o cristianismo se apresenta como resposta singular a perguntas universais.
I. A Definição de Mito e Suas Implicações para o Estudo dos Evangelhos
Toda investigação que pretenda analisar a relação entre os evangelhos e o conceito de mito precisa, antes de mais nada, enfrentar um desafio inicial e fundamental: a instabilidade semântica do próprio termo “mito”. Ao contrário de categorias bem delimitadas das ciências exatas, o vocábulo “mito” comporta uma gama de definições que variam de acordo com o contexto disciplinar (antropologia, teologia, literatura, psicologia), o horizonte cultural e o enfoque filosófico. Como advertido por inúmeros estudiosos, entre eles o próprio Rudolf Bultmann, qualquer tentativa de aplicar o conceito de mito ao Novo Testamento precisa declarar explicitamente qual definição de mito está em jogo, sob pena de incorrer em reducionismos grosseiros ou em equívocos interpretativos.
A tradição ocidental moderna, influenciada sobretudo pela mentalidade pós-iluminista, consolidou o hábito de compreender “mito” como sinônimo de fábula, ficção ou mesmo mentira. Tal concepção deriva da valorização crescente da história como ciência empírica da realidade verificável, em contraposição às narrativas arcaicas que não se submetem aos critérios de testemunho, documentação e causalidade linear. Dessa forma, dizer que algo “é um mito” passou a funcionar como uma desqualificação de sua credibilidade, o que naturalmente cria um embaraço quando se propõe que os evangelhos possam conter elementos míticos. A resistência à associação entre mito e evangelhos provém, em parte, dessa carga pejorativa herdada da crítica racionalista.
No entanto, o campo das ciências da religião e da antropologia cultural oferece outra perspectiva. No uso técnico moderno, sobretudo após os trabalhos de autores como Mircea Eliade, Joseph Campbell e Claude Lévi-Strauss, “mito” é frequentemente definido como uma narrativa fundadora, um relato que articula os princípios de ordem, significado e origem de um povo, cultura ou cosmovisão. Nesse sentido, o mito não é uma ficção, mas uma forma simbólica de expressar verdades fundamentais, mesmo quando o faz com categorias não-históricas. O mito narra um tempo arquetípico — o “tempo primordial” — em que os fundamentos da realidade foram estabelecidos: o surgimento do cosmos, da morte, da linguagem, da autoridade, do sagrado. Ele funciona, portanto, como uma linguagem simbólica de última instância, anterior à racionalização filosófica e à codificação científica, mas profundamente significativa.
Esse segundo uso, mais sofisticado e teologicamente fecundo, permite reabilitar o termo “mito” na hermenêutica bíblica. Afinal, os evangelhos não são apenas relatos históricos no sentido cronológico e documental; eles também operam como narrativas fundantes da fé cristã, textos cuja função é transmitir a verdade de um evento considerado salvífico, mesmo quando esse evento ultrapassa as categorias da experiência ordinária. A concepção virginal de Jesus, a transfiguração, os exorcismos, a ressurreição: todos esses elementos escapam à esfera do empiricamente verificável, mas constituem o núcleo da proclamação cristã.
É nesse ponto que se torna decisiva a distinção entre mito e história. A palavra grega historia (ἱστορία) significava originalmente “investigação baseada em testemunhos ou observação”, e com o tempo passou a denotar conhecimento que se pode verificar ou documentar por meios objetivos. Se mantida essa definição restrita de história, o mito aparece como seu oposto: aquilo que fala do invisível, do sagrado, do inacessível ao método histórico-crítico. Mas essa polarização, embora útil em certos contextos, é filosoficamente simplista. Muitos estudiosos contemporâneos reconhecem que a própria história é um discurso, e que as escolhas narrativas do historiador não estão isentas de pressupostos ideológicos ou linguísticos. Em outras palavras, mesmo a história mais objetiva carrega em si elementos interpretativos, tal como o mito.
No caso dos evangelhos, essa tensão se torna particularmente aguda. De um lado, há o desejo de afirmar que eles tratam de fatos reais, históricos, testemunhados por pessoas que conviveram com Jesus. De outro, percebe-se que a forma como esses fatos são narrados carrega intenções teológicas, ecos simbólicos do Antigo Testamento, e padrões narrativos que remetem a estruturas míticas. Ignorar essa duplicidade é empobrecer tanto a historicidade dos evangelhos quanto sua força literária e teológica.
Assim, o uso da categoria “mito” no estudo dos evangelhos requer dois esclarecimentos preliminares essenciais: (1) o termo não será usado em seu sentido vulgar de mentira ou fabulação, mas no sentido técnico de narrativa simbólica fundacional; e (2) seu valor dependerá diretamente do conceito de “história” que estiver sendo adotado. A teologia cristã não precisa temer o mito quando compreendido dessa forma — ao contrário, pode encontrar nele uma chave hermenêutica para comunicar, por meio de símbolos e imagens, aquilo que a linguagem literal e histórica não consegue captar plenamente: a irrupção do eterno no tempo, do divino no humano, do sagrado no comum.
A. David Friedrich Strauss: Mito como Expressão Narrativa da Fé
A aplicação do conceito de mito aos evangelhos encontrou uma inflexão decisiva no pensamento de David Friedrich Strauss (1808–1874), cuja obra Das Leben Jesu (1835–1836) marcou um ponto de inflexão na crítica teológica moderna. Herdeiro intelectual do racionalismo hegeliano e da nascente confiança na capacidade das ciências históricas em reconstruir “o que realmente aconteceu”, Strauss propôs um método inovador: examinar os relatos dos evangelhos não como registros de eventos sobrenaturais, mas como expressões mitológicas de convicções religiosas profundas da comunidade cristã primitiva.
A proposta de Strauss foi, ao mesmo tempo, ousada e escandalosa. Ele não se limitou a questionar a veracidade dos milagres — uma atitude já ensaiada por pensadores do Iluminismo —, mas foi além ao sugerir que a própria estrutura narrativa dos evangelhos tinha natureza mítica. Em seu modelo, o mito não era entendido como invenção arbitrária ou como produto da ignorância, mas como a forma natural de expressão de uma comunidade que experimenta o divino e precisa articular essa experiência em imagens, relatos e padrões simbólicos. Nesse sentido, os evangelhos não foram inventados com má-fé, mas são manifestações sinceras de fé, estruturadas segundo categorias míticas.
A principal operação hermenêutica de Strauss consistiu em deslocar o foco do milagre como evento para o milagre como narrativa. Ou seja, mais importante do que indagar se um milagre “aconteceu de fato” era perguntar: por que esta comunidade acreditava que esse milagre tinha acontecido? e o que esta narrativa expressa a respeito da identidade de Jesus? Nesse movimento, Strauss transformou o milagre de um fenômeno ontológico num fenômeno semiótico: um sinal carregado de sentido teológico e comunitário. A concepção virginal, por exemplo, seria a maneira de afirmar que Jesus é o “Filho de Deus”; a ressurreição, um modo de declarar que a morte não teve a última palavra sobre ele.
A radicalidade da abordagem de Strauss está em propor que os milagres dos evangelhos não são problemáticos porque parecem extraordinários, mas porque foram convertidos em elementos essenciais da fé cristã, embora não se sustentem como fatos históricos nos moldes modernos de verificação empírica. Para Strauss, as narrativas de milagres funcionam como “cristalizações” da crença na messianidade de Jesus — um Jesus cuja divindade não se impõe pelos fatos, mas emerge das histórias construídas sobre ele. Aqui, portanto, o milagre se torna uma linguagem da fé, e o mito a sua gramática.
Essa postura representava uma verdadeira subversão da teologia tradicional: os milagres, outrora considerados provas da divindade de Jesus, tornaram-se para Strauss obstáculos ao entendimento histórico, exigindo uma abordagem crítica que os “desfizesse” enquanto acontecimentos objetivos para melhor compreendê-los como expressões subjetivas da fé. Em vez de servir de evidência apologética, os milagres passaram a ser interpretados como construções da imaginação religiosa coletiva, organizadas segundo o modelo dos grandes mitos fundacionais.
É evidente que Strauss foi um homem de seu tempo. Sua confiança no método histórico-crítico refletia o otimismo epistemológico do século XIX, convencido de que os instrumentos da razão poderiam separar, com exatidão, o “Jesus histórico” do “Cristo da fé”. No entanto, seu maior legado não está necessariamente nas conclusões que tirou, mas no gesto metodológico que inaugurou: ler os evangelhos como textos compostos, mediados e mediados novamente, que exigem análise não apenas de conteúdo, mas de forma, função e contexto. Foi Strauss quem abriu caminho para uma leitura narrativa dos evangelhos — não no sentido de negar sua verdade, mas de transferi-la do plano do “evento bruto” para o plano do “significado construído”.
Ao considerar as narrativas evangélicas como mitos, Strauss não as desprezou; ao contrário, ele indicou que sua força está naquilo que elas significam, e não apenas no que (talvez) tenham descrito. Essa hermenêutica teve consequências duradouras, inclusive na teologia contemporânea, que ainda debate se o valor da fé cristã repousa na historicidade dos milagres ou na verdade proclamada por meio deles.
No entanto, deve-se também reconhecer os limites da abordagem straussiana. Sua confiança em uma separação absoluta entre fato e significado revelou-se epistemologicamente ingênua diante da complexidade das teorias narrativas e das críticas pós-modernas à objetividade histórica. Ademais, sua leitura excessivamente racionalista do mito deixou de lado sua função existencial e simbólica, algo que só seria retomado mais adiante por Bultmann, que enxergaria no mito não apenas um modo de narrar, mas um modo de viver e experimentar o mundo.
Ainda assim, a obra de Strauss permanece fundamental para todo esforço que se proponha a entender como as primeiras comunidades cristãs transformaram a figura de Jesus em narrativa — e essa narrativa em Escritura. Dizer que os evangelhos contêm mitos, na esteira de Strauss, não é o mesmo que afirmar que são falsos, mas que são veículos narrativos de uma verdade que transcende a própria narrativa.
B. Rudolf Bultmann: Mito, Existência e o Programa da Desmitologização
Se David Friedrich Strauss foi o precursor da análise dos evangelhos como mitos estruturados em torno da fé na messianidade de Jesus, Rudolf Bultmann (1884–1976) aprofundou e reformulou essa abordagem ao propor que o mito, longe de ser apenas um véu a ser retirado, é também o modo necessário e inevitável de expressão religiosa em determinadas épocas culturais. Sua obra, marcada por um vigor filosófico existencialista e um apurado senso hermenêutico, procurou tornar compreensível a mensagem do Novo Testamento em uma era que já não partilhava da visão cosmológica que sustentava a linguagem mítica dos primeiros cristãos.
Para Bultmann, o mito não é apenas um relato de acontecimentos extraordinários, mas uma maneira simbólica de conceber o mundo e expressar a experiência humana diante do mistério. O pensamento mítico, segundo ele, estrutura-se em categorias arcaicas: a divisão tripartida do cosmos (céu, terra e submundo), a intervenção de forças invisíveis no mundo natural, a personalização do bem e do mal em entidades como anjos e demônios, e a atribuição de eventos ordinários a causas sobrenaturais. Essa cosmovisão não apenas informa o conteúdo dos textos do Novo Testamento, mas molda a linguagem pela qual a fé cristã foi originalmente comunicada.
A tese central de Bultmann, contudo, não é uma mera crítica à mitologia antiga. Sua intenção é apologética e pastoral: tornar o evangelho compreensível ao homem moderno, que vive numa era moldada pela ciência, pela técnica e pela filosofia crítica. Ele afirma que é intelectualmente impossível, para o ser humano educado pela modernidade, continuar aceitando a explicação mítica do mundo tal como aparece nas Escrituras — sem que isso gere um conflito interno entre fé e razão. Como diz sua célebre frase:
“Man kann nicht elektrisches Licht und Radio benutzen, moderne medizinische und klinische Mittel bei Krankheit in Anspruch nehmen und gleichzeitig an die Geister- und Wunderwelt des Neuen Testaments glauben.”Por isso, propõe o programa da Entmythologisierung — ou desmitologização.
“Não se pode usar luz elétrica e rádio, recorrer à medicina moderna e, ao mesmo tempo, acreditar no mundo de espíritos e milagres do Novo Testamento”.
(Jochenteuffel.com)
A desmitologização, entretanto, não deve ser mal compreendida. Não se trata de eliminar os mitos do Novo Testamento ou rejeitar suas afirmações sobrenaturais em nome de um racionalismo científico. Trata-se, antes, de interpretar o conteúdo existencial da linguagem mítica: descobrir a verdade que ela tenta comunicar, apesar de estar envolta em formas simbólicas que já não são operativas na cultura moderna. Por exemplo, ao invés de discutir se Jesus realmente expulsou demônios, o foco deve ser colocado na experiência existencial da libertação do ser humano diante do mal que o escraviza. A linguagem mítica, nesse caso, é a roupagem simbólica de uma realidade antropológica profunda.
A chave da hermenêutica bultmanniana é o encontro com o querigma: a proclamação de Jesus Cristo como o evento decisivo da graça de Deus, que interpela a existência humana a tomar uma decisão autêntica. Toda a linguagem do Novo Testamento — incluindo milagres, aparições, ascensões, vozes do céu, intervenções angelicais — deve ser lida como expressão de um encontro entre Deus e o homem, um encontro que transforma a existência e a retira de sua alienação. Para Bultmann, o mito é a tentativa de traduzir esse encontro em linguagem compreensível para os homens de seu tempo; a tarefa do intérprete contemporâneo é fazer o mesmo, traduzindo o mesmo conteúdo existencial em categorias modernas.
Nesse sentido, o conceito de mito assume uma dupla função: de um lado, é uma construção cultural condicionada, e portanto superável; de outro, é uma linguagem de revelação que continua válida, desde que seja reinterpretada. A desmitologização, assim, não é uma negação da fé cristã, mas uma tentativa de resgatá-la de um cativeiro histórico-cultural, libertando o seu núcleo existencial de formas narrativas que hoje soam opacas ou ininteligíveis. Essa operação requer uma hermenêutica filosófica refinada, motivo pelo qual Bultmann recorre à filosofia existencial de Heidegger como meio de compreender o ser humano diante do chamado do Evangelho.
Contudo, a proposta de Bultmann não passou incólume pela crítica. Muitos a consideraram uma secularização inaceitável da fé cristã, uma espécie de rendição ao espírito do tempo. Outros apontaram a fragilidade de sua distinção entre forma mítica e conteúdo existencial, bem como a arbitrariedade com que determinava o que devia ser desmitologizado e o que podia ser preservado. A verdade é que sua proposta foi tanto um divisor de águas quanto um ponto de tensão: alguns a seguiram, outros a rejeitaram, mas quase ninguém pôde ignorá-la.
De toda forma, Bultmann trouxe uma contribuição duradoura: mostrou que o mito não precisa ser um obstáculo para a fé, mas pode ser um caminho de expressão dessa mesma fé — desde que compreendido em seu contexto cultural, simbólico e linguístico. E ao fazê-lo, lançou as bases para uma hermenêutica teológica que reconhece a necessidade de traduzir o Evangelho para cada nova geração, sem perder sua substância.
II. Mito e Milagre: Para Além dos Limites da História
A relação entre mito e milagre no contexto dos evangelhos exige uma reavaliação cuidadosa da própria noção de história. Desde o advento do racionalismo moderno e da consolidação do método histórico-crítico, tornou-se comum opor o mito à história e, por consequência, classificar o milagre como um componente problemático, ou mesmo inaceitável, dentro da historiografia científica. Um milagre, por definição, rompe a cadeia de causalidade previsível e verificável que fundamenta a epistemologia moderna. Por isso, quando lido segundo os critérios da historiografia empírica, o milagre é considerado uma “afirmação anti-histórica”, um evento que escapa aos instrumentos normativos da análise histórica.
Contudo, esse julgamento negativo do milagre não decorre da natureza do milagre em si, mas sim das limitações do método histórico adotado. A história crítica, como disciplina, só pode trabalhar com o que é acessível à observação direta ou indireta: documentos, testemunhos, cronologias, padrões repetíveis. Ela não está equipada para julgar fenômenos que se reivindicam únicos, transcendentais ou escatológicos — como a ressurreição de Jesus, por exemplo. Nesse sentido, a aplicação rígida da história como filtro epistemológico corre o risco de desqualificar precisamente aquilo que constitui o coração da fé cristã: o anúncio de que Deus interveio de maneira singular na história humana.
É nesse ponto que o mito pode, paradoxalmente, reabilitar o milagre como categoria teológica legítima. Se o mito é compreendido não como narrativa falsa, mas como relato simbólico que expressa verdades fundamentais além do alcance da história empírica, então o milagre pode ser interpretado como o “momento mítico” por excelência — isto é, como a linguagem simbólica usada para expressar a irrupção do eterno no tempo. O milagre não precisa ser uma suspensão das leis naturais nos moldes mecanicistas do deísmo, mas uma maneira simbólica e teológica de narrar que algo irrompeu no mundo ordinário com sentido transcendente.
A moderna física teórica oferece, inclusive, algumas aberturas que minam a rigidez do paradigma newtoniano que sustentava as antigas objeções ao milagre. A concepção do cosmos como um sistema fechado, causalmente determinado, deu lugar a visões mais complexas, marcadas por incertezas, indeterminações e por estruturas que permitem o surgimento do “improvável” como categoria real. Se a ciência atual reconhece que o universo pode comportar regiões não totalmente determináveis, ou que a matéria e energia se comportam de formas paradoxais em níveis quânticos, não é absurdo admitir — teologicamente — que a fé cristã possa apontar para uma agência divina que transcende e penetra esse sistema. Nesse contexto, a categoria de milagre volta a ter validade, não mais como afronta à ciência, mas como linguagem do sagrado em diálogo com os limites da compreensão humana.
Além disso, há uma limitação inerente ao julgamento histórico: a incapacidade de lidar com o totalmente único. O método histórico depende da analogia e da repetição — só pode julgar algo como provável se houver paralelos e padrões. Mas os evangelhos afirmam que em Jesus se deu um acontecimento sem paralelo: sua vida, morte e ressurreição são apresentados como eventos singulares que escapam à categorização histórica tradicional. Dizer que ele “ressuscitou dentre os mortos” não é apenas afirmar um evento extraordinário; é afirmar o evento primordial, aquele que redefine todos os outros, mas que por si mesmo não pode ser explicado à luz de eventos anteriores. O milagre, nesse sentido, funciona como o “ponto de origem” de uma nova realidade, e sua linguagem é necessariamente simbólica, pois ultrapassa a capacidade explicativa da história.
Assim, o milagre nos evangelhos deve ser lido mais como “evento mítico-teológico” do que como “anomalia histórica”. A questão central não é se houve ou não um milagre em sentido empiricamente verificável, mas sim qual é o sentido do milagre dentro da narrativa da fé. O foco desloca-se do evento enquanto fenômeno para o evento enquanto significado: o que este milagre comunica sobre Deus, sobre o ser humano, sobre o mundo? Nesse sentido, a linguagem mítica torna-se ferramenta hermenêutica para acolher o milagre não como violação da razão, mas como provocação à sua abertura ao mistério.
Portanto, longe de ser um estorvo, o mito pode ser a linguagem necessária para que os milagres dos evangelhos mantenham sua força comunicativa numa época marcada por ceticismo, mas também por sede de sentido. A desconfiança moderna frente aos milagres pode ser superada não apenas por apelos à evidência, mas por um reconhecimento mais profundo da potência simbólica que essas narrativas carregam — potência que só pode ser plenamente apreciada quando se reconhece que o evangelho, como os grandes mitos, é uma resposta simbólica ao enigma da existência humana diante do sagrado.
III. Mito e Midrash: Estrutura, Escritura e Reescritura nos Evangelhos
Se o mito pode ser compreendido como uma narrativa simbólica que expressa a verdade profunda de uma comunidade sobre o mundo, Deus e o ser humano, o midrash é, por sua vez, uma técnica literária e hermenêutica que reinterpreta o texto sagrado a partir da sua continuidade e da sua capacidade de gerar novos sentidos. A conjunção dessas duas categorias — mito e midrash — revela um aspecto essencial da composição dos evangelhos: sua profunda dependência das Escrituras hebraicas, não apenas como fonte de autoridade, mas como campo de ressonância simbólica, teológica e narrativa.
O evangelho, enquanto texto, não nasce em um vácuo religioso ou literário. Ele emerge de uma matriz profundamente judaica, onde os eventos presentes são constantemente narrados à luz de modelos e padrões antigos. Esse recurso não é apenas estilístico, mas é expressão de uma convicção teológica fundamental: Deus age no presente como agiu no passado. A história de Jesus é apresentada como cumprimento, reinterpretação e renovação das promessas divinas, e o modo como isso é narrado muitas vezes se assemelha ao procedimento midráshico: a reescritura criativa das Escrituras, a partir de chaves simbólicas que atualizam o sentido antigo para novas situações.
O midrash, tal como se desenvolveu na tradição rabínica, é um exercício de leitura teológica que parte da crença de que a Escritura nunca está esgotada, que cada versículo comporta múltiplas camadas de sentido, e que os acontecimentos da história humana são novos capítulos da contínua autorrevelação de Deus. Os evangelhos partilham dessa visão. Eles são, em grande parte, narrativas que funcionam como midrashim cristãos, reelaborando figuras, eventos e promessas do Antigo Testamento para apresentar Jesus como o novo Moisés, o novo Davi, o novo Elias, o novo Israel.
A tentação de Jesus no deserto, por exemplo (Mt 4:1–11), pode ser lida como uma reescritura midráshica de Deuteronômio 6–8. As respostas de Jesus ao tentador são todas citações dessas passagens, e o cenário do deserto evoca claramente os 40 anos de provação de Israel após o Êxodo. A narrativa não visa meramente descrever um evento isolado na vida de Jesus, mas afirmar que nele Israel foi finalmente fiel, que ele triunfou onde o povo outrora falhou. Trata-se de uma releitura simbólica da história de Israel à luz da figura de Jesus, o que é exatamente a função do midrash.
Outro exemplo é encontrado nas narrativas de nascimento. Os relatos de Mateus e Lucas não são apenas biografias espirituais de Jesus; são composições literárias cuidadosamente elaboradas que se baseiam em tipologias veterotestamentárias. A concepção miraculosa de Maria remete a narrativas semelhantes envolvendo Sara (Gn 18), Ana (1Sm 1) e a esposa de Manoá (Jz 13). A visita dos magos é construída em torno de Números 24:17 e Isaías 60:3, criando um quadro simbólico de cumprimento messiânico e manifestação da glória divina às nações.
Em Marcos 4:35-41, o episódio do acalmar da tempestade ressoa intensamente com a história de Jonas. Ambos os relatos envolvem uma travessia marítima, uma tempestade súbita, um personagem dormindo enquanto os outros temem pela vida, e um milagre que provoca temor e maravilhamento. Marcos, ao construir essa narrativa, não está apenas relatando um evento; está inserindo Jesus numa tradição simbólica, apresentando-o como aquele que possui autoridade sobre os mares e as forças do caos, tal como o Deus de Israel demonstrara no passado.
O uso desse recurso hermenêutico intensifica a natureza simbólica — e, nesse sentido, mítica — dos relatos evangélicos. Como o mito, o midrash não visa apenas informar, mas transformar: ele propõe uma nova leitura da realidade à luz de uma revelação anterior. A combinação de ambos — a profundidade simbólica do mito e a exegese viva do midrash — torna os evangelhos não apenas uma narrativa sobre Jesus, mas uma reinterpretação do mundo à luz de Jesus, moldada pelas Escrituras.
A função da linguagem mítica, nesse contexto, é elevar o acontecimento a um plano de significação mais denso, mais carregado de memória teológica e expectativa escatológica. O milagre deixa de ser apenas um prodígio isolado e torna-se um sēmeion (sinal), como no Quarto Evangelho, um indício simbólico que remete ao seu autor divino. O gesto de Jesus caminha junto com a Palavra de Deus pronunciada outrora. O Cristo que caminha sobre as águas (Mt 14; Mc 6) é o mesmo que no Antigo Testamento “anda sobre os altos do mar” (Jó 9:8). A teologia evangélica se constrói como memória recriada, como Escritura que se cumpre no presente.
Assim, reconhecer nos evangelhos traços de estrutura mítica e midráshica não significa negá-los enquanto história, mas enriquecer sua leitura, percebendo como os autores e as comunidades que produziram esses textos não apenas reportavam eventos, mas construíam sentidos teológicos a partir de estruturas simbólicas herdadas. A verdade que eles proclamam não depende exclusivamente da verificabilidade dos eventos, mas da capacidade que esses eventos possuem de ser lidos à luz da história de Deus com seu povo.
IV. A Tensão Entre Universalidade Mítica e Unicidade Cristológica
A história religiosa da humanidade é profundamente marcada por narrativas que giram em torno de arquétipos universais: o nascimento miraculoso, o salvador sofredor, o herói divino que morre e retorna, o redentor solar que vence as trevas, o deus que encarna, sofre, é traído, morre e ressuscita. Desde as tablaturas sumérias até os Vedas da Índia, passando pelos mitos egípcios, gregos, semíticos e chineses, emerge um padrão narrativo recorrente que parece responder a inquietações fundamentais do espírito humano: o que está além da morte? Como se vence o mal? Pode um deus se fazer homem?.
Em meio a essa tapeçaria mítica global, os evangelhos canônicos do Novo Testamento se posicionam de forma tensa e singular. Por um lado, eles compartilham elementos formais com muitos mitos universais: a concepção virginal, a tentação no deserto, os milagres sobre a natureza, a morte vicária, a ressurreição gloriosa, a ascensão aos céus. Por outro lado, e mais decisivamente, os evangelhos se afirmam como testemunho histórico e escatológico de um evento único e irrepetível: a encarnação de Deus em Jesus de Nazaré, sua vida entre os homens e sua vitória definitiva sobre a morte. É justamente essa tensão que este capítulo pretende explorar com rigor — não para diluir os evangelhos em mitologia comparada, mas para compreender melhor seu alcance simbólico, literário e teológico.
O uso da mitologia comparada na leitura dos evangelhos remonta às primeiras tentativas de pensar o cristianismo como fenômeno religioso dentro de um contexto mais amplo. Já no século XIX, estudiosos começaram a notar paralelos entre o Jesus dos evangelhos e figuras como Hórus, Osíris, Mitra, Dioniso, Krishna e Buda. Alguns desses estudos derivaram para teorias radicais que negavam a existência histórica de Jesus, o que não será, de forma alguma, a premissa deste livro. Ao contrário: nosso ponto de partida é que Jesus existiu histórica e concretamente, mas que sua figura — por sua profundidade espiritual e sua significação escatológica — foi narrada em categorias que encontram ressonância com mitos universais.
A análise será feita em três direções principais: (1) por meio de estruturas narrativas e padrões simbólicos, mostrando como os evangelhos se apropriam e reelaboram temas míticos universais; (2) por meio de textos originais, examinando excertos de literatura suméria, egípcia, grega clássica, védica e chinesa, sempre com os devidos cuidados filológicos; e (3) por meio de uma reflexão teológica e cristológica, que reafirma a singularidade da fé cristã como resposta escatológica a essas expectativas universais. A análise não pretende nivelar todos os mitos, nem tampouco afirmar uma “teoria do plágio”. Ao contrário, parte-se do pressuposto que a verdade se comunica por analogia, e que a vinda do Cristo pode, de fato, cumprir e transcender as intuições religiosas que brotaram das culturas antigas.
Por fim, é necessário destacar que a metodologia aqui adotada não será especulativa, mas filologicamente fundamentada. Sempre que possível, os mitos citados serão apresentados com trechos em suas línguas originais — seja em 𒀭𒊩𒌆𒉡 (Dumuzi, sumério), 𓁹𓂋𓊪𓂧 (rʿ-pd, egípcio), κλέος ἄφθιτον (kleos aphthiton, grego), कृष्णः (kṛṣṇaḥ, sânscrito) ou 生而復死 (shēng ér fù sǐ, chinês). Isso permitirá ao leitor perceber não apenas as semelhanças narrativas, mas também as particularidades linguísticas e culturais que moldam a mitopoética de cada tradição. A análise será feita em partes, a fim de permitir o exame paciente e sistemático de cada tradição em sua relação com os evangelhos.
V. Dumuzi e Tammuz: A Morte do Pastor Divino e a Ressurreição Cíclica
Entre os mitos mais antigos da humanidade, o ciclo da morte e retorno de Dumuzi (em sumério 𒌉𒍣𒍪, DUMU.ZI) — identificado posteriormente na tradição acádia como Tammuz (𒌉𒍣𒍪, Dumuzi, ou em acádio 𒀭𒌉𒍣𒍪, Damuzi) — ocupa lugar central nas cosmogonias do Crescente Fértil. A narrativa, fixada em fragmentos desde o terceiro milênio a.C., sobretudo nos textos sumérios como Inanna’s Descent to the Netherworld, apresenta a história de um deus-pastor amado pela deusa Inanna (𒈹𒀭𒈹) que é entregue ao submundo e, em algumas versões, ressurge ou tem seu retorno negociado parcialmente. Tal narrativa fornece, já no horizonte da religião sumério-acadiana, um arquétipo profundamente enraizado: o do jovem divino que morre e retorna — símbolo do ciclo agrícola, da fertilidade, e da perpetuação da vida.
Na Descida de Inanna, texto conservado no original cuneiforme sumério (ex.: ETCSL 1.4.1), lemos que Inanna desce ao mundo dos mortos e, ao retornar, entrega Dumuzi como substituto:
“𒁹𒂟𒈨𒊒 𒉺𒀀𒀭𒁕 𒋗 𒈾 𒊒𒁍 𒋾 𒈨𒌍 𒂍”A lamentação por Tammuz/Dumuzi tornou-se elemento litúrgico entre os acadianos e depois entre os hebreus (cf. Ez 8:14), onde mulheres são vistas “chorando por Tamuz” no templo, o que atesta a sobrevivência desse culto até o exílio babilônico.
(Dumuzi pa-anda in-na-ru-mu ti-me-eš e — “Dumuzi foi entregue como substituto, ele morrerá”).
O paralelo com a narrativa de Jesus nos evangelhos é, à primeira vista, estrutural: ambos são pastores (Dumuzi é literalmente chamado “sipad” = pastor), ambos são associados à fertilidade, ambos descem à “região dos mortos” (o submundo sumério — kur 𒆳 — em oposição ao Sheol hebraico), ambos têm sua morte lamentada por mulheres, e ambos, de alguma forma, retornam.
Contudo, as diferenças são teologicamente decisivas. A morte de Dumuzi é cíclica e cósmica — ligada ao ritmo da natureza, à estação seca e à alternância entre ausência e presença da fertilidade. Sua “ressurreição”, se é que se pode usar esse termo, é temporária, simbólica e compartilhada com outros deuses da vegetação (como Adônis, Baal, Osíris). A de Jesus, por outro lado, é histórica e escatológica, ocorrida “uma vez por todas” (ἐφάπαξ, cf. Hb 9:12) e vinculada à redenção universal, não apenas à renovação sazonal.
Além disso, Jesus não é entregue ao submundo como substituto de uma deusa que deseja escapar da morte — ele voluntariamente entrega sua vida (δίδωμι τὴν ψυχήν μου, Jo 10:11) em obediência ao Pai e por amor ao mundo. A motivação é ética e soteriológica, não ritual ou agrícola.
O eco narrativo, porém, é inegável. O lamento de Inanna por Dumuzi —
“𒄑𒍪𒌝𒍣𒊒𒀀𒀀𒀭𒂗𒍪” (ki-tuš Dumuzi ru-a-a en-dug — “Na morada de Dumuzi, o choro ressoa”) — é antecipação poética do pranto das mulheres junto ao túmulo de Jesus (Jo 20:11), e o retorno parcial de Dumuzi simboliza a expectativa de reconciliação e renovação — ideias que os evangelhos reelaboram com densidade escatológica. Jesus não apenas retorna: ele inaugura uma nova criação (2Co 5:17), o que subverte o padrão cíclico dos mitos antigos e introduz uma visão linear e teleológica da história.
A crítica moderna, especialmente de viés comparatista, tem insistido em paralelos de detalhe: três dias no submundo, mães virgens, seguidores fiéis, lamentações femininas. Contudo, o mais importante não são essas semelhanças externas, mas a diferença radical no significado da morte e da volta à vida. Dumuzi morre porque a vida natural exige sua descida; Jesus morre por causa do pecado humano e ressuscita para instaurar um Reino eterno. A teologia cristã jamais absorveu o ciclo naturalista da fertilidade[1] — ao contrário, ela afirmou um evento histórico-soteriológico que rompe com o ciclo da morte.
Os evangelhos se servem de arquétipos universais como linguagem simbólica, mas os transfiguram completamente: o pastor morre, sim — mas o faz por amor, de uma vez por todas, e ressuscita não para repetir um ciclo, mas para inaugurar a eternidade. É por isso que a morte de Jesus não pode ser reduzida a mais um “mito do deus que morre”. Ela é, na teologia cristã, o fim dos mitos, no sentido de que o símbolo encontra seu cumprimento na realidade escatológica de Cristo.
VI. A Verdade do Evangelho Para Além do Mito Vulgar
Ao longo deste estudo, aprofundamo-nos na complexa e fascinante intersecção entre os Evangelhos e a noção de “mito universal”. Distanciando-nos da conotação pejorativa de “mito” como falsidade, defendemos que os relatos evangélicos, ao compartilharem estruturas narrativas e simbólicas com as grandes narrativas fundadoras da humanidade, não perdem sua verdade, mas a revelam em uma camada mais profunda e universal. Exploramos como a crítica moderna, através de figuras como David Friedrich Strauss e Rudolf Bultmann, abriu caminho para uma compreensão do mito não como obstáculo, mas como linguagem existencial e teológica para articular a fé.
Demonstrou-se que a rigidez do método histórico-crítico é insuficiente para captar a plenitude dos milagres evangélicos. Estes, longe de serem meras anomalias factuais, podem ser entendidos como “eventos mítico-teológicos” — linguagens simbólicas que expressam a irrupção do divino no tempo e comunicam verdades profundas sobre a agência de Deus e o sentido da existência. A análise da relação entre mito e midrash revelou a natureza criativa e interpretativa dos Evangelhos, que, ao reescreverem as Escrituras hebraicas, estabelecem Jesus como o cumprimento e a ressignificação das promessas divinas.
A investigação da tensão entre a universalidade mítica e a unicidade cristológica foi crucial. Reconhecemos os ecos de arquétipos universais, como o “deus que morre e retorna” exemplificado por Dumuzi/Tammuz. Contudo, salientamos que, enquanto mitos como o de Dumuzi narram ciclos naturais de morte e renovação, a morte e ressurreição de Jesus são apresentadas como eventos históricos, únicos e escatológicos, que rompem com a ciclicidade para inaugurar uma nova criação e uma redenção definitiva. Essa distinção teologicamente decisiva eleva o cristianismo, não o diminui.
Nesse sentido, as semelhanças entre os Evangelhos e os mitos universais podem ser vistas através das lentes da sincronicidade junguiana, que aponta para as estruturas arquetípicas do inconsciente coletivo. A limitação da criatividade humana e a universalidade das experiências existenciais levam naturalmente à recorrência de temas fundamentais. Longe de serem evidências de plágio ou de minarem a singularidade cristã — como sugerem teorias conspiratórias como a de Cristo-Hórus, marginalizadas pela academia e desmentidas por historiadores como Bart D. Ehrman, que afirmam a historicidade de Jesus —, essas recorrências podem ser interpretadas como indícios de uma revelação divina mais ampla.
Assim, a presença de elementos míticos nos Evangelhos não enfraquece a fé cristã; ao contrário, a enriquece. Ela corrobora a visão paulina de Romanos 1:19-20, de que a verdade de Deus se manifesta universalmente, e ressoa com a abordagem de Atos 17:22-31, onde Paulo usa o “deus desconhecido” como um ponto de conexão para proclamar o Cristo. Ao invés de ser uma narrativa isolada, o Evangelho se insere na busca milenar da humanidade por sentido, oferecendo uma resposta que não anula as intuições antigas, mas as cumpre e transcende. Compreender os Evangelhos sob a ótica do mito universal, portanto, é reconhecer sua profunda ressonância com a psique humana e sua resposta singular e definitiva aos anseios mais universais da existência.
Notas de Rodapé
Alguns incautos e odiadores do Cristianismo costumam apontar para 1 Coríntios 15:35-44, onde Paulo desenvolve bem a doutrina da Ressurreição ao compará-la ao processo agrícula da “morte” da semente, que ressurge ao brotar em um novo corpo (a árvore). Com isso buscam concatenar a ressurreição de Jesus com os mitos pagão de deuses agrículas que foram abordados nesse artigo. Para uma explicação detalhada sobre o esses versículos, veja meu comentário sobre 1 Coríntios 15. Voltar ↑
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